domingo, 16 de novembro de 2014

Os Diários do Semideus - O diário de Luke Castellan



Meu nome é Luke.
Honestamente, eu não sei se sou capaz de manter esse diário. Minha vida é muito louca. Mas prometi ao velho que iria tentar. Depois do que aconteceu hoje... bem, eu lhe devo isso.
Minhas mãos estão tremendo enquanto estou aqui sentado de guarda. Não consigo tirar as imagens horríveis da minha cabeça. Tenho algumas horas até que as garotas acordem. Talvez se eu conseguir escrever a história, eu seja capaz de deixá-la para trás.
Devo provavelmente começar pela cabra mágica.

***

Por três dias, Thalia e eu estivemos seguindo a cabra pela Virgínia. Eu não tenho certeza do motivo. Para mim, a cabra não parecia ser algo especial, mas Thalia estava mais agitada do que jamais tinha visto antes. Ela estava certa de que a cabra era algum tipo de sinal do seu pai, Zeus.
É, seu pai é um deus grego. O meu também. Nós somos semideuses. Se você pensa que isso é legal, pense novamente. Semideuses são ímãs de monstros. Todos esses gregos antigos nojentos como Fúrias, harpias e górgonas ainda existem, e eles podem sentir o cheiro de heróis como nós há quilômetros de distância. Por causa disso, Thalia e eu gastamos todo o nosso tempo correndo para salvar nossas vidas. Nossos pais superpoderosos nem mesmo falam conosco, muito menos nos ajudam. Por quê? Se eu tentar explicar isso, vou gastar o diário todo, então vou seguir em frente.
De qualquer maneira, essa cabra aparecia em momentos aleatórios, sempre à distância. Sempre que tentávamos pegá-la, a cabra sumia e reaparecia mais a frente, como se estivesse nos guiando a algum lugar.
Por mim, eu a deixaria ir sozinha. Thalia não explicava por que ela a achava importante, mas ela e eu havíamos nos aventurado juntos o bastante para que eu aprendesse a confiar em seu julgamento. Então seguimos a cabra.
Cedo da manhã, nós acabamos em Richmond. Nós marchamos por uma ponte sobre um rio verde e lento, passamos por parques arborizados e cemitérios da Guerra Civil. À medida que chegávamos perto do centro da cidade, navegávamos por bairros adormecidos compostos por residências de tijolos vermelhos firmadas juntas, com varandas de colunas brancas e jardins minúsculos.
Eu imaginei todas as famílias normais vivendo naquelas casas acolhedoras. Pensei em como deveria ser ter um lar, saber de onde minha próxima refeição estava vindo e não ter que se preocupar em ser comido por monstros todos os dias. Eu fugi quando tinha apenas nove anos – há cinco longos anos. Mal lembrava como era dormir numa cama de verdade.
Depois de andar outro quilômetro, eu sentia meus pés como se estivessem derretendo dentro dos sapatos. Esperava que nós conseguíssemos achar um lugar para descansar, talvez conseguir alguma comida. Ao invés disso, achamos a cabra.
A rua pela qual estávamos seguindo se abriu em um grande parque circular. Imponentes mansões de tijolos vermelhos ficavam diante da rotatória. No meio do círculo, em cima de um pedestal de mármore branco de seis metros, estava um cara de bronze sentado no cavalo. Pastando na base do monumento estava a cabra.
 Se esconda!
Thalia me puxou para trás de uma fileira de roseiras.
― É só uma cabra  eu disse pela milionésima vez. ― Por que...?
― É especial  Thalia insistiu. ― Um dos animais sagrados do meu pai. Seu nome é Amalteia.
Ela nunca tinha mencionado o nome da cabra antes. Eu me perguntava por que ela parecia tão nervosa.
Thalia não tem tanto medo. Ela tem apenas doze anos, dois anos mais nova que eu, mas se você a ver andando pela rua vai querer abrir caminho. Ela usa coturnos, jeans preto e uma jaqueta de couro esfarrapada repleta de buttons de punk rock. Seu cabelo é escuro e desgrenhado como o de um animal feroz. Seus olhos azuis intensos perfuravam você como se ela estivesse considerando te bater até virar pasta.
Nada a assustava, eu tinha que levar a sério.
 Então você já viu essa cabra antes?  perguntei.
Ela assentiu relutante.
― Em Los Angeles, na noite em que fugi. Amalteia me levou para fora da cidade. E depois, naquela noite em que nos conhecemos... ela me levou até você.
Eu encarei Thalia. Até onde eu sabia, nosso encontro tinha sido um acidente. Nós literalmente nos esbarramos numa caverna fora de Charleston e nos unimos para permanecermos vivos. Thalia nunca mencionou uma cabra.
Ela não gostava de falar a respeito até de sua antiga vida em Los Angeles. Eu a respeitava demais para me intrometer. Eu sabia que sua mãe tinha se apaixonado por Zeus. Eventualmente Zeus deu um fora nela, como os deuses costumam fazer. Sua mãe chegou até o fundo do poço, bebendo e fazendo coisas loucas – não sei os detalhes – até que finalmente Thalia decidiu fugir. Em outras palavras, seu passado se parecia muito com o meu.
Ela suspirou.
― Luke, quando Amalteia aparece, algo de importante está para acontecer... algoperigoso. Ela é como um aviso de Zeus, ou um guia.
― De quê?
― Eu não sei... mas olhe  Thalia apontou para o outro lado da rua. ― Ela não está desaparecendo dessa vez. Devemos estar perto de onde quer que ela esteja nos levando.
Thalia estava certa. A cabra estava apenas parada ali, a menos de cem metros de distância, contentemente mordiscando a grama da base do monumento.
Eu não era um expert em animais de fazenda, mas Amalteia parecia estranha agora que estávamos mais perto. Ela tinha chifres intrincados como o de um carneiro, mas tetas inchadas como o de uma cabra. E seu pelo cinza desgrenhado... estava brilhando? Fios de luz pareciam se agarrar a ela como uma nuvem de neon, fazendo-a parecer desfocada e fantasmagórica.
Dois carros contornaram a rotatória, mas ninguém pareceu perceber a cabra radioativa. Isso não me surpreendeu. Há algum tipo de camuflagem mágica que faz os mortais não verem a real aparência de monstros e deuses. Thalia e eu não sabemos do que essa força é chamada ou como funciona, mas é bastante poderosa. Mortais devem ver a cabra como um cão de rua, ou eles nem devem a ver no fim das contas.
Thalia agarrou minha cintura.
― Venha. Vamos tentar conversar com ela.
― Primeiro nos escondemos da cabra  eu disse. ― Agora você quer conversar com ela?
Thalia me arrastou para fora das roseiras e me puxou para o outro lado da rua. Eu não protestei. Quando Thalia coloca uma ideia na cabeça, você tem que aceitar. Ela sempre segue seu caminho.
Além disso, eu não podia deixá-la ir sem mim. Thalia havia salvado minha vida uma dúzia de vezes. Ela é minha única amiga. Antes de nos conhecermos, eu viajei por anos por conta própria, solitário e miserável. De vez em quando eu fazia amizade com algum mortal, mas sempre que eu contava a eles a verdade sobre mim, eles não entendiam. Eu confessava que era um filho de Hermes, o cara mensageiro imortal com sandálias aladas. Explicava que monstros e deuses gregos eram reais e muito vivos no mundo moderno. Meus amigos mortais diziam. "Isso é tão legal! Eu queria ser um semideus!" Como se isso alguma espécie de jogo. Eu sempre terminava indo embora.
Mas Thalia entendeu. Ela era como eu. Agora que a achei, estava determinado a ficar com ela. Se ela queria perseguir uma cabra mágica reluzente, então o faríamos, mesmo que eu tivesse um mal pressentimento sobre isso.
Nos aproximamos da estátua. A cabra não prestou atenção em nós. Ela mastigava um pouco de grama, então batia seus chifres contra a base de mármore do monumento. Numa placa de bronze lia-se: Robert E. Lee. Eu não sei muito sobre história, mas tinha certeza de que Lee tinha sido um general que perdeu uma guerra. Isso não me parecia um bom presságio.
Thalia ajoelhou-se perto da cabra.
― Amalteia?
A cabra se virou. Ela tinha olhos tristes cor de âmbar e uma coleira de bronze ao redor de seu pescoço. Luz branca embaçada fumegava ao redor de seu corpo, mas o que realmente me chamou atenção foram suas mamas. Cada mama estava marcada com uma letra grega, como tatuagens. Eu conseguia ler um pouco de grego antigo – que é um tipo de habilidade natural dos semideuses, eu acho. Nas tetas lia-se: Néctar, Leite, Água, Pepsi, Aperte Aqui para Gelo, Refrigerante Diet. Ou talvez eu tenha lido errado. Esperava que sim.
Thalia olhou nos olhos da cabra.
― Amalteia, o que você quer que eu faça? Meu pai enviou você?
A cabra olhou pra mim. Ela parecia um pouco irritada, como se eu fosse um intruso numa conversa particular.
Eu dei um passo para trás, resistindo à urgência de pegar minha arma. Ah, a propósito, minha arma era um taco de golfe. Sinta-se a vontade para rir. Eu costumava ter uma espada feita de bronze celestial, que é mortal para monstros, mas a espada foi derretida em ácido (longa história). Agora tudo que eu tinha era um taco de golfe que eu carregava nas minhas costas. Não exatamente épico. Se a cabra nos atacasse, eu estaria em problemas.
Eu limpei minha garganta.
― Hã, Thalia, você tem certeza que essa cabra é do seu pai?
― Ela é imortal  Thalia disse. ― Quando Zeus era bebê, sua mãe Reia o escondeu numa caverna...
― Porque Cronos queria comê-lo?
Eu tinha ouvido aquela história em algum lugar, como o antigo rei titã tinha engolido seus próprios filhos.
Thalia assentiu.
― Então esta cabra, Almateia, cuidou do bebê Zeus em seu berço. Ela o amamentou.
― Com Refrigerante Diet eu perguntei.
Thalia franziu o cenho.
― O quê?
― Leia as mamas  eu disse. ― A cabra tem cinco sabores e um dispenser de gelo.
― Béééééé  disse Amalteia.
Thalia afagou a cabeça da cabra.
― Tudo bem. Ele não quis insultar você. Por que você nos trouxe até aqui, Amalteia? Para onde você quer eu vá?
A cabra bateu a cabeça contra o monumento. Do alto veio o som de metal rangendo. Eu olhei para cima e vi o General Lee de bronze movendo seu braço direito.
Eu quase me escondi atrás da cabra. Thalia e eu tínhamos lutando contra muitas estátuas movidas por magia antes. Elas eram chamadas de autômatos, e eram um péssimo sinal. Eu não estava ansioso para enfrentar Robert E. Lee com um taco de golfe.
Felizmente, a estátua não atacou. Ele simplesmente apontou para o outro lado da rua.
Eu dei um olhar nervoso a Thalia.
― O que é isso?
Thalia assentiu em direção ao que a estátua estava apontando.
Do outro lado da rotatória estava uma mansão de tijolos vermelhos coberta de hera. Em ambos os lados, árvores de carvalho enormes estavam cobertas por musgos. As janelas da casa estavam fechadas e escuras. Colunas brancas descascadas ladeavam a varanda da frente. A porta estava pintada com carvão vegetal preto. Mesmo numa manhã ensolarada, o lugar parecia sombrio e assustador – como a casa assombrada deE o Vento Levou.
Minha boca ficou seca.
― A cabra quer que nós entremos ?
― Béééé.
Amalteia abaixou sua cabeça como se estivesse assentindo.
Thalia tocou os chifres encaracolados da cabra.
― Obrigada, Amalteia. E-eu confio em você.
Eu não estava certo do porquê, considerando quão assustada Thalia parecia.
A cabra me incomodou, e não só porque ela distribuía produtos Pepsi. Algo estava me importunando na parte de trás da minha mente. Eu acho que tinha ouvido outra história sobre a cabra de Zeus, alguma coisa sobre aquele pelo reluzente...
De repente a névoa engrossou e cresceu em torno de Amalteia. Uma nuvem tempestuosa em miniatura a engolfou. Raios tremeluziram através da nuvem. Quando a névoa se dissolveu, a cabra tinha desaparecido.
Eu nem mesmo pude experimentar o dispenser de gelo.
Olhei em frente, para a casa em ruínas. As árvores musgosas em ambos os lados parecendo garras, esperando para agarrar.
― Você tem certeza disso?  Perguntei a Thalia.
Ela virou pra mim.
― Amalteia me levou até coisas boas. A última vez que ela apareceu, ela me levou até você.
O elogio me aqueceu como uma xícara de chocolate quente. Eu sou um otário desse jeito. Thalia piscava aqueles olhos azuis, me dava uma palavra gentil, e então ela poderia me induzir a fazer praticamente qualquer coisa. Mas eu não podia deixar de pensar: de volta a Charleston, tinha a cabra a levado até mim, ou simplesmente a levado para dentro da caverna?
Eu expirei.
― Okay. Mansão assustadora, aqui vamos nós.

***

A aldrava de latão tinha a forma do rosto de Medusa, o que não era um bom sinal. O piso da varanda rangia sob nossos pés. As janelas fechadas estavam se despedaçando, mas o vidro estava encardido e coberto pelo outro lado com cortinas escuras, então nós não conseguíamos ver o lado de dentro.
Thalia bateu a porta.
Sem resposta.
Ela sacudiu o trinco, mas parecia trancado. Eu estava esperando que ela decidisse desistir. Ao invés disso ela me olhou com expectativa.
― Você pode fazer aquela sua coisa?
Eu cerrei meus dentes.
― Eu odeio fazer aquilo.
Apesar de eu nunca ter conhecido meu pai e realmente nem querer, compartilho alguns de seus talentos. Além de ser o mensageiro dos deuses, Hermes é o deus dos comerciantes – o que explica porque sou bom com dinheiro – e viajantes, o que explica porque o imbecil divino deixou minha mãe e nunca mais voltou. Ele é também o deus dos ladrões. Ele rouba coisas como... ah, o gado de Apolo, mulheres, boas ideias, carteiras, a sanidade da minha mãe e minha chance de uma vida decente. Desculpe, isso soou cruel?
De qualquer forma, por causa do ladrão divino do meu pai, eu tenho algumas habilidades que não gosto de anunciar.
Coloquei minha mão na tranca da porta. Me concentrei, sentindo os pinos internos que controlam a tranca. Com um clique, o ferrolho deslizou para trás. A tranca do trinco foi ainda mais fácil. Bati, girei e a porta se abriu.
― Isso é tão legal  Thalia murmurou.
Acho que ela já tinha me visto fazer isso uma dúzia de vezes.
A entrada exalava um cheiro azedo, como o hálito de um moribundo. De qualquer forma, Thalia entrou. Eu não tinha muito escolha a não ser segui-la.
Dentro se encontrava um salão a moda antiga. No alto, um lustre brilhava com bugigangas de Bronze Celestial – pontas de flecha, pedaços de armaduras e punhos de espada quebrados – todos lançando um brilho amarelo doentio sobre o cômodo. Dois corredores levavam para a esquerda e para a direita. Uma escada se enrolava ao redor da parede de trás. Cortinas pesadas bloqueavam as janelas.
O lugar deve ter sido impressionante um dia, mas agora estava destruído. O piso de mármore quadriculado estava manchado de lama e uma crosta seca que eu esperava que fosse apenas ketchup. Em um canto, um sofá tinha sido estripado. Diversas cadeiras de mogno tinham sido destruídas até virarem gravetos. Na base das escadas estava uma pilha de latas, trapos e ossos – ossos do tamanho do de humanos.
Thalia sacou sua arma do seu cinto. O cilindro de metal se parecia com uma lata de spray, mas quando ela o sacode, ele se expande até que ela esteja segurando uma lança com uma ponta de bronze Celestial. Eu agarrei meu taco de golfe, que não era nem de longe tão legal.
Eu comecei a dizer:
― Talvez isso não seja uma boa...
A porta se fechou atrás de nós.
Eu avancei na maçaneta e puxei. Sem sorte. Eu pressionei minha mão na fechadura e desejei que abrisse. Nada aconteceu dessa vez.
― Algum tipo de mágica  eu disse. ― Nós estamos presos.
Thalia correu para a janela mais próxima. Ela tentou abrir as cortinas, mas o tecido preto e pesado se enrolou em suas mãos.
― Luke!  ela gritou.
As cortinas se liquefizeram em lençóis de lodo oleoso como línguas negras gigantes. Elas deslizaram por seus braços e cobriram sua lança. Eu senti como se meu coração estivesse tentando subir pela garganta, mas ataquei as cortinas e as golpeei com meu taco de golfe.
O lodo estremeceu e voltou a ser um tecido longo o suficiente para que eu conseguisse tirar Thalia a salvo. Sua lança caiu ruidosamente no chão.
Eu a carreguei para longe enquanto as cortinas voltavam a ser lodo e tentavam a pegar. Os lençóis de lodo chicoteavam no ar. Felizmente, eles pareciam ancoradas aos trilhos da cortina. Depois de mais algumas tentativas de nos alcançar, o lodo se aquietou e se transformou em cortinas novamente.
Thalia tremia em meus braços. Sua lança estava perto, fumegando como se tivesse sido mergulhada em ácido.
Ela levantou as mãos. Elas estavam fumegando e com bolhas. Sua face pálida como se ela estivesse entrado em choque.
― Espere aí!  Eu a deitei no chão e apalpei minha mochila. ― Espere aí, Thalia. Eu tenho algo.
Finalmente achei minha garrafa de néctar. A bebida dos deuses podia curar feridas, mas a garrafa estava quase vazia. Eu derramei o resto nas mãos de Thalia. O vapor se dissipou. As bolhas desapareceram.
― Você vai ficar bem  eu disse. ― Apenas descanse.
― Nós... nós não podemos... ― Sua voz tremia, mas ela conseguiu se levantar. Ela olhou para as cortinas com uma mistura de medo e náusea. ― Se todas as janelas são assim, e a porta está trancada...
― Nós iremos achar outra forma de sair  prometi.
Essa não parecia ser a hora de lembrá-la que nós não estaríamos aqui se não fosse a estúpida cabra.
Considerei nossas opções: uma escada subindo, ou dois corredores escuros. Olhei para o corredor da esquerda. Consegui distinguir um par de luzes vermelhas pequenas brilhando perto do chão. Talvez aquelas luzes da noite usadas por quem tem medo do escuro.
Então as luzes se moveram. Elas balançavam para cima e para baixo, cada vez mais brilhantes e mais perto. Um grunhido fez meus cabelos ficarem de pé.
Thalia fez um som estrangulado.
― Hã, Luke...
Ela apontou para o outro corredor. Outro par de luzes vermelhas brilhantes nos encarava nas sombras. Dos dois corredores vinha um som estranho clack, clack, clack, como alguém jogando castanholas.
― As escadas parecem uma boa ideia  eu disse.
Como em resposta, uma voz de homem nos chamou de algum lugar sobre nós:
― Sim, por aqui.
A voz estava pesada de tristeza, como se ele estivesse dando instruções para um funeral.
― Quem é você?  gritei.
― Depressa  a voz chamou, mas ele não pareceu animado sobre isso.
À minha direita, a mesma voz ecoou:
― Depressa.
Clack, clack, clack.
Eu dei uma segunda checada. A voz parecia vir da coisa no corredor – a coisa com olhos vermelhos brilhantes. Mas como podia uma voz vir de dois lugares diferentes?
Então a mesma voz chamou do corredor da esquerda:
― Depressa.
Clack, clack, clack.
Eu já tinha enfrentado algumas coisas assustadoras antes – cachorros que cuspiam fogo, escorpiões das profundezas, dragões – sem mencionar um conjunto de cortinas pretas oleosas comedoras de gente. Mas algo sobre essas vozes ecoando ao meu redor, esses olhos brilhantes avançando por ambas as direções e os barulhos estranhos de estalo me faziam sentir como se eu fosse um cervo cercado por lobos. Cada músculo em meu corpo ficou tenso. Meus instintos disseram, Corra.
Eu agarrei a mão de Thalia e disparei para as escadas.
― Luke...
― Vamos!
― E se for outra armadilha...
― Não há escolha!
Eu subi as escadas, carregando Thalia comigo. Eu sabia que ela estava bem. Podíamos estar correndo direto para nossas mortes, mas eu também sabia que nós precisávamos dar o fora daquelas coisas do térreo.
Eu estava com medo de olhar para trás, mas podia ouvir as criaturas se aproximando – rosnando como gatos selvagens, pisando no chão de mármore e fazendo barulho como o de cascos de cavalo. O que diabos eram eles?
No topo das escadas, nós mergulhamos em outro corredor. Castiçais nas paredes cintilavam vagamente fazendo com que as portas ao longo dos dois lados parecessem dançar. Eu pulei por cima de uma pilha de ossos, acidentalmente chutando uma caveira humana.
Em algum lugar acima de nós, a voz de homem chamou:
― Por aqui!  Ele soou mais urgente que antes. ― Última porta a esquerda! Depressa!
Atrás de nós, as criaturas ecoavam as palavras:
― Esquerda! Depressa!
Talvez as criaturas estivessem apenas imitando como papagaios. Ou talvez a voz em nossa frente pertencesse a um monstro também. Ainda assim, algo sobre o tom de voz do homem parecia real. Ele soava solitário e miserável, como um refém.
― Nós temos que ajudá-lo  Thalia anunciou como se estivesse lendo meus pensamentos.
― Sim  concordei.
Nós seguimos em frente. O corredor tornou-se mais dilapidado – o papel de parede descascando como casca de árvore, castiçais quebrados em pedaços. O carpete estava em farrapos e cheio de ossos. Luz passava por debaixo da última porta a esquerda.
Atrás de nós, o som de cascos ficava mais alto.
Nós alcançamos a porta e eu me lancei contra ela, mas ela se abriu sozinha. Thalia e eu nos deixamos cair para dentro, com o rosto plantado no carpete.
A porta se fechou.
Do lado de fora, as criaturas grunhiram em frustração e se esfregaram contra as paredes.
― Olá  disse a voz de homem, muito perto agora. ― Eu sinto muito.
Minha cabeça estava rodando. Eu pensei que tivesse o ouvido a minha esquerda, mas quando olhei, ele estava parado em nossa frente.
Ele usava botas de couro de cobra e um terno malhado de verde e marrom que podia até mesmo ser feito do mesmo material. Ele era alto e magro, com cabelo grisalho espetado quase tão selvagem quanto o de Thalia. Ele parecia um velho, doente e bem vestido Einstein.
Seus ombros eram caídos. Seus olhos verdes eram sublinhados com bolsas. Ele devia ter sido bonito um dia, mas a pele do seu rosto pendia frouxa como se ele tivesse sido parcialmente esvaziado.
O cômodo era disposto como um apartamento. Ao contrário do resto da casa, o quarto estava em boas condições. Contra a parede mais distante estava uma cama de casal, uma mesa com um computador e uma janela coberta com cortinas escuras como as do térreo. Ao longo da parede direita ficava uma estante de livros, uma pequena cozinha e duas portas – uma levava para um banheiro, a outra para um amplo closet.
Thalia disse:
― Hã, Luke...
Ela apontou para a sua esquerda.
Meu coração quase explodiu contra minha caixa torácica.
O lado esquerdo do aposento tinha uma fileira de barras de ferro como uma cela de prisão. Dentro estava o zoológico mais assustador que eu já vi. O chão de cascalho estava cheio de ossos e pedaços de armadura, e rondando de um lado para o outro estava um monstro com um corpo de leão e pelo vermelho ferrugem. Ao invés de patas ele tinha cascos como um cavalo, e sua cauda açoitava como um chicote. Sua cabeça era uma mistura de cavalo com lobo – orelhas pontudas, focinho alongado, lábios pretos que pareciam perturbadoramente humanos.
O monstro rosnou. Por um segundo, pensei que ele estava usando um protetor bucal como o que os lutadores usam. No lugar de dentes, haviam duas ferraduras em forma de placa óssea. Quando estalou a boca, as placas rangeram, fazendo o clack, clack, clackque eu ouvi no térreo.
O monstro fixou seus olhos vermelhos brilhantes em mim. Saliva pingava das suas estranhas cristas ósseas. Eu queria correr, mas não havia para onde ir. Eu ainda podia ouvir as outras criaturas – pelo menos duas delas – rosnando no corredor.
Thalia me ajudou a ficar de pé. Eu segurei sua mão e encarei o velho.
― Quem é você?  exigi. ― O que é essa coisa dentro da jaula?
O velho homem fez uma careta. Sua expressão era tão cheia de miséria que eu pensei que ele poderia chorar. Ele abriu sua boca, mas quando ele falou, as palavras não vieram dele. Como um horrível ventríloquo, o monstro falou por ele, na voz do velho:
― Eu sou Halcyon Green. Eu sinto muitíssimo, mas vocês é que estão na jaula. Foram atraídos até aqui para morrer.

***

Nós tínhamos deixado a lança de Thalia no térreo, então tínhamos apenas uma arma – meu taco de golfe. Eu o brandi para o velho, mas ele não fez nenhum movimento ameaçador. Ele parecia tão lamentável e deprimido que eu não tinha coragem de bater nele.
― É... é melhor você se explicar  eu gaguejei. ― Por que... como... o que...?
Como você pode notar, eu sou bom com palavras.
Atrás das barras, o monstro estalava sua mandíbula de placa óssea.
― Eu entendo sua confusão  ele disse na voz do velho.
Seu tom simpático não combinava com o brilho homicida em seus olhos.
― A criatura que vocês veem aqui é um leucrota. Ele tem o talento de imitar vozes humanas. Assim ele atrai sua presa.
Eu olhei de um lado para o outro para o homem e o monstro.
― Mas... a voz é sua? Quer dizer, o cara no terno de couro de cobra... eu estou ouvindo o que ele quer dizer?
― Correto.  O leucrota suspirou pesadamente. ― Eu sou, como você disse, o cara no terno de couro de cobra. Essa é a minha maldição. Meu nome é Halcyon Green, filho de Apolo.
Thalia tropeçou para trás.
― Você é um semideus? Mas você é tão...
― Velho?  o leucrota perguntou.
O homem, Halcyon Green, estudou suas mãos manchadas, como se não pudesse acreditar que eram dele.
― Sim, eu sou.
Eu entendi a surpresa de Thalia. Nós havíamos conhecido alguns outros semideuses em nossas viagens – alguns amigáveis, outros não tanto. Mas todos eles eram crianças como nós. Nossas vidas eram perigosas demais. Thalia e eu tínhamos concluído que era improvável algum semideus conseguir viver até a idade adulta. Halcyon Green já era um ancião, sessenta anos pelo menos.
― Há quanto tempo você está aqui?  perguntei.
Halcyon deu de ombros apaticamente. O monstro falou por ele:
― Eu perdi a conta. Décadas? Por meu pai ser o deus dos oráculos, eu nasci com a maldição de ver o futuro. Apolo me alertou para ficar quieto. Ele me disse que eu nunca deveria compartilhar o que eu via porque isso enfureceria os deuses. Mas há alguns anos... eu simplesmente tive que falar. Eu conheci uma garotinha que estava destinada a morrer em um acidente. Eu salvei sua vida contando a ela o seu futuro.
Eu tentei focar no velho homem, mas era difícil não olhar para a boca do monstro – aqueles lábios pretos, a mandíbula salivante de placa óssea.
― Eu não entendi...  eu me forcei a encontrar os olhos de Halcyon. ― Você fez algo bom. Por que isso enfureceu os deuses?
― Eles não gostam de mortais se intrometendo no destino  o leucrota respondeu. Meu pai me amaldiçoou. Ele me forçou a usar essas roupas, a pele de Píton, que uma vez guardou o Oráculo de Delfos, como um lembrete de que eu não era um oráculo. Ele me tirou a voz e me trancou nessa mansão, minha casa na infância. Então os deuses colocaram os leucrotae para me vigiar. Normalmente, os leucrotae apenas imitam a fala humana, mas esses estão ligados aos meus pensamentos. Eles falam por mim. Eles me mantém vivo como isca, para atrair outros semideuses. Que é a forma de Apolo para me lembrar, para sempre, que minha voz apenas leva os outros a destruição.
Um gosto de raiva acobreado encheu minha boca. Eu já sabia que os deuses poderiam ser cruéis. Meu pai aproveitador tinha me ignorado por catorze anos. Mas a maldição de Halcyon Green era simplesmente errada. Era perversa.
― Você deveria revidar  eu disse. ― Você não merece isso. Saia. Mate os monstros. Nós ajudaremos você.
― Ele está certo  Thalia concordou. ― Este é Luke, a propósito. Eu sou Thalia. Nós já lutamos contra muitos monstros. Deve haver algo que possamos fazer, Halcyon.
― Me chame de Hal  o leucrota disse. O velho homem sacudiu a cabeça desanimado.― Mas vocês não entendem. Vocês não são os primeiros a virem aqui. Tenho receio de que todos os semideuses pensam que há esperança quando chegam. Às vezes eu tento ajudar. Nunca funciona. As janelas são guardadas por cortinas mortíferas...
― Eu notei  Thalia murmurou.
― ...e a porta é fortemente encantada. Ela os deixa entrar, mas não sair.
― É o que veremos.
Eu me virei e pressionei minha mão na tranca. Me concentrei até que suor escorreu por meu pescoço, mas nada aconteceu. Meus poderes eram inúteis.
― Eu disse  o leucrota disse amargamente. ― Nenhum de nós pode sair. Lutar contra os monstros é inútil. Eles não podem ser feridos por nenhum metal conhecido pelo homem ou deus.
Para provar seu argumento, o velho homem colocou de lado a aba lateral de sua jaqueta de couro de cobra, revelando uma adaga em seu cinto. Ele desembainhou a lamina de bronze celestial de aparência malvada e se aproximou da cela do monstro.
leucrota rosnou para ele. Hal espetou sua faca entre as barras, direto na cabeça do monstro. Normalmente, bronze celestial desintegraria um monstro com um golpe. A lâmina simplesmente ricocheteou no focinho do leucrota, não deixando nenhuma marca. O leucrota bateu seus cascos nas barras, e Hal recuou.
― Viu só?  O monstro falou por Hal.
― Então você simplesmente desistiu?  Thalia exigiu. ― Você ajuda os monstros a nos atrair e espera que eles nos matem?
Hal embainhou sua adaga.
― Eu sinto muito, minha querida, mas tenho pouca escolha. Eu estou preso aqui, também. Se não cooperar, os monstros me deixam morrer de fome. Os monstros podiam tê-los matado no momento em que entraram na casa, mas eles me usam para atrair vocês para cima. Eles me permitem ter a companhia de vocês por um tempo. Isso alivia minha solidão. E depois... bem, os monstros gostam de comer ao por do sol. Hoje, será as 7:03. ― Ele gesticulou para o relógio digital em sua mesa, onde lia-se 10:34 AM.― Depois que vocês tiverem ido, E-eu subsisto com o que quer que vocês carreguem de comida.
Ele olhou faminto para minha mochila, e um calafrio desceu por minha espinha.
― Você é tão mal quanto os monstros ― falei.
O velho homem estremeceu. Não me importava muito que isso ferisse seus sentimentos. Na minha mochila eu tinha duas barras de chocolate, um sanduíche de presunto, um cantil de água e uma garrafa vazia de néctar. Eu não queria ser morto por isso.
― Você está certo de me odiar  o leucrota disse na voz de Hal ― mas eu não posso salvá-lo. Ao pôr-do-sol, essas barras irão subir. Os monstros irão levá-los para longe e matarão vocês. Não há escapatória.
Dentro do recinto dos monstros, um painel quadrado na parede estava aberto. Eu não tinha notado o painel quadrado antes, mas parecia dar para outro cômodo. Mais doisleucrotae espreitavam na jaula. Todos os três fixavam seus olhos vermelhos brilhantes em mim. Suas bocas de placa óssea estalando com antecipação.
Eu pensei em como os monstros conseguiam comer com bocas tão estranhas. Como se para responder minha questão, um leucrota pegou um velho pedaço de armadura com a boca. A armadura de Bronze Celestial parecia grossa o suficiente para parar um golpe de lança, mas o leucrota o prendeu com a força de um alicate e fez um buraco na forma de uma ferradura no metal com uma mordida.
― Como você vê  disse outro leucrota na voz de Hal ― os monstros são notavelmente fortes.
Minhas pernas pareciam espaguete molhado. Os dedos de Thalia cravaram no meu braço.
― Mande-os embora  ela pediu. ― Hal, você pode os fazer ir embora?
O velho homem franziu o cenho. O primeiro monstro disse:
― Se eu fizer isso, nós não poderemos conversar.
O segundo monstro disse na mesma voz:
― Além disso, qualquer estratégia de fuga que vocês possam pensar, alguém já tentou antes.
O terceiro monstro disse:
― Não há sentido algum em uma conversa privada.
Thalia andava, tão inquieta quanto os monstros.
― Eles sabem o que nós estamos falando? Quero dizer, eles apenas falam, ou eles entendem as palavras?
O primeiro leucrota deu um gemido agudo. Depois imitou a voz de Thalia:
― Eles entendem as palavras?
Meu estomago se agitou. O monstro tinha imitado Thalia perfeitamente. Se eu ouvisse essa voz na escuridão, pedindo socorro, eu correria em direção a ela.
O segundo monstro falou por Hal:
― As criaturas são inteligentes, da forma que os cachorros são inteligentes. Eles compreendem emoções e algumas frases simples. Eles podem atrair suas presas gritando coisas como “Socorro!” Mas eu não sei quanto da fala humana eles realmente entendem. Não importa. Vocês não podem enganá-los.
― Mande os embora  ordenei. ― Você tem um computador. Digite o que você quer dizer. Se vamos morrer ao pôr-do-sol, eu não quero essas coisas me encarando o dia todo.
Hal hesitou. Então ele se virou para os monstros e os olhou em silêncio. Depois de alguns momentos, os leucrotae rosnaram. Eles saíram da jaula e o painel de trás fechou atrás deles.
Hal olhou para mim. Ele estendeu suas mãos como se estivesse se desculpando, ou fazendo uma pergunta.
― Luke  Thalia disse ansiosa ― você tem um plano?
― Ainda não  eu admiti. ― Mas é melhor conseguir um até o pôr-do-sol.

***

Era uma sensação estranha esperar morrer. Normalmente, quando Thalia e eu lutávamos contra monstros, nós tínhamos dois segundos para bolar um plano. A ameaça era imediata. Nós sobrevivíamos ou morríamos instantaneamente. Agora tínhamos o dia todo presos em um cômodo com nada pra fazer, sabendo que ao pôr-do-sol aquelas barras da jaula iriam subir e nós seríamos pisoteados até a morte e dilacerados por monstros que não podiam ser mortos com nenhuma arma. Depois Halcyon Green comeria minhas barras de chocolate.
O suspense era quase pior que um ataque.
Parte de mim estava tentado a nocautear o velho com meu taco de golfe e alimentar suas cortinas com ele. Assim, pelo menos ele não poderia ajudar os monstros a atrair mais semideuses para a morte. Mas eu não tinha coragem de fazer isso. Hal era tão frágil e patético. Além disso, a maldição não era sua culpa. Ele esteve preso neste quarto por décadas, forçado a depender de monstros para sua voz e sua sobrevivência, forçado a assistir outros semideuses morrerem, tudo isso porque salvou a vida de uma garota. Que tipo de justiça era essa?
Eu continuava com raiva de Hal por ter-nos atraído até aqui, mas podia entender porque ele tinha perdido as esperanças depois de tantos anos. Se alguém merecia um taco de golfe contra a cabeça, era Apolo, e todos os outros pilantras deuses olimpianos, por esse assunto.
Fizemos um inventário do apartamento prisão de Hal. As estantes de livro estavam recheadas de tudo, de história antiga a romances de terror.
Sinta-se livre para ler qualquer coisa, Hal digitou no seu computador. Só não meu diário, por favor. É pessoal.
Ele colocou sua mão protetoramente em cima de um livro de couro surrado próximo a seu teclado.
― Sem problema  eu disse.
Eu duvidada que algum dos livros pudesse nos ajudar, e eu não podia imaginar que Hal tinha qualquer coisa interessante para escrever em seu diário, estando preso nesse quarto na maior parte de sua vida.
Ele nos mostrou o navegador de Internet do computador. Ótimo. Nós podíamos pedir pizza e assistir os monstros comerem o entregador. Não ajudava muito. Eu presumi que podíamos mandar um e-mail para alguém pedindo ajuda, exceto que não tínhamos ninguém para contatar, e eu nunca tinha usado um e-mail. Thalia e eu nem mesmo carregávamos telefones. Nós descobrimos da maneira mais difícil que, quando semideuses usam tecnologia, atraem monstros como sangue atrai tubarões.
Nós fomos até o banheiro. Era bastante limpo considerando quanto tempo Hal vivia ali. Ele tinha dois conjuntos sobressalentes de roupas de couro de cobra, aparentemente recém-lavados a mão, pendurados na barra acima da banheira. Sua caixa de remédios estava abastecida com suprimentos de limpeza – artigos de higiene pessoal, medicamentos, escovas de dente, material de primeiros socorros, ambrósia e néctar. Eu tentei não pensar sobre de onde tudo isso tinha vindo enquanto procurava, mas não via nada que podia derrotar os leucrotae.
Thalia bateu uma gaveta em frustração.
― Eu não entendo! Por que Amalteia me trouxe aqui? Será que os outros semideuses vieram até aqui por causa da cabra?
Hal franziu o cenho. Ele gesticulou para que nós o seguíssemos de volta até seu computador. Ele se debruçou sobre o teclado e digitou: Que cabra?
Eu não via motivo algum em manter o segredo. Eu contei a ele como seguimos a cabra brilhante de Zeus dispenser de Pepsi em Richmond, e como ela nos indicou esta casa.
Hal pareceu perplexo. Ele digitou: Eu já ouvi falar sobre Amalteia, mas não sei por que ela os traria aqui. Os outros semideuses eram atraídos até a mansão por causa do tesouro. Eu presumi que vocês também.
― Tesouro?  Thalia perguntou.
Hal se levantou e nos mostrou seu closet. Estava cheio de mais suprimentos coletados de semideuses desafortunados – casacos pequenos demais para Hal, algumas tochas de madeiras antiquadas, pedaços amassados de armadura e algumas espadas de Bronze Celestial que estavam tortas e quebradas. Um desperdício. Eu precisava de outra espada.
Hal rearranjou caixas de livros, sapatos, algumas barras de ouro e uma pequena cesta cheia de diamantes que ele não parecia ter interesse. Ele trouxe a tona um cofre de metal de sessenta centímetros quadrados e gesticulou para ele como: Ta-dã.
― Você pode abri-lo?  perguntei.
Hal sacudiu a cabeça
― Você sabe o que tem dentro?  Thalia perguntou.
Novamente, Hal sacudiu a cabeça.
― Está trancado  eu supus.
Hal assentiu enfaticamente, então traçou um dedo de um lado a outro do pescoço.
Eu ajoelhei perto do cofre. Eu não toquei, mas mantive as mãos perto da combinação do cadeado. Meus dedos formigavam com o calor como se a caixa fosse um forno quente. Eu me concentrei até que pudesse sentir os mecanismos de dentro. Não gostei do que achei.
― Esta coisa é um mau sinal  eu murmurei ― o que quer esteja dentro deve ser importante.
Thalia ajoelhou-se perto de mim.
― Luke, este é o porquê de estarmos aqui.  Sua voz estava cheia de animação. Zeus queria que eu achasse isso.
Eu olhei para ela ceticamente. Eu não sabia como ela conseguia ter tanta fé em seu pai. Zeus não a tratava muito melhor que Hermes me tratava. Além disso, muitos semideuses tinham sido guiados até aqui. Todos eles estavam mortos. Entretanto, ela fixou aqueles olhos azuis intensos em mim, e eu sabia que essa era outra vez que Thalia iria conseguir o que queria.
Eu suspirei.
― Você vai me pedir para abrir isso, não vai?
― Você consegue?
Eu mordisquei meu lábio. Talvez na próxima vez eu me juntasse a outra pessoa, devesse escolher alguém que eu não gostasse tanto. Eu simplesmente não conseguia dizer não para Thalia.
― Outras pessoas devem ter tentando abrir isso antes  eu alertei ― há uma maldição no trinco. Eu suponho que quem quer que toque nisso é queimado e reduzido a uma pilha de cinzas.
Eu olhei para cima, para Hal. Seu rosto se tornou cinza como seu cabelo. Encarei isso como uma confirmação.
― Você consegue contornar a maldição?  Thalia perguntou a mim.
― Eu acho que sim  eu disse. ― Mas é a segunda armadilha que me preocupa.
― A segunda armadilha?
― Ninguém conseguiu adivinhar a combinação  eu disse. ― Eu sei disso porque há um frasco de veneno pronto para se quebrar no momento em que você acerta o terceiro número. Nunca foi ativado.
Julgando pelos olhos arregalados de Hal, isso era novidade para ele.
― Eu posso tentar desativar ― falei ― mas se eu errar, todo o apartamento vai se encher de gás. Nós morreremos.
Thalia engoliu.
― Eu confio em você. Apenas... não erre.
Eu me virei para o velho homem.
― Você poderia talvez se esconder na banheira. Coloque algumas toalhas molhadas sobre o rosto. Isso poderá te proteger.
Hal se deslocou inquieto. O tecido de couro de cobra de seu terno ondulou como se ainda estivesse vivo, tentando engolir algo desagradável. Emoções passavam por seu rosto – medo, dúvida, mas principalmente vergonha. Acho que ele não podia suportar a ideia de se esconder numa banheira enquanto duas crianças arriscavam suas vidas. Ou talvez houvesse um pouco de espírito semideus nele depois de tudo. Ele gesticulou para o cofre como: Vá em frente.
Eu toquei a combinação do cadeado. Me concentrei tanto que senti como se estivesse fazendo levantamento de peso com um haltere de mais de duzentos e vinte e sete quilos. Meu pulso acelerou. Uma linha de suor escorreu por meu nariz. Finalmente, senti as engrenagens girando. Metal gemeu, linguetas clicaram e os ferrolhos estalaram. Cuidadosamente recuando o trinco, eu abri a tampa com a ponta dos meus dedos e extraí um pequeno frasco intacto de liquido verde.
Hal expirou.
Thalia me deu um beijo na bochecha, o que ela provavelmente não deveria ter feito enquanto eu estava segurando um tubo de veneno letal.
― Você é tão admirável  ela disse.
Isso fez o risco valer a pena? Sim, bastante.
Eu olhei dentro do cofre, e um pouco do entusiasmo se foi.
― É isso?
Thalia colocou a mão dentro e tirou de lá uma pulseira. Não parecia ser grande coisa, apenas uma fileira de argolas de prata.
Thalia o fechou em volta de seu pulso. Nada aconteceu.
Ela fez uma careta.
― Isso deveria fazer alguma coisa. Se Zeus me enviou para cá...
Hal bateu palmas para chamar nossa atenção. De repente, seus olhos pareciam quase tão loucos quanto seus cabelos. Ele gesticulou descontroladamente, mas eu não tinha nenhuma ideia do que ele estava tentando dizer. Finalmente ele bateu suas botas de couro de cobra em frustração e nos levou de volta a divisão principal.
Ele sentou diante de seu computador e começou a digitar. Eu olhei para o relógio em sua mesa. Talvez o tempo passasse mais rápido dentro da casa, ou talvez o tempo simplesmente voe quando você está esperando morrer, mas já era quase meio dia. Nosso dia já tinha ido pela metade.
Hal nos mostrou o pequeno romance que ele tinha escrito: Vocês são os melhores!! Vocês agora tem o tesouro!! Não consigo acreditar!! O cofre estava fechado desde antes de eu nascer!! Apolo me disse que minha maldição acabaria quando o dono do tesouro o reivindicasse!! Se você é a dona...
Havia mais, com muito mais pontos de exclamação, mas antes que eu pudesse terminar de ler, Thalia disse:
― Espere aí. Eu nunca vi essa pulseira. Como eu posso ser a dona? E se a sua maldição supostamente acaba agora, isso significa que os monstros se foram?
Um clack, clack, clack do corredor respondeu a questão.
Eu olhei para Hal.
― Você tem sua voz de volta?
Ele abriu sua boca, mas nenhum som saiu. Seus ombros caíram.
― Talvez Apolo quisesse dizer que nós viríamos resgatar você  Thalia sugeriu.
Hal digitou uma nova sentença: Ou talvez eu morra hoje.
― Obrigado, Sr. Animado  eu disse. ― Pensei que você podia nos contar o futuro. Você não sabe o que vai acontecer?
Hal digitou: Eu não posso ver. É perigoso demais. Você sabe o que aconteceu comigo na última vez que tentei usar meus poderes.
― Claro  resmunguei. ― Não corra o risco. Você pode estragar essa ótima vida que você tem aqui.
Eu sabia que isso era cruel. Mas a covardia do velho me irritava. Ele tinha deixado que os deuses o usassem como saco de pancadas por muito tempo. Era hora de revidar, preferivelmente antes de Thalia e eu nos tornarmos a próxima refeição dos leucrotae.
Hal abaixou sua cabeça. Seu peito estava tremendo, e eu percebi que ele estava chorando silenciosamente.
Thalia me deu um olhar irritado.
― Tudo bem, Hal. Nós não estamos desistindo. Esse bracelete deve ser a resposta. Deve ter algum poder especial.
Hal deu um suspiro. Ele retornou ao seu teclado e digitou: É de prata. Mesmo que se transforme em uma arma, os monstros não podem ser feridos por nenhum metal.
Thalia se virou pra mim com um silencioso apelo em seus olhos, como: Sua vez de ter uma ideia útil.
Eu estudei o recinto vazio, o painel de metal através do qual os monstros tinham saído. Se a porta do apartamento não abriria novamente, e a janela estava coberta por cortinas ácidas comedoras de gente, então aquele painel era nossa única saída. Nós não podíamos usar armas de metal. Eu tinha um frasco de veneno, mas se estivesse certo sobre aquilo, ele iria matar todos no momento em que se dispersasse. Percorri outra dúzia de ideias em minha cabeça, rapidamente rejeitando todas elas.
― Nós precisamos achar um tipo diferente de arma  decidi. ― Hal, me empreste seu computador.
Hal pareceu indeciso, mas me deu sua cadeira.
Eu encarei a tela. Honestamente, eu nunca tinha usado muito computadores. como eu disse, tecnologia atrai monstros. Mas Hermes era o deus da comunicação, das estradas e do comércio. Talvez isso significasse que ele tinha algum poder sob a Internet. Seria muito bom um Google divino nesse momento.
― Pelo menos uma vez  eu murmurei para a tela ― me dê alguma folga. Me mostre que há um lado positivo em ser seu filho.
― O que, Luke?  Thalia perguntou.
― Nada.
Eu abri o navegador de Internet e comecei a digitar. Eu procurei por leucrotae, esperando achar suas fraquezas. A Internet não tinha quase nada sobre eles, exceto que eram animais lendários que atraiam suas presas imitando vozes humanas.
Eu procurei por "armas gregas." Achei algumas ótimas imagens de espadas, lanças e catapultas, mas duvidava que pudéssemos matar monstros com JPEGs de baixa resolução. Eu digitei uma lista de coisas que tínhamos no quarto – tochas, bronze celestial, veneno, barras de chocolate, taco de golfe – esperando que algum tipo de fórmula mágica aparecesse para a morte de um leucrota. Sem sorte. Eu digitei "Me ajude a matar leucrotae." O resultado mais perto que eu tive foi Me ajude a curar leucemia.
Minha cabeça estava latejando. Eu não tinha a menor ideia de quanto tempo eu tinha ficado pesquisando até que eu olhei para o relógio: quatro da tarde. Como isso erapossível?
Nesse tempo, Thalia tinha estado tentando ativar sua nova pulseira, sem sorte. Ela tinha girado, batido, sacudido, usado a pulseira em seu tornozelo, a jogado contra a parede e a balançado sobre a cabeça gritando "Zeus!". Nada aconteceu.
Nós olhamos um para o outro, e eu sabia que estávamos ambos sem ideias. Eu pensei sobre o que Hal Green tinha nos dito. Todos os semideuses começavam esperançosos. Todos eles tinham ideias de como poderiam escapar. Todos eles fracassaram.
Eu não podia deixar isso acontecer. Thalia e eu tínhamos sobrevivido a coisas demais para desistir agora. Mas por minha vida (e eu digo isso literalmente) eu não conseguia pensar em mais nada que pudéssemos tentar.
Hal se aproximou e apontou para o teclado.
― Vá em frente  eu disse desanimado.
Nós trocamos de lugar.
O tempo está se esgotando, ele digitou. Eu vou tentar ler o futuro.
Thalia franziu o cenho.
― Eu pensei que tivesse dito que isso era perigoso demais.
Não importa, Hal digitou. Luke está certo. Eu sou um velho covarde, mas Apolo não pode me punir de forma pior que ele já puniu. Talvez eu veja algo que possa ajudá-los. Thalia, me dê suas mãos.
Ele se virou para ela.
Thalia hesitou.
Do lado de fora do cômodo, os leucrotae rosnaram e se esfregaram contra o corredor. Eles pareciam famintos.
Thalia colocou suas mãos sobre as de Halcyon Green. O velho homem fechou seus olhos e se concentrou da mesma forma que eu fiz quando estava conferindo a tranca complicada do cofre.
Ele estremeceu, depois deu um suspiro. Ele olhou para Thalia com uma expressão de simpatia. Ele se virou para o teclado e hesitou por um longo tempo antes que começasse a digitar.
Você está destinada a sobreviver hoje. Hal digitou.
― Isso é... isso é bom, certo?  ela perguntou. ― Por que você parece tão triste?
Hal encarava o cursor piscando. Ele digitou:
Um dia em breve, você irá se sacrificar para salvar seus amigos. Eu vejo coisas que são... difíceis de descrever. Anos de solidão. Você permanecerá elevada e contínua, viva, porém dormindo. Você irá se transformar uma vez, e depois se transformará de novo. Seu caminho será triste e solitário. Mas um dia você achará sua família novamente.
Thalia cerrou os pulsos. Ela começou a falar, então caminhou pelo quarto. Por fim ela bateu a mão contra a estante de livros.
― Isso não faz o menor sentido. Eu irei me sacrificar, mas vou viver. Me transformar, dormir? Você chama isso de futuro? E... Eu nem mesmo tenho uma família. Apenas minha mãe, e de forma alguma eu vou voltar para ela.
Hal mordiscou o lábio. Ele digitou, Sinto muito. Eu não controlo o que vejo. Mas eu não quis dizer sua mãe.
Thalia quase se segurou nas cortinas. Ela se deteve a tempo, mas parecia tonta, como se tivesse acabado de sair de uma montanha russa.
― Thalia?  perguntei, o mais gentil que pude. ― Você sabe sobre o que ele está falando?
Ela me olhou de forma severa. Eu não entendia por que ela parecia tão agitada. Eu sabia que ela não gostava de conversar sobre sua antiga vida em Los Angeles, mas ela me disse que era filha única, e nunca mencionou nenhum outro parente além da mãe.
― Não é nada  ela disse por fim. ― Esqueça. As habilidades de adivinhação do Hal estão enferrujadas.
Eu estava certo de que nem mesmo Thalia acreditava nisso.
― Hal ― chamei ― deve haver mais coisa. Você nos disse que Thalia irá sobreviver.Como? Você vê algo relacionada a pulseira? Ou a cabra? Nós precisamos de alguma coisa que ajude.
Ele sacudiu a cabeça tristemente. Ele digitou:
Eu não vi nada relacionado a pulseira. Sinto muito. Eu sei um pouco sobre a cabra Amalteia, mas duvido que isso ajude. A cabra amamentou Zeus quando ele era bebê. Mais tarde, Zeus a matou e usou sua pele para fazer seu escudo, o Aegis.
Eu cocei minha bochecha. Eu tinha certeza que essa era a história que eu estava tentando lembrar mais cedo sobre o couro da cabra. Parecia importante, embora eu não conseguisse entender o porquê.
― Então Zeus matou sua própria mamãe cabra. Típico dos deuses. Thalia, você sabe alguma coisa sobre o escudo?
Ela assentiu, claramente aliviada pela mudança de assunto.
― Atena colocou a cabeça de Medusa na parte da frente e cobriu todo o escudo com bronze celestial. Ela e Zeus o revezavam em batalha. O escudo deveria afugentar os inimigos.
Eu não conseguia compreender como a informação poderia ajudar. Obviamente, a cabra Amalteia tinha voltado à vida. Isso acontecia bastante com monstros mitológicos, eles eventualmente se reformavam vindos do abismo do Tártaro. Mas por que Amalteia tinha nos guiado até aqui?
Um pensamento ruim me ocorreu. E se eu tivesse sido enganado por Zeus, eu definitivamente não estaria mais interessando em ajudá-lo. De fato, eu poderia ter uma vingança contra os filhos de Zeus. Talvez esse seja o motivo pelo qual Amalteia nos trouxe a mansão.
Hal Green estendeu suas mãos para mim. Sua expressão sombria me disse que era a minha vez para a adivinhação.
Uma onda de pavor tomou conta de mim. Depois de ouvir o futuro de Thalia, eu não queria saber o meu. E se ela sobrevivesse, e eu não? E se nós dois sobrevivêssemos, mas Thalia se sacrificasse para me salvar em algum lugar lá fora, como Hal havia mencionado? Eu não poderia suportar isso.
― Não, Luke  Thalia disse amargamente. ― Os deuses estão certos. As profecias de Hal não ajudam ninguém.
O velho piscou seus olhos lacrimejantes. Suas mãos eram tão frágeis, era difícil acreditar que ele carregava sangue de um deus imortal. Ele nos disse que a maldição acabaria hoje, de um jeito ou de outro. Ele previu que Thalia sobreviveria. Se ele visse qualquer coisa em meu futuro que ajudasse, eu tinha que tentar.
Eu dei a ele minhas mãos.
Hal respirou fundo e fechou os olhos. Seu casaco de couro de cobra brilhava como se tivesse tentando se verter. Eu me forcei a ficar calmo.
Eu podia sentir o pulso de Hal nos meus dedos – um, dois, três.
Seus olhos se abriram. Ele puxou suas mãos para longe e me olhou com terror.
― Okay  eu disse. Minha língua parecia uma lixa. ― Eu acho que você não viu nada de bom.
Hal se virou para o seu computador. Ele encarou a tela por tanto tempo que pensei que ele tivesse entrado em transe.
Por fim digitou: Fogo. Eu vi fogo.
Thalia franziu a testa.
― Fogo? Você quer dizer hoje? Isso irá nos ajudar?
Hal ergueu os olhos miseravelmente. Ele assentiu.
― Tem mais coisa  eu pressionei. ― O que te assustou tanto?
Ele evitou meus olhos. Relutantemente ele digitou.
Difícil ter certeza. Luke, eu também vi um sacrifício em seu futuro. Uma escolha. Mas também uma traição.
Eu esperei. Hal não entrou em detalhes.
― Uma traição  Thalia disse. Seu tom de voz era perigoso. ― Você quer dizer que alguém irá trair Luke? Porque Luke nunca trairia alguém.
Hal digitou mais um pouco:
É difícil ver seu caminho. Mas se ele sobreviver hoje, ele irá trair...
Thalia agarrou o teclado.
― Basta! Você atrai semideuses até aqui, depois leva embora suas esperanças com suas previsões horríveis? Não me surpreende que tenham desistido, como você desistiu. Você é patético!
Raiva se acendeu nos olhos de Hal. Eu não achava que o velho tinha isso dentro dele, mas ele ficou de pé. Por um momento, pensei que ele poderia atacar Thalia.
― Vá em frente  Thalia rosnou. ― Tente me bater, velho. Você tem fogo aí?
― Parem com isso!  Eu ordenei.
Hal Green recuou imediatamente. Eu podia jurar que o velho estava com medo de mim agora, mas eu não queria saber o que ele tinha visto em suas visões. Seja lá qual forem os pesadelos que estavam no meu futuro, eu tinha que sobreviver a hoje primeiro.
― Fogo  eu disse. ― Você mencionou fogo.
Ele assentiu, depois espalmou as mãos indicando que tinha mais detalhes.
Uma ideia zumbiu na parte de trás da minha cabeça. Fogo. Armas gregas. Alguns dos suprimentos que tínhamos neste apartamento... a lista que eu coloquei no mecanismo de busca, esperando por uma formula mágica.
― O que é?  Thalia perguntou. ― Eu conheço esse olhar. Você está pensando em alguma coisa.
― Deixe-me usar o teclado.
Eu me sentei ao computador e fiz uma nova busca na internet.
Um artigo apareceu imediatamente.
Thalia espiou por cima dos meus ombros.
― Luke, isso seria perfeito! Mas acho que essa coisa é apenas uma lenda.
― Eu não sei  admiti. ― Se for real, como faríamos? Não há nenhuma instrução aqui.
Hal bateu os nós dos dedos na mesa para chamar nossa atenção. Seu semblante mostrava animação. Ele apontou para a estante de livros.
― Livros de história antiga  Thalia disse. ― Hal está certo. Um monte desses são bem velhos. Eles provavelmente contém informações que não devem ter na Internet.
Nós três corremos para as prateleiras. Começamos tirando livros. Logo a biblioteca de Hal parecia ter sido atingida por um furacão, mas o velho não pareceu se importar. Ele atirou alguns livros e folheou paginas tão rápido quanto nós. De fato, sem ele, nós nunca teríamos achado a resposta. Depois de muitas buscas sem resultados, ele veio correndo, batendo numa página de um livro com capa de couro.
Eu analisei a lista de ingredientes, e meu excitamento aumentou.
― É isso. A receita de fogo grego.
Como eu sabia que devia procurá-lo? Talvez meu pai, Hermes, deus pau-pra-toda-obra, estivesse me guiando, já que ele tem um jeitinho com poções e alquimia. Talvez eu já tivesse visto a receita em algum lugar, e procurar pelo apartamento tinha acionado minha memória.
Tudo que precisávamos estava no quarto. Eu tinha visto todos os ingredientes quando tínhamos passado pelos suprimentos de semideuses derrotados: madeira de tochas velhas, uma garrafa de néctar, álcool do kit de primeiros socorros de Hal...
Na verdade, não acho que devo escrever a receita inteira, mesmo neste diário. Se alguém encontrá-lo e aprender a fórmula secreta do fogo grego... bem, eu não quero ser o responsável por incendiar o mundo mortal.
Eu li a lista até o fim. Só faltava uma coisa.
― Um catalisador ― eu olhei para Thalia. ― Precisamos de um raio.
Seus olhos se arregalaram.
― Luke, eu não posso. Da última vez...
Hal nos arrastou até o computador e digitou:
Você consegue invocar um raio????
― Às vezes  Thalia admitiu. ― É uma coisa de Zeus. Mas não posso invocar dentro de casa. E mesmo se estivéssemos do lado de fora, eu tenho problemas em controlar o relâmpago. Da última vez, eu quase matei Luke.
Os pelos da minha nuca se eriçaram ao lembrar o acidente.
― Vai dar certo ― tentei parecer confiante. ― Eu vou preparar a mistura. Quando estiver pronta, há uma tomada debaixo do computador. Você pode invocar um relâmpago daqui de dentro e explodi-lo através da fiação elétrica.
― E colocar fogo na casa  Thalia adicionou.
Hal digitou, Vocês irão fazer isso de qualquer forma se tiverem sucesso. Compreendem quão perigoso é o fogo grego?
Engoli em seco.
― Sim. É fogo mágico. O que quer que toque, queima. Você não pode apagá-lo com água, extintor de incêndio, ou qualquer outra coisa. Mas se conseguirmos fazer o suficiente para algum tipo de bomba e a jogarmos nos leucrotae...
― Eles irão queimar  Thalia encarou o velho. ― Por favor, me diga que os monstros não são imunes ao fogo.
Hal franziu as sobrancelhas.
Eu acho que não, ele digitou. Mas fogo grego irá transformar esse quarto em um inferno. O fogo irá se espalhar por toda a casa em uma questão de segundos.
Eu olhei para a jaula vazia. De acordo com o relógio de Hal, nós tínhamos aproximadamente uma hora antes do pôr-do-sol. Quando as barras subiriam e osleucrotae atacariam, nós teríamos uma chance – se conseguíssemos surpreender os monstros com uma explosão, e se nós conseguíssemos contorná-los e chegar ao painel de fuga na parte de trás da jaula sem sermos comidos ou queimados vivos. Tantos e se.
Minha mente percorreu uma dúzia de estratégias diferentes, mas eu sempre terminava com o que Hal tinha dito sobre sacrifício. Eu não conseguia me livrar da sensação de que não havia jeito de nós três conseguirmos sair dali vivos.
― Vamos fazer fogo grego  eu disse. ― Depois resolvemos o resto.
Thalia e Hal me ajudaram a reunir as coisas das quais precisávamos. Então começamos pelo fogão de Hal e fizemos alguns pratos extremamente perigosos. O tempo passava rapidamente. Do lado de fora no corredor, os leucrotae rosnavam e estalavam as mandíbulas.
As cortinas nas janelas bloqueavam toda a luz do sol, mas o relógio nos disse que estávamos quase sem tempo.
Meu rosto brilhava com o suor enquanto eu misturava os ingredientes. Toda vez que eu piscava os olhos, me lembrava das palavras de Hal na tela do computador, como se elas tivessem sido queimadas na parte de trás dos meus olhos: Um sacrifício no seu futuro. Uma escolha. Mas também uma traição.
O que ele quis dizer? Eu tinha certeza de que ele não tinha me contado tudo. Mas uma coisa estava clara: Meu futuro o aterrorizou.
Eu tentei me focar na minha tarefa. Eu não sabia realmente o que estava fazendo, mas não tinha escolha. Talvez Hermes estivesse olhando por mim, me emprestando um pouco da sua habilidade em alquimia. Ou talvez eu simplesmente tivesse sorte. Por fim, eu tinha um pote cheio de uma gosma preta grudenta, que coloquei num frasco de vidro velho de geleia. Fechei a tampa.
― Aí  entreguei o vidro para Thalia. ― Você consegue acertá-lo com um raio? O vidro deve evitar que ele exploda até que quebremos o frasco.
Thalia não pareceu assustada.
― Eu vou tentar. Vou ter que expor um pouco da fiação da parede. E invocar o raio requer alguns minutos de concentração. Vocês deveriam dar um passo para trás, no caso de... vocês sabem, eu explodir ou algo do tipo.
Ela pegou uma chave de fenda na gaveta da cozinha de Hal, rastejou por baixo da mesa do computador e começou a mexer na tomada.
Hal apanhou seu diário verde de couro. Ele gesticulou para que eu o seguisse. Nós fomos até a porta do closet, onde Hal pegou uma caneta do seu casaco e folheou o livro. Eu vi páginas e mais páginas com uma caligrafia apertada e bem arrumada. Finalmente Hal achou uma página em branco e rabiscou algo.
Ele passou o diário para mim.
A nota dizia:
Luke, eu quero que você fique com esse diário. Tem minhas previsões, minhas anotações sobre o futuro e meus pensamentos sobre onde errei. Eu acho que isso pode ajudá-lo.
Eu sacudi a cabeça.
― Hal, isso é seu. Fique com ele.
Ele pegou o diário de volta e escreveu.
Você tem um futuro importante. Suas escolhas irão mudar o mundo. Você pode aprender com meus erros, dar continuação ao diário. Isso deve ajudá-lo com suas decisões.
― Que decisões?  perguntei. ― O que você viu que te assustou tanto?
Sua caneta pairou sobre o papel por um longo tempo.
Acho que eu finalmente entendi porque eu fui amaldiçoado. Apolo estava certo. Às vezes é melhor que o futuro seja um mistério.
― Hal, seu pai é um imbecil. Você não merece...
Hal bateu na página insistentemente. Ele rabiscou:
Apenas me prometa que você vai manter esse diário. Se eu tivesse começado a anotar meus pensamentos mais cedo, eu poderia ter evitado alguns erros estúpidos. E mais uma coisa...
Ele colocou a caneta em seu diário e soltou a adaga de bronze celestial do seu cinto. Ele a ofereceu a mim.
― Eu não posso ― falei a ele. ― Quero dizer, eu agradeço, mas eu sou mais um cara de espada. E, além disso, você vem com a gente. Você irá precisar dessa arma.
Ele balançou a cabeça e colocou a adaga em minhas mãos. E retornou a escrever:
Essa adaga foi um presente da garota que eu salvei. Ela me garantiu que a faca sempre protegeria seu dono.
Hal suspirou. Ele deveria saber o quão maldosamente irônica aquela promessa soava, dada a sua maldição. Ele escreveu mais.
Uma adaga não tem o alcance ou o poder de uma espada, mas pode ser uma excelente arma nas mãos certas. Eu vou me sentir melhor sabendo que você a tem.
Ele encontrou meus olhos, e eu finalmente entendi o que ele estava planejando.
― Não  eu disse. ― Nós todos conseguiremos sair.
Hal mordeu o lábio. Ele escreveu:
Nós dois sabemos que isso é impossível. Eu posso me comunicar com os leucrotae. Eu sou a escolha mais lógica para isca. Você e Thalia esperam no closet. Eu vou atrair os monstros para dentro do banheiro. Eu lhes darei alguns segundos para conseguir chegar até o painel de saída antes que eu cause a explosão. É a única forma de vocês terem tempo.
― Não  repeti.
Mas sua expressão era severa e determinada. Ele não parecia mais um velho covarde. Ele parecia um semideus, pronto para partir lutando.
Eu não podia acreditar que ele estava se oferecendo para se sacrificar por duas crianças que ele tinha acabado de conhecer, especialmente depois de ter sofrido por tantos anos. E, no entanto, eu não precisava de caneta e papel para saber o que ele estava pensando. Esta era a sua chance de redenção. Um último ato heroico, e sua maldição iria acabar hoje, exatamente como Apolo tinha previsto.
Ele rabiscou alguma coisa e me entregou o diário. A última palavra era:
Prometa.
Eu respirei fundo, e fechei o diário.
― Sim. Eu prometo.
Um trovão sacudiu a casa. Todos nós pulamos. Sobre a mesa do computador, algo fezZZZAP-POP! Fumaça branca subia do computador, e um cheiro de pneu queimado empesteou o quarto.
Thalia se levantou sorrindo. A parede atrás dela estava enegrecida e cheia de marcas. A tomada estava completamente derretida, mas em suas mãos, o frasco de geleia de fogo grego exibia agora um verde brilhante.
― Alguém pediu uma bomba mágica?  Ela perguntou.
Logo depois, o relógio registrou 7:03. As barras do recinto começaram a subir, e o painel da parte de trás começou a abrir.
Nós estávamos correndo contra o tempo.

***

O velho estendeu a mão.
― Thalia  eu disse. ― Dê a Hal o fogo grego.
Ela olhou de um para outro.
― Mas...
― Ele precisa do frasco.  Minha voz soou mais grave que o normal. ― Ele irá nos ajudar a escapar.
Quando o significado das minhas palavras lhe ocorreram, seu rosto empalideceu.
― Luke, não.
As barras já tinham subido a metade. O alçapão abria lentamente. Um impulso vermelho abria caminho pela fenda. No interior da jaula, os leucrotae rosnavam e estalavam suas mandíbulas.
― Não temos tempo  alertei. ― Vamos!
Hal tomou o frasco de fogo de Thalia. Ele deu a ela um sorriso corajoso, depois assentiu para mim. Eu me lembrava da última palavra que ele escrevera: Prometa.
Eu guardei seu diário e a adaga em minha mochila. Depois arrastei Thalia para dentro do closet comigo.
Uma fração de segundo depois, ouvimos os leucrotae invadindo o quarto. Todos os três monstros sibilavam, rosnavam e pisoteavam a mobília, ansiosos para comer.
― Aqui!
A voz de Hal chamou. Devia ser um dos monstros falando por ele, mas suas palavras soavam corajosas e confiantes.
― Eu os tenho presos no banheiro! Vamos logo, seus vira latas feios!
Eu agarrei a mão de Thalia.
― Agora.
Nós fomos com tudo para fora do closet e corremos para a jaula. Dentro, o painel estava quase fechando. Um dos leucrotae rosnou com surpresa e começou a nos seguir, mas eu não me importei em olhar para trás. Nós lutamos dentro da jaula. Eu avancei em direção ao painel de saída, o forçando a ficar aberto com meu taco de golfe.
― Vá, vá, vá!  gritei.
Thalia se contorceu para sair enquanto a placa de metal começava a dobrar o taco de golfe.
Do banheiro, a voz de Hal gritava:
― Vocês sabem o que é isso, seus cães escória do Tártaro? Esta é a última refeição de vocês!
leucrota aterrissou em cima de mim. Eu girei, gritando, enquanto sua boca óssea abocanhava o ar onde meu rosto estava.
Eu consegui dar um soco no seu focinho, mas foi como bater num saco de cimento molhado.
Então alguma coisa agarrou meu braço. Thalia me arrastou pra dentro da calha. O painel se fechou, quebrando meu taco de golfe.
Nós nos arrastamos através do duto de metal até outro quarto e cambaleamos até a porta.
Eu ouvi Halcyon Green, bradando um grito de guerra:
― Por Apolo!
E a mansão balançou com uma enorme explosão.
Nós corremos para o corredor, que já estava pegando fogo. Chamas lambiam o papel de parede e o cozinhavam o carpete. A porta do quarto de Hal tinha sido arrancada de suas dobradiças, e fogo era despejado para fora como uma avalanche, vaporizando tudo em seu caminho.
Nós alcançamos as escadas. A fumaça era tão espessa que não conseguíamos enxergar o chão. Nós tropeçávamos e tossíamos, o calor queimava meus olhos e meus pulmões. Nós chegamos à base das escadas, e eu estava começando a pensar que tínhamos chegado até a porta, quando um leucrota nos atacou, me derrubando de costas.
Devia ser o que nos seguiu no quarto. Eu presumi que ele deveria estar bem longe da explosão para sobreviver ao estouro inicial e ter de algum jeito escapado do quarto, apesar de parecer não ter gostado da experiência. Seu pelo vermelho estava chamuscado. Suas orelhas pontudas estavam em chamas, e um de seus olhos vermelhos brilhantes estavam fechados de inchaço.
― Luke!  Thalia gritou.
Ela agarrou sua lança, que esteve estendida no chão do salão o dia inteiro, e acertou a ponta contra as costelas do monstro, mas isso apenas serviu para irritar o leucrota.
Ele estalou sua boca de placa óssea em sua direção, mantendo uma pata plantada em meu peito. Eu não conseguia me mover, e sabia que a besta podia esmagar meu peito mesmo aplicando a menor das pressões.
Meus olhos ardiam com a fumaça. Eu mal conseguia respirar. Vi Thalia tentando espetar o monstro com a lança de novo, e um brilho de metal chamou a atenção dos meus olhos – a pulseira de prata.
Alguma coisa finalmente estalou na minha mente: a história da cabra Amalteia, que nos atraiu até aqui. Thalia estava destinada a achar aquele tesouro. Aquilo pertencia a um filho de Zeus.
― Thalia!  eu arfei. ― O escudo! Como se chama?
― Que escudo?  ela gritou.
― O escudo de Zeus!  eu de repente me lembrei. ― Aegis. Thalia, a pulseira... tem uma palavra código!
Era uma suposição desesperada. Graças aos deuses – ou graças a pura sorte – Thalia entendeu. Ela bateu na pulseira, mas dessa vez ela gritou:
― Aegis!
No mesmo instante a pulseira se expandiu, achatando-se em um largo disco de bronze – um escudo intrincado de desenhos martelados ao redor da borda. No centro, pressionado no metal com uma máscara da morte, estava um rosto tão medonho que me fez correr para o mais longe que pude. Eu desviei o olhar, mas a imagem queimava em minha mente – cabelos de serpentes, olhos brilhantes e uma boca com dentes arreganhados.
Thalia impulsionou o escudo em direção ao leucrota. O monstro ganiu como um cachorrinho e recuou, me livrando do peso de suas patas. Através da fumaça, eu assisti o leucrota aterrorizado correndo em direção à cortina mais próxima, que se transformou em línguas negras brilhantes e engolfou o monstro. O monstro fumegou. Ele começou a gritar, "Socorro!" em uma dúzia de vozes, provavelmente as vozes das suas antigas vitimas, até que finalmente se desintegrou em ondas de óleo.
Eu teria ficado deitado lá aturdido e horrorizado até que o teto pegando fogo caísse sobre mim, mas Thalia agarrou meu braço e gritou:
― Depressa!
Nós fugimos pela porta da frente. Eu estava pensando como poderíamos abri-la, quando uma avalanche de fogo desceu pelas escadas e nos pegou. A construção explodiu.

***

Eu não consigo me lembrar de como conseguimos sair. Posso apenas supor que a explosão acertou a porta da frente e nos jogou para fora.
A próxima coisa que eu sabia é que eu estava esparramado na rotatória, tossindo e arfando como uma torre de fogo bramindo para o céu noturno. Minha garganta queimava. Parecia que meus olhos tinham sido acertados com ácido. Procurei por Thalia e ao invés disso me deparei encarando o rosto de bronze de Medusa. Eu gritei, de alguma forma achei energia para me levantar, e corri. Eu não parei até estar encolhido atrás da estátua de Robert E. Lee.
É eu sei. Isso pareceu cômico. Mas foi um milagre eu não ter tido um ataque do coração ou ter sido atropelado por um carro. Finalmente Thalia me alcançou, sua lança de volta a forma de lata de spray, seu escudo reduzido a uma pulseira de prata.
Juntos, nós ficamos assistindo a mansão queimar. Tijolos desmoronaram. Cortinas pretas irrompiam em lençóis de fogo vermelho. O telhado desabou e fumaça subia em direção ao céu.
Thalia soltou um soluço. Uma lágrima marcou caminho através da fuligem de seu rosto.
― Ele se sacrificou  ela disse. ― Por que ele nos salvou?
Abracei minha mochila. Senti o diário e a adaga de bronze lá dentro – os únicos vestígios da vida de Halcyon Green.
Meu peito estava apertado, como se o leucrota ainda estivesse em cima de mim. Eu critiquei Hal por ser um covarde, mas no fim, ele tinha sido tão corajoso quando eu. Os deuses o haviam amaldiçoado. Ele passou a maior parte da sua vida aprisionado com monstros. Teria sido mais fácil para ele nos deixar morrer como todos os outros semideuses antes de nós. No entanto, ele tinha escolhido partir como um herói.
Eu me senti culpado por não ter conseguido salvar o velho. Queria ter podido conversar mais com ele. O que ele tinha visto em meu futuro que o assustou tanto?
Suas escolhas irão mudar o mundo, ele alertou.
Eu não gostava de como isso soava.
O som das sirenes me fez recobrar os sentidos.
Sendo fugitivos menores de idade, Thalia e eu tínhamos aprendido a ter receio da polícia e de qualquer outra autoridade. Os mortais iriam querer nos interrogar, talvez nos colocar em um reformatório ou orfanato. Não podíamos deixar isso acontecer.
― Vamos  eu disse a Thalia.
Nós corremos pelas ruas de Richmond até acharmos um pequeno parque. Nos limpamos nos banheiros públicos o melhor que conseguimos. Depois ficamos deitados até que a noite tivesse se estabelecido completamente.
Nós não conversamos sobre o que tinha acontecido. Vagamos em transe por bairros e áreas industriais. Nós não tínhamos um plano, e mais nenhuma cabra brilhante para seguirmos. Estávamos muito cansados, mas nenhum de nós parecia querer dormir ou parar. Eu queria me distanciar o máximo possível daquela mansão em chamas.
Não era a primeira vez que tínhamos escapado com vida por pouco, mas nós nunca tínhamos escapado às custas da vida de outro semideus. Eu não conseguia espantar a minha dor.
Prometa, Halcyon Green escreveu.
Eu prometo, Hal, pensei. Eu vou aprender com seus erros. Se os deuses me tratarem tão mal assim, eu irei revidar.
Okay, eu sei que isso parece conversa de louco. Mas eu me sentia amargo e raivoso. Se isso deixava a galera do Monte Olimpo infeliz, ótimo. Eles podiam vir aqui e dizer isso na minha cara.
Nós paramos para descansar perto de um velho armazém. Na luz fraca da lua, eu conseguia ver um nome pintando na lateral da construção de tijolos vermelhos: FERRALHERIA RICHMOND. A maioria das janelas estava quebrada.
Thalia estremeceu.
― Nós poderíamos ir para o nosso antigo acampamento  ela sugeriu. ― No Rio James. Nós temos muitos suprimentos lá.
Eu assenti apaticamente. Iria levar pelo menos um dia para chegarmos lá, mas era um plano bom como qualquer outro.
Eu dividi meu sanduíche de presunto com Thalia. Nós comemos em silêncio. A comida tinha gosto de papelão. Eu tinha acabado de engolir a última mordida quando ouvi um fraco barulho de metal vindo do beco próximo. Minhas orelhas começaram a formigar. Nós não estávamos sozinhos.
― Alguém está por perto  eu disse. ― E não é um mortal comum.
Thalia ficou tensa.
― Como você pode ter certeza?
Eu não tinha uma resposta, mas me pus de pé. Saquei a adaga de Hal, mais pelo brilho do bronze celestial. Thalia agarrou sua lança e convocou Aegis. Dessa vez, eu sabia que era melhor não olhar para o rosto de Medusa, mas sua presença ainda me provocava calafrios. Eu não sabia se esse escudo era Aegis, ou uma réplica feita para heróis – de qualquer maneira, o escudo irradiava poder. Eu entendia porque Amalteia queria que Thalia o reivindicasse.
Nós rastejamos pela parede do armazém. Viramos em um beco escuro que terminava num portuário com pilhas de carregamento de sucata velha.
Eu apontei para a plataforma.
Thalia franziu o cenho. Ela sussurrou:
― Você tem certeza?
Eu assenti.
― Tem alguma coisa ali embaixo. Eu sinto.
Só então teve um alto CLANG. Uma chapa de zinco ondulada estremeceu no portuário. Algo... alguém... estava debaixo.
Rastejamos em direção ao cais de embarque até que estivéssemos sobre a pilha de metal. Thalia aprontou sua lança. Eu gesticulei para que ela se segurasse. Segurei o pedaço de chapa ondulada de metal e disse sem emitir som, Um, dois, três!
No exato momento em que levantei a chapa de zinco, algo voou em minha direção – um borrão de flanela e cabelos loiros. Um martelo foi arremessado direto no meu rosto.
As coisas poderiam ter dado muito errado. Felizmente, meus reflexos eram bons graças a anos de luta.
Eu gritei:
― Uou!
Eu me esquivei do martelo, e agarrei a garotinha pelo pulso. O martelo saiu derrapando pelo pavimento.
A garotinha lutava. Ela não podia ter mais que sete anos de idade.
― Chega de monstros!  ela gritou, me chutando nas pernas. ― Vão embora!
― Tá tudo bem!  eu tentei o máximo que pude segurá-la, mas era como segurar um gato selvagem.
Thalia parecia atordoada demais para se mover. Ela ainda mantinha sua lança e seu escudo em posição.
― Thalia  chamei ― guarde seu escudo! Você está a assustando!
Thalia descongelou. Ela tocou o escudo e ele se encolheu até tomar a forma de uma pulseira. E deixou sua lança cair no chão.
― Ei, garotinha  ela disse, soando mais gentil do que jamais escutei. ― Está tudo bem. Nós não iremos machucar você. Eu sou Thalia. Este é Luke.
― Monstros!  ela choramingou.
― Não  eu prometi.
A pobrezinha já não estava lutando tanto, mas estava tremendo loucamente, aterrorizada.
― Mas nós sabemos tudo sobre monstros  eu disse. ― Nós lutamos contra eles também.
Eu a segurei, agora mais para confortá-la do que para contê-la. Finalmente ela parou de me chutar. Ela sentia frio. Suas costelas estavam aparentes sob seu pijama de flanela. Me perguntei quanto tempo esta garotinha estava sem comer. Ela era ainda mais nova que eu quando fugi de casa.
Apesar de seu medo, ela me encarava com olhos enormes. Eles eram assustadoramente cinzentos, lindos e inteligentes. Uma semideusa – sem dúvida. Eu tinha o pressentimento de que ela era poderosa, ou deveria ser, se sobrevivesse.
― Vocês são como eu?  ela perguntou, ainda desconfiada, mas parecia um pouco esperançosa, também.
― Sim  eu prometi. ― Nós somos...
Eu hesitei, sem certeza de que ela entendia o que ela era, ou se já tinha ouvido a palavra semideus. Eu não queria assustá-la ainda mais.
― Bem, é difícil de explicar, mas nós lutamos contra monstros. Onde está sua família?
A expressão da garotinha se tornou dura e raivosa. Seu queixo tremeu.
― Minha família me odeia. Eles não me querem. Eu fugi.
Meu coração parecia ter se quebrado em pedaços. Ela tinha tanta dor em sua voz – uma dor familiar. Eu olhei para Thalia, e nós tomamos uma decisão silenciosa ali mesmo. Nós iriamos cuidar daquela criança. Depois do que tinha acontecido com Halcyon Green... bem, isso parecia destino. Nós assistimos um semideus morrer por nós. Agora achamos essa garotinha. Era quase como uma segunda chance.
Thalia se ajoelhou perto de mim. Ela colocou sua mão sobre o ombro da garotinha.
― Qual o seu nome, pequena?
― Annabeth.
Eu não consegui não sorrir. Eu nunca tinha ouvido esse nome antes, mas era bonito, e parecia combinar com ela.
― Belo nome  eu disse a ela. ― Vou te dizer uma coisa, Annabeth. Você é bastante valente. Uma lutadora como você poderia nos ser útil.
Seus olhos se arregalaram.
― Poderia?
― Ah, sim  eu disse animado.
Então um pensamento súbito me pegou. Eu agarrei a adaga de Hal e a tirei do meu cinto. Ela irá proteger o seu dono, Hal disse. Ele tinha ganhado-a da garotinha que ele salvou. Agora o destino tinha nos dado a chance de salvar outra garotinha.
― Que tal uma arma que realmente mate monstros? Isto é bronze celestial. Funciona melhor que um martelo.
Annabeth pegou a adaga e a analisou com admiração. Eu sei... ela tinha no máximo uns sete anos. O que eu estava pensando quando lhe dei uma arma? Mas ela era uma semideusa. Nós tínhamos que nos defender. Hércules era apenas um bebê quando estrangulou duas cobras em seu berço. Na época em que eu tinha nove, lutei para salvar minha própria vida uma dúzia de vezes. Annabeth podia usar uma arma.
― Facas são apenas para os lutadores mais bravos e mais rápidos  eu disse a ela. Minha voz falhou quando me lembrei de Hal Green, e como ele morreu para nos salvar.― Elas não têm o alcance ou o poder de uma espada, mas são mais fáceis de esconder e podem encontrar pontos fracos na armadura do inimigo. É preciso um guerreiro inteligente para usar uma faca. Tenho a impressão de que você é bastante inteligente.
Annabeth sorriu para mim, e por um instante, todos os meus problemas pareciam ter desaparecido. Eu senti como se tivesse feito a coisa certa. Eu jurei a mim mesmo que nunca deixaria que fizessem algum mal a essa garota.
― Eu sou inteligente!  ela disse.
Thalia riu e despenteou o cabelo de Annabeth. Simples assim, nós tínhamos uma nova companhia.
― É melhor irmos, Annabeth  Thalia disse. ― Temos uma casa segura no Rio James. Vamos providenciar roupas e comida para você.
O sorriso de Annabeth vacilou. Por um momento, ela teve aquele ar selvagem em seus olhos novamente.
― Vocês... vocês não irão me levar de volta para a minha família? Prometem?
Eu engoli o nó em minha garganta. Annabeth era tão nova, mas ela tinha aprendido uma difícil lição, assim como Thalia e eu tínhamos. Nossos pais tinham nos desapontado. Os deuses eram severos, cruéis e indiferentes. Semideuses tinham apenas uns aos outros.
Eu coloquei minha mão sob o ombro de Annabeth.
― Você é parte da nossa família agora. E eu prometo que não vou deixar que nada machuque você. Eu não vou desapontá-la como nossas famílias nos desapontaram. Combinado?
― Combinado!  ela disse feliz, segurando sua nova adaga.
Thalia pegou sua lança. Ela sorriu para mim com aprovação.
― Agora, vamos. Não podemos ficar parados por muito tempo!

***

Então aqui estou eu de guarda, escrevendo no diário de Halcyon Green... meu diário, agora.
Nós estamos acampados no bosque sul de Richmond. Amanhã, iremos seguir para o Rio James e reabastecer nossos suprimentos. Depois disso... eu não sei. Continuo pensando sobre as previsões de Hal Green. Um sentimento sinistro pesa em meu peito. Há algo sombrio em meu futuro. Pode estar bem longe, mas parece uma tempestade no horizonte, sobrecarregando o ar. Só espero que eu tenha forças para proteger meus amigos.
Olhando para Thalia e Annabeth dormindo perto do fogo, fico impressionado com quão sereno seus rostos são. Se vou ser o "homem" do grupo, tenho que ser digno da confiança das duas. Nenhum de nós tinha tido sorte com nossos pais. Eu tinha que ser melhor que isso. Eu podia ter apenas catorze anos, mas isso não era desculpa. Eu tinha que manter minha nova família unida.
Eu olho para o norte. Imagino quanto tempo levaria para chegar à casa da minha mãe em Westport, Connecticut. Me pergunto o que minha mãe está fazendo nesse exato momento. Ela estava num estado mental péssimo quando eu fugi...
Mas eu não podia me sentir culpado por tê-la deixado. Eu tive que fazer isso. Se um dia eu encontrasse meu pai, nós iríamos ter uma conversa sobre isso.
Por agora, eu tinha apenas que sobreviver dia após dia. Eu escreverei neste diário sempre que puder, mesmo duvidando que alguém um dia o leia.
Thalia está se mexendo. É a sua vez de ficar de vigília. Uau, minha mão dói. Nunca escrevi tanto. É melhor eu dormir, e esperar por nenhum sonho.
Luke Castellan, desconectando-se por hora.

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