quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

A Pirâmide Vermelha - Sadie

Capítulo 7 - Deixo um homenzinho cair de cabeça

FRANCAMENTE, CARTER É TÃO BURRO que às vezes não consigo acreditar que somos parentes. Quer dizer, quando alguém diz eu proíbo, significa que o que é proibido vale a pena ser feito. Eu segui diretamente para a biblioteca.
— Espere! — gritou Carter. — Você não pode simplesmente...
— Irmão querido — comecei — sua alma deixou seu corpo outra vez enquanto Amós estava falando ou você ouviu o que ele disse? Os deuses egípcios são reais. Lorde Vermelho é mau. O aniversário do Lorde Vermelho: muito em breve, muito ruim. A Casa da Vida: velhos magos encrenqueiros que odeiam nossa família porque papai foi meio rebelde, e, a propósito, você podia aprender algumas lições com ele. Assim, sobramos nós, apenas nós, com um pai desaparecido, um deus mau prestes a destruir o mundo e um tio que acabou de pular do alto do prédio onde estamos, e não posso culpá-lo por isso.
Parei para respirar. [Sim, Carter, eu preciso respirar de vez em quando.]
— Esqueci alguma coisa? Ah, sim, também tenho um irmão supostamente poderoso, de uma linhagem de sangue muito antiga, blá-blá-blá etc., mas que tem muito medo de visitar uma biblioteca. E então, você vem comigo ou não?
Carter piscou como se eu tivesse lhe dado um tabefe, o que, de certa forma, foi o que fiz.
— Eu só... — Ele hesitou. — Só acho que devemos ser cuidadosos.
Percebi que o pobre garoto estava apavorado, uma constatação que eu não podia criticar, mas que me amedrontava. Carter é meu irmão mais velho, afinal – maior que eu, mais sofisticado, quem viajou pelo mundo com papai. Irmãos mais velhos servem para nos defender, não servem? E as irmãzinhas... Ah, nós também podemos nos defender, não? Mas percebi que talvez, só talvez, eu tenha sido dura demais com ele.
— Olhe — recomecei — precisamos ajudar papai, certo? Deve haver coisas muito poderosas naquela biblioteca, ou Amós não a manteria trancada. Quer ajudar nosso pai?
Carter se moveu com evidente desconforto.
— Quero, claro...
Bem, esse era um problema resolvido, por isso seguimos para a biblioteca. Mas, assim que Khufu percebeu o que estávamos fazendo, desceu do sofá com sua bola de basquete e pulou na frente da porta da biblioteca. Quem teria imaginado que os babuínos sejam tão rápidos? Ele gritou conosco, e devo dizer que os babuínos têm dentes enormes. E não ficam mais bonitos depois de mastigarem aves de penas cor-de-rosa.
Carter tentou argumentar com ele.
— Khufu, não vamos roubar nada. Só queremos...
— Agh! — Khufu quicou a bola de basquete com bastante força.
— Carter, você não está ajudando. Olhe aqui, Khufu, Eu tenho... tá-da! — Mostrei uma pequena caixa amarela de cereal que havia tirado da mesa do café da manhã. — Cheerios! Termina com o! Delicioso!
— Aghhh! — Khufu grunhiu, mais animado do que irritado.
— Quer? — Eu o provoquei. — Leve a caixa para o sofá e finja que não nos viu, está bem?
Joguei a caixa de cereal na direção do sofá e o babuíno correu atrás dela. Agarrou a caixa no ar. Estava tão agitado que continuou correndo e foi se sentar sobre o console da lareira, onde, animadamente, começou a pegar os Cheerios e comê-los, um de cada vez.
Carter olhou para mim com um misto de inveja e de admiração.
— Como você...?
— Algumas pessoas pensam no amanhã. Agora, vamos abrir aquela porta.
Não foi fácil. As portas eram de madeira maciça, trancadas por grossas correntes de aço e vários cadeados. Um exagero.
Carter deu um passo à frente. Ele tentou abrir as portas levantando a mão, um gesto que havia sido bem impressionante na noite anterior, mas que agora não surtia resultado algum. Depois, ele sacudiu as correntes à moda antiga e puxou os cadeados com força.
— Inútil — concluiu.
Agulhas geladas pinicavam minha nuca. Era quase como se alguém – ou alguma coisa – cochichasse uma ideia em minha cabeça.
— Qual foi mesmo a palavra que Amós usou à mesa do café quando quebrou aquele prato?
— Para “juntar” os pedaços? — Carter quis me corrigir. — Hi-nehm ou algo parecido.
— Não, a outra, para destruir.
— Ah, foi ha-di. Mas você precisa conhecer a magia e os hieróglifos, não? E mesmo assim...
Eu levantei a mão para a porta. Apontei dois dedos e o polegar – um gesto estranho que eu nunca havia feito, como uma arma de faz de conta, mas com o dedão paralelo ao chão.
— Ha-di!
Brilhantes hieróglifos dourados iluminaram o cadeado maior.
E as portas explodiram. Carter caiu no chão quando as correntes partidas e os fragmentos de aço voaram pelo Grande Salão. Quando a poeira diminuiu, ele se levantou coberto de farpas de madeira. Eu estava bem. Muffin rodeava meus pés, miando satisfeita, como se tudo aquilo fosse muito normal.
Carter olhou para mim.
— Como exatamente...
— Não sei — confessei. — Mas a biblioteca está aberta.
— Não acha que exagerou um pouco? Vamos ter problemas...
— Nós vamos encontrar um jeito de fechar a porta novamente, não vamos?
— Chega de magia, por favor — pediu Carter. — Essa explosão poderia ter nos matado.
— Ah, acha que se eu tentasse esse encantamento em uma pessoa...
— Não! — Ele recuou nervoso.
Fiquei feliz por saber que eu podia assustá-lo, mas tentei não sorrir.
— Vamos ver o que há na biblioteca, está bem?
A verdade era que eu não ia ha-dizar ninguém. Assim que passei pela porta, senti uma fraqueza tão grande que quase caí.
Carter me segurou antes que eu desabasse.
— Você está bem?
— Sim — consegui responder, embora me sentisse mal. — Estou cansada — meu estômago roncou — e faminta.
— Você acabou de tomar café. E comeu muito.
Era verdade, mas eu me sentia como se não comesse havia semanas.
— Não se incomode — respondi. — Eu vou conseguir...
Carter me estudou, cético.
— Aqueles hieróglifos que você criou eram dourados. Os que papai e Amós criaram eram azuis. Por quê?
— Talvez cada um tenha sua própria cor — sugeri. — A sua pode ser pink.
— Engraçadinha.
— Vamos lá, mago pink — chamei. — Vamos entrar.
A biblioteca era tão fabulosa que quase esqueci minha tontura. Era maior do que eu tinha imaginado, um aposento redondo e fundo cavado na rocha, como um poço gigante. Isso não fazia sentido, porque a mansão ficava em cima da fábrica abandonada. Mas, pensando bem, nada naquele lugar era normal.
Do tablado onde estávamos, uma escada descia três andares até o piso inferior. As paredes, o chão e o teto abobadado eram decorados com fotos multicoloridas de pessoas, deuses e monstros. Eu tinha visto ilustrações semelhantes nos livros de papai (sim, é isso mesmo, às vezes, quando estava na livraria em Picadilly, ia até a seção sobre o Egito e dava uma espiada nos livros de meu pai, só para sentir alguma ligação com ele, não porque desejasse lê-los), mas as fotos eram sempre desbotadas e borradas. As da biblioteca pareciam recém-pintadas, fazendo de todo o aposento uma obra de arte.
— É lindo — comentei.
Um céu azul e estrelado brilhava no teto, mas não era uma área sólida de azul. Não, o céu era pintado num estranho padrão giratório. Percebi que a forma lembrava a de uma mulher. Ela estava deitada de lado, encolhida – o corpo, os braços e as pernas azuis, um azul-escuro e salpicado de estrelas. Embaixo, o piso da biblioteca tinha aspecto semelhante, a terra marrom e verde com a forma do corpo de um homem, pontilhado por florestas, colinas e cidades. Um rio sinuoso atravessava seu peito.
A biblioteca não tinha livros. Nem mesmo prateleiras. As paredes eram cobertas por pequenos compartimentos redondos, cada um deles contendo uma espécie de cilindro de plástico.
Em cada um dos quatro pontos cardeais havia uma estátua de cerâmica em um pedestal. Tinham metade do tamanho de um humano e usavam saiotes e sandálias, os cabelos eram pretos e brilhantes, com corte arredondado, e os olhos eram contornados por delineador preto.
[Carter disse que o delineador tem nome, kohl, como se isso fosse importante.]
Como eu dizia, uma estátua segurava um buril e um pergaminho. Outra segurava uma caixa. Outra tinha um cajado curto e encurvado. A última estava de mãos vazias.
— Sadie.
Carter apontou para o centro da sala. Ali, sobre uma mesa comprida de pedra, estava a bolsa carteiro de papai.
Carter olhou para a escada, mas eu o segurei pelo braço.
— Espere. E se houver armadilhas?
Ele franziu a testa.
— Armadilhas?
— As tumbas dos egípcios não tinham armadilhas?
— Bem... às vezes. Mas não estamos em uma tumba. Além do mais, é mais comum que existam maldições, como a do fogo, a do burro...
— Ah, maravilha! Isso soa bem melhor.
Ele desceu a escada, o que me fez sentir ridícula, porque normalmente sou eu quem abre caminho. Mas concluí que se alguém poderia ser amaldiçoado com uma erupção na pele ou atacado por um burro mágico, era melhor que fosse Carter, não eu.
Chegamos ao centro do cômodo sem entusiasmo algum. Carter abriu a bolsa. Até ali, nenhuma armadilha ou maldição. Ele tirou de dentro a caixa estranha que papai tinha usado no British Museum. Era de madeira, e do tamanho certo para guardar uma baguete. A tampa era decorada como a biblioteca, com deuses e monstros e pessoas que apreciam andar de lado.
— Como os egípcios se moviam desse jeito? — pensei em voz alta. — Todos de lado, com braços e pernas virados para fora. Parece bem bobo.
Carter olhou para mim como se dissesse Meu Deus, como você é estúpida.
— Eles não andavam assim de verdade, Sadie.
— Bem, então por que eram pintados assim?
— Porque consideravam as pinturas mágicas. Eles acreditavam que, se você fizesse uma pintura de si próprio, precisava mostrar completamente braços e pernas. Caso contrário, na pós-vida, você podia renascer sem alguma parte.
— E por que os rostos virados para o lado? Eles nunca olham diretamente para quem os observa. Isso não quer dizer que eles vão perder o outro lado do rosto?
Carter hesitou.
— Acho que tinham medo de que a imagem fosse muito humana se estivesse olhando diretamente para eles. Ela poderia tentar se tornar quem a estivesse observando.
— Afinal, havia alguma coisa de que não tivessem medo?
— De irmãs mais novas. Quando elas falavam demais, os egípcios as jogavam para os crocodilos.
Ele me enganou por um segundo. Eu não estava acostumada com a demonstração do senso de humor de meu irmão. Quando percebi que era brincadeira, bati nele.
— Abra logo a droga da caixa.
A primeira coisa que ele tirou de lá foi uma bola de um material branco e grudento.
— Cera — anunciou Carter.
— Fascinante. — Peguei uma agulha de madeira e uma paleta com pequenas cavidades na superfície para colocar tinta, e, depois, alguns potes de vidro contendo tinta: preta, vermelha e dourada. — Um kit de pintura pré-histórico.
Carter tirou da caixa vários pedaços de barbante marrom, uma pequena estátua de um gato de ébano e um rolo de papel grosso. Não, não era papel. Papiro. Eu me lembrei de meu pai explicando como os egípcios produziam o papiro com uma planta ribeirinha, porque eles não inventaram o papel. Aquela coisa era tão grossa e áspera que me fazia pensar nos pobres egípcios que precisavam usar papiro higiênico. Pensando nisso, dá para entender por que eles andavam de lado.
Finalmente, eu peguei a estatueta de cera.
— Eca.
Era um homenzinho malfeito, como se o escultor tivesse pressa. Seus braços estavam cruzados no peito, a boca aberta e as pernas cortadas na altura dos joelhos. Havia uma mecha de cabelos humanos enrolada em sua cintura.
Muffin pulou de cima da mesa e foi farejar a imagem. Pareceu considerá-la bem interessante.
— Não há nada aqui — concluiu Carter.
— O que você quer encontrar? Temos cera, papiro higiênico, uma estátua horrorosa...
— Alguma coisa que explique o que aconteceu a papai. Como o trazemos de volta? Quem era o homem de fogo que ele invocou?
Eu levantei a estátua de cera.
— Você ouviu, sujeitinho. Conte tudo o que sabe.
Eu só estava brincando, mas o homem de cera tornou-se macio e quente como carne. Ele disse:
— Eu respondo ao chamado.
Eu gritei e deixei a estátua cair de cabeça na mesa. Bem, quem pode me criticar por isso?
— Ai! — reclamou ele.
Muffin aproximou-se para cheirá-lo, e o homenzinho começou a xingar em outro idioma, provavelmente egípcio antigo. Ao perceber que não surtia resultado, ele gritou em inglês:
— Saia daqui! Não sou um rato!
Eu peguei Muffin e a coloquei no chão.
O rosto de Carter estava tão caído e pálido quanto o do homenzinho.
— O que você é? — indagou ele.
— Sou um shabti, é claro! — A estátua esfregou a cabeça amassada. Ele ainda parecia um pouco disforme, mas agora tinha vida. — O mestre me chama de Doughboy, embora eu considero esse nome ofensivo. Menino de Massa? Não! Podem me chamar de Força Suprema Que Esmaga Seus Inimigos!
— Tudo bem, Doughboy — respondi.
Ele me olhou de cara feia, eu acho, embora fosse difícil ter certeza, com aquele rosto estragado.
— Não devia ter me despertado! Só o mestre é capaz disso.
— O mestre é meu pai — deduzi. — Eh, Julius Kane?
— Ele mesmo — resmungou Doughboy. — Satisfeita? Já cumpri meu dever?
Carter me olhava perplexo, confuso, mas eu achava que estava começando a entender.
— Então, Doughboy — Eu me dirigi ao boneco falante. — Você foi despertado quando eu o peguei e dei uma ordem direta: “Conte tudo que sabe.” Certo?
Doughboy cruzou os braços roliços.
— Agora você só está brincando comigo. É claro que é isso. Só o mestre deveria ser capaz de me despertar, aliás. Não sei como você conseguiu, mas ele a fará em pedacinhos quando descobrir.
Carter tossiu para chamar a atenção.
— Doughboy, o mestre é nosso pai, e ele está desaparecido. Foi mandado para algum lugar desconhecido por algum tipo de magia, e precisamos de sua ajuda...
— O mestre desapareceu? — Doughboy sorriu, e era um sorriso tão largo que tive a impressão de que seu rosto se rasgaria ao meio. — Finalmente livre! Até qualquer dia, idiotas!
Ele tentou correr para a ponta da mesa, mas esqueceu que não tinha pés. Caiu de cara na madeira e começou a rastejar para a beirada, usando as mãos.
— Livre! Livre!
O homenzinho conseguiu percorrer mais um ou dois centímetros antes que eu o pegasse e jogasse dentro da caixa mágica de papai. Doughboy tentou sair, mas a caixa era alta demais para ele alcançar a beirada. Imaginei se havia sido escolhida por isso.
— Preso! — gritou ele. — Preso!
— Ah, cale a boca — ordenei. — Agora eu sou a mestra. E você vai responder às minhas perguntas.
Carter levantou uma sobrancelha.
— Desde quando você está no comando?
— Bem, eu fui capaz de ativá-lo.
— Você estava brincando!
Ignorei meu irmão, o que era um de meus muitos talentos.
— Agora, Doughboy, em primeiro lugar, o que é um shabti?
— Vai me tirar da caixa se eu disser?
— Você tem que me dizer — respondi. — E não, não vou.
Ele suspirou.
— Shabti significa aquele que responde, como poderia lhe dizer até o mais estúpido dos escravos.
Carter estalou os dedos.
— Agora eu lembro! Os egípcios moldavam bonecos de cera ou argila, criados para fazer todo o tipo de trabalho que pudessem imaginar na pós-vida. Eles deviam ganhar vida quando o mestre os chamasse, e assim a pessoa morta poderia, digamos, chutar o balde e relaxar, enquanto o shabti fazia todo o trabalho por ela por toda a eternidade.
— Primeiro — respondeu Doughboy, irritado — isso é típico dos humanos! São preguiçosos e querem descansar enquanto nós fazemos tudo. Segundo, o trabalho na pós-vida é só uma das funções de um shabti. Também éramos usados pelos magos para várias coisas em vida, porque os magos seriam totalmente incompetentes sem nós. Terceiro, se sabe tudo isso, por que está me perguntando?
— Por que papai cortou suas pernas e deixou a boca? — indaguei.
— Eu... — Doughboy cobriu a boca com as mãozinhas. — Ah, muito engraçado. Ameaçar a estátua de cera. Valentona! Ele cortou minhas pernas para que eu não fugisse, nem ganhasse vida com minha forma perfeita e tentasse matá-lo, naturalmente. Os magos são muito maus. Eles aleijam estátuas para poder controlá-las. Têm medo de nós!
— Você tentaria matá-lo ao ganhar vida, se ele o tivesse mantido perfeito?
— Provavelmente — admitiu Doughboy. — Terminamos?
— Não estamos nem na metade — respondi. — O que aconteceu a nosso pai?
Doughboy deu de ombros.
— Como posso saber? Mas notei que a varinha e o cajado não estão na caixa.
— Não — confirmou Carter. — O cajado... aquela coisa que se transformou em uma cobra... foi incinerado. E a varinha... é aquela coisa que parece um bumerangue?
— Aquela coisa que parece um bumerangue? — reagiu Doughboy. — Deuses do Eterno Egito, você é burro. É claro que aquilo é a varinha.
— Foi destruída — anunciei.
— Como? — quis saber Doughboy.
Carter contou a ele a história. Eu não sabia se essa era uma boa ideia, mas deduzi que uma estátua de dez centímetros de altura não podia nos fazer muito mal.
— Isso é maravilhoso! — gritou Doughboy.
— Por quê? — perguntei. — Papai ainda está vivo?
— Não! — a estátua exclamou. — É quase certo que esteja morto. Os cinco deuses dos Dias do Demônio libertados? Maravilhoso! E qualquer um que se relaciona com o Lorde Vermelho...
— Espere aí! — interrompi. — Ordeno que me diga o que aconteceu.
— Ha-ha! — Doughboy riu. — Sou obrigado a dizer apenas o que sei. Palpites e adivinhações são uma tarefa completamente diferente. Declaro minha obrigação cumprida!
Com isso, ele voltou a ser um boneco de cera inanimado.
— Espere! — Eu o peguei e sacudi. — Conte-me quais são seus palpites!
Nada aconteceu.
— Talvez ele tenha um relógio — opinou Carter. — Um timer, entende? Tipo, só uma vez por dia. Ou então você o quebrou.
— Carter, diga alguma coisa útil! O que fazemos agora?
Ele olhou para as quatro estátuas de cerâmica em seus pedestais.
— Talvez...
— Outros shabti?
— Vale a pena tentar.
Se as estátuas eram aqueles que respondem, não eram as mais eficientes. Tentamos segurá-las enquanto dávamos ordens, mas eram pesadas demais. Tentamos apontar para elas e gritar. Tentamos pedir com educação. Mas elas não nos deram resposta alguma.
Fiquei tão frustrada que senti vontade de usar o ha-di contra elas, transformá-las em milhões de pedacinhos, mas ainda estava muito faminta e cansada, e tinha a sensação de que o encantamento não ia fazer bem à minha saúde.
Finalmente, decidimos verificar os compartimentos nas paredes. Dentro de cada cilindro havia um rolo de papiro. Alguns pareciam novos. Outros davam a impressão de ter milhares de anos. Cada recipiente tinha um rótulo com hieróglifos e (felizmente) palavras em inglês.
— O livro da Vaca Sagrada. — Carter leu um deles. — Que tipo de nome é esse? O que você tem aí, Texugo Sagrado?
— Não — respondi. — O livro da morte de Apófis.
Muffin miou no canto. Quando olhei na direção da gata, ela estava com a cauda arrepiada.
— Qual é o problema? — perguntei.
— Apófis era uma cobra gigantesca, um monstro — murmurou Carter. — Ele era má notícia.
Muffin se virou e correu para a escada, de volta ao Grande Salão. Gatos. Não se pode contar com eles.
Carter abriu outro pergaminho.
— Sadie, veja isto.
Ele havia encontrado um papiro não muito longo, e boa parte do texto parecia ser composta de linhas de hieróglifos.
— Consegue ler isto aqui? — perguntou ele.
Estudei os sinais, intrigada, e o estranho era que eu não conseguia ler nada daquilo, exceto por uma linha no alto.
— Só a parte que deve ser o título. Diz... Sangue da grande casa. O que acha que significa?
— Grande casa — resmungou Carter. — Como essas palavras soam em egípcio?
— Per-roh. Ah, é faraó, não é? Mas pensei que faraó fosse um rei...
— E é — confirmou Carter. — Isso significa literalmente “grande casa”, como a mansão de um rei. É mais ou menos como se referir ao presidente dos Estados Unidos dizendo “o Casa Branca”. Portanto, o significado mais provável aqui deve ser Sangue dos faraós, todos eles, a linhagem completa de todas as dinastias, não só de um homem.
— O que me interessa o sangue dos faraós, e por que não consigo ler o restante?
Carter olhou para as linhas. De repente, arregalou os olhos.
— São nomes. Veja, estão todos escritos dentro de cartuchos.
— Como é? — perguntei, achando que cartucho soava como uma palavra muito grosseira, e eu me orgulhava de conhecê-las.
— Os círculos — explicou Carter — simbolizam cordas mágicas. Devem proteger essas pessoas da magia ruim. — Ele me encarou. — E também, possivelmente, de outros magos que tentem descobrir esses nomes.
— Ah, você é maluco — afirmei.
Mas olhei para as linhas e entendi o que ele queria dizer. Todas as outras palavras estavam protegidas por cartuchos, e eu não conseguia entender o que significavam.
— Sadie — Carter me chamou com um tom urgente.
Ele apontou para um cartucho bem no final da lista; a última linha do que parecia ser uma lista detalhada de milhares. Dentro do círculo havia dois símbolos simples: um cesto e uma onda.
— KN — anunciou Carter. — Esse eu conheço. É o nosso nome. KANE.
— Faltam algumas letras, não?
Carter balançou a cabeça.
— Normalmente, os egípcios não escreviam vogais. Só consoantes. Você deve deduzir o som da vogal analisando o contexto.
— Eles eram realmente doidos. Então, isso pode ser KANA ou KAON.
— Pode ser — concordou Carter. — Mas é nosso nome, Kane. Uma vez pedi a papai que o escrevesse com hieróglifos, e foi exatamente isso que ele desenhou. Mas por que estamos na lista? E o que é “sangue dos faraós”?
Senti um arrepio gelado na nuca. Lembrei o que Amós tinha dito, sobre os dois lados de nossa família serem muito antigos. Carter me encarou, e sua expressão sugeria que ele estava pensando o mesmo.
— De jeito nenhum — protestei.
— Deve ser alguma brincadeira. — Ele concordou comigo. — Ninguém guarda registros familiares tão antigos.
Engoli uma vez, sentindo minha garganta muito seca, de repente. Muitas coisas estranhas haviam acontecido conosco no último dia, mas só quando vi nosso nome no pergaminho comecei finalmente a acreditar que toda aquela loucura egípcia era real. Deuses, magos, monstros... e nossa família no meio disso.
Desde o café da manhã, quando me ocorreu a ideia de que papai podia estar tentando trazer mamãe de volta do Mundo dos Mortos, uma emoção horrível tentava se apoderar de mim. E não era medo. Sim, a ideia toda era sinistra, muito mais mórbida do que o altar que meus avós mantinham para mamãe no armário do corredor de casa. E sim, eu já disse que tento não viver no passado e que nada poderia mudar o fato de minha mãe estar morta. Mas sou uma mentirosa. A verdade é que tenho um sonho desde os seis anos: ver mamãe novamente.
Conhecê-la de fato, conversar com ela, ir às compras, fazer qualquer coisa. Simplesmente estar com ela, para ter uma lembrança mais clara a que me apegar. O sentimento que eu tentava ignorar era esperança. Sabia que caminhava para um sofrimento colossal. Mas, se fosse realmente possível trazê-la de volta, eu explodiria quantas Pedras de Roseta fossem necessárias para isso.
— Vamos continuar olhando — sugeri.
Depois de mais alguns minutos, encontrei uma imagem de alguns deuses com cabeças de animais, cinco, enfileirados, com uma mulher estrelada debruçada sobre eles numa atitude de proteção, como um guarda-chuva. Papai tinha libertado cinco deuses. Hum...
— Carter, o que é isso, então?
Ele se aproximou para olhar e seu rosto se iluminou.
— É isso! — anunciou. — Os cinco... e aqui em cima, a mãe deles, Nut.
Eu ri.
— Uma deusa chamada Nut? O sobrenome é Case? Sabe... Nut Case... Maluca, em inglês.
— Eu sei o que quer dizer. Muito engraçado. — Mas Carter não estava rindo. — Ela era a deusa do céu.
Meu irmão apontou para o teto pintado, para a mulher com a pele azul salpicada de estrelas, como a do pergaminho.
— O que você sabe sobre ela? — perguntei.
Carter estava ainda mais sério.
— Alguma coisa sobre os Dias do Demônio. Tinha a ver com o nascimento desses cinco deuses, mas papai me contou essa história há muito tempo. Esse pergaminho inteiro foi escrito em hierático, eu acho. É como uma letra cursiva dos hieróglifos. Consegue ler?
Fiz que não com a cabeça. Aparentemente, minha insanidade particular só se aplicava aos hieróglifos normais.
— Gostaria de encontrar a história em inglês — confessou Carter.
Ouvimos um estalo atrás de nós. A estátua de argila, aquela que tinha as mãos vazias, desceu do pedestal e caminhava em nossa direção. Carter e eu nos apressamos para sair do caminho, e a estátua passou direto por nós, retirou um cilindro de seu cubículo e o entregou a Carter.
— É um shabti de busca — arrisquei. — Um bibliotecário de argila!
Carter engoliu em seco com nervosismo e pegou o cilindro.
— Ah... obrigado.
A estátua marchou de volta a seu pedestal, subiu e readquiriu a consistência da argila.
— Imagine se... — Olhei para o shabti. — Sanduíche e fritas, por favor!
Infelizmente, nenhuma das estátuas se moveu para me servir. Talvez não fossem permitidos alimentos na biblioteca.
Carter destampou o cilindro e desenrolou o papiro contido nele. Ele suspirou aliviado.
— A versão em inglês.
Enquanto lia o texto, sua expressão ia se tornando mais e mais carregada.
— Você não parece feliz — comentei.
— Porque agora me lembro da história. Os cinco deuses... Se papai realmente os libertou, essa não é uma boa notícia.
— Espere aí. Comece do início.
Carter respirou fundo.
— Tudo bem. A deusa do céu, Nut, era casada com o deus da terra, Geb.
— O cara no chão?
Bati o pé em cima do grande homem verde com um rio, montanhas e florestas espalhados pelo corpo.
— Isso mesmo — confirmou Carter. — Geb e Nut queriam ter filhos, mas o rei dos deuses, Rá, rei sol, conhecia aquela profecia ruim sobre um filho de Nut...
— Filho de Nut — ri. — Desculpe, continue.
— ... um filho de Geb e Nut que um dia substituiria Rá como rei. Então, quando Rá soube que Nut estava grávida, ficou maluco. Ele a proibiu de ter o filho em qualquer dia ou noite do ano.
Cruzei os braços.
— E daí, ela teve de ficar grávida para sempre? Isso é terrivelmente cruel.
Carter balançou a cabeça.
— Nut encontrou uma solução. Ela propôs um jogo de dados com o deus da lua, Khonsu. Cada vez que Khonsu perdia, tinha de dar a Nut um pouco de sua luz. Ele perdeu tantas vezes que Nut ganhou luar suficiente para criar cinco novos dias, e os colocou no final do ano.
— Ah, pare. — Eu me irritei. — Primeiro, como se pode jogar apostando a lua? E, mesmo que isso fosse possível, como se poderia usar a luz da lua para criar dias extras?
— É uma história! — Carter protestou. — Enfim, o calendário egípcio tinha trezentos e sessenta dias por ano, como são trezentos e sessenta os graus em um círculo. Nut criou cinco dias e os acrescentou ao final do ano, dias que não faziam parte do calendário regular.
— Os Dias do Demônio — deduzi. — Então o mito explica por que o ano tem trezentos e sessenta e cinco dias. E suponho que ela teve seus filhos...
— Durante esses cinco dias — Carter confirmou. — Um filho por dia.
— E eu pergunto de novo, como é possível ter cinco filhos seguidos, um em cada dia?
— Eles são deuses — explicou Carter. — Podem fazer esse tipo de coisa.
— Faz tanto sentido para mim quanto o nome Nut. Mas, por favor, continue.
— Muito bem. Quando Rá descobriu, ficou furioso, mas era tarde demais. As crianças já tinham nascido. Seus nomes eram Osíris...
— Papai estava atrás desse.
— Hórus, Set, Ísis, e hã... — Carter consultou o pergaminho. — Néftis. Eu sempre esqueço essa.
— E o homem de fogo no museu disse que nosso pai havia libertado os cinco.
— Exatamente. E se estavam aprisionados juntos e papai não sabia disso? Eles nasceram juntos, então, talvez tivessem de ser chamados de volta ao mundo juntos. Acontece que um desses sujeitos, Set, era muito mau. Era o vilão da mitologia egípcia. O deus do mal, do caos e das tempestades no deserto.
Eu me arrepiei.
— É possível que ele tivesse alguma coisa a ver com fogo?
Carter apontou uma das figuras no desenho. O deus tinha cabeça de animal, mas eu não conseguia determinar que animal era aquele: Cachorro? Tamanduá? Coelhinho do mal? O que quer que fosse, seus cabelos e suas roupas eram vermelho-vivo.
— O Lorde Vermelho — concluí.
— Sadie, ainda tem mais — Carter me avisou. — Aqueles cinco dias, os Dias do Demônio, eram dias de má sorte no Egito Antigo. Era preciso tomar cuidado, usar amuleto, e não fazer nada importante ou perigoso nesses dias. E, no British Museum, papai disse a Set: “Os Dias do Demônio. Eles o deterão antes que o fim chegue.”
— Não pode estar pensando que ele se referia a nós — respondi. — Nós precisamos deter esse tal Set?
Carter assentiu.
— E se os últimos cinco dias do nosso ano ainda são considerados os Dias do Demônio egípcios... começam em 27 de dezembro, depois de amanhã.
shabti parecia olhar para mim com grande expectativa, mas eu não tinha a menor ideia do que deveria fazer. Dias do Demônio e deuses coelhinhos do mal – se eu ouvisse mais uma coisa inacreditável, minha cabeça explodiria.
E o pior disso? Uma voz insistente no fundo da minha cabeça ficava repetindo: Não é impossível. Para salvar papai, precisamos derrotar Set.
Como se isso fosse um item em minha lista de tarefas a fazer antes do Natal. Ver papai: ticado. Desenvolver poderes estranhos: ticado. Derrotar um deus diabólico do caos: ticado. A ideia toda era maluca!
De repente, houve um estrondo, como se algo se quebrasse no Grande Salão. Khufu começou a gritar, assustado.
Carter e eu nos entreolhamos. Depois, corremos para a escada.

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