TUDO BEM, PEGUEI O MICROFONE. Não existe a menor possibilidade de Carter contar essa parte direito, porque é sobre Zia.
[Cale a boca, Carter. Você sabe que é verdade.]
Ah, quem é Zia? Desculpe, estou me precipitando.
Corremos para a entrada do museu, e eu não sabia a razão, exceto porque uma gigantesca mulher-gato com garras afiadas tinha nos mandado ir para lá. Você deve entender que eu já estava inconsolável com tudo o que tinha acontecido. Primeiro, perdi meu pai. Segundo, meus amorosos avós me expulsaram de casa. Depois, descobri que, aparentemente, eu tinha o “sangue dos faraós”, havia nascido em uma família mágica e toda essa esquisitice que soava bem impressionante, mas que só me trazia toneladas de problemas.
E assim que encontrei uma casa nova – uma mansão com café da manhã completo e bichinhos de estimação adoráveis, com um quarto lindo só para mim, aliás – tio Amós desapareceu, meus novos amigos, um crocodilo e um babuíno, foram jogados no rio, e a mansão ardeu em chamas. E como tudo isso não fosse suficiente, minha fiel gata Muffin decidira se envolver numa batalha inútil contra um enxame de escorpiões.
É assim que se fala? “Enxame” de escorpiões? Horda? Bando? Ah, não importa.
O que importa é que eu não conseguia acreditar que me pediram para abrir uma passagem mágica quando, evidentemente, eu não tinha essa habilidade, e agora meu irmão me arrastava para longe dali. Eu me sentia um fracasso total.
[E não quero ouvir seus comentários, Carter. Se lembro bem, você também não foi muito útil naquele momento.]
— Não podemos abandonar Bastet! — gritei. — Veja!
Carter continuava correndo e me arrastando com ele, mas eu conseguia ver claramente o que acontecia no obelisco. A massa de escorpiões subia pelas pernas verdes e brilhantes de Bastet e penetrava o holograma como se fosse gelatina. Bastet esmagava centenas deles com pés e punhos, mas eram muitos. Logo estavam em sua cintura, e o casulo fantasmagórico começou a tremular. Enquanto isso, a deusa vestida de marrom avançava lentamente, e eu tinha a sensação de que ela seria pior do que qualquer quantidade de escorpiões.
Carter me puxava entre as árvores, e eu perdi Bastet de vista. Saímos na Quinta Avenida, que parecia ridiculamente normal depois da trágica batalha. Corremos pela calçada, empurrando pedestres, e subimos a escada do Metropolitan Museum.
Um cartaz na entrada anunciava um evento especial de Natal, razão pela qual, suponho, o museu estava aberto em um feriado, mas não me dei o trabalho de ler as informações. Entramos imediatamente.
Como era o lugar? Bem, aquilo era um museu: um grande hall de entrada, muitas colunas, essas coisas. Não posso afirmar que dediquei muito tempo apreciando a decoração. Lembro que havia filas nos guichês para compra de ingressos, porque passamos direto por eles. Também havia seguranças, porque gritaram conosco quando invadimos a exposição. Por sorte, entramos na seção do Egito e acabamos bem em frente a um lugar com corredores estreitos que era uma espécie de réplica de uma tumba. Carter provavelmente teria conseguido explicar a vocês o que era aquilo, mas, sinceramente, eu nem me importava.
— Vamos — eu disse.
Entramos e despistamos os guardas, ou eles tinham algo melhor a fazer além de perseguir crianças travessas.
Quando saímos de lá, fomos nos esgueirando e contornando peças até termos certeza de que não éramos seguidos. A ala egípcia não estava cheia – havia apenas algumas pessoas idosas e um grupo de turistas estrangeiros, com um guia falando dos sarcófagos em francês.
— Et voice la momie!
Era estranho, mas ninguém parecia notar a enorme espada nas costas de Carter, o que certamente teria sido um problema com a segurança (e muito mais interessante que as exposições). Alguns idosos nos olhavam de um jeito estranho, mas eu suspeitava que eram nossas roupas que os intrigavam, praticamente pijamas de linho, encharcadas de suor e cobertas por folhas e grama. Meus cabelos deviam estar um pesadelo.
Encontrei uma sala vazia e puxei Carter para lá. As redomas de vidro estavam cheias deshabti. Alguns dias antes eu não teria dado a menor atenção a elas. Agora, ficava olhando para as estátuas, certa de que ganhariam vida a qualquer minuto e tentariam me acertar na cabeça.
— E agora? — perguntei a Carter. — Viu algum templo?
— Não. — Ele estava sério e compenetrado, como se tentasse lembrar alguma coisa. — Acho que há uma réplica de um templo no final do corredor... ou será que é no Museu do Brooklyn? Talvez no de Munique? Desculpe, visitei tantos museus com papai que acho que todos se misturaram.
Bufei, irritada.
— Pobrezinho, forçado a viajar pelo mundo, não ir à escola e passar todo o tempo com papai, enquanto eu tinha dois dias por ano com ele!
— Ei! — Carter se virou para mim com força surpreendente. — Você teve um lar! Teve amigos e uma vida normal, não acordava todas as manhãs tentando lembrar em que país estava! Você não...
O vidro perto de nós se quebrou com um estrondo, criando uma chuva de cacos.
Carter olhou para mim, perplexo.
— Fomos nós...
— Como quando explodimos meu bolo de aniversário — resmunguei, tentando não demonstrar quanto estava assustada. — Você precisa controlar seu temperamento.
— Eu?
Alarmes começaram a soar. Luzes vermelhas piscavam no corredor. Uma voz eletrônica surgiu de um alto-falante, dizendo alguma coisa sobre todos se dirigirem às saídas com tranquilidade. O grupo de turistas franceses passou por nós correndo, gritando e em pânico, e atrás deles vimos pessoas idosas surpreendentemente rápidas com bengalas e andadores.
— Vamos deixar a discussão para mais tarde, está bem? — eu disse a Carter. — Venha!
Percorremos outro corredor, e as sirenes silenciaram da mesma maneira como tinham começado a soar. As luzes vermelhas continuavam piscando no silêncio sinistro. Então, eu ouvi: o som característico, um rastejar pontuado por estalos. Escorpiões.
— Bastet — eu disse, com a voz embargada. — Será que ela...?
— Não pense nisso — Carter me interrompeu. Mas sua expressão dizia que estava pensando exatamente o mesmo que eu. — Continue andando!
Logo estávamos irremediavelmente perdidos. Até onde eu podia dizer, a seção egípcia do museu havia sido projetada para confundir ao máximo os visitantes, com becos sem saída e salas que pareciam se duplicar. Passamos por listas hieroglíficas, joias de ouro, sarcófagos, estátuas de faraós e grandes pedaços de calcário. Por que alguém exporia uma rocha? Não havia tantas do lado de fora, espalhadas pelo mundo?
Não vimos ninguém, mas o som rastejante se tornava mais alto, por mais que corrêssemos. Finalmente, entrei em um corredor e tropecei em alguém.
Eu gritei e recuei apavorada, e trombei com Carter. Nós dois caímos sentados de um jeito nada lisonjeiro. Foi um milagre Carter não ter se espetado na própria espada.
De início, não reconheci a garota a nossa frente, o que parece estranho, agora que penso naquilo. Talvez ela estivesse usando algum tipo de aura mágica, ou talvez eu simplesmente não quisesse acreditar que fosse ela.
Parecia um pouco mais alta que eu. Provavelmente mais velha também, mas não muito. Seus cabelos eram curtos, na altura do queixo, com uma franja longa que caía sobre os olhos. A pele era cor de caramelo e os traços eram bonitos, ligeiramente árabes. Os olhos, contornados por kohl preto ao estilo egípcio, eram de um estranho tom de âmbar que podia ser tanto lindo quanto um pouco assustador; eu não conseguia decidir. Ela levava uma mochila no ombro e usava sandálias e roupas de linho folgadas como as nossas. Parecia estar a caminho de uma aula de artes marciais. Deus, agora que penso naquilo, devíamos ter essa mesma aparência. Constrangedor.
Aos poucos, comecei a perceber que já a vira antes. Era a garota da adaga no British Museum. Antes que eu pudesse dizer alguma palavra, Carter se levantou. Ele se colocou na minha frente e brandiu a espada como se tentasse me proteger. Dá para acreditar na ousadia?
— Afa... afaste-se! — gaguejou ele.
A garota levou uma das mãos à manga da túnica e tirou dali uma pequena peça encurvada de marfim – uma varinha egípcia.
Ela moveu a varinha para um lado, e a espada de Carter voou da mão dele, fazendo um barulho estridente ao cair no chão.
— Não se exponha ao ridículo — disse a garota com tom austero. — Onde está Amós?
Carter parecia aturdido demais para falar. A jovem olhou para mim. Os olhos dourados eram lindos e assustadores, decidi, e eu não gostava nada dela.
— Então? — perguntou a garota.
Eu não entendia por que deveria dizer alguma coisa a ela, mas uma pressão desconfortável começou a crescer em meu peito, como um arroto tentando sair.
— Amós se foi. Partiu esta manhã. — Eu ouvi minha voz.
— E o demônio-gato?
— Aquela gata é minha — frisei. — E ela é uma deusa, não um demônio. A deusa nos salvou dos escorpiões!
Carter conseguiu se mover. Ele recuperou a espada e a apontou novamente para a garota. Devo reconhecer que meu irmão é persistente.
— Quem é você? — perguntou. — O que quer?
— Meu nome é Zia Rashid. — Ela inclinou a cabeça, como se ouvisse algum som.
De repente, todo o prédio tremeu com um som retumbante. Poeira caiu do teto, e o barulho dos escorpiões que rastejavam dobrou de volume atrás de nós.
— E agora — anunciou Zia com evidente desprazer — eu preciso salvar suas vidas miseráveis. Vamos.
Suponho que poderíamos ter recusado o convite, mas as opções eram Zia ou os escorpiões, por isso a seguimos correndo.
Ela passou por uma vitrine cheia de estátuas e bateu casualmente com a mão no vidro. Pequenos faraós de granito e deuses de calcário se moveram a seu comando. Eles saltaram dos pedestais e passaram pelo vidro, quebrando-os sem esforço. Alguns empunhavam armas. Outros simplesmente cerravam os punhos de pedra. Eles nos deixaram passar, mas olhavam para o corredor atrás de nós como se esperassem pelo inimigo.
— Depressa — alertou Zia. — Eles só vão...
— Ganhar tempo — adivinhei. — Sim, já ouvimos isso antes.
— Você fala demais — Zia retrucou sem parar de correr.
Eu quase dei uma resposta malcriada. Francamente, sei que a teria posto no lugar como ela merecia. Mas, antes que eu pudesse falar, nós entramos em uma sala enorme e minha voz falhou.
— Uau — soltou Carter.
Eu não podia deixar de concordar com ele. O lugar era extremamente uau.
Tinha o tamanho de um estádio de futebol. Uma parede era inteiramente de vidro e, através dela, era possível ver o parque. No meio da sala, em uma plataforma, havia a réplica de um prédio antigo. Atrás de um portal de pedra de cerca de oito metros de altura, via-se um pátio descoberto e uma estrutura quadrada feita de blocos irregulares de pedra gravados com imagens de deuses e de faraós com hieróglifos. Nas laterais da entrada do edifício havia duas colunas banhadas por uma luz sobrenatural.
— Um templo egípcio — deduzi.
— O Templo de Dendur — explicou Zia. — Na verdade, foi construído pelos romanos...
— Quando ocuparam o Egito — completou Carter, como se essa informação fosse animadora. — Augustus encomendou a obra.
— Exato — disse Zia.
— Fascinante — murmurei. — Vocês dois gostariam de ficar a sós com um livro de história?
Zia me olhou de cara feia.
— De qualquer maneira, o templo foi dedicado a Ísis, por isso terá poder suficiente para abrir um portal.
— E invocar mais deuses? — perguntei.
Os olhos de Zia brilharam, furiosos.
— Acuse-me disso novamente e corto sua língua. Refiro-me a um portal para tirá-los daqui.
Eu estava completamente perdida, mas já começava a me acostumar com isso. Seguimos Zia escada acima e passamos pela entrada do templo.
O pátio estava vazio, abandonado pelos visitantes que haviam fugido do museu, o que tornava a paisagem ainda mais assustadora. Imagens gigantescas de deuses olhavam para mim. Havia inscrições hieroglíficas em todos os lugares, e eu tive medo de me concentrar e conseguir lê-las.
Zia parou nos degraus na frente do templo. Ela ergueu uma das mãos e escreveu no ar. Um hieróglifo familiar brilhou entre as colunas.
Abrir: o mesmo símbolo que papai havia usado na Pedra de Roseta. Esperei alguma coisa explodir, mas o hieróglifo simplesmente desapareceu.
Zia abriu a mochila.
— Vamos ficar aqui até que o portal possa ser aberto.
— Por que não o abrimos agora, simplesmente? — Carter quis saber.
— Portais só podem aparecer em momentos auspiciosos — explicou Zia. — Nascer do sol, pôr do sol, meia-noite, eclipses, alinhamentos astrológicos, a hora exata do nascimento de um deus...
— Ah, por favor! — eu a interrompi. — Como alguém pode saber quando todos esses eventos vão acontecer?
— São necessários anos para memorizar todo o calendário — respondeu Zia. — Mas o próximo momento auspicioso é fácil: meio-dia. Em dez minutos e meio.
Ela não consultou nenhum relógio. Como podia saber o tempo com tanta precisão? Decidi que essa não era a pergunta mais importante.
— Por que devemos confiar em você? — indaguei. — Se lembro bem, no British Museum você queria nos cortar com sua adaga.
— Teria sido mais simples. — Zia suspirou. — Infelizmente, meus superiores acham que vocês podem ser inocentes. Portanto, ao menos por ora, não posso matá-los. Mas também não posso deixá-los cair nas mãos do Lorde Vermelho. Sendo assim... podem confiar em mim.
— Bem, você me convenceu — respondi. — Sinto-me confortada e acolhida.
Zia tirou da mochila quatro estatuetas: homens com cabeça de animais, cada uma com cinco centímetros de altura. Ela as entregou a mim.
— Ponha os Filhos de Hórus em torno de nós nos pontos cardeais.
— Como?
— Norte, sul, leste, oeste — disse ela, devagar, como se eu fosse uma idiota.
— Conheço os pontos cardeais! Mas...
— Ali é o norte. — Zia apontou a parede de vidro. — Deduza o restante.
Fiz como ela dizia, embora não entendesse como os homenzinhos poderiam nos ajudar. Enquanto isso, Zia deu a Carter uma espécie de giz e disse a ele que traçasse um círculo à nossa volta, ligando as estátuas.
— Proteção mágica — disse Carter. — Como a que papai produziu no British Museum.
— Sim — resmunguei. — E nós vimos como aquilo funcionou bem.
Carter me ignorou. Qual era a novidade? Ele estava tão ansioso para agradar Zia que se atirou imediatamente à tarefa de desenhar no chão.
Então, Zia tirou mais alguma coisa da mochila: uma varinha comum, de madeira, como aquela que nosso pai usara em Londres. Ela falou uma palavra em voz baixa e a varinha se expandiu, transformando-se em um cajado preto de dois metros de comprimento com uma cabeça de leão na ponta. Ela girou o cajado com uma das mãos, como um bastão de baliza – exibindo-se, apenas, tenho certeza – enquanto segurava a varinha com a outra.
Carter concluía o círculo de giz quando os primeiros escorpiões apareceram na entrada da galeria.
— Quanto tempo falta para o portal? — perguntei, esperando não soar tão apavorada quanto me sentia.
— Fique dentro do círculo, aconteça o que acontecer — Zia determinou. — Quando o portal se abrir, atravessem. E fiquem atrás de mim!
Ela tocou o círculo de giz com a mão, falou uma palavra e o círculo começou a se tingir de vermelho-escuro. Centenas de escorpiões se aproximavam do templo, transformando o chão em um tapete vivo de garras e ferrões. Depois, a mulher vestida de marrom, Serket, entrou na galeria. Ela sorriu para nós com frieza.
— Zia — chamei — ela é uma deusa. Derrotou Bastet. Que chance você tem?
Zia levantou seu cajado e a cabeça de leão explodiu em chamas – uma pequena bola de fogo de um vermelho tão brilhante que iluminou toda a sala.
— Sou uma escriba na Casa da Vida, Sadie Kane. Sou treinada para lutar contra os deuses.
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