NOS ÚLTIMOS DOIS DIAS, eu tinha visto muitas coisas malucas, mas o Salão das Eras levava o prêmio. Fileiras duplas de pilares de pedra sustentavam um teto tão alto que seria possível estacionar um dirigível ali, sem problemas. Um tapete azul cintilante que parecia água se estendia pelo meio do salão, tão comprido que eu não conseguia ver o final, apesar da iluminação radiante. Bolas de fogo flutuavam como balões de gás hélio do tamanho de bolas de basquete e mudavam de cor sempre que se chocavam. Milhões de pequeninos símbolos hieroglíficos também pairavam no ar, combinando-se aleatoriamente para formar palavras que se desmanchavam em seguida.
Eu agarrei um par de pernas vermelhas brilhantes. Elas caminharam pela palma de minha mão antes de saltarem e se dissolverem no ar. O mais esquisito, porém, eram asprojeções.
Não sei que outro nome poderia dar àquilo. Entre as colunas à direita e à esquerda, imagens iam se sucedendo, aparecendo, ganhando foco e depois se tornando turvas novamente, como hologramas em uma tempestade de areia.
— Venham — chamou Zia. — E não fiquem olhando por muito tempo.
Era impossível não olhar. Nos primeiros seis metros, mais ou menos, as cenas mágicas espalhavam um brilho dourado pelo salão. Um sol abrasador se erguia acima de um oceano. Uma montanha emergia da água, e eu tive a sensação de estar assistindo ao nascimento de um novo mundo. Gigantes caminhavam pelo Vale do Nilo: um homem de pele negra e cabeça de chacal, uma leoa com as presas ensanguentadas, uma linda mulher com asas de luz.
Sadie saiu do tapete. Em transe, estendeu a mão para as imagens.
— Fique no tapete! — Zia agarrou a mão dela e a puxou de volta para o meio do salão. — Estão vendo a Era dos Deuses. Nenhum mortal deveria deparar com essas imagens.
— Mas... — Sadie piscou. — São só imagens, não são?
— Lembranças — revelou Zia. — Tão poderosas que poderiam destruir sua mente.
— Ah... — murmurou Sadie.
Continuamos andando. As imagens mudaram para uma tonalidade prateada. Vi exércitos em combate – egípcios de saiotes, sandálias e armadura de couro, lutando com lanças. Um homem alto de pele escura em uma armadura vermelha e branca pôs sobre a própria cabeça uma coroa dupla: Narmer, o rei que unificara o Alto e o Baixo Egitos. Sadie estava certa: ele era mesmo um pouco parecido com papai.
— É o Velho Reino — deduzi. — A primeira grande era do Egito.
Zia assentiu. Enquanto caminhávamos pelo salão, vimos operários construindo com pedras a primeira pirâmide de degraus. Mais alguns passos, e a maior de todas as pirâmides se erguia no deserto de Gizé. Seu exterior de pedras brancas e lisas brilhava ao sol. Dez mil trabalhadores se reuniam na base dessa pirâmide, ajoelhados diante do faraó, que erguia as mãos para o sol, consagrando a própria tumba.
— Khufu.
— O babuíno? — perguntou Sadie, de repente interessada.
— Não, o faraó que construiu a Grande Pirâmide — respondi. — Foi a estrutura mais alta do mundo por quatro mil anos.
Mais alguns passos, e as imagens passaram de prata a cobre.
— O Reino Médio — anunciou Zia. — Um período caótico, sangrento. Mas foi nesse tempo que a Casa da Vida chegou à maturidade.
As cenas mudavam mais depressa. Vimos exércitos lutando, templos sendo construídos, embarcações navegando no Nilo e magos lançando chamas. Cada passo cobria séculos, mas o salão ainda se estendia eternamente diante de nós. Pela primeira vez, entendi quanto o Egito era antigo.
Atravessamos outra fronteira, e a luz se tornou cor de bronze.
— O Novo Reino — adivinhei. — Último período em que o Egito foi governado por egípcios.
Zia não disse nada, mas vi cenas que meu pai tinha descrito para mim: Hatshepsut, a mais grandiosa mulher faraó, colocando uma barba falsa e governando o Egito como um homem; Ramsés, o Grande, levando suas carruagens para a batalha. Vi magos em ação no interior de um palácio. Um homem de vestes rasgadas, com uma longa barba negra e olhos desvairados, arremessou seu cajado, que se transformou em uma serpente e devorou outras doze cobras.
Um nó se formou em minha garganta.
— Aquele é...
— Musa — completou Zia. — Ou Moshê, como seu próprio povo o chama. Vocês o conhecem como Moisés. O único estrangeiro que já derrotou a Casa em um duelo mágico.
Olhei para ela.
— Está brincando, não é?
— Ninguém aqui brincaria com esse tipo de coisa.
A cena mudou novamente. Vi um homem debruçado sobre uma mesa onde havia figuras de guerra: navios de madeira, soldados e carruagens de brinquedo. O homem estava vestido como um faraó, mas seu rosto parecia estranhamente familiar. Ele levantou a cabeça, e foi como se sorrisse para mim. Com um arrepio, reconheci naqueles traços o rosto do ba, o espírito-pássaro que tinha me desafiado na ponte.
— Quem é aquele? — perguntei.
— Nectanebo II — respondeu Zia. — O último rei egípcio nativo e último faraó feiticeiro. Ele podia mover exércitos inteiros, criar ou destruir navios movimentando as peças em seu tabuleiro, mas, no final, essa habilidade não foi suficiente.
Atravessamos outra linha e as imagens ficaram azuis.
— Esses são os tempos Ptolomaicos — disse Zia. — Alexandre, o Grande, conquistou todo o mundo conhecido, inclusive o Egito. Ele entronou seu general Ptolomeu como novo faraó e inaugurou uma linhagem de reis gregos que governaram o Egito.
A área Ptolomaica do salão era menor e parecia triste comparada às outras. Os templos eram menores. Os reis e as rainhas pareciam desesperados, ou preguiçosos, ou simplesmente apáticos. Não havia grandes batalhas... exceto perto do fim. Vi romanos marchando para a cidade de Alexandria. Vi uma mulher com cabelos escuros e um vestido branco colocando uma cobra dentro do próprio decote.
— Cleópatra — anunciou Zia. — A sétima rainha com esse nome. Ela tentou enfrentar a poderosa Roma e perdeu. Quando pôs fim à própria vida, levou com ela a última linhagem de faraós. O Egito, a grande nação, desapareceu. Nossa língua foi esquecida. Os antigos ritos foram suprimidos. A Casa da Vida sobreviveu, mas fomos obrigados a nos esconder.
Passamos para uma área iluminada em vermelho, e a história começou a me parecer conhecida. Vi exércitos árabes marchando para o Egito, depois turcos. Napoleão conduziu seu exército à sombra das pirâmides. Chegaram os britânicos, que construíram o Canal de Suez. Lentamente, o Cairo se transformou em uma cidade moderna. E as velhas ruínas desapareceram mais e mais sob a areia do deserto.
— Todo ano — Zia nos disse — o Salão das Eras fica maior, a fim de abranger nossa história. Até os tempos atuais.
Eu estava tão perplexo que, até Sadie agarrar meu braço, nem percebi que havíamos chegado ao final do salão.
Diante de nós havia um tablado e, nele, um trono vazio, uma cadeira de madeira pintada de dourado com um mangual e um cajado de pastor entalhados no encosto – os antigos símbolos do faraó.
No degrau sob o trono estava sentado o homem mais velho que já vi. Sua pele era como o papel daqueles sacos de pão: marrom, fina e enrugada. Vestes de linho branco pendiam, largas, de seu corpo magro e pequeno.
Pele de leopardo cobria seus ombros e sua mão segurava, trêmula, um grande cajado de madeira, e eu tinha certeza de que ele o deixaria cair a qualquer minuto. No entanto, o mais estranho de tudo: os hieróglifos brilhantes pareciam emanar dele. Os símbolos multicoloridos surgiam a seu redor e flutuavam para longe, como se ele fosse uma espécie de máquina mágica de bolinhas de sabão.
No início, não consegui saber ao certo nem se ele estava vivo. Seus olhos leitosos fitavam o espaço. Depois, ele os focou em mim, e uma corrente elétrica percorreu meu corpo. Ele não estava apenas me olhando. Estava me analisando – lendo todo o meu ser.
Esconda, falou alguma coisa dentro de mim.
Não sei de onde veio aquela voz, mas meu estômago se contraiu. Todo o meu corpo ficou tenso, como se eu me preparasse para receber um golpe, e a sensação de eletricidade perdeu força.
O homem ergueu uma sobrancelha, como se eu o tivesse surpreendido. Ele olhou para trás, por cima do ombro, e disse algo em uma língua que eu não reconhecia.
Um segundo homem surgiu das sombras. Eu quis gritar. Era o homem que estivera com Zia no British Museum – aquele da túnica cor de creme e da barba bifurcada.
O homem barbudo olhou para Sadie e para mim.
— Eu sou Desjardins — apresentou-se com sotaque francês. — Meu mestre, Sacerdote-leitor Chefe Iskandar, dá a vocês as boas-vindas à Casa da Vida.
Eu não consegui pensar em nada para dizer, por isso, é claro, fiz uma pergunta estúpida.
— Ele é muito velho. Por que não está sentado no trono?
As narinas de Desjardins se dilataram, mas o velho, Iskandar, apenas riu, e disse alguma frase naquele idioma desconhecido.
Desjardins traduziu, tenso.
— O mestre agradece por ter notado; ele é mesmo muito velho. Mas o trono é para o faraó. Está vago desde a queda do Egito diante de Roma. É... comment dit-on? Simbólico. O papel do Sacerdote-leitor Chefe é servir e proteger o faraó. Portanto, ele se senta ao pé do trono.
Olhei para Iskandar com certo nervosismo. Havia quantos anos ele estava sentado naquele degrau?
— Se você... se ele consegue entender inglês... que idioma está falando?
Desjardins bufou.
— O Sacerdote-leitor Chefe entende muitas coisas. Mas ele prefere falar o grego alexandrino, sua língua materna.
Sadie limpou a garganta, fingindo tossir.
— Desculpe, mas, sua língua materna? Alexandre, o Grande, não ficou lá atrás, na seção azul, há milhares de anos? Está falando como se o Lorde Salamandra fosse...
— Lorde Iskandar — Desjardins sibilou. — Tenha respeito!
Algo se encaixou em minha mente: no Brooklyn, Amós havia falado sobre a lei dos magos que proibia invocar deuses – uma lei criada nos tempos romanos pelo Sacerdote-leitor Chefe... Iskandar. Devia ser outro cara. Talvez estivéssemos falando com Iskandar XXVII ou coisa parecida.
O velho me olhou nos olhos. Ele sorriu, como se soubesse exatamente o que eu estava pensando. Depois, disse alguma frase em grego, e Desjardins traduziu.
— O mestre pede que não se preocupem. Não serão responsabilizados pelos crimes praticados anteriormente por seus familiares. Pelo menos, não até que os tenhamos investigado completamente.
— Ah... obrigado — respondi.
— Não deboche de nossa generosidade, menino — Desjardins me avisou. — Seu pai desrespeitou duas vezes a mais importante lei: uma vez na Agulha de Cleópatra, quando tentou invocar os deuses e a mãe de vocês morreu enquanto o ajudava. Depois, novamente, no British Museum, quando foi tolo o suficiente para usar a Pedra de Roseta real. Agora, seu tio também está desaparecido...
— Sabe o que aconteceu ao tio Amós? — Sadie se inquietou.
Desjardins franziu o cenho.
— Ainda não — admitiu.
— Vocês precisam encontrá-lo! — gritou Sadie. — Não existe algum tipo de GPS mágico ou...
— Estamos procurando — Desjardins a interrompeu. — Mas vocês não podem se preocupar com Amós. Devem ficar aqui. Precisam ser... treinados.
Tive a impressão de que ele ia dizer outra palavra, alguma menos gentil que treinados.
Iskandar falou diretamente a mim. Seu tom soava bondoso.
— O mestre o previne do início dos Dias do Demônio, amanhã, ao pôr do sol — Desjardins traduziu. — Precisam ser mantidos em segurança.
— Mas precisamos encontrar nosso pai! — protestei. — Há deuses perigosos soltos por aí. Vimos Serket. E Set!
Ao ouvir esses nomes, Iskandar assumiu uma expressão mais fechada, tensa. Ele se virou para falar a Desjardins o que soou como uma ordem. Desjardins protestou. Iskandar repetiu o que dissera. Desjardins não gostara daquilo, era evidente, mas se curvou para seu mestre. Depois, ele se virou para mim.
— O Sacerdote-leitor Chefe quer ouvir sua história.
Então contei a história, e Sadie ajudava com alguns trechos e dava opiniões sempre que eu fazia uma pausa para respirar. O engraçado foi que nós dois omitimos certas partes sem termos planejado nada. Não mencionamos as habilidades de Sadie para a magia ou o encontro com o ba que me chamou de rei. Era como se eu não pudesse, literalmente, mencionar esses trechos. Sempre que tentava, a voz dentro de minha cabeça sussurrava: Essa parte não. Fique quieto.
Quando terminei, olhei para Zia. Ela nada disse, mas me observava com uma expressão preocupada. Iskandar traçou um círculo no degrau usando a ponta de seu cajado. Mais hieróglifos surgiram no ar e flutuaram para longe.
Após vários segundos, Desjardins deu sinais de impaciência. Ele se adiantou um passo e olhou para nós com evidente desprazer.
— Estão mentindo. Não pode ter sido Set. Ele precisaria de um hospedeiro poderoso para permanecer neste mundo. Muito poderoso.
— Escute aqui, você — Sadie manifestou-se. — Não sei que idiotice é essa sobre hospedeiros, mas eu vi Set. Você estava no British Museum, deve tê-lo visto também. E se Carter o viu em Phoenix, Arizona, então...
Ela olhou para mim como se tivesse um instante de dúvida.
— Então, ele provavelmente não está maluco.
— Obrigado, irmã — murmurei, mas Sadie estava apenas começando.
— E Serket também é real! Nossa amiga, minha gata Bastet, morreu nos protegendo dela!
— Então — Desjardins respondeu com frieza — você admite manter contato com os deuses. Isso torna nossa investigação mais fácil. Bastet não é sua amiga. Os deuses causaram a queda do Egito. É proibido invocar seus poderes. Os magos estão sob juramento para impedir que deuses interfiram no mundo mortal. Devemos usar todo o nosso poder para combatê-los.
— Bastet disse que você é paranoico — disparou Sadie.
O mago cerrou os punhos e o ar ganhou, de repente, aquele cheiro estranho de ozônio, como acontece durante uma tempestade de raios e trovões. Os pelos em minha nuca ficaram em pé. Antes que algo terrível pudesse acontecer, Zia tomou a frente.
— Lorde Desjardins — disse ela — havia mesmo algo estranho. Quando destruí a deusa escorpião, ela se recompôs quase instantaneamente. Não consegui devolvê-la ao Duat, nem mesmo com as Sete Fitas. Consegui apenas romper seu domínio sobre o hospedeiro por alguns momentos. Talvez os boatos sobre outras fugas...
— Que outras fugas? — perguntei.
Ela me encarou, relutante.
— Outros deuses, muitos deles, foram libertados, desde ontem à noite, de artefatos espalhados pelo mundo. Foi como uma reação em cadeia...
— Zia! — Desjardins irritou-se. — Essa informação não deve ser divulgada.
— Escute — comecei — lorde, senhor, tanto faz... Bastet nos avisou que isso tinha acontecido. Ela disse que Set libertaria mais deuses.
— Mestre — suplicou Zia — se o Maat está enfraquecendo, se Set está alimentando o caos, talvez por isso não tenhamos conseguido banir Serket.
— Ridículo — declarou Desjardins. — Você é habilidosa, Zia, mas é possível que sua habilidade não tenha sido suficiente para esse encontro. E quanto a esses dois, a contaminação deve ser contida.
O rosto de Zia ficou vermelho. Ela olhou para Iskandar.
— Mestre, por favor. Dê-me uma chance com eles.
— Está esquecendo qual é seu lugar — Desjardins a censurou. — Esses dois são culpados e devem ser destruídos.
Minha garganta começou a fechar. Olhei para Sadie. Se tivéssemos de correr pelo salão para escapar, eu nem queria pensar em quais seriam nossas chances...
O homem idoso finalmente levantou os olhos. Ele sorriu para Zia com sincero afeto. Por um segundo, imaginei se ele seria o tataravô dela, ou se teria algum outro parentesco. Ele falou em grego e Zia se curvou com austeridade.
Desjardins parecia prestes a explodir. Ele suspendeu a bainha da túnica, a fim de não tropeçar nela, e caminhou para trás do trono.
— O Sacerdote-leitor Chefe vai permitir que Zia os ponha à prova — resmungou. — Enquanto isso, vou procurar a verdade, ou as mentiras, em sua história. E vocês serão punidos pelas mentiras.
Eu me virei para Iskandar e repeti a mesura de Zia. Sadie fez o mesmo.
— Obrigado, mestre.
O velho me estudou por um bom tempo. Mais uma vez, senti que ele tentava invadir minha alma – mas não de um jeito furioso. Era mais por preocupação. Depois, ele resmungou alguma coisa, e eu entendi duas palavras: Nectanebo e ba.
Ele abriu a mão e uma nuvem de hieróglifos brilhantes brotou dela, flutuando acima do tablado. Houve um ofuscante lampejo de luz e, quando consegui enxergar novamente, o espaço estava vazio. Os dois homens haviam desaparecido.
Zia nos olhou com a expressão séria.
— Vou levá-los a seus aposentos. As provas começarão ao amanhecer. Veremos quanto conhecem de magia, e como conhecem.
Eu não sabia ao certo o que ela queria dizer com isso, mas Sadie e eu nos entreolhamos com desconforto.
— Bem, parece divertido — opinou Sadie. — E se não passarmos nessas provas?
Zia olhou para ela com frieza.
— Não estamos falando de provas nas quais você pode ser reprovada, Sadie. É passar ou morrer.
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