quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

A Pirâmide Vermelha - Sadie

Capítulo 8 - Muffin brinca com lâminas

NOSSO BABUÍNO ESTAVA FICANDO completamente deusa do céu – ou seja, maluco.
Ele corria de coluna em coluna, pulando pelos balcões, derrubando vasos e estátuas. Correu de volta às janelas da varanda, olhou para fora por um momento e retornou à correria frenética e barulhenta.
Muffin também estava na janela, em posição de ataque, e balançava a cauda lentamente, como se perseguisse um pássaro.
— Talvez seja só um flamingo — sugeri, esperançosa, mas não sei se Carter me ouviu, com o babuíno gritando daquele jeito.
Corremos para a porta de vidro. No início, não vi problema algum. Mas, de repente, a água explodiu da piscina e meu coração quase saltou do peito. Duas criaturas enormes, que não eram flamingos, definitivamente, lutavam contra nosso crocodilo, Filipe da Macedônia.
Eu não conseguia identificar o que eram, mas Filipe lutava sozinho, eram dois contra um. Eles desapareceram sob a água borbulhante e Khufu voltou a correr pelo Grande Salão, batendo na própria cabeça com a caixa vazia de Cheerios, o que, devo dizer, não
era muito útil.
— Pescoços longos — disse Carter, incrédulo. — Sadie, você viu aquelas coisas?
Eu não conseguia encontrar uma resposta. Então, uma das criaturas foi jogada para fora da piscina. Ela bateu contra a porta bem na nossa frente e eu pulei para trás, assustada. Do outro lado do vidro estava o animal mais aterrorizante que eu já tinha visto. Seu corpo era como o de um leopardo – esguio e forte, o pelo com manchas douradas – mas o pescoço não tinha nada a ver. Era verde, coberto por escamas e tinha, no mínimo, o mesmo comprimento do corpo. A cabeça era de gato, mas não um gato normal. Quando virou os olhos vermelhos e brilhantes para nós, ele urrou, mostrando a língua bífida e presas de onde pingava veneno verde.
Percebi que minhas pernas tremiam e que eu soltava um gemido muito indigno.
O gato-serpente pulou na piscina novamente para ajudar o companheiro a espancar Filipe, que se virou e atacou, mas parecia incapaz de ferir os oponentes.
— Precisamos ajudar Filipe! — gritei. — Eles vão matá-lo!
Estendi a mão para a maçaneta da porta, mas Muffin rosnou para mim.
— Sadie, não! Você ouviu Amós. Não podemos de jeito nenhum abrir as portas. A casa é protegida por magia. Filipe vai precisar vencê-los sozinho.
— Mas e se ele não conseguir? Filipe!
O velho crocodilo se virou. Por um segundo, seus olhos rosados de réptil se detiveram em mim, como se ele pudesse sentir minha preocupação. Depois, os gatos-serpente morderam a parte inferior de sua barriga, e Filipe se ergueu de um jeito que só a ponta de sua cauda continuou em contato com a água. Seu corpo começou a brilhar. Um som abafado tomou conta de tudo, como se alguém ligasse o motor de um avião. Quando desceu, Filipe aterrissou na varanda com todo seu peso.
A casa inteira tremeu. Rachaduras surgiram no concreto lá fora, e a piscina foi dividida ao meio, enquanto outro lado da varanda desmoronava no vazio.
— Não! — gritei.
Mas a beirada da construção se soltou do restante, arremessando Filipe e os dois monstros para o rio East. Meu corpo todo começou a tremer.
— Ele se sacrificou. Matou os monstros.
— Sadie... — A voz de Carter era fraca. — E se ele não tiver conseguido? E se eles voltarem?
— Não diga isso!
— Eu... eu os reconheci, Sadie. Aquelas criaturas. Venha.
— Para onde? — perguntei, mas ele já corria de volta à biblioteca.
Carter se aproximou do shabti que nos ajudara antes.
— Traga-me o... ah, qual é o nome?
— Do quê? — indaguei.
— Uma coisa que papai me mostrou. É um grande prato de pedra ou algo parecido. Tem uma imagem do primeiro faraó, o homem que uniu o Alto e o Baixo Egitos em um só reino. O nome dele... — Seus olhos se iluminaram. — Narmer! Traga-me o Prato Narmer!
Nada aconteceu.
— Não — decidiu Carter. — Não era um prato. Era... uma daquelas coisas que contêm tinta. Uma paleta. Traga-me a Paleta Narmer!
shabti de mãos vazias não se moveu, mas, do outro lado da sala, a estátua com o gancho ganhou vida. Saltou de seu pedestal e desapareceu numa nuvem de poeira. Um instante depois, reapareceu sobre a mesa. A seus pés, havia um fragmento triangular e plano de pedra cinza, com a forma de um escudo e o comprimento do meu antebraço, aproximadamente.
— Não! — protestou Carter. — Estou falando de uma imagem dele! Ah, que maravilha, este deve ser o artefato verdadeiro. O shabti deve ter roubado a peça do Museu do Cairo. Precisamos devolvê-la...
— Espere! — interrompi. — Podemos dar uma olhada.
A superfície da pedra era entalhada com o desenho de um homem batendo no rosto de outro com o que parecia ser uma colher.
— Aquele é Narmer, com a colher — deduzi. — Está nervoso porque o outro cara roubou seu cereal matinal?
Carter balançou a cabeça.
— Ele está dominando os inimigos e unificando o Egito. Vê o chapéu? Aquela é a coroa do Baixo Egito, antes da união dos dois países.
— Aquilo que parece um pino de boliche?
— Você é impossível — resmungou Carter.
— Ele é parecido com papai, não é?
— Sadie, isso é sério!
— Estou falando a sério. Olhe para o perfil do desenho.
Carter decidiu me ignorar. Ele examinava a pedra como se tivesse medo de tocá-la.
— Preciso ver do outro lado, mas não quero virá-la. Poderia danificar...
Eu agarrei a pedra e a virei.
— Sadie! Podia ter quebrado o artefato!
— Para isso serve o encantamento que conserta coisas, lembra?
Examinamos a parte de trás da pedra, e eu tive de reconhecer que estava impressionada com a memória de Carter. Dois gatos monstros ocupavam o centro da paleta, os pescoços entrelaçados. Do outro lado, homens egípcios com cordas tentavam capturar as criaturas.
— O nome é “serpopardos” — informou Carter. — Serpentes-leopardo.
— Fascinante — respondi. — Mas o que são serpopardos?
— Ninguém sabe exatamente. Papai achava que fossem criaturas do caos, sinal de problemas, e eles existem desde sempre. Esta pedra é um dos artefatos mais antigos do Egito. As imagens foram entalhadas há cinco mil anos.
— Então, por que monstros de cinco mil anos estão atacando nossa casa?
— Ontem à noite, em Phoenix, o homem de fogo ordenou que seus servos nos capturassem. Ele disse que os pescoços longos deviam ser enviados primeiro.
Senti um gosto metálico na boca, e lamentei ter mascado meu último chiclete.
— Bem... para nossa sorte eles estão no fundo do East.
Nesse momento Khufu entrou correndo na biblioteca, gritando e batendo com a mão na cabeça.
— Eu não devia ter dito isso — resmunguei.
Carter mandou o shabti devolver a Paleta Narmer, e estátua e artefato desapareceram. Então, seguimos o babuíno escadaria acima.
Os serpopardos estavam de volta, o pelo molhado e brilhante depois do mergulho no rio, e não estavam felizes. Andavam agitados pela amurada quebrada da varanda, os pescoços de cobra indo de um lado para o outro, como se farejassem as portas, procurando uma entrada. Eles cuspiam veneno que fervia e borbulhava sobre o vidro. As línguas bífidas entravam e saíam da boca.
— Agh, agh! — Khufu pegou Muffin, que estava sentada no sofá, e me ofereceu a gata.
— Não creio que isso possa ajudar — comentei.
— AGH! — Khufu insistiu.
Muffin não terminava em o, por isso deduzi que Khufu não estava sugerindo que eu fizesse um lanche, mas eu não sabia o que ele pretendia. Peguei a gata só para fazê-lo ficar quieto.
— Miau? — Muffin olhava para mim.
— Vai ficar tudo bem — prometi, tentando não soar apavorada. — A casa é protegida por magia.
Os serpopardos estavam agora na porta à esquerda e farejavam a maçaneta com grande interesse.
— Não está trancada? — perguntei.
Os dois monstros bateram os focinhos horrendos contra o vidro. A porta estremeceu. Hieróglifos azuis brilharam pelo batente, mas era uma luz pálida.
— Não estou gostando disso — resmungou Carter.
Rezei pelos monstros, para que desistissem. Ou por Filipe da Macedônia, para que escalasse o paredão de volta à varanda (crocodilos escalam?) e continuasse a luta. Mas os monstros bateram novamente com a cabeça contra o vidro. Dessa vez, surgiram rachaduras. Os hieróglifos azuis tremularam e sumiram.
— AGH! — Khufu gritou.
Ele apontava de maneira vaga para a gata.
— Talvez eu deva tentar o encantamento ha-di — sugeri.
Carter balançou a cabeça.
— Você quase desmaiou depois de abrir a porta. Não quero que desmaie ou que aconteça algo pior.
Mais uma vez, meu irmão me surpreendeu. Ele puxou uma espada esquisita de um dos expositores que Amós mantinha nas paredes da casa. A lâmina tinha uma estranha curvatura em forma de lua crescente e não parecia nada prática.
— Não pode estar falando a sério — falei.
— A menos... a menos que você tenha uma ideia melhor — ele gaguejou, o rosto coberto de suor. — Estamos aqui, eu, você e o babuíno, contra aquelas coisas.
Tenho certeza de que Carter tentava mostrar-se corajoso à sua maneira extremamente covarde, mas ele tremia muito mais do que eu. Se alguém ali corria o risco de desmaiar, esse alguém era ele, e eu não gostava de pensar em ver meu irmão caindo com aquele objeto cortante nas mãos.
Os serpopardos investiram uma terceira vez, e a porta cedeu. Recuamos até os pés da estátua de Tot quando vimos as criaturas invadirem o Grande Salão. Khufu arremessou sua bola de basquete, que quicou, inofensiva, na cabeça do primeiro monstro. Depois, ele mesmo se lançou contra o serpopardo.
— Khufu, não! — gritou Carter.
Mas o babuíno já cravava os dentes no pescoço do monstro. O serpopardo se debatia, tentando mordê-lo. Khufu saltou para longe, mas o monstro era rápido. Ele usou a cabeça como um bastão e atingiu o pobre Khufu ainda no ar, jogando-o contra a porta destruída, por cima da varanda em ruínas, diretamente para o vazio.
Eu queria chorar, mas não tinha tempo para isso. Os serpopardos se aproximavam de nós. Fugir deles era impossível. Carter ergueu a espada. Apontei a mão para o primeiro monstro e tentei pôr em prática o ha-di, mas minha voz estava presa na garganta.
— Miauuu! — Muffin miou com mais insistência.
Por que a gata continuava aninhada em meu braço, em vez de fugir, aterrorizada?
Então, lembrei algo que Amós dissera: “Muffin vai protegê-los.” Era isso que Khufu tentava me lembrar? Parecia impossível, mas eu gaguejei:
— Hum... Muffin, ordeno que nos proteja.
Eu a joguei no chão. Por um momento, o pingente em sua coleira pareceu brilhar. Depois, a gata curvou-se, preguiçosa, sentou-se, e começou a lamber uma pata dianteira. Bem, francamente, o que eu esperava? Heroísmo?
Os dois monstros de olhos vermelhos mostraram suas presas. Eles levantaram a cabeça e se prepararam para atacar – e uma explosão de ar seco eclodiu na sala. Foi uma explosão tão forte que Carter e eu caímos no chão. Os serpopardos cambalearam e recuaram.
Eu me levantei e percebi que o centro da explosão havia sido Muffin. Minha gata não estava mais ali. No lugar dela, havia uma mulher – pequena e ágil como uma ginasta. Seus cabelos negros estavam presos em um rabo de cavalo. Ela vestia um macacão muito justo de pele de leopardo e tinha o pingente de Muffin no pescoço.
Ela se virou, sorriu para mim, e seus olhos ainda eram os da gata – amarelos, com pupilas negras e felinas.
— Finalmente — ela me criticou.
Os serpopardos se recuperaram do susto e investiram contra a mulher-gato. As cabeças das bestas se moviam a uma velocidade fabulosa. Era de esperar que a rasgassem ao meio, mas a mulher-gato saltou para o lado, deu três piruetas no ar e aterrissou depois deles, empoleirada no console da lareira.
Ela flexionou os pulsos e duas lâminas enormes brotaram das mangas da roupa.
— Ah, diversão!
Os monstros atacaram. Ela se jogou entre os dois, movendo-se e se esquivando com incrível agilidade, deixando-os investir no vazio enquanto ia entrelaçando o pescoço de um no do outro. Quando ela se afastou deles, os serpopardos estavam enroscados. Quanto mais se debatiam, mais o nó se apertava. Eles se moviam para a frente e para trás, batendo nos móveis e rugindo com frustração.
— Pobrezinhos — murmurou a mulher-gato. — Deixem-me ajudar.
As lâminas cintilaram e duas cabeças de monstro caíram no chão aos pés dela. Os corpos tombaram e se dissolveram numa enorme pilha de areia.
— Meus brinquedinhos se foram — disse a mulher em tom triste. — Do pó vieram e ao pó retornaram.
Ela olhou para nós e as lâminas sumiram dentro de suas mangas.
— Carter, Sadie, precisamos sair daqui. O pior ainda está por vir.
Carter quase sufocou com a própria voz.
— Pior? Quem... como... o quê?
— Tudo a seu tempo. — A mulher alongou os braços acima da cabeça com grande satisfação. — É tão bom estar novamente na forma humana! Agora, Sadie, pode abrir a porta para o Duat, por favor?
Eu pisquei.
— Ah... não. Quer dizer, não sei como fazer o que está pedindo.
A mulher estreitou os olhos, claramente desapontada.
— Que vergonha. Vamos precisar de mais poder, então. Um obelisco.
— Mas fica em Londres — protestei. — Não podemos...
— Há um mais próximo, no Central Park. Eu tento evitar Manhattan, mas estamos em uma emergência. Vamos simplesmente passar lá e abrir um portal.
— Um portal para onde? — Eu quis saber. — Quem é você, e por que você é minha gata?
A mulher sorriu.
— Por ora, só precisamos de um portal para escapar do perigo. E, com relação a quem sou eu, meu nome não é Muffin, é...
— Bastet — interrompeu Carter. — Seu pingente é o símbolo de Bastet, deusa dos gatos. Pensei que fosse só um enfeite, mas... é você, não é?
— Muito bem, Carter. — Bastet sorriu. — Agora vamos, temos que sair daqui enquanto ainda podemos escapar vivos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário