sexta-feira, 31 de outubro de 2014

O Herói Perdido - Piper

Capítulo III - Piper

APÓS UMA MANHÃ COM ESPÍRITOS DE TEMPESTADE, homens-bode e namorados voadores, Piper deveria estar perdendo a cabeça. Ao invés disso, tudo que ela sentia era medo.
Está começando, pensou. Assim como no sonho.
Ela ficou na parte de trás da biga com Leo e Jason, enquanto o garoto careca, Butch, controlava as rédeas, e a garota loira, Annabeth, ajustava um aparelho de navegação feito de bronze. Eles decolaram do Grand Canyon e rumaram para o leste, o vento frio passando direto pelo casaco de Piper. Atrás deles, mais nuvens de tempestade estavam se formando.
A biga balançou e deu um solavanco. Não havia cintos de segurança, e a parte de trás era aberta. Piper imaginou se Jason poderia pegá-la novamente se ela caísse. Aquilo fora a parte mais perturbadora da manhã – não que Jason pudesse voar, mas que ele a havia segurado nos braços e ainda assim não sabia quem ela era.
Durante todo o semestre ela trabalhara no relacionamento, tentando fazer Jason perceber que ela era mais que uma amiga. Finalmente ela havia conseguido a grande vitória de beijá-lo. As últimas semanas foram as melhores de sua vida. E então, três noites atrás, o sonho havia arruinado tudo – aquela voz horrível, dando-lhe horríveis noticias. Ela não tinha contado para ninguém, nem mesmo a Jason.
Agora ela nem mesmo tinha ele. Era como se alguém tivesse apagado a memória dele, e ela estava presa no pior replay de todos os tempos. Ela queria gritar.
Jason estava de pé ao seu lado direito: aqueles olhos da cor do céu, o cabelo loiro cortado curto, a pequena e bonita cicatriz em seu lábio superior. Seu rosto era bondoso e gentil, mas sempre um pouco triste. E ele só olhava para o horizonte, nem mesmo notando-a.
Entretanto, Leo estava sendo chato, como de costume.
— Isso é tão legal! — Ele cuspiu uma pena de pégaso da boca. — Para onde estamos indo?
— Para um lugar seguro — Annabeth disse. — O único lugar seguro para pessoas como nós. O Acampamento Meio-Sangue.
— Meio-Sangue? — Piper estava imediatamente atenta. Ela odiava aquela palavra. Ela fora chamada de meio-sangue várias vezes – meio índia, meio branca – e nunca era um elogio. — Esse é algum tipo de brincadeira sem-graça?
— Ela quer dizer que somos semideuses — Jason disse. — Meio deuses, meio mortais.
Annabeth olhou para trás.
— Você parece saber muito, Jason. Mas, sim, semideuses. Minha mãe é Atena, deusa da sabedoria. O Butch aqui é filho de Íris, a deusa do arco-iris.
Leo engasgou.
— Sua mãe é a deusa do arco-iris?
— Tem algum problema com isso? — Butch disse.
— Não, não — Leo disse. — Arco-íris. Muito macho.
— Butch é nosso melhor cavaleiro — Annabeth disse. — Ele se dá bem com os pégasos.
— Arco-íris, pôneis — Leo murmurou.
— Eu vou te jogar dessa biga... — Butch alertou.
— Semideuses — Piper disse. — Você quer dizer que acha que é... você acha que nós somos...
Um raio cortou o céu. A carruagem estremeceu, e Jason gritou:
— A roda direita está pegando fogo!
Piper recuou. Sem dúvida, a roda estava queimando, chamas brancas subiam pela lateral da carruagem.
O vento zuniu. Piper olhou para trás e viu formas escuras formando-se nas nuvens, mais espíritos da tempestade espiralando para a biga – exceto que esses pareciam mais cavalos que anjos.
Ela começou a perguntar:
— Por que esses são...
— Os anemoi vem em diferentes formas — Annabeth disse. — Às vezes como humanos, às vezes garanhões  dependendo de quão caóticos eles são. Segure-se. Isso vai ficar feio.
Butch chicoteou as rédeas. Os pégasos aumentaram a velocidade com uma explosão, e a carruagem ficou indistinta. O estômago de Piper se revirou. Sua visão escureceu e, quando voltou ao normal, eles estavam num lugar totalmente diferente.
Um oceano cinza e frio estendia-se à esquerda. Campos cobertos de neve, estradas, e florestas expandiam-se na direita. Diretamente abaixo deles havia um vale verde, como uma ilha de primavera, cercada por colinas nevadas e pela água, ao norte. Piper viu construções como os templos da Grécia Antiga, uma grande mansão azul, complexos esportivos, um lago e uma parede de alpinismo que parecia estar em chamas. Mas, antes que ela realmente pudesse processar tudo que estava vendo, as rodas deles se soltaram e a biga despencou do céu.
Annabeth e Butch tentaram manter o controle. Os pégasos trabalharam para segurar a biga no voo, mas eles pareciam exaustos da explosão de velocidade, e carregar o peso de cinco pessoas era simplesmente demais.
— O lago! — Annabeth gritou. — Mire no lago!
Piper se lembrou de algo que seu pai havia contado uma vez para ela, sobre cair na água de grandes alturas ser tão ruim quanto cair no concreto.
E então – BUM!
O maior choque foi o frio. Ela estava submersa, tão desorientada que não sabia qual caminho levava para cima. Ela só conseguia pensar: Esse seria um jeito estúpido de morrer.
Então rostos apareceram na escuridão verde – garotas com longos cabelos negros e olhos amarelos brilhantes, que sorriram para ela, pegaram seus ombros e a puxaram.
Elas lançaram-na para cima, ofegando e tremendo de frio, para a praia. Próximo a ela, Butch estava no lago cortando as armaduras naufragadas dos pégasos. Felizmente, os cavalos pareciam bem, mas eles estavam batendo as asas e espirrando água para todo lado. Jason, Leo e Annabeth já estavam na praia, rodeados por garotos dando-lhes cobertores e fazendo perguntas. Alguém pegou Piper pelos braços e a ajudou a ficar em pé. Aparentemente, as pessoas caiam no lago com frequência, pela razão de que alguns dos campistas correram para cima dela com folhas grandes de bronze parecendo sopradores e jogaram ar quente em Piper, o que fez com que em aproximadamente dois segundos suas roupas estivessem secas.
Havia pelo menos vinte campistas ao redor – o mais novo com talvez nove anos, o mais velho em nível de faculdade, dezoito ou dezenove – e todos eles tinham camisetas laranja como a de Annabeth.
Piper olhou novamente para a água e viu aquelas estranhas garotas um pouco abaixo da superfície, seus cabelos flutuando na correnteza. Elas acenaram com adeusinho e desapareceram nas profundezas. Um segundo depois, destroços da biga foram atirados do lago e caíram ali perto, fazendo um ruido de coisa molhada.
— Annabeth! — Um cara com um arco e aljava nas costas abriu caminho através da multidão. — Eu disse que você poderia pegar emprestada a biga, e não destruí-la!
— Will, me desculpe — Annabeth suspirou. — Eu vou consertá-la, prometo.
Will olhou zangado para sua carruagem destruída. Então ele olhou Piper, Leo e Jason.
— São esses? Eles tem bem mais que treze anos. Por que ainda não foram reclamados?
— Reclamados? — Leo perguntou.
Antes que Annabeth pudesse responder, Will disse:
— Algum sinal de Percy?
— Não — Annabeth admitiu.
Os campistas murmuraram. Piper não tinha ideia de quem esse cara, Percy, era, mas seu desaparecimento parecia ser algo consideravelmente grande.
Outra garota avançou – alta, asiática, o cabelo negro em cachos, várias jóias e maquiagem perfeita. De algum jeito, ela conseguia fazer jeans e uma camiseta laranja parecerem deslumbrantes. Ela olhou para Leo, fixou os olhos em Jason como se ele merecesse sua atenção, então torceu os lábios para Piper como se ela fosse um burrito velho que havia sido tirado de uma lixeira. Piper conhecia esse tipo de garota. Já lidara com muitas assim na Escola da Vida Selvagem e em todas as outras estúpidas escolas que seu pai havia mandado-a. Piper soube instantaneamente que elas seriam inimigas.
— Bem — a garota disse — espero que eles valham o problema.
Leo bufou.
— Nossa, obrigado. O que nós somos, seus novos mascotes?
— Sem brincadeiras — Jason disse. — Quem sabe algumas respostas antes de vocês começarem a nos julgar? Tipo, o que é esse lugar, porque estamos aqui, quanto tempo temos que ficar?
Piper tinha as mesmas perguntas, mas uma onda de ansiedade passou sobre ela.
Valham o problema. Se eles ao menos soubessem sobre seu sonho. Eles não tinham ideia...
— Jason — Annabeth disse — prometo que vamos responder suas perguntas. E Drew — ela franziu o cenho para a garota bonita — todos os semideuses valem a pena. Mas vou admitir que a viagem não foi como eu esperava.
— Ei — Piper disse — nós não pedimos para sermos trazidos aqui.
Drew fungou.
— E ninguém quer vocês. Seu cabelo sempre parece um texugo morto?
Piper avançou pronta para bater nela, mas Annabeth disse:
— Piper, pare.
Piper parou. Ela não estava nem um pouco amedrontada com Drew, mas Annabeth não parecia com alguém que ela iria querer como inimiga.
— Precisamos fazer nossos recém-chegados sentirem-se em casa — Annabeth disse, com outro olhar afiado para Drew. — Vamos designar um guia para cada, dar um passeio no acampamento. Esperançosamente, na fogueira dessa noite, eles serão reclamados.
— Alguém vai me dizer o que significa reclamados? — Piper perguntou.
Subitamente houve um ofego coletivo. Os campistas cederam. Primeiro Piper pensou que fez algo errado. Então ela percebeu que seus rostos estavam banhados numa estranha luz vermelha, como se alguém tivesse acendido uma tocha atrás dela. Ela se virou e quase esqueceu como respirar.
Flutuando sobre a cabeça de Leo estava uma imagem holográfica em chamas – um martelo de fogo.
— Isso — Annabeth disse — é ser reclamado.
— O que eu fiz? — Leo voltou para o lago. Então ele olhou para cima e gritou: — Meu cabelo está queimando?
Ele se abaixou, mas o símbolo o seguiu, subindo e descendo de forma que parecia que ele estava tentando escrever algo em chamas com a cabeça.
— Isso não deve ser bom — Butch murmurou. — A maldição...
— Butch, cale-se — Annabeth disse. — Leo, você acabou de ser reclamado...
— Por um deus — Jason interrompeu. — Esse é o simbolo do Vulcano, não é?
Todos os olhos viraram para ele.
— Jason — Annabeth disse cuidadosamente — como você sabe disso?
— Não sei.
— Vulcano? — Leo perguntou. — Eu nem GOSTO de Star Trek. Sobre o que vocês estão falando?
— Vulcano é o nome romano para Hefesto — Annabeth disse — o deus dos ferreiros e do fogo.
O martelo de fogo enfraqueceu, mas Leo continuou agitando o ar como se tivesse medo que aquilo estivesse lhe seguindo.
— O deus do quê? Quem?
Annabeth virou para o cara com o arco.
— Will, você poderia ficar com Leo, dar um passeio? Apresente-o aos seus companheiros no Chalé 9.
— Claro, Annabeth.
— O que é Chalé 9? — Leo perguntou. — E eu não sou um Vulcano!
— Vamos lá, Sr. Spock, eu vou explicar tudo — Will colocou uma mão no ombro dele e desviou-o em direção aos chalés.
Annabeth voltou sua atenção para Jason. Geralmente, Piper não gostava quando outras garotas olhavam seu namorado, mas Annabeth não parecia se importar de que ele fosse um cara bonito. Ela estudou-o mais como se ele fosse um projeto arquitetônico complicado. Finalmente ela disse:
— Mostre seu braço.
Piper viu o que ela estava vendo, e seus olhos arregalaram-se.
Jason tinha tirado seu casaco depois do mergulho no lago, deixando os braços nus, e na parte interna do antebraço direito havia uma tatuagem. Como Piper nunca havia notado antes? Ela olhara para os braços de Jason um milhão de vezes. A tatuagem não poderia ter simplesmente aparecido, mas estavam gravadas com uma cor escura, impossível de errar: uma dúzia de linhas retas como um código de barras, e acima delas, uma águia com as letras SPQR.
— Eu nunca vi marcas como essas — Annabeth disse. — Onde você as conseguiu?
Jason sacudiu a cabeça.
— Eu realmente estou cansado de dizer isso, eu não sei.
Os outros campistas empurraram-se para frente, tentando dar uma olhada na tatuagem de Jason. As marcas pareciam aborrecê-los muito – quase como uma declaração de guerra.
— Elas parecem queimadas na sua pele — Annabeth notou.
— Elas foram — Jason disse. Então ele estremeceu como se sua cabeça estivesse doendo. — Quero dizer... Eu acho que foram. Eu não lembro.
Ninguém disse nada. Estava claro que os campistas viam Annabeth como a líder. Eles estavam esperando por seu veredicto.
— Ele precisa ir direto para Quíron — Annabeth decidiu. — Drew, você poderia...
— Claro — Drew atou seu braço ao de Jason. — Desse jeito, querido. Eu vou lhe apresentar ao nosso diretor. Ele é... um cara interessante. — Ela deu a Piper um olhar presunçoso e virou Jason em direção a grande casa azul na colina.
A multidão começou a dispersar, até sobrar somente Annabeth e Piper.
— Quem é Quíron? — Piper perguntou. — Jason está em algum tipo de encrenca?
Annabeth hesitou.
— Boa pergunta, Piper. Vamos lá, vamos dar uma volta. Precisamos conversar.

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