MINHA VEZ.
Em primeiro lugar, o comentário de Sadie sobre “cachorrinho animado” foi totalmente sem propósito. Eu não estava encantado com Zia. Mas não conheço muita gente que arremesse bolas de fogo e lute contra deuses.
[Pare de fazer caretas para mim, Sadie. Está parecendo Khufu.]
Bem, nós mergulhamos no túnel de areia.
Tudo ficou escuro. Meu estômago reagiu como se eu estivesse em uma montanha-russa, e eu despenquei no vazio. Um vento quente passava por mim e minha pele queimava.
Caí em um chão frio de ladrilhos, e Sadie e Zia despencaram em cima de mim.
— Ai! — reclamei.
A primeira coisa que notei foi a fina camada de areia que cobria meu corpo, como açúcar polvilhado. Depois, meus olhos se adaptaram à luz intensa. Estávamos em um grande edifício, que lembrava um shopping, com muitas pessoas andando à nossa volta.
Não... não um shopping. Era uma espécie de aeroporto de dois andares, com lojas, muitas vitrines e colunas de aço lustroso. Do lado de fora estava escuro, por isso deduzi que estávamos em um fuso horário diferente. Anúncios saídos dos alto-falantes ecoavam por todo o espaço num idioma que parecia árabe.
Sadie cuspiu areia.
— Eca!
— Vamos — disse Zia — não podemos ficar aqui.
Eu me levantei. As pessoas passavam por nós – algumas com roupas ocidentais, outras com túnicas e lenços. Uma família discutindo em alemão passou correndo do nosso lado e quase me atropelou com sua bagagem.
Então, eu me virei e vi algo que reconheci. No meio do saguão havia uma réplica em tamanho natural de um antigo barco egípcio, feito de reluzentes painéis de propaganda – um estande de vendas de perfumes e joias.
— Este é o aeroporto do Cairo — anunciei.
— Sim — confirmou Zia. — Agora vamos!
— Por que a pressa? Serket... Ela pode nos seguir pelo portal de areia?
Zia balançou a cabeça em sentido negativo.
— Um artefato superaquece sempre que cria um portal. Precisa de um resfriamento de doze horas antes de poder ser utilizado novamente. Mas ainda temos de nos preocupar com a equipe de segurança do aeroporto. A menos que queiram conhecer a polícia egípcia, sugiro que venham comigo agora.
Ela nos segurou pelo braço e nos guiou pela multidão. Devíamos parecer mendigos com aquelas roupas antiquadas, cobertos de areia da cabeça aos pés. As pessoas nos olhavam com curiosidade e espanto, mas ninguém tentou nos deter.
— Por que estamos aqui? — perguntou Sadie.
— Para ver as ruínas de Heliópolis — respondeu Zia.
— Dentro de um aeroporto? — disparou Sadie.
Lembrei-me de uma coisa que papai me dissera anos atrás, e senti um arrepio no couro cabeludo.
— Sadie, as ruínas estão embaixo de nós. — Olhei para Zia. — É isso, não é?
Ela assentiu.
— A antiga cidade foi pilhada há séculos. Alguns de seus monumentos foram enviados para longe, como os dois obeliscos chamados Agulhas de Cleópatra. A maioria dos templos foi demolida para dar lugar a novos edifícios. O que restou desapareceu sob os subúrbios do Cairo. A maior seção fica justamente embaixo deste aeroporto.
— E por que isso é útil para nós? — Sadie quis saber.
Zia abriu uma porta de serviço com um chute. Do outro lado havia um armário de vassouras. Ela resmungou um comando – sahad – e a imagem do armário brilhou e desapareceu, revelando uma escada de pedras que levava ao subsolo.
— Porque nem toda a Heliópolis está nas ruínas — respondeu ela. — Fiquem perto de mim. E não toquem em nada.
A escada devia ter uns dez milhões de quilômetros, porque descemos para sempre. A passagem fora feita para minipessoas. Tínhamos de nos abaixar e rastejar quase o tempo todo, e, mesmo assim, bati a cabeça no teto uma dúzia de vezes. A única luz no local vinha de uma bola de fogo na palma da mão de Zia, e essa luminosidade projetava sombras que dançavam nas paredes.
Eu já estivera em lugares como aquele antes – túneis no interior de pirâmides, tumbas que meu pai tinha escavado – mas nunca gostara deles. Milhões de toneladas de pedras sobre mim pareciam forçar o ar para fora de meus pulmões.
Finalmente chegamos ao fundo. O túnel se abriu, e Zia parou de repente. Assim que meus olhos se acostumaram, compreendi por quê. Estávamos na beirada de um precipício. Uma prancha de madeira era a única ponte sobre o nada. Do outro lado, dois guerreiros de granito com cabeça de chacal ladeavam uma porta, com suas lanças cruzadas sobre a entrada.
Sadie suspirou.
— Por favor, chega de estátuas psicóticas.
— Não brinque com isso — Zia a preveniu. — Esta é uma entrada para o Primeiro Nomo, o ramo mais antigo da Casa da Vida, quartel-general de todos os magos. Minha missão era trazê-los até aqui em segurança, mas não posso ajudá-los a atravessar. Cada mago deve abrir caminho por si mesmo, e o desafio é diferente para cada solicitante.
Ela olhou para Sadie com evidente expectativa, o que me aborreceu. Primeiro Bastet, agora Zia – ambas tratando Sadie como se ela tivesse superpoderes. Quer dizer, tudo bem, ela havia conseguido abrir a porta da biblioteca, mas por que ninguém esperava que eu fizesse os truques legais?
Além do mais, eu ainda estava zangado com Sadie pelos comentários que ela tinha feito no museu em Nova York – sobre como eu me divertira viajando pelo mundo com nosso pai. Ela não tinha ideia de quantas vezes quis reclamar das viagens constantes, de quantos dias sonhei não ter de entrar em um avião e poder ser como qualquer garoto normal, ir à escola e fazer amigos. Mas eu não podia me queixar. “Você deve se apresentar sempre impecável”, papai tinha me dito. E ele não se referia apenas às roupas. Falava também de minha atitude.
Sem mamãe, eu era tudo o que ele tinha. Papai precisava que eu fosse forte. Na maior parte do tempo, nada disso me incomodava. Eu amava meu pai. Mas também era difícil.
Sadie não entendia nada disso. Ela havia ficado com a vida mais fácil. E agora era como se recebesse toda a atenção, como se ela fosse especial. Não era justo.
Então, ouvi em meus pensamentos a voz de papai: “Justiça é garantir que todos recebam o que é necessário. E a única maneira de ter o que é necessário é você mesmofazer acontecer.”
Não sei o que deu em mim, mas empunhei a espada e marchei pela prancha. Era como se minhas pernas agissem por conta própria, como se fossem independentes de meu cérebro. Parte de mim pensava: Essa é uma ideia muito ruim. Mas outra parte respondia: Não, não temos medo disso. E essa voz não parecia ser minha.
— Carter! — Sadie gritou.
Continuei andando. Tentava não olhar para baixo, para o impressionante vazio sob meus pés, mas o tamanho do abismo me deixava tonto. Eu me sentia como um daqueles brinquedos com giroscópio, girando e balançando enquanto atravessava o abismo pela tábua estreita.
Quando me aproximei do outro lado, a porta entre as duas estátuas começou a tremer, como uma cortina de luz vermelha.
Respirei fundo. Talvez a luz vermelha fosse um portal, como o túnel de areia. Se eu corresse até ela...
Foi quando a primeira adaga foi arremessada do túnel.
Minha espada se moveu antes que eu percebesse. A adaga deveria ter perfurado meu peito, mas, de algum jeito, eu a desviei com minha lâmina e a joguei no fundo do abismo. Mais duas delas surgiram do túnel. Meus reflexos nunca foram os melhores, mas, de repente, eram perfeitos. Desviei de uma das adagas e rebati a outra com a lâmina curva de minha espada, lançando-a de volta ao túnel. Como eu havia feito isso?
Avancei até o final da prancha e corri até a luz vermelha, que tremulou e apagou. Esperei que as estátuas ganhassem vida, mas nada aconteceu. O único som que ouvi foi o de uma adaga caindo nas pedras no fundo do abismo.
A passagem voltou a brilhar. A luz vermelha se fundiu numa forma estranha: um pássaro de três metros de altura com cabeça de homem. Eu ergui minha espada, mas Zia gritou:
— Carter, não!
A criatura dobrou suas asas. Seus olhos, delineados com kohl, ficaram mais estreitos ao me estudar. Uma peruca preta ornamental brilhava sobre sua cabeça e seu rosto era riscado por rugas. Uma das falsas barbas trançadas de faraó estava presa em seu queixo como um rabo de cavalo ao contrário. Ele não parecia hostil, exceto pela luz vermelha brilhando à sua volta e pelo fato de ele ser, do pescoço para baixo, o maior peru assassino do mundo.
Então, uma ideia assustadora me ocorreu: aquele era um pássaro com cabeça humana, a mesma forma que imaginei assumir quando dormi na casa de Amós, quando minha alma deixou meu corpo e voou até Phoenix. Eu não tinha ideia do que isso significava, mas me assustava muito.
A criatura alada ciscou no chão de pedra. Depois, inesperadamente, sorriu.
— Pari, niswa nafeer — disse a mim, ou pelo menos foi o que pareceu.
Zia arfou sobressaltada. Ela e Sadie estavam atrás de mim agora, ambas muito pálidas. Aparentemente, haviam conseguido atravessar o abismo e eu não notara.
Finalmente, Zia se recuperou. E se curvou para o pássaro com cabeça de gente. Sadie seguiu seu exemplo.
A criatura piscou para mim, como se tivéssemos acabado de compartilhar uma piada. Depois, desapareceu.
A luz vermelha se apagou. As estátuas recolheram os braços, descruzando as lanças que protegiam a entrada.
— É isso? — perguntei. — O que o peru disse?
Zia olhou para mim com uma emoção que parecia ser medo.
— Aquilo não era um peru, Carter. Aquilo era um ba.
Eu tinha ouvido meu pai usar essa palavra antes, mas não conseguia lembrar seu significado.
— Outro monstro?
— Uma alma humana — explicou Zia. — Nesse caso, o espírito de um morto. Um mago dos tempos antigos, que voltou para servir de guardião. Eles vigiam as entradas da Casa.
Ela estudava meu rosto como se eu estivesse com alguma terrível urticária.
— O que é? — perguntei. — Por que está olhando para mim desse jeito?
— Nada — respondeu ela. — Precisamos correr.
Zia se espremeu a meu lado na passagem e desapareceu dentro do túnel.
Sadie também me olhava.
— Tudo bem — eu disse. — O que o homem-pássaro falou? Você entendeu?
Ela assentiu, desconfortável.
— Ele o confundiu com alguém. Deve enxergar mal.
— Por quê?
— Porque ele disse: “Vá em frente, bom rei.”
Depois disso eu fiquei atordoado. Passamos pelo túnel e entramos numa vasta cidade subterrânea de corredores e câmaras, mas só me lembro de algumas partes dela.
O pé-direito das salas tinha de seis a nove metros de altura, por isso não parecia que estávamos no subsolo. Todas as câmaras tinham imensas colunas de pedra, como as que eu tinha visto nas ruínas egípcias, mas as daqui estavam em perfeitas condições, pintadas para parecerem palmeiras, com folhas verdes entalhadas no alto, e eu sentia como se caminhasse por uma floresta petrificada. O fogo ardia em braseiros de cobre. Não parecia haver fumaça, e o ar tinha um cheiro bom, como em um mercado de especiarias – canela, cravo, noz-moscada e outros temperos que eu não conseguia identificar. A cidade tinha o perfume de Zia. Compreendi que aquele era seu lar.
Vimos algumas outras pessoas, poucas, a maioria mulheres e homens mais velhos. Alguns vestiam túnicas de linho, outros, roupas modernas. Um homem de terno passou por nós com um leopardo negro em uma coleira, como se isso fosse completamente normal. Outro gritava ordens para um pequeno exército de vassouras, esfregões e baldes, que se moviam diligentes, limpando a cidade.
— É como aquele filme — comentou Sadie. — Ou é um desenho? Aquele em que o Mickey tenta fazer mágica e as vassouras não obedecem, derrubam água...
— Aprendiz de Feiticeiro — respondeu Zia. — Sabe que a produção se baseou em uma história egípcia, não é?
Sadie a encarou silenciosamente. Eu sabia como ela se sentia. Era informação demais para processar.
Atravessamos uma sala de estátuas com cabeça de chacal, e eu podia jurar que seus olhos nos seguiam. Alguns minutos mais tarde, Zia nos conduziu a um mercado ao ar livre – se é que se pode falar em “ar livre” no subterrâneo – com várias barracas vendendo coisas estranhas, como varinhas em forma de bumerangue, bonecos animados de argila, papagaios, cobras, rolos de papiro e centenas de amuletos brilhantes diferentes. Em seguida, atravessamos um caminho de pedras sobre um rio escuro cheio de peixes. Pensei que fossem peixes inofensivos, até ver seus dentes ameaçadores.
— São piranhas? — perguntei.
— Peixes-tigre do Nilo — respondeu Zia. — São como piranhas, mas podem pesar até oito quilos.
Depois disso passei a tomar mais cuidado com o lugar onde pisava.
Viramos em uma esquina e passamos por um edifício muito ornamentado encravado na rocha negra. Faraós sentados tinham sido esculpidos nas paredes, e a porta tinha a forma de uma serpente enrolada.
— O que tem lá dentro? — Sadie quis saber.
Espiamos o interior do prédio e vimos fileiras de crianças – talvez duas dúzias ao todo, com idade variando entre seis e dez anos – todas sentadas de pernas cruzadas em almofadas. Elas se debruçavam sobre tigelas de cobre e olhavam intensamente para o líquido ali contido, resmungando alguma coisa. No início, pensei que fosse uma sala de aula, mas não havia nem sinal de professor, e o aposento era iluminado apenas por algumas velas. Considerando o número de assentos vazios, o espaço deveria abrigar o dobro de crianças.
— Nossos iniciados — explicou Zia. — Estão aprendendo a arte da vidência. O Primeiro Nomo precisa manter contato com nossos irmãos no mundo todo. Usamos nossos pequenos como... telefonistas, pode-se dizer.
— Quer dizer que vocês têm bases como esta no mundo todo?
— A maioria é menor, mas, sim.
Lembrei o que Amós tinha nos falado sobre os nomos.
— O Egito é o Primeiro Nomo. Nova York é o Vigésimo Primeiro. Qual é o último, o trecentésimo sexagésimo?
— A Antártida — respondeu Zia. — Uma alocação punitiva. Não há nada lá, exceto dois magos congelados e um punhado de pinguins mágicos.
— Pinguins mágicos?
— Nem me pergunte.
Sadie apontou para as crianças dentro do prédio.
— Como isso funciona? Eles veem imagens na água?
— É óleo — corrigiu Zia. — E, sim.
— Tão poucos... — notou Sadie. — Esses são os únicos iniciados na cidade toda?
— No mundo todo — corrigiu Zia. — Havia mais antes... — Ela parou.
— Antes do quê? — eu quis saber.
— De nada — respondeu Zia em tom sombrio. — Os iniciados são encarregados da vidência porque a mente jovem é mais receptiva. Os magos começam o treinamento antes dos dez anos... com algumas perigosas exceções.
— Está falando de nós — deduzi.
Ela me olhou apreensiva, e notei que Zia ainda estava pensando em como o espírito-pássaro me chamara: bom rei. Parecia tão irreal quanto o nome de nossa família naquele pergaminho do Sangue dos Faraós. Como eu poderia ter alguma relação com antigos reis? E, mesmo que tivesse, eu certamente não era um rei. Não tinha um reino. Não tinha mais nem mesmo minha única mala.
— Eles estão esperando vocês — informou Zia. — Venham.
Andamos tanto que meus pés começaram a doer.
Finalmente, chegamos a um entroncamento de vias. À direita havia uma imponente porta de bronze com fogo ardendo nas laterais; à esquerda, uma esfinge de uns seis metros de altura encravada na parede. Havia uma porta entre suas patas, mas estava emparedada e coberta de teias de aranha.
— Parece a Esfinge de Gizé — comentei.
— É porque estamos exatamente embaixo da esfinge verdadeira — anunciou Zia. — Aquele túnel leva até lá. Ou levava, antes de ser fechado.
— Mas... — Fiz mentalmente alguns cálculos rápidos. — A Esfinge fica a uns trinta quilômetros do aeroporto do Cairo.
— É mais ou menos isso.
— Não podemos ter percorrido toda essa distância.
Zia sorriu, e não pude deixar de notar como seus olhos eram bonitos.
— A distância é diferente nos lugares mágicos, Carter. Já deve ter percebido.
Sadie pigarreou.
— Mas por que o túnel foi fechado, então?
— A Esfinge era muito popular entre os arqueólogos — explicou Zia. — Eles estavam sempre escavando a área. Finalmente, na década de 1980, encontraram o primeiro trecho do túnel sob a Esfinge.
— Papai me falou sobre isso! — respondi. — Mas disse que o túnel não tinha saída.
— Foi quando decidimos fechá-lo. Não podíamos deixar que os arqueólogos descobrissem quanto não sabiam. O maior arqueólogo do Egito recentemente especulou sobre apenas trinta por cento das antigas relíquias egípcias terem sido encontradas até agora. Na verdade, eles só descobriram dez por cento, e nem foi o décimo mais interessante.
— E quanto à tumba do Rei Tut? — perguntei.
— Aquele rei menino? — Zia revirou os olhos. — Sem graça. Devia ver algumas dasboas tumbas.
Eu me senti um pouco magoado. Papai tinha escolhido meu nome por causa de Howard Carter, o homem que descobrira a tumba do Rei Tut, por isso sempre tive uma ligação com ela. Se aquela não era uma “boa” tumba, eu não saberia dizer qual delas era.
Zia olhou para a porta de bronze.
— Aquele é o Salão das Eras.
Ela tocou o lacre da porta, que tinha o símbolo da Casa da Vida. Os hieróglifos começaram a brilhar e a porta se abriu.
Zia se virou para nós com uma expressão muito séria.
— Agora vocês conhecerão o Sacerdote-leitor Chefe. Comportem-se, a menos que queiram ser transformados em insetos.
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