sábado, 17 de janeiro de 2015

A Pirâmide Vermelha - Sadie

Capítulo 16 - Como Zia perdeu as sobrancelhas

ACORDEI COM UM BALDE DE ÁGUA FRIA NO ROSTO.
— Sadie! Acorde! — disse Zia.
— Meu Deus! — gritei. — Isso era necessário?
— Não — confessou ela.
Tive vontade de estrangulá-la, mas eu estava molhada, tremendo e ainda desorientada. Por quanto tempo tinha dormido? A sensação era de que cochilara por alguns minutos, mas o dormitório estava vazio. Todas as outras camas estavam arrumadas. As meninas já deviam ter ido para suas aulas matinais.
Zia jogou uma toalha e roupas de linho limpas em minha direção.
— Vamos encontrar Carter na sala de higiene.
— Acabei de tomar banho, obrigada. Minha maior necessidade neste momento é um café da manhã adequado.
— A higiene a prepara para a magia.
Zia tirou do ombro sua bolsa de truques e pegou ali o longo cajado preto que usara em Nova York.
— Se sobreviver, providenciaremos comida.
Eu estava cansada de todo o mundo me lembrando de que eu podia morrer, mas me vesti e fui atrás dela.
Depois de outra interminável sequência de túneis, chegamos a uma câmara com uma cachoeira barulhenta. Não havia teto, apenas uma abertura que parecia não ter fim. A água caía da escuridão em uma fonte, percorrendo uma estátua de uns cinco metros de altura.
Novamente, o retratado era aquele deus com cabeça de ave. Qual era o nome dele? Totem? Não, Tot. A água caía em sua cabeça, era retida em suas mãos abertas e depois se derramava na piscina.
Carter estava em pé ao lado da fonte. Ele vestia linho e tinha a bolsa carteiro de papai pendurada em um ombro. A espada estava atravessada nas costas. Seus cabelos desarrumados eram prova de que ele tinha dormido bem. Pelo menos não tinha sido acordado com um balde de água gelada. Ao vê-lo, experimentei uma estranha sensação de alívio. Pensei nas palavras de Iskandar na noite anterior:
“Seu irmão vai precisar de sua orientação.”
— O que é? — perguntou Carter. — Está me olhando de um jeito esquisito.
— Nada — respondi depressa. — Dormiu bem?
— Mal. Eu... falamos sobre isso depois.
Era minha imaginação ou ele tinha olhado de cara feia para Zia? Hum, possíveis dificuldades românticas entre a Srta. Magia e meu irmão? Decidi interrogar Carter assim que ficássemos sozinhos.
Zia se aproximou de um armário perto de nós. Pegou duas canecas de cerâmica, mergulhou-as na fonte e nos ofereceu.
— Bebam.
Olhei para Carter.
— Você primeiro.
— É só água — Zia me garantiu — purificada pelo contato com Tot. Serve para dar foco à mente.
Eu não entendia como uma estátua podia purificar a água. Mas lembrei o que Iskandar tinha dito, que os deuses podiam habitar qualquer coisa.
Bebi um gole. A sensação imediata foi a de estar bebendo um daqueles chás fortes de minha avó. Meu cérebro zuniu. Minha visão ficou mais aguçada. Eu me sentia tão hiperativa que quase não sentia falta de meu chiclete. Quase...
Carter também bebeu um pouco da água na caneca.
— Uau!
— Agora as tatuagens — disse Zia.
— Brilhante! — respondi.
— Na língua — acrescentou ela.
— Como é que é?
Zia mostrou a língua. Bem no meio havia um hieróglifo azul.
— Isss é mm Naat — ela tentou dizer com a língua para fora. Em seguida, percebendo o erro, recolheu a língua e repetiu: — Quer dizer, isto é um maat, o símbolo da ordem e da harmonia. Vai ajudá-los a dizer a mágica com clareza. Um engano em um encantamento...
— Deixe-me adivinhar... — eu a interrompi. — Morremos.
Do armário dos horrores, Zia retirou um pincel de ponta fina e uma vasilha com tinta azul.
— Não dói. E não é permanente.
— E o gosto? — Carter quis saber.
Zia sorriu.
— Ponha a língua para fora.
Respondendo à pergunta de Carter, a tatuagem tinha gosto de pneu queimado.
— Eca! — Cuspi o excesso azul de “ordem e harmonia” na fonte. — Esqueça o café. Perdi a fome.
Zia tirou do armário uma bolsa de couro.
— Carter vai poder ficar com os instrumentos mágicos de seu pai, mais um cajado e uma varinha novos. Falando de maneira geral, a varinha serve para defesa, o cajado é para ataque. Porém, Carter, talvez você prefira usar seu khopesh.
— Khopesh?
— A espada de lâmina curva — explicou ela. — A arma favorita da guarda do faraó. Pode ser usada em combate mágico. Sadie, você vai precisar de um kit completo.
— E por que ele fica com o kit de papai? — protestei.
— Porque ele é mais velho — respondeu Zia, como se isso explicasse tudo.
Típico.
Zia jogou a bolsa de couro em minha direção. Dentro havia uma varinha de marfim, um bastão que eu supunha que se transformaria em cajado, um pouco de papel, um jogo de tintas, um pouco de barbante e uma adorável bola de cera. Eu não me sentia animada.
— E o homenzinho de cera? — perguntei. — Quero um Doughboy.
— Se está se referindo a uma estatueta, você mesma deve fazê-la. Vai aprender como, se tiver a habilidade. Mais tarde determinaremos sua especialidade.
— Especialidade? — perguntou Carter. — Como Nectanebo se especializou em estátuas?
Zia assentiu.
— Nectanebo era extremamente habilidoso em magia com estátuas. Ele podia criarshabti tão perfeitos que eles passavam por humanos. Ninguém jamais foi melhor que ele em estatuário... exceto, talvez, Iskandar. Mas há muitas outras disciplinas. Curador. Produtor de amuletos. Encantador de animais. Elementalista. Mago de combate. Necromante.
— Adivinho? — sugeri.
Zia me olhou curiosa.
— Sim, embora essa seja uma especialidade rara. Por que você...?
Eu tossi para distraí-la.
— Então, como vamos saber qual é nossa especialidade?
— Logo ela se tornará clara — afirmou Zia — mas um bom mago sabe um pouco de tudo, e é por isso que
começamos com uma prova básica. Vamos até a biblioteca.
A biblioteca do Primeiro Nomo era como a de Amós, mas cem vezes maior, com salas circulares dominadas por prateleiras e cubículos que pareciam se estender para sempre, como a maior colmeia do mundo. Estátuas shabti de argila se moviam o tempo todo, retirando e guardando tubos com pergaminhos, mas não vimos nenhuma outra pessoa ali.
Zia nos levou a uma mesa de madeira e abriu sobre ela um longo pergaminho em branco. Pegou um cálamo e o mergulhou em tinta.
— A palavra egípcia shesh significa escriba ou escritor, mas também pode significar mago. Isso porque a magia, em sua forma mais básica, transforma palavras em realidade. Vocês vão escrever. Usando a própria magia, vão canalizar poder para as palavras. Quando pronunciadas, elas desencadearão a magia.
Ela entregou o cálamo a Carter.
— Não entendi nada — protestou ele.
— Uma palavra simples — sugeriu Zia. — Pode ser qualquer uma.
— Em inglês?
Ela contorceu a boca numa careta.
— Se for necessário. Qualquer idioma serve, mas hieróglifos são o que há de melhor. São a linguagem da criação, da magia, do Maat. Mas é preciso ter cautela.
Antes que ela pudesse explicar, Carter desenhou um hieróglifo simples, de uma ave. A imagem se moveu, desprendeu-se do papiro e voou para longe. A caminho da saída, despejou sobre a cabeça de Carter um pouco de cocô hieroglífico. Não consegui deixar de rir ao ver a cara dele.
— Um erro de principiante — explicou Zia, olhando-me séria para indicar que eu devia ficar quieta. — Se você usa um símbolo que representa um ser vivo, é mais indicado escrever apenas parte: omitir uma asa ou as pernas. Caso contrário, a magia que você canalizou pode torná-lo vivo.
— E ele vai fazer cocô na cabeça de quem o criou. — Carter suspirou, limpando o cabelo com um pedaço de papiro. — É por isso que Doughboy, a estátua de cera na caixa de artefatos que era de meu pai, não tem pernas?
— É o mesmo princípio — concordou Zia. — Tente outra vez, então.
Carter olhou para o cajado de Zia, que estava coberto de hieróglifos. Ele escolheu o mais óbvio e o copiou no papiro: o símbolo do fogo.
Ah, não, pensei. Mas a palavra não ganhou vida, o que teria sido bem divertido. Ela simplesmente se dissolveu.
— Continue tentando — Zia o incentivou.
— Por que estou tão cansado? — Carter quis saber.
Ele parecia exausto. Seu rosto estava ensopado com suor.
— Está canalizando a magia de dentro de você — explicou Zia. — Para mim, o fogo é fácil. Mas pode não ser o tipo de magia mais natural para você. Experimente outra coisa. Materialize... materialize uma espada.
Zia mostrou a ele como desenhar o hieróglifo e Carter o registrou no papiro. Nada aconteceu.
— Fale — orientou Zia.
— Espada — disse Carter.
A palavra brilhou e desapareceu, e uma faca de manteiga surgiu em cima do papiro.
Eu ri.
— Aterrorizante!
Carter parecia a um passo de desmaiar, mas ele ainda conseguiu sorrir. Meu irmão pegou a faca e ameaçou me espetar com ela.
— Muito bom para uma primeira vez — elogiou Zia. — Lembre-se, você não está criando a faca. Você a está invocando com o Maat: o poder criativo do universo. Hieróglifos são o código que usamos. Por isso são chamados de Palavras Divinas. Quanto mais poderoso o mago, mais fácil é para ele controlar a linguagem.
Eu prendi a respiração.
— Aqueles hieróglifos flutuando no Salão das Eras. Eles pareciam se reunir em torno de Iskandar. Ele os estava evocando?
— Não exatamente — respondeu Zia. — A presença é tão forte que por si só torna visível a linguagem do universo. Seja qual for nossa especialidade, a maior expectativa de todo mago é se tornar um orador das Palavras Divinas: conhecer tão bem a linguagem da criação a ponto de ser capaz de formar realidade simplesmente falando, sem sequer usar um símbolo.
— Como dizer abra — sugeri — e ver uma porta se abrir ou explodir.
Zia fez cara feia.
— Sim, mas isso leva anos de prática.
— É mesmo? Bem...
Pelo canto do olho, eu vi Carter balançando a cabeça e me avisando para não dizer nada.
— Ah... — gaguejei. — Um dia vou aprender esse truque.
Zia ergueu uma sobrancelha.
— Domine primeiro o pergaminho.
Eu estava ficando cansada dessa atitude dela, por isso peguei o cálamo e escrevi fogoem inglês.
Zia se inclinou para a frente, e uma ruga surgiu entre seus olhos.
— Você não devia...
Antes que ela pudesse concluir a frase, uma coluna de fogo explodiu em seu rosto. Eu gritei, certa de que havia feito algo horrível, mas quando a chama se apagou, Zia ainda estava ali, absolutamente atônita, com as sobrancelhas chamuscadas e a franja fumegando.
— Ai, céus — gemi. — Desculpe, desculpe! É agora que eu morro?
Meu coração bateu três vezes enquanto Zia me encarava.
— Agora — respondeu ela finalmente — acho que você está pronta para duelar.
Usamos outro portal mágico, que Zia abriu bem no meio da parede da biblioteca. Entramos em um redemoinho de areia e saímos do outro lado, cobertos de pó e cascalho, na frente de algumas ruínas. A luz forte do sol quase me cegou.
— Odeio portais — murmurou Carter, tirando areia dos cabelos.
Em seguida, quando olhou em volta, ele arregalou os olhos.
— Aqui é Luxor! Quer dizer... Está a centenas de quilômetros ao sul do Cairo.
Eu suspirei.
— E está espantado com isso depois de termos sido teletransportados de Nova York?
Ele estava ocupado demais estudando o ambiente, por isso não respondeu.
Imagino que as ruínas fossem legais, mas depois de ver uma pilha de restos de velharia egípcia, você já viu todas. Estávamos em uma avenida larga flanqueada por animais com cabeça humana, a maioria delas quebrada. A estrada atrás de nós seguia até onde eu podia enxergar, mas, à nossa frente, acabava em um templo muito maior do que aquele no museu de Nova York.
As paredes tinham a altura equivalente a seis andares, pelo menos. Grandes faraós de pedra guardavam os dois lados da entrada e havia um obelisco do lado esquerdo. Era como se já tivesse existido outro do lado direito também, mas agora tinha sumido.
— Luxor é um nome moderno — disse Zia. — Este lugar foi a cidade de Tebas. Este templo era um dos mais importantes no Egito. É o melhor lugar para praticarmos.
— Porque já está destruído? — perguntei.
Zia me olhou novamente com aquela cara fechada.
— Não, Sadie... Porque ainda é cheio de magia. E era sagrado para sua família.
— Nossa família? — perguntou Carter.
Zia não explicou, como sempre. Apenas fez um gesto para que a seguíssemos.
— Não gosto dessas esfinges feias — resmunguei enquanto percorríamos o caminho.
— Essas esfinges feias são criaturas de lei e ordem — anunciou Zia — protetoras do Egito. Estão do nosso lado.
— Se você diz...
Carter me cutucou quando passamos pelo obelisco.
— Sabe que o obelisco que falta aqui está em Paris?
Eu revirei os olhos.
— Obrigada, Sr. Wikipédia. Pensei que estivesse em Nova York ou em Londres.
— Aqueles são outros — Carter me corrigiu, como se eu devesse me importar. — O segundo obelisco Luxor está em Paris.
— Eu queria estar em Paris — comentei. — É muito melhor que este lugar.
Entramos em um pátio de chão de terra cercado por pilares caindo aos pedaços e estátuas sem várias partes do corpo. Mesmo assim, eu podia perceber que o lugar um dia tinha sido impressionante.
— Onde estão as pessoas? — perguntei. — Meio do dia, férias de inverno. Não devia estar cheio de turistas?
Zia fez uma careta de desgosto.
— Normalmente, sim. Eu os convenci a ficar longe daqui por algumas horas.
— Como?
— É fácil manipular mentes comuns.
Ela me olhou incisivamente, e lembrei como seu poder me obrigara a falar no museu em Nova York. Ah, ela estava praticamente implorando por mais sobrancelhas chamuscadas.
— Agora, ao duelo.
Empunhando o cajado, Zia desenhou dois círculos na areia separados por uns dez metros. Ela me orientou a ficar dentro de um deles e Carter foi conduzido ao outro.
— Vou duelar com ele? — perguntei.
Eu achava a ideia ridícula. A única coisa para a qual Carter havia demonstrado aptidão era materializar facas de manteiga e passarinhos que faziam cocô. Sim, tudo bem, e aquele encantamento na ponte para desviar as adagas, mas, mesmo assim... E se eu o machucasse? Por mais que Carter fosse irritante, não queria invocar acidentalmente aquele glifo que produzira na casa de Amós e explodi-lo em mil pedacinhos.
Talvez Carter estivesse pensando o mesmo, porque ele começou a suar.
— E se fizermos algo errado? — perguntou ele.
— Eu vou supervisionar o duelo — prometeu Zia. — Vamos começar devagar. O primeiro mago que conseguir tirar o outro de seu círculo vence.
— Mas não fomos treinados! — protestei.
— O melhor jeito de aprender é praticando — retrucou Zia. — Isto não é uma escola, Sadie. Não se pode aprender magia sentado atrás de uma mesa fazendo anotações. Só se aprende mágica fazendo mágica.
— Mas...
— Invoque o poder que conseguir — sugeriu Zia. — Use o que estiver disponível. Comecem!
Olhei para Carter ainda em dúvida. Usar o que eu tivesse disponível? Abri a bolsa de couro e olhei lá dentro. Uma bola de cera? Provavelmente não. Peguei a varinha e o bastão. Imediatamente, o bastão se expandiu até eu ter na mão um cajado branco de dois metros.
Carter pegou sua espada, mas eu não podia imaginar o que ele faria com ela. Seria difícil me atingir a dez metros de distância.
Eu queria que aquilo acabasse, por isso ergui meu cajado como vira Zia fazer. Pensei na palavra fogo. Uma pequena chama surgiu na ponta do cajado. Tentei fazê-la ficar maior. O fogo ganhou brilho por um momento, mas logo minha visão ficou turva. A chama extinguiu-se. Eu caí de joelhos, sentindo-me como se tivesse corrido uma maratona.
— Tudo bem? — perguntou Carter.
— Não — respondi com sinceridade.
— Se ela cair fora do círculo, eu ganho? — indagou ele.
— Cale a boca! — gritei.
— Sadie, precisa ter cuidado — Zia manifestou-se. — Você extraiu forças de suas reservas, não do cajado. Assim, pode esvaziar sua magia rapidamente.
Eu me levantei tremendo.
— Pode explicar?
— Um mago começa um duelo cheio de magia, como você se sente preenchida depois de uma boa refeição...
— Que não me serviram — lembrei.
— Cada vez que você faz mágica, gasta energia — continuou Zia. — Pode extrair essa energia de você mesma, mas precisa conhecer seus limites. Caso contrário, poderá esgotar-se, ou pior.
Engoli em seco e olhei meu cajado fumegante.
— Quanto pior?
— Você pode se queimar. Literalmente.
Eu hesitei, pensando em como faria minha próxima pergunta sem falar demais.
— Mas já fiz mágica antes. Algumas vezes não fico exausta. Por quê?
Zia retirou um amuleto que levava pendurado no pescoço. Ela o atirou no ar e, com uma explosão de luz, ele se transformou em um gigantesco abutre. A grande ave negra sobrevoou as ruínas. Assim que ela desapareceu, Zia estendeu a mão e o amuleto apareceu bem ali.
— A magia pode ser extraída de muitas fontes — disse ela. — Pode estar armazenada em pergaminhos, varinhas ou cajados. Amuletos são especialmente poderosos. Também pode ser extraída diretamente do Maat, com o uso das Palavras Divinas, mas isso é difícil. Ou — ela me encarou — pode ser extraída dos deuses.
— Por que está me olhando? — perguntei. — Eu não invoquei nenhum deus. Eles simplesmente parecem me encontrar.
Zia pôs o amuleto no pescoço sem dizer nada.
— Espere aí. Você disse que este lugar é sagrado para nossa família — lembrou Carter.
— Era — corrigiu Zia.
— Mas não era aqui... — Meu irmão parou, intrigado. — Não era aqui que os faraós faziam um festival anual ou coisa do tipo?
— Realmente — confirmou ela. — O faraó percorria o caminho da procissão, de Karnak a Luxor. Ele entrava no templo e se integrava aos deuses. Às vezes, era só uma cerimônia. Outras vezes, caso dos grandes faraós como Ramsés, aqui... — Zia apontou para uma das grandes estátuas em ruínas.
— Eles realmente serviam de hospedeiros para os deuses — concluí, lembrando o que Iskandar dissera.
Zia me olhou desconfiada.
— E você insiste em afirmar que nada sabe sobre o passado de sua família.
— Espere um segundo — protestou Carter. — Está dizendo que somos parentes de...
— Os deuses escolhem seus hospedeiros com cuidado — contou Zia. — Eles sempre preferem o sangue dos faraós. Quando um mago tem o sangue de duas famílias reais...
Carter e eu nos entreolhamos. Lembrei de algo que Bastet tinha me dito, que minha família tinha nascido para a magia. E Amós nos dissera que os dois lados de nossa família tinham uma história complicada com os deuses, e que Carter e eu éramos as crianças mais poderosas nascidas em séculos. Um sentimento ruim despencou sobre mim, como um cobertor áspero irritando minha pele.
— Nossos pais eram de linhagens reais diferentes — falei. — Papai... deve ter descendido de Narmer, o primeiro faraó. Eu disse que ele era parecido com aquela imagem!
— Isso não é possível — opinou Carter. — Narmer viveu há cinco mil anos. — Era evidente que as ideias se atropelavam na cabeça dele. — Então os Faust... — Carter olhou para Zia. — Ramsés, o Grande, construiu este pátio. Está nos dizendo que a família de mamãe descende dele?
Zia suspirou.
— Não me diga que seus pais esconderam isso de vocês. Por que acham que são tão perigosos para nós?
— Acham que estamos hospedando deuses? — perguntei, completamente perplexa. — É com isso que está preocupada, só por causa de algo que nossos não sei quantas vezes tataravós fizeram? Isso é completamente doido!
— Então prove! — exigiu Zia. — Duelem e me mostrem que sua magia é fraca!
Ela nos deu as costas como se não tivéssemos importância alguma.
Algo dentro de mim se rompeu. Eu tivera os dois piores dias de minha vida. Tinha perdido meu pai, minha casa, minha gata, tinha sido atacada por monstros e acordada com um balde de água gelada no rosto. E agora aquela bruxa virava as costas para mim. Não queria nos treinar. Só queria saber o quanto éramos perigosos.
— Certo, muito bem.
— Ah, Sadie? — chamou Carter.
Ele devia ter visto em meu rosto que eu estava bem perto de perder a razão.
Concentrei-me no cajado. Talvez não fogoOs gatos sempre gostaram de mim. Talvez... Arremessei-o na direção de Zia. O cajado bateu no chão atrás dela e se transformou em uma leoa rugindo.
Zia se virou, surpresa, mas então tudo deu errado.
A leoa se virou e atacou Carter, como se soubesse que eu devia estar duelando com ele. Tive uma fração de segundo para pensar: O que foi que eu fiz?
Então, o felino saltou... e a forma de Carter tremulou. Ele se ergueu do chão cercado por uma concha holográfica dourada, como a que Bastet usara, mas essa imagem gigantesca era de um guerreiro com cabeça de falcão.
Carter moveu sua espada e o falcão guerreiro fez o mesmo gesto, golpeando a leoa com uma lâmina de energia fulgurante. A leoa se dissolveu no ar e meu cajado caiu no chão, partido exatamente ao meio.
O avatar de Carter brilhou, depois desapareceu. Ele caiu no chão e riu.
— Divertido — comentou.
Ele nem parecia cansado. Assim que superei o alívio por não ter matado meu irmão, percebi que também não estava cansada. Pelo contrário, tinha mais energia.
Eu olhei para Zia como se a desafiasse.
— E então? Melhor, não?
Ela estava pálida.
— O falcão. Ele... ele invocou...
Antes que a frase pudesse ser concluída, passos ecoaram nas pedras. Um jovem iniciado surgiu no pátio, correndo, aparentemente em pânico. Lágrimas deixavam marcas em seu rosto empoeirado. Ele disse algo a Zia num árabe apressado. Quando recebeu a mensagem, Zia se sentou na areia, como se perdesse momentaneamente as forças. Ela cobriu o rosto com as mãos e começou a tremer.
Carter e eu deixamos nossos círculos e corremos até ela.
— Zia? — chamou Carter. — O que houve?
Ela respirou fundo, tentando se recuperar. Quando ergueu o rosto, seus olhos estavam vermelhos. Ela disse algo ao novato, que assentiu e voltou correndo pelo caminho por onde chegara.
— Notícias do Primeiro Nomo — anunciou Zia, abalada. — Iskandar... — Sua voz fraquejou.
Eu senti como se um punho gigante me acertasse no estômago. Pensei nas estranhas palavras de Iskandar na noite anterior: “Tudo indica que também posso repousar, finalmente.”
— Ele está morto, não está? Era isso que ele queria dizer?
Zia me encarou.
— Como assim, era isso que ele queria dizer?
— Eu...
Quase contei que havia conversado com Iskandar na noite anterior, mas percebi que talvez fosse melhor não mencionar esse encontro.
— Nada. Como aconteceu?
— Dormindo — respondeu Zia. — Iskandar estava adoentado havia anos, é claro. Mesmo assim...
— Tudo bem — interrompeu Carter. — Sei que ele era importante para você.
Ela enxugou as lágrimas, depois se levantou, cambaleante.
— Você não entende. Desjardins é o próximo na linha de sucessão. Assim que for nomeado Sacerdote-leitor Chefe, ele ordenará que vocês sejam executados.
— Mas nós não fizemos nada! — protestei.
Os olhos de Zia foram iluminados pela raiva.
— Ainda não perceberam como são perigosos? Estão hospedando deuses.
— Ridículo — insisti, mas uma sensação de desconforto crescia dentro de mim.
Se fosse verdade... Não, não podia ser! Além do mais, como era possível que alguém, mesmo um velho maluco como Desjardins, executasse crianças por alguma razão da qual elas nem tinham consciência?
— Ele vai ordenar que eu os entregue — avisou Zia — e precisarei obedecer!
— Não pode! — Carter gritou. — Você viu o que aconteceu no museu. Nós não somos o problema. Set é o problema. E se Desjardins não está levando isso a sério... Bem, talvez ele faça parte do problema.
Zia agarrou seu cajado. Eu tinha certeza de que seríamos fritos por uma bola de fogo, mas ela hesitou.
— Zia — decidi arriscar. — Iskandar conversou comigo ontem à noite. Ele me pegou no Salão das Eras.
Ela me encarou, aturdida. Alguns segundos se passaram antes que o choque se transformasse em raiva.
— Ele disse que você era a melhor discípula dele — continuei. — Disse que era sábia. E também disse que Carter e eu temos um caminho difícil diante de nós, e que você saberia como nos ajudar quando chegasse a hora.
O cajado dela ardia em chamas. Seus olhos pareciam vidro prestes a estilhaçar.
— Desjardins nos matará — insisti. — Acha que era isso que Iskandar tinha em mente?
Contei até cinco, seis, sete. Quando já estava certa de que ela ia nos fazer em pedaços, Zia baixou o cajado.
— Use o obelisco.
— O quê? — perguntei
— O obelisco na entrada, tola! Você tem cinco minutos, talvez menos, antes que Desjardins dê as ordens para sua execução. Fujam e destruam Set. Os Dias do Demônio começam amanhã. Todos os portais vão parar de funcionar. Vocês precisam se aproximar de Set o máximo possível antes que isso aconteça.
— Espere aí. Eu quis dizer que você devia vir conosco e nos ajudar! Não sabemos nem usar um obelisco, muito menos destruir Set!
— Não posso trair a Casa — argumentou ela. — Vocês têm quatro minutos agora. Se não conseguirem usar o obelisco, morrerão.
Aquilo foi incentivo suficiente para mim. Comecei a arrastar Carter, mas Zia me chamou.
— Sadie?
Quando olhei para trás, vi nos olhos dela uma imensa amargura.
— Desjardins vai ordenar que eu os persiga — avisou ela. — Entende o que eu digo?
Infelizmente, eu entendia. Na próxima vez que nos encontrássemos, seríamos inimigas.
Agarrei a mão de Carter e corri.

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