CARTER FOI LEVADO PARA UM dormitório diferente, por isso não sei como ele dormiu. Mas eu não consegui pregar os olhos.
Teria sido difícil com os comentários de Zia sobre passar nas provas ou morrer, mas ficou ainda pior pelas acomodações. O dormitório feminino não tinha nada do conforto da mansão de Amós. Das paredes de pedra minava umidade. Imagens sinistras de monstros egípcios dançavam pelo teto à luz das tochas. Minha cama parecia uma maca suspensa, e as outras meninas em treinamento – iniciadas, Zia as chamava — eram muito mais novas que eu, por isso, quando a velha governanta do dormitório ordenou que elas dormissem imediatamente, todas obedeceram. A governanta acenou com a mão e as tochas se apagaram. Ela fechou a porta ao sair e ouvi o som de fechaduras e trancas.
Adorável. Aprisionada na masmorra de um jardim de infância.
Fiquei olhando a escuridão até ouvir o ronco das outras meninas. Um único pensamento continuava me incomodando: uma urgência da qual eu não conseguia me livrar. Finalmente, eu me levantei da cama e calcei os coturnos. Tateei até chegar à porta. Girei a maçaneta. Trancada, como eu imaginava. Senti a tentação de chutar a porta, mas resisti ao lembrar o que Zia fizera com o armário de vassouras no aeroporto do Cairo.
Encostei a palma da mão na porta.
— Sahad — sussurrei.
Trincos e trancas estalaram. A porta se abriu. Esse era um truque bem útil.
Do lado de fora, os corredores estavam escuros e vazios. Aparentemente, não havia muita vida noturna no Primeiro Nomo. Caminhei de modo furtivo pela cidade, refazendo o trajeto que fizéramos até ali, mas nada vi além de uma ou outra cobra rastejando pelo chão. Depois dos últimos dois dias, isso nem me abalava. Pensei em tentar encontrar Carter, mas não sabia para onde o tinham levado e, francamente, queria agir sozinha dessa vez.
Depois de nossa última discussão em Nova York, eu não sabia o que sentia por meu irmão. A ideia de que ele podia invejar a minha vida enquanto viajava pelo mundo com papai... Por favor! E ele tivera a ousadia de chamar minha vida de normal? Tudo bem, eu tinha algumas colegas na escola, como Liz e Emma, mas minha vida estava longe de ser fácil. Se Carter cometia uma gafe social, ou se conhecia pessoas de quem não gostava, podia simplesmente ir embora, seguir adiante! Eu tinha de ficar. Não podia responder a perguntas simples como “Onde estão seus pais?”, “O que sua família faz?” ou até mesmo “De onde você é?” sem expor quanto minha situação era estranha.
Eu era sempre a garota diferente. A mestiça, a americana que não era americana, a garota cuja mãe tinha morrido, a menina com o pai ausente, a aluna que criava problemas na classe, a garota que não conseguia se concentrar nas aulas. Depois de um tempo, a gente aprende que tentar se misturar simplesmente não funciona. Se as pessoas iam me discriminar, pelo menos eu daria a elas motivo para comentar. Mechas vermelhas no cabelo? Por que não? Coturnos com o uniforme da escola? Com certeza! O diretor diz que vai ter de chamar meus pais, e eu digo a ele que desejo boa sorte na missão impossível.
Carter nada sabe sobre minha vida.
Mas já chega disso. O que importa é que decidi realizar sozinha essa exploração em especial e, após algumas tentativas fracassadas, encontrei o caminho de volta ao Salão das Eras.
O que eu pretendia?, você pode estar se perguntando. Certamente eu não queria encontrar novamente o Monsieur Malvado ou o sinistro Lorde Salamandra.
Eu queria ver aquelas imagens – lembranças, como Zia as chamara.
Empurrei a porta de bronze. O salão parecia deserto. Não havia bolas de fogo flutuando. Nem hieróglifos cintilantes. Mas ainda havia entre as colunas as cenas mágicas, inundando o salão com uma luz estranha, multicolorida.
Dei alguns passos com nervosismo.
Eu queria dar mais uma olhada na Era dos Deuses. Em nossa primeira jornada pelo salão, algo naquelas imagens tinha me afetado intensamente. Sabia que Carter tinha pensado que eu entrara num transe perigoso, e Zia havia me avisado que as cenas derreteriam meu cérebro, mas eu tinha a sensação de que ela só queria me assustar. Senti uma ligação com aquelas imagens, como se houvesse nelas alguma resposta – uma informação vital da qual eu precisava.
Pisei fora do tapete e me aproximei da cortina de luz dourada. Vi dunas de areia mudando de lugar com o vento, nuvens de tempestade se formando, crocodilos deslizando pelo Nilo. Vi um salão enorme cheio de foliões. E toquei a imagem.
Fui parar no palácio dos deuses.
Seres imensos passavam por mim mudando de forma: de humanos a animais e a pura energia. Em um trono no centro da sala estava um musculoso africano em ricas vestes negras. Seu rosto era bonito e os olhos eram castanhos e calorosos. As mãos pareciam fortes o bastante para esmagar pedras.
Os outros deuses celebravam em torno dele. Havia música – um som tão poderoso que o ar fervilhava. Ao lado do homem, vi uma bela mulher de branco, a barriga protuberante sugerindo um início de gravidez. Sua forma tremulava. Às vezes, parecia ter asas multicoloridas. Então ela me olhou e perdi o fôlego. Seu rosto era o de minha mãe!
Ela não parecia me ver. De fato, nenhum dos deuses parecia perceber minha presença, até que uma voz atrás de mim perguntou:
— Você é um fantasma?
Eu me virei e vi um menino bonito, de uns dezesseis anos, inteiramente vestido de preto. Sua pele era pálida, mas seus olhos eram castanhos e lindos, como os do homem sentado no trono. Os cabelos eram longos, pretos, emaranhados – bastante despenteados, mas eu gostava. Ele inclinou a cabeça, e finalmente compreendi que o garoto havia feito uma pergunta.
Tentei pensar em alguma coisa para dizer. Como? Oi? Quer se casar comigo? Qualquer frase teria servido. Mas tudo o que consegui fazer foi sacudir a cabeça.
— Não é um fantasma — concluiu ele. — Um ba, então? — Ele apontou para o trono. — Observe, mas não interfira.
Eu não estava muito interessada em olhar para o trono, mas o menino de preto se dissolveu numa sombra e desapareceu. Minha distração foi embora.
— Ísis — disse o homem no trono.
A mulher grávida olhou para ele e se curvou.
— Meu senhor Osíris. Feliz aniversário.
— Obrigado, meu amor. E logo estaremos celebrando o nascimento de nosso filho... Hórus, o grande! Em sua nova encarnação ele será ainda mais grandioso. Trará paz e prosperidade ao mundo.
Ísis segurou a mão do marido. A música continuava tocando, os deuses comemoravam, o ar parecia pulsar em uma dança da criação.
De repente, as portas do palácio se abriram com uma rajada de vento. Um vento forte que fez tremular a chama das tochas.
Um homem entrou no salão. Ele era alto e forte, quase um gêmeo de Osíris, mas tinha a pele vermelho escura, vestes cor de sangue e uma barba pontuda. Parecia humano, exceto quando sorria. Então, seus dentes se transformavam em presas. Seu rosto se alterava – ora humano, ora com traços de lobo. Tive de sufocar um grito, porque eu já tinha visto aquele rosto de lobo antes.
A dança parou. A música cessou.
Osíris se levantou do trono.
— Set — disse ele em tom ameaçador. — O que faz aqui?
Set riu, e a tensão na sala se desfez. Apesar dos olhos cruéis, ele tinha uma gargalhada contagiante – muito diferente do guincho que soltara no British Museum. Era despreocupada e amistosa, como se ele não tivesse nenhuma má intenção.
— Vim celebrar o aniversário de meu irmão, é claro! — exclamou o recém-chegado. — E trago entretenimento!
Ele apontou para trás. Quatro homens muito grandes com cabeça de lobo entraram no salão carregando um caixão dourado cravejado de pedras preciosas.
Meu coração disparou. Era a mesma caixa que Set utilizara para aprisionar meu pai no British Museum.
Não! Senti vontade de gritar. Não confie nele!
Mas os deuses reunidos diziam muitos “oh” e “ah”, admirando o caixão pintado com hieróglifos dourados e vermelhos, adornado com jades e opalas. Os homens-lobo puseram-no no chão, e eu vi que não havia uma tampa. O interior era forrado de linho preto.
— Este esquife de dormir — anunciou Set — foi feito por meu melhor artesão, com os mais caros materiais. Seu valor é incomensurável. O deus que nele se deitar, mesmo que só por uma noite, terá seus poderes multiplicados por dez! Sua sabedoria nunca falhará. Sua força nunca diminuirá. É um presente — ele sorriu acanhado para Osíris — para o único deus que couber nele perfeitamente!
Eu não teria corrido para a frente da fila, mas os deuses se apressaram. Eles se empurravam tentando chegar ao caixão dourado. Alguns entraram, mas eram pequenos demais. Outros eram muito grandes. Mesmo quando tentavam mudar de forma, não tinham sorte, como se a magia do caixão os estivesse enganando, trapaceando. Nenhum deles cabia perfeitamente. Alguns resmungavam e se queixavam, enquanto outros, ansiosos pela oportunidade de tentar, os empurravam e jogavam no chão.
Set se virou para Osíris com uma risada bem-humorada.
— Bem, irmão, ainda não temos um vencedor. Não vai tentar? Só o melhor dos deuses terá sucesso.
Os olhos de Osíris brilhavam. Aparentemente, ele não era o deus da inteligência, porque parecia completamente fascinado pela beleza do esquife. Todos os outros deuses olhavam para ele com grande expectativa, e eu pude ver o que ele estava pensando: se coubesse na caixa, aquele seria um fabuloso presente de aniversário. Até mesmo Set, seu terrível irmão, teria de admitir que ele tinha o direito de ser reconhecido como rei de todos os deuses.
Só Ísis parecia preocupada. Ela mantinha uma das mãos sobre o ombro do marido.
— Meu senhor, não. Set não dá presentes.
— Estou ofendido! — reagiu Set em tom magoado. — Não posso celebrar o aniversário de meu irmão? Estamos tão distantes que não posso nem pedir desculpas ao rei?
Osíris sorriu para Ísis.
— Minha querida, é só uma brincadeira. Não tema.
Ele se levantou do trono. Os deuses aplaudiram quando ele se aproximou do caixão.
— Viva Osíris! — gritou Set.
O rei dos deuses entrou no caixão, e quando olhou em minha direção, só por um momento, vi nele o rosto de meu pai.
Não!, pensei novamente. Não faça isso!
Mas Osíris se deitou. E coube nele perfeitamente.
Aplausos eclodiram no salão, todos os deuses comemoravam, mas, antes que Osíris pudesse se levantar, Set bateu palmas uma vez. Uma tampa dourada materializou-se e lacrou o esquife.
Osíris gritou furiosamente, mas o som foi abafado.
Fechos dourados prendiam a tampa. Os outros deuses se aproximaram para interferir – até o menino de preto que eu vira antes reapareceu – mas Set foi mais rápido. Ele bateu o pé com tanta força que o chão tremeu.
Os deuses caíram uns sobre os outros como dominós. Os homens-lobo empunharam suas lanças e os deuses recuaram aterrorizados.
Set pronunciou uma palavra mágica e um caldeirão fervente apareceu do nada, pairando no ar. Ele despejou seu conteúdo sobre o caixão: chumbo derretido, que revestiu, selou e, provavelmente, elevou a temperatura de seu interior a mil graus.
— Vilão! — Ísis gritou.
Ela avançou até Set e começou a recitar um encantamento, mas ele levantou uma das mãos. Ísis foi erguida do chão e levou as mãos à boca com desespero, como se uma força invisível a sufocasse.
— Não hoje, adorável Ísis — murmurou Set. — Hoje, eu sou o rei. E seu filho jamais nascerá!
De repente, outra deusa, uma mulher esguia de vestido azul, surgiu do meio da multidão.
— Marido, não!
Ela se aproximou de Set, que perdeu a concentração por um instante. Ísis caiu no chão arfando. A outra deusa gritou:
— Fuja!
Ísis se virou e correu.
Set se levantou. Tive a impressão de que ia bater na deusa de azul, mas ele só grunhiu.
— Esposa tola! De que lado você está?
Ele bateu o pé novamente e o caixão dourado afundou no chão.
Set correu atrás de Ísis. Na saída do palácio, ela se transformou em uma pequena ave de rapina e alçou voo. Set ganhou asas de demônio e decolou em sua perseguição.
Então, de repente, eu era o pássaro. Eu era Ísis voando, desesperada, sobre o Nilo. Podia sentir Set atrás de mim, aproximando-se. Cada vez mais perto.
Você precisa escapar, dizia a voz de Ísis dentro de minha cabeça. Vingue Osíris. Coroe Hórus rei!
Quando eu já pensava que meu coração ia explodir, senti a mão em meu ombro. As imagens evaporaram. O velho mestre, Iskandar, estava de pé a meu lado, seu rosto contorcido pela preocupação. Hieróglifos brilhantes dançavam em torno dele.
— Perdoe a interrupção — disse ele num inglês perfeito. — Mas você estava quase morta.
Foi aí que minhas pernas amoleceram e eu perdi a consciência.
Quando acordei, estava encolhida aos pés de Iskandar nos degraus sob o trono vazio. Estávamos sozinhos no salão, que estava quase totalmente dominado pela escuridão, exceto pela luz dos hieróglifos que sempre pareciam brilhar à volta dele.
— Bem-vinda de volta — disse ele. — Tem sorte de ter sobrevivido.
Eu não tinha tanta certeza. A sensação era de que minha cabeça havia sido frita em óleo quente.
— Desculpe — murmurei. — Eu não queria...
— Olhar as imagens? Mas olhou. Seu ba deixou seu corpo e entrou no passado. Não havia sido prevenida?
— Sim — admiti. — Mas... fui atraída pelas imagens.
— Hum. — Iskandar olhava para o vazio, como se lembrasse algo de um passado distante. — É difícil resistir a elas.
— Você fala inglês com perfeição — comentei.
Iskandar sorriu.
— Como sabe que estou falando inglês? Talvez você esteja falando grego.
Eu esperava que ele estivesse brincando, mas não podia afirmar com certeza. O homem parecia frágil e afetuoso, mas... era como estar sentada ao lado de um reator nuclear. Tinha a sensação de que ele representava um perigo muito maior do que eu gostaria de saber.
— Você não é realmente tão velho, é? — perguntei. — Quer dizer, velho o bastante para lembrar os tempos Ptolomaicos?
— Sou exatamente tão velho, minha querida. Nasci no reinado de Cleópatra VII.
— Ah, por favor...
— É verdade, eu garanto. Foi com pesar que testemunhei os últimos dias do Egito, antes de aquela rainha tola perder nosso reino para os romanos. Fui o último mago a ser treinado antes de a Casa vir para o subterrâneo. Muitos de nossos segredos mais poderosos se perderam, entre eles os encantamentos que meu mestre usou para prolongar minha vida. Nos tempos atuais, os magos ainda vivem muito, às vezes séculos, mas estou vivo há dois milênios.
— Então, você é imortal?
Ele riu, e sua risada rouca terminou numa tosse carregada. O velho se curvou e cobriu a boca com uma das mãos. Eu queria ajudar, mas não sabia como. Os hieróglifos cintilantes tremularam e perderam parte do brilho. Finalmente, a tosse cedeu.
Ele respirou fundo.
— Não sou imortal, minha querida. Na verdade... — Sua voz fraquejou. — Ah, isso não é importante. O que havia em sua visão?
Eu devia ter ficado quieta. Não queria ser transformada em um inseto por quebrar regras, e a visão me deixara aterrorizada – especialmente no momento em que me transformei naquele pássaro. Contudo a expressão bondosa de Iskandar me impedia de guardar segredos. Acabei contando tudo. Bem, quase tudo. Omiti o detalhe sobre o menino bonito, e sim, sei que isso é bobagem, mas estava constrangida. Reconheço que esse trecho da história pode ter sido produto de minha imaginação maluca, já que os antigos deuses egípcios não podiam ter sido tão lindos.
Iskandar sentou-se por um momento, batendo com seu cajado nos degraus.
— Você viu um evento muito antigo, Sadie. Set tomando à força o trono do Egito. Ele escondeu o caixão de Osíris, como sabe, e Ísis revirou o mundo para encontrá-lo.
— E conseguiu? Ela achou o marido?
— Não exatamente. Osíris foi ressuscitado, mas só no mundo inferior. Ele se tornou o rei dos mortos. Quando Hórus, o filho deles, cresceu, ele desafiou Set pelo trono do Egito e venceu depois de diversas batalhas muito duras. Por isso Hórus era chamado de Vingador. Como eu disse, uma velha história, mas um relato que os deuses repetiram muitas vezes.
— Repetiram?
— Os deuses seguem padrões. Em alguns aspectos, são muito previsíveis: encenam as mesmas disputas, os mesmos ciúmes ao longo das eras. Mudam apenas os cenários, os hospedeiros.
De novo a palavra: hospedeiros. Pensei na pobre mulher no museu de Nova York, a que havia sido transformada na deusa Serket.
— Em minha visão — contei — Ísis e Osíris eram casados. Hórus estava por nascer, como filho deles. Mas em outra história que Carter me contou, os três eram irmãos, filhos da deusa céu.
— Sim — concordou Iskandar. — Isso pode ser confuso para quem não conhece a natureza dos deuses. Eles não podem andar pela terra em sua forma pura, não por mais que alguns momentos, pelo menos. Precisam ter hospedeiros.
— Humanos, você quer dizer.
— Ou objetos poderosos, como estátuas, amuletos, monumentos, certos modelos de carros. Mas eles preferem a forma humana. Os deuses têm grande poder, mas só os humanos têm criatividade, a capacidade de mudar a história, em vez de simplesmente repeti-la. Os humanos podem... como dizem vocês, os modernos... pensar fora da caneca.
— Fora da caixa — corrigi.
— Isso. A combinação de criatividade humana e poder divino pode ser formidável. De qualquer maneira, quando Osíris e Ísis caminharam pela terra no início, seus hospedeiros eram irmão e irmã. Mas hospedeiros mortais não são permanentes. Eles morrem, esgotam-se. Posteriormente, Osíris e Ísis tomaram novas formas: humanos que eram marido e mulher. Hórus, que em uma vida anterior havia sido irmão deles, nasceu nessa nova vida como filho do casal.
— Isso é confuso. E um pouco indecente.
Iskandar encolheu os ombros.
— Os deuses não pensam nos relacionamentos como os humanos. Seus hospedeiros são só trocas de roupa. Por isso as histórias antigas parecem tão confusas. Às vezes, os deuses são descritos como casados, ou irmãos, ou pais e filhos, dependendo de seus hospedeiros. O próprio faraó era chamado de deus vivo. Os egiptólogos acreditam que tudo isso era só uma gigantesca propaganda, mas o fato é que era literalmente verdade. Os faraós mais importantes se tornaram hospedeiros de deuses, normalmente de Hórus. Ele conferia poder e sabedoria aos governantes e os fez transformar o Egito em um império poderoso.
— Mas isso é bom, não é? Por que então é contra a lei invocar um deus?
O rosto de Iskandar tornou-se sombrio.
— Os deuses têm objetivos diferentes dos humanos, Sadie. Podem dominar seus hospedeiros, esgotá-los. Por isso tantos hospedeiros morrem jovens. Tutancâmon, pobrezinho, morreu aos dezenove anos. Cleópatra VII foi ainda pior. Ela tentou hospedar o espírito de Ísis sem saber o que estava fazendo, e isso destruiu sua mente. Nos velhos tempos, a Casa da Vida ensinava o uso da magia divina. Iniciados podiam estudar o caminho de Hórus, Ísis, Sekhmet ou de muitos outros deuses, aprendendo a canalizar seus poderes. Naquele tempo, tínhamos muito mais iniciados.
Iskandar olhou em volta, para o salão vazio, como se o imaginasse cheio de magos.
— Apenas de tempos em tempos alguns adeptos conseguiam invocar os deuses. Outros tentavam hospedar seus espíritos... com graus variados de sucesso. O maior objetivo era se tornar o “olho” de um deus: uma união perfeita de duas almas, a mortal e a imortal. Poucos conseguiam, mesmo entre os faraós, que nasciam para essa missão. Muitos se destruíam tentando. — Ele virou a palma da mão para cima, e tinha a mais profunda linha da vida que eu já vira. — Quando o Egito finalmente caiu sob o poder dos romanos, ficou claro para nós, para mim, que a humanidade, nossos governantes, até o mais poderoso dos magos, não possuía mais a força de vontade para dominar o poder de um deus. Os únicos que podiam... — Sua voz falhou.
— O quê?
— Nada, minha querida. Eu falo demais. Fraquezas de um velho.
— Está falando dos que tinham o sangue dos faraós, não é?
Ele me encarou. Seus olhos já não pareciam opacos, leitosos. Eles agora queimavam de intensidade.
— Você é uma menina fabulosa. Lembra-me sua mãe.
Agora eu estava boquiaberta.
— Você a conheceu?
— É claro que sim. Ela foi treinada aqui, como seu pai. Sua mãe... bem, além de ser uma cientista brilhante, tinha o dom da adivinhação. Uma das mais difíceis formas de magia, e foi a primeira em séculos a possuí-la.
— Adivinhação?
— Ver o futuro. É uma tarefa difícil, nunca é perfeita, mas ela tinha visões que a fizeram buscar orientação em... lugares pouco convencionais, visões que fizeram até este velho questionar algumas crenças muito antigas...
Ele voltara à Terra das Lembranças, o que já era bastante irritante quando os meus avós o faziam, e se tornava simplesmente de enlouquecer quando quem viajava era um mago poderoso com informações valiosas.
— Iskandar?
Ele me olhou com alguma surpresa, como se tivesse esquecido que eu estava ali.
— Desculpe, Sadie. Acho que devo ir direto ao ponto: você tem um caminho difícil pela frente, mas estou convencido de que é um caminho que deve seguir, pelo bem de todos nós. Seu irmão vai precisar de sua orientação.
Tive vontade de rir.
— Carter vai precisar de minha orientação? Para quê? E que caminho é esse?
— Tudo a seu tempo. As coisas devem seguir seu curso.
Resposta típica de um adulto. Tentei conter a frustração.
— E se eu precisar de orientação?
— Zia — respondeu ele sem hesitar. — Ela é minha melhor discípula e é sábia. Quando chegar a hora, saberá como ajudar você.
— Certo — concordei um pouco desapontada. — Zia.
— Por ora você deve descansar, minha querida. E tudo indica que também posso repousar, finalmente.
Ele parecia triste, mas aliviado. Eu não sabia sobre o que Iskandar estava falando, mas nem tive tempo ou chance de perguntar.
— Lamento que nosso tempo juntos tenha sido tão breve. Durma bem, Sadie Kane.
— Mas...
Iskandar tocou minha testa. E eu mergulhei num sono profundo e sem sonhos.
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