COMO DESCREVER? Não foi um pesadelo. Era muito mais real e assustador.
Enquanto eu dormia, senti que não tinha mais peso. Eu flutuava e, quando me virei, vi meu corpo adormecido lá embaixo.
Estou morrendo, pensei. Mas também não era isso. Eu não era um fantasma. Tinha uma nova forma, dourada e cintilante, com asas em vez de braços. Era uma espécie de pássaro.
[Não, Sadie, não era uma galinha. Quer me deixar contar a história, por favor?]
Eu sabia que não estava sonhando, porque não sonho em cores. E certamente não sonho com os cinco sentidos. O quarto tinha um suave cheiro de jasmim. Eu podia ouvir as bolhas de gás na lata de refrigerante que eu deixara aberta sobre o criado-mudo. Sentia o vento frio em minhas penas e percebi que as janelas estavam abertas. Não queria sair, mas uma corrente de ar forte me puxou para fora do quarto, como se eu fosse uma folha na tempestade.
As luzes da mansão enfraqueceram lá embaixo. A paisagem de Nova York perdeu a nitidez e desapareceu. Eu voava cortando a névoa e a escuridão, vozes estranhas sussurravam à minha volta. Meu estômago formigava como antes, naquela noite, a bordo do barco de Amós. Depois, a neblina clareou e eu me vi em um lugar diferente.
Flutuei sobre uma montanha árida. Longe, lá embaixo, uma rede de luzes urbanas se estendia pelo vale. Definitivamente, não era Nova York. Era noite, mas eu podia afirmar que estava no deserto. O vento era tão seco que a pele de meu rosto parecia papel. E eu sei que isso não faz sentido, mas meu rosto estava normal, como se essa parte de mim não tivesse se transformado em pássaro.
[Tudo bem, Sadie. Pode me chamar de galinha com cabeça de Carter. Feliz?]
Embaixo de mim, em um cume, havia duas figuras. Elas não pareciam me notar, e eu percebi que não estava mais brilhando. Na verdade, eu era praticamente invisível, flutuando na escuridão. Não conseguia enxergar as duas formas com nitidez, mas sabia que não eram humanas. Olhando mais atentamente, vi que uma delas era baixa, atarracada e careca, com uma pele viscosa que brilhava à luz das estrelas – como um anfíbio apoiado nas patas traseiras. A outra figura era alta, magra como um espantalho, com pés de galo em vez de pés humanos. Eu não conseguia ver seu rosto muito bem, mas parecia ser vermelho, úmido e... bem, digamos apenas que eu estava feliz por não conseguir vê-lo melhor.
— Onde ele está? — grasnou o baixinho, nervoso.
— Ainda não encontrou um hospedeiro permanente — respondeu o sujeito de pés de galo. — Só pode aparecer por pouco tempo.
— Tem certeza de que o lugar é este?
— Sim, idiota! Ele vai chegar assim que...
Uma forma de fogo surgiu no cume. As duas criaturas caíram no chão, rastejando na terra, e eu rezei como louco para estar realmente invisível.
— Meu senhor — disse o sapo.
Mesmo no escuro, era difícil ver o recém-chegado, a imagem era só a silhueta de um homem contornada por chamas.
— Como chamam este lugar? — perguntou o homem.
Assim que ele falou, eu tive certeza de que era o mesmo cara que havia atacado meu pai no British Museum. Todo o medo que senti no museu voltou de repente, paralisando-me. Eu me lembrei de ter tentado pegar aquela pedra estúpida para arremessar, mas nem isso fora capaz de fazer. Havia falhado com meu pai.
— Meu senhor — disse Pé de Galo. — A montanha é chamada de Camelback. E a cidade é Phoenix.
O homem de fogo riu: um som retumbante como um trovão.
— Phoenix! Que apropriado! E o deserto lembra minha casa. Só falta banir dele toda a vida. O deserto deve ser um lugar estéril, não acham?
— Ah, sim, meu senhor — concordou o sapo. — Mas e os outros quatro?
— Um já foi sepultado — respondeu o homem de fogo. — A segunda é fraca. Ela será manipulada com facilidade. Isso deixa apenas dois. E eles serão eliminados rapidamente.
— Ah... como? — quis saber o tipo com jeito de sapo.
O homem de fogo brilhou mais intensamente.
— Você é um girino bem curioso, não é? — Ele apontou para o sapo, e a pele da pobre criatura começou a ferver.
— Não! — o sapo implorou. — Nãããããoooo!
Eu não suportei olhar aquilo. E não quero descrever. Mas, se você já ouviu falar no que acontece quando crianças cruéis jogam sal em lesmas, então pode ter uma boa ideia do que aconteceu com o sapo. Logo não restava nada.
Pé de Galo recuou com um passo nervoso. Eu não o criticaria por isso.
— Vamos construir meu templo aqui — comentou o homem de fogo, como se nada tivesse acontecido. — Esta montanha servirá como meu local de idolatria. Quando estiver tudo pronto, invocarei a maior tempestade que já houve. Limparei tudo. Tudo.
— Sim, meu senhor — concordou, apressado, Pé de Galo. — E, ah, se me permite sugerir, meu senhor, para aumentar seu poder...
A criatura se curvou e ciscou, movendo-se para a frente, como se quisesse sussurrar no ouvido do homem de fogo.
Quando eu já estava certo de que Pé de Galo ia virar frango frito, ele disse alguma coisa ao homem de fogo que eu não consegui entender, e as chamas brilharam mais.
— Excelente! Se conseguir fazer o que diz, será recompensado. Se não...
— Entendo, meu senhor.
— Então vá — ordenou o homem de fogo. — Libere nossas forças. Comece com os pescoços longos. Isso deverá acalmá-los. Traga as crianças para mim. Quero-os vivos, antes que tenham tempo de tomar conhecimento dos próprios poderes. Não me decepcione.
— Não, senhor.
— Phoenix — resmungou o homem de fogo. — Gosto muito disso. — Ele moveu a mão, apontando o horizonte, como se imaginasse a cidade em chamas. — Logo eu me erguerei de suas cinzas. Será um lindo presente de aniversário.
Acordei com o coração disparado, de volta em meu corpo. Eu me sentia quente, como se o homem de fogo começasse a me queimar. Depois, percebi que havia um gato sobre meu peito.
Muffin me observava com os olhos semicerrados.
— Miau.
— Como entrou aqui? — murmurei.
Eu me sentei e, por um segundo, não tive certeza de onde estava. Algum hotel em outra cidade? Quase chamei meu pai... e então lembrei.
Ontem. O museu. O sarcófago.
Tudo voltou tão depressa que eu quase não conseguia respirar.
Pare, disse a mim mesmo. Você não tem tempo para tristeza.
E isso vai soar estranho, mas a voz dentro de minha cabeça quase parecia a de outra pessoa – alguém mais velho, mais forte. Ou isso era um bom sinal ou eu estava ficando maluco.
Lembre-se do que você viu, disse a voz. Ele está atrás de você. Precisa estar preparado.
Eu estremeci. Queria acreditar que tudo havia sido um pesadelo, mas sabia que não era só isso. Tinha vivido muitas coisas no dia anterior para duvidar do que vi. De algum jeito, eu tinha mesmo deixado meu corpo enquanto dormia. Tinha estado em Phoenix – milhares de quilômetros distante. O homem de fogo estava lá. Eu não havia entendido muito do que ele disse, mas falou sobre enviar forças para capturar as crianças. Caramba, quem poderiam ser?
Muffin pulou da cama e foi farejar o apoio de cabeça, olhando para mim como se tentasse me dizer alguma coisa.
— Pode ficar com ele — falei. — É incômodo.
Ela inclinou a cabeça para o objeto de mármore e me olhou com ar de acusação.
— Miau.
— Tanto faz, gata.
Eu me levantei e fui tomar uma ducha. Quando fui me vestir, descobri que minhas roupas tinham desaparecido em algum momento da noite. Tudo o que havia no armário era do meu tamanho, mas muito diferente do que eu costumava usar – calça larga de elástico na cintura e camisetas soltas, tudo de linho branco, e túnicas para o tempo frio, o tipo de roupa que os felás, os camponeses no Egito, vestiam. Não era exatamente meu estilo.
Sadie gosta de me dizer que eu não tenho estilo. Ela reclama que me visto como um velho: camisas de botão, calça social, mocassim. Tudo bem, talvez sim. Mas vou dizer uma coisa: meu pai sempre enfiou na minha cabeça que eu precisava me vestir bem.
Eu me lembro da primeira vez que ele me explicou isso. Eu tinha dez anos. Estávamos a caminho do aeroporto de Atenas, a temperatura era de quarenta e quatro graus do lado de fora e eu me queixava, dizendo que queria vestir short e camiseta. Por que não podia ficar confortável? Não íamos a nenhum lugar importante naquele dia... apenas viajar.
Papai tocou meu ombro.
— Carter, você está crescendo. É um afro-americano. As pessoas o julgarão de maneira mais dura, por isso deve se apresentar sempre impecável.
— Isso não é justo — insisti.
— Justiça não significa que todos recebem as mesmas coisas — respondeu meu pai. — Justiça é garantir que todos recebam o que é necessário. E a única maneira de ter o que é necessário é você mesmo fazer acontecer. Entendeu?
Eu respondi que não. Mas fiz o que ele pedia – como me interessar pelo Egito, por basquete e por música. Como viajar com uma única mala. E eu me vestia como meu pai queria, porque ele geralmente estava certo. Na verdade, não me lembro de nenhuma vez em que ele estivesse errado... até a noite no British Museum.
Tirei as roupas de linho do armário. Os chinelos eram confortáveis, mas duvidei que fossem bons para correr.
A porta para o quarto de Sadie estava aberta, mas ela não estava lá.
Felizmente, meu quarto não estava mais trancado. Muffin desceu a escada comigo, e passamos por muitos aposentos desocupados pelo caminho. A mansão poderia acomodar com facilidade cem pessoas, mas, em vez disso, estava vazia e triste.
No Grande Salão, Khufu, o babuíno, estava sentado no sofá com uma bola de basquete entre as pernas e um pedaço de carne de aparência estranha nas mãos. Estava coberto de penas cor-de-rosa. A televisão estava sintonizada na ESPN, e Khufu assistia aos melhores momentos dos jogos da noite anterior.
— Ei — chamei, mesmo achando esquisito falar com ele. — Os Lakers ganharam?
Khufu olhou para mim e bateu na bola como se quisesse jogar.
— Agh, agh.
Ele estava com uma pena cor-de-rosa pendurada no queixo, e a imagem fez meu estômago revirar lentamente.
— Ah, sim. Jogaremos mais tarde, está bem?
Vi Sadie e Amós na varanda, tomando o café da manhã à beira da piscina. Devia estar gelado lá fora, mas o fogo ardia na lareira externa, e os dois não pareciam sentir frio. Caminhei na direção deles, mas hesitei ao passar pela estátua de Tot. À luz do dia, o deus com cabeça de pássaro não parecia tão assustador. Mesmo assim, eu podia jurar que aqueles olhos redondos me olhavam cheios de expectativa.
O que o homem de fogo dissera na noite anterior? Algo sobre nos pegar antes que descobríssemos nossos poderes. Parecia ridículo, mas, por um momento, senti uma onda de força – como na noite anterior, quando abri a porta simplesmente erguendo a mão. Poderia levantar qualquer coisa, inclusive aquela estátua de nove metros de altura, se eu quisesse. Em uma espécie de transe, dei um passo para a frente.
Muffin miou impaciente e pisou em meu pé. A sensação foi embora.
— Tem razão — disse à gata. — Ideia estúpida.
Além do mais, eu agora já sentia o cheiro da comida – torrada, bacon, chocolate quente – e não podia criticar Muffin por estar com pressa. Eu a segui até a varanda.
— Ah, Carter — disse Amós. — Feliz Natal, garoto. Junte-se a nós.
— Finalmente — resmungou Sadie. — Estou acordada há séculos.
Mas ela me encarou por um momento, como se pensasse a mesma coisa que eu: Natal. Não passávamos uma manhã de Natal juntos desde que mamãe morrera. Eu me perguntava se Sadie lembrava como costumávamos fazer a decoração de olho do deus com lã e palitos de pirulito.
Amós serviu-se de uma xícara de café. Suas roupas eram semelhantes às do dia anterior, e devo admitir que o cara tinha estilo. O terno era de lã azul, o chapéu Fedora era da mesma cor e os cabelos tinham sido trançados com lápis-lazúli, uma das pedras que os egípcios costumavam usar para criar joias. Até os óculos combinavam. As lentes redondas eram azuis. Um saxofone tenor repousava em um pedestal perto do círculo de pedras que delimitava a fogueira, e eu podia perfeitamente imaginá-lo tocando bem ali, fazendo uma serenata para o rio East.
Quanto a Sadie, ela vestia um pijama de linho branco parecido com o meu, só que de algum jeito tinha conseguido salvar os coturnos. Provavelmente havia dormido com eles. Minha irmã estava realmente engraçada com os cabelos de mechas vermelhas e aquela roupa, mas, como eu não estava muito melhor, decidi não debochar dela.
— Ah... Amós? — chamei. — Você não tinha nenhuma ave de estimação, tinha? Khufu comeu alguma coisa com penas cor-de-rosa.
— Hum... — Amós bebeu seu café. — Lamento se isso o incomoda. Khufu é muito seletivo. Ele só come alimentos que terminem em o. Dorito, burrito, flamingo.
Eu pisquei.
— Você disse...
— Carter — Sadie me advertiu. Ela parecia um pouco impaciente, como se já tivesse tido aquela conversa. — Não pergunte.
— Tudo bem — concordei. — Não vou perguntar.
— Por favor, Carter, sirva-se. — Amós apontou para um bufê repleto de comida. — Vamos começar logo com as explicações.
Eu não vi nenhum flamingo entre as opções de pratos, o que era ótimo, mas havia praticamente de tudo ali.
Peguei algumas panquecas com manteiga e calda, um pouco de bacon e um copo de suco de laranja. Então notei um movimento com o canto do olho. Olhei para a piscina. Algo comprido e pálido deslizava sob a superfície da água.
Eu quase derrubei o prato.
— Aquilo é...
— Um crocodilo — confirmou Amós. — Para dar sorte. Ele é albino, mas, por favor, não comente esse detalhe. Ele é muito sensível.
— O nome dele é Filipe da Macedônia — Sadie me informou.
Eu não entendia como Sadie podia estar tão calma no meio de tudo aquilo, mas deduzi que, se ela não estava surtando, eu também não devia perder a cabeça.
— É um nome bem comprido — respondi.
— Ele é um crocodilo comprido — comentou Sadie. — Ah, e ele gosta de bacon.
Para provar o que dizia, minha irmã jogou um pedaço de bacon por cima do ombro. Filipe lançou-se para o alto e abocanhou o presente. Ele era branco e tinha olhos cor-de-rosa. Sua boca era tão grande que ele poderia ter abocanhado o porco inteiro.
— Ele é totalmente inofensivo aos meus amigos — Amós garantiu. — Nos velhos tempos, nenhum templo era completo sem um lago cheio de crocodilos. Eles eram criaturas mágicas poderosas.
— É claro — concordei. — Assim como o babuíno, o crocodilo... Mais algum animal sobre o qual eu deva saber?
Amós pensou por um momento.
— Visíveis? Não, acho que são só esses.
Eu me sentei na cadeira mais distante da piscina. Muffin se enroscou em minhas pernas e ronronou. Eu esperava que ela tivesse o bom-senso de ficar bem longe de crocodilos mágicos chamados Filipe.
— Então, Amós — comecei a falar entre um pedaço e outro de panqueca — as explicações.
— Sim — concordou ele. — Por onde começar...
— Nosso pai — sugeriu Sadie. — O que aconteceu com ele?
Amós respirou fundo.
— Julius tentava invocar um deus. Infelizmente, ele conseguiu.
Era meio difícil levar Amós a sério, especialmente quando ele falava sobre invocar um deus enquanto passava manteiga no pão.
— Algum deus em particular? — indaguei em tom casual. — Ou ele simplesmente estava invocando qualquer um?
Sadie me chutou por baixo da mesa. Ela estava séria, como se realmente acreditasse no que Amós dizia.
Amós mordeu um pedaço do pão.
— Há muitos deuses egípcios, Carter. Mas seu pai estava atrás de um em particular.
Ele me lançou um olhar expressivo.
— Osíris — lembrei. — Quando papai estava diante da Pedra de Roseta, disse “Osíris, venha”. Mas Osíris é uma lenda. É faz de conta.
— Gostaria que fosse mesmo — comentou Amós, olhando para o rio East e, além dele, para a paisagem de Manhattan brilhando ao sol da manhã. — Os antigos egípcios não eram tolos, Carter. Eles construíram as pirâmides. Criaram o primeiro grande Estado Nacional. Essa civilização durou milhares de anos.
— Sim. E agora eles não existem mais.
Amós balançou a cabeça.
— Um legado tão poderoso não desaparece. Comparados aos egípcios, gregos e romanos eram bebês. Nossas nações modernas, como a Inglaterra e os Estados Unidos? Um piscar de olhos. O mais antigo pilar das civilizações, pelo menos da civilização ocidental, é o Egito. Veja a pirâmide na nota de um dólar. Veja o Monumento a Washington: o maior obelisco egípcio do mundo. O Egito ainda está bem vivo. E, infelizmente, também estão vivos seus deuses.
— Ah, por favor — discordei. — Quer dizer... Mesmo que eu acreditasse na existência de uma coisa chamada magia... acreditar em antigos deuses é totalmente diferente. Está brincando, não está?
Mas, enquanto eu falava, pensei no homem de fogo no museu, em como seu rosto se alterava entre humano e animal. E na estátua de Tot, em seus olhos me seguindo.
— Carter — disse Amós — os egípcios não teriam sido estúpidos a ponto de acreditar em deuses imaginários. Os seres que eles descreveram em sua mitologia eram muito, muito reais. Nos velhos tempos, os sacerdotes do Egito invocavam esses deuses para canalizar seus poderes e realizar grandes feitos. Essa é a origem do que hoje chamamos de magia. Como muitas coisas, a magia foi inventada pelos egípcios. Cada templo tinha um grupo de magos e era chamado de Casa da Vida. Seus magos eram conhecidos por todo o mundo antigo.
— E você é um desses magos egípcios.
Amós assentiu.
— Como seu pai. Você mesmo viu ontem à noite.
Eu hesitei. Era difícil negar que meu pai havia feito coisas estranhas no museu... coisas que pareciam magia.
— Mas ele é arqueólogo — insisti, teimoso.
— Isso é só um disfarce. Deve lembrar que ele é especialista em tradução de encantamentos antigos, o que é muito difícil de entender, a menos que o próprio tradutor pratique magia. Nossa família, a família Kane, tem sido parte da Casa da Vida praticamente desde o início. E a família de sua mãe é quase tão antiga quanto a nossa.
— Os Faust?
Tentei imaginar vovô e vovó Faust praticando magia, mas, a menos que assistir aos jogos de rúgbi pela televisão e queimar biscoitos fossem magia, eu não conseguia visualizar a cena.
— Eles não praticam magia há muitas gerações — admitiu Amós. — Não praticavam até sua mãe chegar. Mas, sim, é uma linhagem muito antiga.
Sadie balançou a cabeça, incrédula.
— Então a mamãe também era maga. Está brincando?
— Não é brincadeira — garantiu Amós. — Vocês dois... vocês têm a combinação do sangue de duas famílias muito antigas, ambas com uma longa e complicada história com os deuses. São os Kane mais poderosos que nasceram em muitos séculos.
Tentei assimilar aquilo. No momento, não me sentia poderoso. Tudo o que sentia era enjoo.
— Está me dizendo que nossos pais idolatravam secretamente deuses com cabeça de animal? — perguntei.
— Não idolatravam — corrigiu-me Amós. — No final dos tempos antigos, os egípcios já haviam aprendido que seus deuses não deveriam ser idolatrados. São seres poderosos, forças primais, mas sua divindade não é como concebemos Deus. Eles são entidades criadas, como os mortais. Porém, com um poder muito maior. Podemos respeitá-los, temê-los, usar seu poder ou até enfrentá-los, para mantê-los sob controle...
— Enfrentar deuses? — interrompeu Sadie.
— Constantemente — respondeu Amós. — Lutamos contra eles, mas não os idolatramos. Tot nos ensinou isso.
Olhei para Sadie pedindo ajuda. O cara devia ser maluco. Mas ela parecia acreditar em cada palavra do que ele dizia.
— Então... — falei. — Por que papai quebrou a Pedra de Roseta?
— Ah, tenho certeza de que ele não pretendia quebrá-la — respondeu Amós. — Isso o teria horrorizado. Na verdade, imagino que a essa altura meus irmãos em Londres já tenham reparado o dano. Logo os curadores irão examinar seus cofres e descobrirão que a Pedra de Roseta milagrosamente sobreviveu à explosão.
— Mas ela explodiu em um milhão de pedaços! — exclamei. — Como pode ser restaurada?
Amós pegou um prato e o jogou no chão de pedra. O prato se estilhaçou.
— Isso foi destruir — disse ele. — Eu poderia ter feito o mesmo usando magia, ha-di, porém é mais simples quebrar. E agora... — Amós estendeu a mão. — Juntar. Hi-nehm.
Um símbolo hieroglífico azul brilhou no ar, acima de sua mão.
Os pedaços do prato voaram para a mão dele e se uniram como peças de um quebra-cabeça; até os menores fragmentos voltaram a seus lugares. Amós pôs o prato sobre a mesa.
— É algum truque — consegui dizer.
Tentei soar calmo, mas estava pensando nas situações estranhas que haviam acontecido com meu pai e comigo ao longo dos anos, como aqueles atiradores no hotel no Cairo, que acabaram pendurados no lustre pelos pés. Papai poderia ter feito aquilo usando algum tipo de encantamento?
Amós despejou leite no prato e o pôs no chão. Muffin se aproximou.
— De qualquer forma, seu pai jamais teria danificado intencionalmente uma relíquia. Ele simplesmente não sabia quanto poder continha a Pedra de Roseta. Com o desaparecimento do Egito, a magia daquela antiga civilização se reuniu e se concentrou nas relíquias que restaram. Muitas delas, é claro, permanecem no Egito. Mas é possível encontrar outras em quase todos os grandes museus. Um mago pode usar esses artefatos como pontos focais para produzir encantamentos ainda mais poderosos.
— Não entendi — confessei.
Amós abriu as mãos.
— Lamento, Carter. São necessários anos de estudo para entender a magia, e estou tentando explicar tudo em uma única manhã. O que importa é que, nos últimos seis anos, seu pai tem procurado um meio de invocar Osíris, e ontem à noite ele pensou ter encontrado o artefato ideal para isso.
— Espere aí, por que ele queria Osíris?
Sadie me olhou com impaciência.
— Carter, Osíris era o deus da morte. O papai estava falando sobre tudo ficar bem outra vez. Ele se referia à mamãe.
De repente, a manhã pareceu mais fria. O fogo na lareira tremulou com o vento que vinha do rio.
— Ele queria trazer a mamãe de volta da morte? — perguntei. — Mas isso é loucura!
Amós hesitou.
— Teria sido perigoso. Desaconselhável. Tolo. Mas não seria loucura. Seu pai é um mago poderoso. De fato, era exatamente isso que ele queria, e teria conseguido usando o poder de Osíris.
Eu encarei minha irmã.
— Acredita nisso? Acredita mesmo?
— Você viu a magia no museu. O fogo. Papai invocou alguma coisa que estava dentro da pedra.
— Sim — concordei, lembrando meu sonho. — Mas não foi Osíris, foi?
— Não — respondeu Amós. — Seu pai obteve mais do que esperava. Ele libertou o espírito de Osíris. Na verdade, acho até que ele conseguiu se unir ao deus...
— Unir-se a ele?
Amós ergueu uma das mãos.
— Outra longa conversa. Por ora, digamos apenas que ele absorveu o poder de Osíris. Mas não teve oportunidade de usá-lo, porque, de acordo com o que Sadie me contou, parece que Julius libertou cinco deuses da Pedra de Roseta. Cinco deuses que estavam aprisionados juntos.
Eu olhei para Sadie.
— Você contou tudo a ele?
— Ele vai nos ajudar, Carter.
Eu ainda não me sentia preparado para confiar naquele homem, mesmo sendo nosso tio, mas decidi que não tinha escolha.
— Tudo bem, é verdade — confirmei. — O homem de fogo disse algo do tipo “Você libertou os cinco”. O que ele quis dizer?
Amós bebeu um gole de café. Seu olhar distante lembrava meu pai.
— Não quero assustar você.
— Tarde demais.
— Os deuses do Egito são muito perigosos. Nos últimos dois mil anos, mais ou menos, nós, os magos, passamos muito tempo controlando e banindo todos que apareciam. Na verdade, nossa lei mais importante, imposta pelo Sacerdote-leitor Chefe Iskandar nos tempos de Roma, proíbe libertar os deuses ou usar seus poderes. Seu pai já havia desrespeitado essa lei antes, uma vez.
Sadie empalideceu.
— Isso tem alguma relação com a morte de nossa mãe? Com a Agulha de Cleópatra, em Londres?
— Tem tudo a ver com isso, Sadie. Seus pais... bem, eles acreditavam estar fazendo algo bom. Correram um risco terrível, e isso custou a vida de sua mãe. Seu pai assumiu a culpa. E foi exilado, pode-se dizer. Banido. Forçado a se mudar constantemente, porque a Casa monitorava as atividades dele. Eles temiam que ele continuasse com a... pesquisa. Como, de fato, continuou.
Pensei em como meu pai olhava para trás, por cima do ombro, enquanto copiava algumas inscrições antigas, em quando ele me acordava às três da manhã dizendo que precisávamos trocar de hotel ou me dizia para não olhar sua bolsa de trabalho ou para não copiar certas imagens das paredes de um velho templo... como se nossa vida dependesse disso.
— Por isso você nunca estava por perto? — perguntou Sadie. — Porque papai foi banido?
— A Casa me proibiu de vê-lo. Eu amava Julius. Era um sofrimento ficar longe de meu irmão e dos filhos dele. Mas eu não podia ver vocês... até ontem à noite, quando simplesmente não tive escolha senão tentar ajudar. Julius estava obcecado pela ideia de encontrar Osíris havia anos. Ele vivia consumido pela dor da perda de sua mãe, pelo que havia acontecido a ela. Quando eu soube que Julius se preparava para desrespeitar a lei novamente, tentei impedir, consertar as coisas. Eu precisava detê-lo. Uma segunda transgressão significaria pena de morte. Infelizmente, fracassei. Deveria saber que ele era teimoso demais.
Olhei meu prato. Meus pés estavam gelados. Muffin saltou sobre a mesa e se esfregou em minha mão. Como não a impedi, ela começou a comer meu bacon.
— Ontem à noite, no museu — comecei — a garota com a adaga, o homem com a barba bifurcada... Também eram magos? Eram da Casa da Vida?
— Sim — confirmou Amós. — Estavam vigiando seu pai. Tiveram sorte por eles deixarem vocês saírem de lá.
— A garota queria nos matar — lembrei. — Mas o homem com a barba bifurcada disse “ainda não”.
— Eles não matam, a menos que seja absolutamente necessário — explicou Amós. — Vão esperar para ver se vocês representam uma ameaça.
— Por que seríamos uma ameaça? — quis saber Sadie. — Somos crianças! Invocar o deus não foi ideia nossa!
Amós empurrou o prato.
— Há um motivo para vocês terem sido criados separados.
— Sim, os Faust levaram nosso pai aos tribunais. — Fui bem direto. — E meu pai perdeu. Esse é o motivo.
— Foi muito mais do que isso — retrucou Amós. — A Casa insistiu em separar vocês dois. Seu pai queria mantê-los com ele, mesmo sabendo quanto isso poderia ser perigoso.
Sadie parecia ter recebido um soco na testa.
— Ele queria?
— É claro que sim. Mas a Casa interferiu e se certificou de que seus avós teriam sua custódia, Sadie. Se você e Carter fossem criados juntos, poderiam se tornar muito poderosos. Talvez já tenham sentido as mudanças nos últimos dias.
Pensei nas ondas de força que eu experimentava, e em como Sadie parecia saber ler o idioma do Egito Antigo. Então eu me lembrei de algo ainda mais distante.
— Seu aniversário de seis anos — eu disse a Sadie.
— O bolo — respondeu ela imediatamente, a lembrança passando entre nós como uma fagulha de eletricidade.
Na festa do sexto aniversário de Sadie, o último que comemoramos como uma família, ela e eu brigamos. Não lembro por quê. Acho que eu queria soprar as velas por ela. Começamos a gritar. Ela agarrou minha camisa. Eu a empurrei. Lembro que papai correu para nos separar, tentando acabar com a briga, mas, antes que ele pudesse intervir, o bolo explodiu. A cobertura voou nas paredes, em nossos pais e nos amigos de Sadie, que tinham seis anos.
Papai e mamãe nos separaram. Eles me mandaram para meu quarto. Mais tarde, disseram que devíamos ter batido no bolo acidentalmente enquanto brigávamos, mas eu sabia que não tínhamos tocado nele. Alguma coisa sinistra e muito mais estranha o fizera explodir, como se o bolo respondesse à nossa raiva. Eu me lembro de ver Sadie chorando por causa de um pedaço de bolo na testa, de uma vela colada no teto de cabeça para baixo, com o pavio ainda aceso, e de um adulto, algum amigo de meus pais, com os óculos cobertos de chantili.
Olhei para Amós.
— Era você. Você estava na festa de Sadie.
— A cobertura era de baunilha — recordou ele. — Muito saborosa. E já estava claro naquela época que seria muito difícil criar vocês dois na mesma casa.
— Então... — hesitei. — O que vai acontecer conosco agora?
Eu não queria admitir, mas não suportava a ideia de ser separado de Sadie outra vez. Ela não era grande coisa, mas era tudo o que eu tinha.
— Vocês precisam de treinamento adequado — respondeu Amós. — Com ou sem a aprovação da Casa.
— E por que não aprovariam? — perguntei.
— Vou explicar tudo, não se preocupe. Mas precisamos começar as aulas, ou não teremos qualquer chance de encontrar seu pai e consertar tudo isso. Caso contrário, o mundo todo estará em perigo. Se ao menos soubéssemos onde...
— Phoenix — disparei.
Amós olhou para mim.
— O quê?
— Ontem à noite eu tive... bem, não foi um sonho, exatamente...
Eu me sentia estúpido, mas contei a ele o que havia acontecido enquanto eu dormia.
A julgar pela expressão de Amós, as notícias eram ainda piores do que eu imaginara.
— Tem certeza de que ele disse “presente de aniversário”? — indagou.
— Sim, mas o que isso significa?
— E um hospedeiro permanente — continuou Amós. — Ele ainda não tinha um?
— Bem, foi o que disse o sujeito de pés de galo...
— Era um demônio — revelou Amós. — Um escravo do caos. E se os demônios estão perambulando pelo mundo mortal, não temos muito tempo. Isso é mau, muito mau.
— Para quem mora em Phoenix — concordei.
— Carter, nosso inimigo não vai parar em Phoenix. Se ele está se tornando tão poderoso tão depressa... O que ele disse sobre a tempestade, exatamente?
— Disse: “Invocarei a maior tempestade que já houve.”
Amós franziu a testa.
— Na última vez que disse isso, ele criou o Saara. Uma tempestade desse porte pode destruir a América do Norte, gerando a partir do caos energia suficiente para dar a ele uma forma invencível.
— Do que está falando? Quem é esse sujeito?
Amós ignorou minha pergunta com um gesto.
— Mais importante agora é saber por que não dormiu com o apoio de cabeça.
Eu dei de ombros.
— Era desconfortável. — Olhei para Sadie, tentando conseguir algum apoio. — Você também não usou o seu, usou?
Sadie revirou os olhos.
— É claro que usei. Ele estava lá por alguma razão, obviamente.
Às vezes, eu sinto um ódio real da minha irmã. [Ai! Esse pé é meu!]
— Carter — disse Amós — dormir é perigoso. É um portal para o Duat.
— Adorável — resmungou Sadie. — Outra palavra estranha.
— Ah... sim, sinto muito — desculpou-se Amós. — O Duat é o mundo dos espíritos e da magia. Existe embaixo do mundo desperto, como um vasto oceano, com muitas camadas e regiões. Ontem à noite, submergimos logo abaixo da superfície para chegar a Nova York, porque viajar pelo Duat é muito mais rápido. Carter, sua consciência também passou pelas correntes mais rasas enquanto você dormia, e foi assim que testemunhou o que aconteceu em Phoenix. Felizmente, sobreviveu a essa experiência. Mas, quanto mais profundamente você mergulha no Duat, mais coisas horríveis encontra, e mais difícil é retornar. Há reinos inteiros cheios de demônios, palácios onde os deuses existem em sua forma pura, tão poderosos que a simples presença queimaria um humano e o transformaria em cinzas. Há prisões que detêm seres de maldade indescritível, e alguns abismos tão profundos e caóticos que nem mesmo os deuses ousam explorá-los. Agora que seus poderes estão despertando, você não deve dormir sem proteção, ou vai ficar exposto às investidas do Duat ou... a jornadas não intencionais nele. O apoio de cabeça é encantado, serve para manter sua consciência ancorada no corpo.
— Quer dizer que eu realmente estive... — Senti na boca um gosto metálico. — Ele poderia ter me matado?
A expressão de Amós tornou-se grave.
— O fato de sua alma poder viajar dessa maneira significa que está progredindo mais depressa do que eu imaginava. Mais depressa do que deveria ser possível. Se o Lorde Vermelho houvesse notado você...
— Lorde Vermelho? — interrompeu-o Sadie. — O cara de fogo?
Amós levantou-se.
— Preciso saber mais. Não podemos simplesmente esperar que ele os encontre. E se ele provocar mesmo a tempestade em seu aniversário, se usar todo seu poder...
— Você está dizendo que vai a Phoenix? — Eu mal conseguia falar. — Amós, aquele homem de fogo derrotou meu pai como se a magia dele fosse uma piada! Agora ele tem demônios, e está ficando mais forte e... Você será morto!
Amós sorriu para mim secamente, como se já tivesse ponderado todos os perigos e não precisasse de um lembrete. Sua expressão era, para mim, uma dolorosa lembrança de papai.
— Não pense que seu tio vai desaparecer assim tão fácil. Eu também tenho minha magia. Além do mais, preciso ver o que está acontecendo, ou não teremos chance de salvar seu pai e deter o Lorde Vermelho. Serei rápido e cuidadoso. Fiquem aqui. Muffin vai protegê-los.
Eu pisquei.
— A gata vai nos proteger? Não pode nos deixar aqui! E nosso treinamento?
— Quando eu voltar — prometeu Amós. — Não se preocupem, a mansão é protegida. Não saiam daqui. Não se deixem enganar para abrir a porta. Não abram para ninguém. E, aconteça o que acontecer, não entrem na biblioteca. Estão absolutamente proibidos. Eu volto no fim da tarde.
— Não! — gritou Sadie.
Corremos até a amurada e olhamos para baixo, para a descida de trinta metros até o rio East. Não havia nem sinal de Amós. Ele simplesmente tinha desaparecido.
Filipe da Macedônia se divertia na piscina. Muffin subiu na amurada, pedindo carinho. Estávamos sozinhos em uma mansão estranha com um babuíno, um crocodilo e uma gata sinistra. E, aparentemente, o mundo todo corria perigo.
Eu olhei para Sadie.
— O que fazemos agora?
Ela cruzou os braços.
— Bom, é evidente, não é? Vamos explorar a biblioteca.
Nenhum comentário:
Postar um comentário