terça-feira, 23 de dezembro de 2014

O Sangue do Olimpo - Reyna

Capítulo V

MERGULHAR DE CABEÇA EM UM vulcão não estava na lista de tarefas de Reyna para aquele dia.
Ela se encontrava a mil e quinhentos metros de altura quando avistou pela primeira vez o sul da Itália. A leste, acompanhando a meia-lua do Golfo de Nápoles, as luzes das cidades adormecidas cintilavam na escuridão que antecedia o amanhecer. A trezentos metros abaixo de Reyna, uma caldeira de quase um quilômetro de diâmetro bocejava no alto de uma montanha, uma coluna de vapor branco subindo de sua boca escancarada.
A desorientação levou um momento para se dissipar. As viagens nas sombras sempre a deixavam tonta e enjoada, como se ela tivesse sido retirada das águas geladas de um frigidário e levada direto para a sauna de uma casa de banhos romana.
Só então ela se deu conta de que estava suspensa em pleno ar. A gravidade entrou em ação, e ela começou a cair.
— Nico! — gritou Reyna.
— Pelas flautas de Pã! — exclamou Gleeson Hedge.
Nico se sacudia todo a ponto de quase se soltar de Reyna.
— Uáááááááá! — fez ele.
Mas ela o segurou firme.
Reyna pegou o treinador Hedge pelo colarinho da camisa quando o impulso da queda começou a levá-lo para longe. Se eles se separassem naquele momento, estariam mortos.
Os três despencavam a toda, direto para o vulcão. Atrás deles vinha a maior bagagem que traziam: a Atena Partenos de doze metros de altura, presa por correias às costas de Nico como um paraquedas nem um pouco eficiente.
— Vejam lá embaixo, o Vesúvio! — gritou Reyna, mais alto que o ruído do vento. — Nico, nos transporte daqui!
Os olhos dele estavam arregalados e desfocados de pavor. Seu cabelo negro bagunçado estapeava todo o seu rosto como um corvo surgido do nada no céu.
— Eu... eu não consigo! Não tenho força!
O treinador Hedge gritou:
— Saiba de uma coisa, garoto: bodes não voam! Então tire a gente daqui ou vamos virar omelete de Atena Partenos!
Reyna tentou pensar. Ela podia aceitar a morte se necessário, mas, se a Atena Partenos fosse destruída, seria o fracasso da missão. Isso ela não podia aceitar.
— Nico, faça a viagem — ordenou ela. — Eu empresto minha força a você.
Ele a olhou sem entender.
— Como...?
— Agora!
Ela apertou a mão dele com ainda mais força. O símbolo de Belona tatuado em seu antebraço ficou dolorosamente quente, como se estivesse sendo marcado em sua pele naquele momento.
Nico arfou. A cor voltou ao seu rosto. Quando estavam prestes a alcançar a coluna de vapor que se erguia do vulcão, mergulharam nas sombras.
O ar ficou gélido. O ruído do vento foi substituído por uma cacofonia de vozes sussurrando em mil línguas. Reyna sentiu como se suas entranhas fossem uma raspadinha doce: xarope de fruta sobre gelo triturado, sua sobremesa preferida quando era criança em Viejo San Juan.
Por que aquela lembrança tinha ressurgido justo naquele momento, quando estava à beira da morte? Então sua visão clareou: seus pés estavam firmes no chão.
O céu a leste tinha começado a clarear. Por um instante Reyna achou que estivesse de volta a Nova Roma: colunas dóricas circundavam um átrio do tamanho de um campo de beisebol; à frente dela, um fauno de bronze erguia-se no meio de uma fonte d’água rebaixada e decorada com mosaicos.
Delicadas murtas e roseiras floresciam em um jardim ali perto. Palmeiras e pinheiros projetavam-se em direção ao céu. Caminhos calçados com pedras levavam dali do pátio em várias direções; vias retas e regulares de boa construção romana, ao longo das quais se viam casas baixas de pedra com pórticos sustentados por colunatas.
Reyna se virou. Atrás dela estava a Atena Partenos, intacta e imponente e enorme, como um enfeite de jardim ridiculamente grande. O pequeno fauno de bronze na fonte tinha os dois braços levantados e estava de frente para Atena, de forma que parecia estar recuando de medo dos recém-chegados.
O Monte Vesúvio assomava no horizonte, uma forma escura e encurvada como um corcunda, agora a quilômetros de distância. Colunas espessas de vapor subiam do cume.
— Estamos em Pompeia — reconheceu Reyna.
— Hum, isso não é bom... — disse Nico, para logo em seguida desmaiar.
— Epa! — exclamou o treinador Hedge, pegando-o antes que ele caísse no chão.
O sátiro então o colocou apoiado nos pés de Atena e soltou as correias que prendiam o menino à estátua.
Reyna também sentia as pernas bambas. Já esperava alguma reação adversa. Acontecia sempre que ela transmitia força. Mas ela não imaginava que Nico di Angelo carregasse uma angústia assim tão brutal.
Reyna se sentou pesadamente, mal conseguindo se manter consciente. Pelos deuses de Roma. Se aquilo era apenas uma parte da dor de Nico... como ele conseguia suportar?
Ela tentou recuperar o fôlego enquanto o treinador Hedge verificava suas provisões. As pedras rachavam em torno das botas de Nico. A escuridão parecia irradiar dele como uma rajada de tinta, como se o corpo de Nico estivesse tentando expelir todas as sombras através das quais ele tinha viajado.
No dia anterior tinha sido pior: um campo inteiro murchando, esqueletos se erguendo da terra. Reyna não fazia a menor questão de que aquilo tornasse a acontecer.
— Beba alguma coisa.
Ela ofereceu a Nico um cantil de poção de unicórnio: pó de chifre com água santificada do Pequeno Tibre. Haviam descoberto que a mistura funcionava com Nico melhor que néctar, ajudando a limpar a fadiga e a escuridão de seu organismo com menos risco de combustão espontânea.
Nico bebeu com avidez. Ainda parecia péssimo. Sua pele tinha uma coloração azulada, suas bochechas estavam encovadas. Preso ao cinto do menino, o cetro de Diocleciano brilhava em um furioso roxo, como um hematoma radioativo.
Ele olhou para Reyna intrigado.
— Como você fez isso... essa onda de energia?
Reyna virou o antebraço. A tatuagem ainda queimava como cera quente: o símbolo de Belona, SPQR, com quatro linhas por seus anos de serviço.
— Não gosto de falar sobre isso. Mas é um poder que vem da minha mãe. Posso transmitir parte da minha força, compartilhá-la.
O treinador Hedge ergueu os olhos de sua mochila.
— Sério? E por que não fez isso comigo, garota romana? Eu quero supermúsculos!
Reyna fez uma cara feia.
— Não funciona assim, treinador. Só posso fazer isso em casos de vida ou morte, e é mais útil em grupos grandes. Quando estou no comando em uma batalha, posso transmitir qualquer atributo que eu tenha, seja força, coragem ou resistência, multiplicado pelo tamanho das minhas tropas.
Nico ergueu uma sobrancelha.
— Bem útil para uma pretora romana.
Reyna não respondeu. Ela preferia não mencionar seu poder exatamente por essa razão. Não queria que semideuses sob seu comando achassem que ela os estava controlando, ou que ela havia se tornado líder porque tinha algum poder mágico especial. Na verdade, ela só podia transmitir, ou “emprestar”, qualidades que já possuísse e não podia ajudar ninguém que não fosse digno de ser um herói.
O treinador Hedge resmungou:
— Que pena. Seria legal ter supermúsculos.
E voltou a remexer em sua mochila, que parecia conter uma infinidade de utensílios de cozinha, itens de sobrevivência e equipamentos esportivos diversos.
Nico tomou mais um gole da poção de unicórnio. Seus olhos estavam pesados de cansaço, mas Reyna percebia que ele se esforçava para permanecer acordado.
— Você quase caiu agora há pouco — observou ele. — Quando usa esse seu poder, você recebe algum... hã... retorno de mim?
— Não é como ler mentes — explicou ela. — Ou uma ligação empática. É só... uma onda temporária de exaustão. Emoções primais. Sou inundada pela sua dor. Tomo para mim uma parte do seu fardo.
Nico assumiu uma expressão receosa.
Ele girou o anel de caveira de prata no dedo, do mesmo modo que Reyna fazia com o próprio anel de prata quando estava pensando. Ter o mesmo hábito que o filho de Hades a deixou desconfortável.
Ela havia sofrido mais por Nico durante a breve conexão entre eles do que por toda a sua legião durante a batalha contra o gigante Polibotes. Aquilo a havia exaurido mais do que a última vez em que ela havia usado o poder, para sustentar seu pégaso, Scipio, durante sua viagem através do Atlântico.
Ela tentou afastar a lembrança. Seu corajoso amigo alado, morrendo envenenado, com o focinho em seu colo, olhando para ela com confiança enquanto ela erguia a adaga para acabar com seu sofrimento... Pelos deuses, não. Não podia ficar remoendo a situação, ou isso a destruiria.
Mas a dor que havia sentido por causa de Nico era mais forte.
— Você precisa descansar — disse Reyna a ele. — Depois de dois saltos seguidos, mesmo com uma ajudinha... você tem sorte de estar vivo. Vamos precisar que esteja pronto de novo antes do anoitecer.
Ela se sentiu mal por pedir a ele algo impossível. Infelizmente, no entanto, ela tinha muita prática em forçar semideuses além de seus limites.
Nico cerrou os dentes e assentiu.
— Estamos presos aqui — ele observou as ruínas a sua volta. — Pompeia é o último lugar que eu teria escolhido para aterrissar. Este lugar está cheio de lemures.
— Lêmures? — O treinador Hedge parecia estar fazendo uma espécie de armadilha com linha de pipa, uma raquete de tênis e uma faca de caça. — Está se referindo àquelas criaturinhas peludas?
— Não — Nico respondeu com um tom aborrecido, como se lhe fizessem aquela pergunta muitas vezes. — Lemures. Fantasmas raivosos. Eles existem em todas as cidades romanas, mas em Pompeia...
— A cidade inteira foi arrasada — lembrou Reyna. — Em 79 EC. O Vesúvio entrou em erupção e cobriu a cidade de cinzas.
— Uma tragédia como essa cria muitos espíritos raivosos.
O treinador Hedge lançou um olhar desconfiado para o vulcão a distância.
— Está soltando fumaça. Isso é um mau sinal?
— Humm... não sei — Nico mexia distraidamente em um furo de sua calça jeans preta, na altura do joelho. — Os deuses da montanha, os ourae, sentem quando há algum filho de Hades por perto. Talvez tenha sido por isso que fomos desviados do curso. O espírito do Vesúvio podia estar intencionalmente tentando nos matar. Mas duvido que a montanha possa nos fazer algum mal dessa distância. Produzir uma erupção completa demoraria demais. A ameaça imediata está à nossa volta.
Reyna sentiu a nuca formigar.
Ela se acostumara aos Lares, os espíritos amistosos do Acampamento Júpiter, mas até eles a deixavam desconfortável. Não tinham muita noção de espaço pessoal. Às vezes passavam direto através dela, deixando-a com vertigem. Estar em Pompeia dava a Reyna a mesma sensação, como se a cidade inteira fosse um grande fantasma que a tivesse engolido inteira.
Ela não podia contar aos amigos quanto temia os fantasmas nem por que tinha medo deles. Todo o motivo que levara Reyna e sua irmã a fugir de San Juan, tantos anos antes... Ela precisava manter esse segredo.
— Você consegue impedir que eles nos alcancem? — perguntou ela.
Nico virou as palmas das mãos para cima.
— Já enviei a mensagem: fiquem longe. Mas é só eu dormir que isso não vai mais adiantar muito.
O treinador Hedge deu umas batidinhas com seu equipamento improvisado a partir de uma faca com raquete de tênis.
— Não se preocupe, garoto. Vou cercar este lugar com alarmes e armadilhas. E vou estar de vigia com meu taco de beisebol, cuidando de você o tempo todo.
Isso não foi suficiente para tranquilizar Nico, mas o menino já estava fechando os olhos.
— Está bem. Mas... vá com calma, hein. Não queremos repetir o episódio da Albânia.
— Não mesmo — concordou Reyna.
A primeira experiência dos três juntos viajando nas sombras, dois dias antes, tinha sido um fiasco completo, possivelmente o episódio mais humilhante na longa carreira de Reyna. Talvez um dia, se sobrevivessem, eles dessem boas risadas ao se lembrar da situação, mas não agora. Os três tinham concordado em nunca falar no assunto. O que tinha acontecido na Albânia era para ficar na Albânia.
O treinador Hedge pareceu magoado.
— Está bem, como quiserem. Só descanse, garoto. Estamos lhe dando cobertura.
— Tudo bem. Talvez um pouco... — disse Nico e chegou a tirar a jaqueta de aviador e dobrá-la para servir de travesseiro, justo antes de se virar para o lado e já começar a roncar.
Como ele parecia em paz, observou Reyna, impressionada. As rugas de preocupação sumiram. Seu rosto se tornou estranhamente angelical... como seu sobrenome, di Angelo. Ela quase podia acreditar que ele era um garoto normal de catorze anos, não um filho de Hades que tinha sido arrancado dos anos quarenta e obrigado a encarar mais tragédias e perigos do que a maioria dos semideuses enfrentaria em toda uma vida.
Reyna não confiava em Nico no início, logo que ele chegara ao Acampamento Júpiter. Tinha sentido que a história dele não se resumia a atuar como embaixador do pai, Plutão. Agora, é claro, ela sabia a verdade. Ele era um semideus grego, o único dos últimos tempos (e talvez o único que já existira) a transitar entre os acampamentos grego e romano sem contar a um grupo da existência do outro.
Estranhamente, isso só fazia com que Reyna confiasse mais em Nico.
Claro, ele não era romano. Nunca havia caçado com Lupa nem passara pelo brutal treinamento na legião. Mas Nico tinha provado seu valor de outras maneiras. Ele havia mantido em segredo a existência dos acampamentos pela melhor das razões: por temer uma guerra. Tinha mergulhado sozinho no Tártaro, voluntariamente, para encontrar as Portas da Morte. Tinha sido capturado e preso por gigantes. Tinha comandado a tripulação do Argo II até a Casa de Hades... e agora tinha aceitado mais uma missão terrível: arriscar a própria vida para levar a Atena Partenos de volta ao Acampamento Meio-Sangue.
O ritmo da jornada era de uma lentidão enlouquecedora. Eles só podiam viajar nas sombras algumas centenas de quilômetros por noite e precisavam descansar durante o dia, para que Nico se recuperasse. E mesmo nesse ritmo lento, a viagem exigia uma energia de Nico que Reyna imaginava impossível.
Ele carregava tamanha tristeza e solidão, tanto sofrimento, mas mesmo assim, a missão era sua prioridade. Ele perseverava. Reyna respeitava isso. Entendia isso.
Ela nunca tinha sido do tipo sensível e sentimental, mas agora teve o estranhíssimo impulso de tirar o próprio manto para cobrir Nico.
Reprovou-se mentalmente pela ideia. Ele era um companheiro de batalhas, não seu irmão mais novo. Nico não iria gostar do gesto.
— Ei! — exclamou o treinador Hedge, interrompendo seus pensamentos. — Você também precisa dormir. Vou assumir o posto de vigia e depois vocês revezam comigo. Enquanto isso, preparo alguma coisa para a gente comer. Aqueles fantasmas não devem ser tão perigosos agora que o sol está nascendo.
Reyna não havia percebido que estava clareando. Nuvens em tons de cor-de-rosa e turquesa riscavam o horizonte a leste. A sombra do pequeno fauno de bronze se projetava sobre a fonte seca.
— Já li sobre este palácio — lembrou-se Reyna. — É uma das villas mais bem-preservadas de Pompeia. É chamada de A Casa do Fauno.
Gleeson lançou um olhar de repulsa para a estátua.
— Bem, hoje vai ser a Casa do Sátiro.
Reyna se permitiu um sorriso. Estava começando a apreciar as diferenças entre sátiros e faunos. Se ela dormisse enquanto um fauno ficasse de vigia, acordaria com toda a sua comida roubada, um bigode desenhado na cara e o fauno já muito longe. O treinador Hedge era diferente; em quase tudo, diferente para o bem, apesar de sua obsessão doentia por artes marciais e tacos de beisebol.
— Muito bem — concordou ela. — Você é o primeiro a ficar de vigia. Vou botar Aurum e Argentum de guarda com você.
Hedge fez menção de protestar, mas Reyna logo deu um assovio curto e alto. Seus cães metálicos se materializaram no meio das ruínas e foram correndo até ela, de diferentes direções. Mesmo depois de tantos anos, Reyna ainda não sabia de onde eles vinham nem para onde iam quando ela os dispensava, mas era reanimador vê-los.
Hedge pigarreou.
— Tem certeza de que não são dálmatas? Eles parecem dálmatas.
— São apenas galgos, treinador. — Reyna não fazia ideia do porquê de Hedge ter medo de dálmatas, mas estava cansada demais para perguntar. — Aurum e Argentum, fiquem de guarda enquanto eu durmo. Obedeçam a Gleeson Hedge.
Os cães deram a volta no pátio, mantendo distância da Atena Partenos, que irradiava hostilidade por tudo que era romano. A própria Reyna só agora estava se acostumando à presença da estátua, que, ela tinha quase certeza, não devia ter gostado nem um pouco de ter sido levada para uma antiga cidade romana.
Ela deitou e se cobriu com o manto roxo. Levou a mão à bolsa presa no cinto, na qual guardava a moeda de prata que Annabeth lhe dera antes de se separarem em Épiro.
É um sinal de que as coisas podem mudar, tinha dito Annabeth. A Marca de Atena agora é sua. Talvez a moeda lhe traga sorte.
Reyna não tinha tanta certeza.
Ela deu uma última olhada no fauno de bronze se encolhendo diante do amanhecer e na Atena Partenos. Então fechou os olhos e deixou-se mergulhar nos sonhos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário