segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

A Pirâmide Vermelha - Carter

Capítulo 33 - Entramos no ramo dos molhos

ESTÁ ESQUECENDO UMA COISA, Hórus me disse.
Estou um pouco ocupado!, pensei de volta.
Você pode achar que é fácil guiar um barco mágico pelo céu. Mas não é. Eu não tinha o paletó animado de Amós, então eu mesmo estava na popa tentando manejar o leme, o que equivalia a mexer cimento. Não enxergava para onde íamos. Sacudíamos para a frente e para trás enquanto Sadie se esforçava para impedir que Zia, inconsciente, caísse do Rainha Egípcia.
É meu aniversário, Hórus insistiu. Você precisa me dar os parabéns!
— Parabéns! — eu gritei. — Agora cale a boca!
— Carter, o que está fazendo? — Sadie gritou, agarrando-se à amurada com uma das mãos e segurando Zia com a outra, enquanto a embarcação se inclinava para o lado. — Ficou maluco?
— Não, estava falando com... Ah, esqueça.
Olhei para trás. Alguma coisa se aproximava: uma figura radiante que iluminava a noite. Vagamente humanoide, definitivamente indesejável. Problemas. Tentei fazer o barco voar mais depressa.
Comprou um presente para mim?, Hórus perguntou.
Será que pode fazer algo de útil, por favor? Aquela coisa que está nos seguindo... é o que estou pensando?
Oh..., disse Hórus, parecendo entediado. Sekhmet. O Olho de Rá, A Destruidora dos Impuros, Grande Caçadora, A Senhora do Fogo, e por aí vai.
Ótimo, pensei. E ela está atrás de nós porque...
O Sacerdote-leitor tem o poder de invocá-la uma vez na vida, Hórus explicou. É um dom muito, muito antigo, do tempo em que Rá abençoou o homem com a magia.
Uma vez na vida, eu pensei. E Desjardins escolheu agora?
Ele nunca foi muito paciente.
Pensei que os magos não gostassem dos deuses!
Não gostam, Hórus confirmou. O que mostra quanto ele é hipócrita. Mas acho que matar vocês é mais importante do que se manter fiel a um princípio. Eu entendo.
Olhei para trás novamente. A figura se aproximava, não havia dúvida: uma mulher enorme e dourada numa radiante armadura vermelha, com um arco em uma das mãos e um cesto de flechas pendurado nas costas. E ela voava em nossa direção como um foguete.
Como a derrotamos?, perguntei.
Não derrotam, respondeu Hórus. Ela é a encarnação da fúria do sol. Nos tempos em que Rá era ativo, ela era muito mais impressionante, mas ainda assim... é implacável. Uma matadora inata. Uma máquina de destruição.
— Tudo bem, já entendi — gritei.
— O quê? — perguntou Sadie, falando tão alto que Zia se moveu.
— O... o quê? — Ela abriu os olhos.
— Nada — gritei de volta. — Estamos sendo seguidos por uma máquina de destruição. Volte a dormir.
Zia se sentou, aturdida.
— Uma máquina de destruição? Você não está falando de...
— Carter, para a direita! — gritou Sadie.
Eu obedeci, e uma flecha enorme passou bem perto de nós, incendiando o teto da casa de máquinas.
Levei o barco para baixo num mergulho vertiginoso, e Sekhmet passou como um raio, mas logo girou no ar com agilidade irritante e voltou a nos perseguir.
— Estamos pegando fogo — avisou Sadie.
— Já percebi — gritei.
Examinei a paisagem abaixo de nós, mas não havia lugar seguro para aterrissar, só condomínios de casas e centros comerciais.
— Morram, inimigos de Rá! — Sekhmet gritou. — Pereçam em agonia!
Ela é quase tão irritante quanto você, eu disse a Hórus.
Impossível, ele respondeu. Ninguém supera Hórus.
Fiz outra manobra para despistar a perseguidora.
— Ali! — gritou Zia.
Ela apontou para um complexo de fábricas com caminhões, depósitos e galpões, tudo muito iluminado. Havia uma pimenta-vermelha gigante pintada na lateral do maior galpão, e um sinal luminoso anunciava: MOLHO MÁGICO LTDA.
— Ah, por favor! — protestou Sadie. — Não é realmente mágico! É só um nome!
— Não — insistiu Zia. — Eu tenho uma ideia.
— Aquelas Sete Fitas? — supus. — As que você usou em Serket?
— Não, aquilo só pode ser feito uma vez por ano. Mas meu plano...
Outra flecha passou por nós, poucos centímetros a estibordo.
— Segurem-se!
Puxei o leme com força e virei a embarcação de cabeça para baixo pouco antes de a flecha explodir. O casco nos protegeu do impacto, mas agora todo o fundo do navio estava em chamas, e estávamos caindo.
Com o controle que ainda me restava – e era pouco – conduzi o barco para o telhado do galpão maior, e caímos em uma pilha enorme de... alguma coisa crocante.
Arrastei-me para fora do barco e fiquei ali sentado, tonto. Felizmente, tínhamos despencado em cima de algo macio. Infelizmente, era uma montanha de seis metros de altura de pimentas-vermelhas desidratadas, e o barco as incendiou. Meus olhos começaram a arder, mas contive o impulso de esfregá-los, porque minhas mãos estavam cobertas de óleo de pimenta.
— Sadie? — gritei. — Zia?
— Socorro! — respondeu Sadie.
Ela estava do outro lado do barco, arrastando Zia para fora do casco em chamas. Conseguimos tirá-la de lá e descemos até o chão escorregando pela montanha.
O galpão parecia ser uma ampla instalação para desidratar pimentas, com trinta ou quarenta montanhas delas e fileiras de prateleiras de madeira para secá-las. O desastre envolvendo nosso barco produziu uma fumaça com aroma apimentado, e pelo buraco que tínhamos aberto no telhado eu vi a figura flamejante de Sekhmet descendo.
Corremos, abrindo caminho entre as pilhas de pimenta. [Não, Sadie, pimenta nos meus olhos não foi refresco. Fique quieta.] Nós nos escondemos atrás de uma das prateleiras de secagem, que tornavam o ar ardido como ácido clorídrico.
Sekhmet pousou e o chão do galpão estremeceu. De perto, ela era ainda mais aterrorizante. A pele brilhava como ouro puro, e a armadura e o saiote pareciam feitos de ladrilhos fixados com lava derretida. Os cabelos eram uma juba de leão. Os olhos eram felinos, mas não brilhavam como os de Bastet nem sugeriam bondade ou humor. Os olhos de Sekhmet brilhavam como suas flechas, feitos para achar e destruir. Era linda como uma explosão atômica.
— Sinto cheiro de sangue! — rugiu ela. — Vou me banquetear dos inimigos de Rá até encher minha barriga!
— Encantadora — cochichou Sadie. — Zia, você estava falando de um plano...
Zia não parecia bem. Tremia, estava pálida e parecia ter dificuldades de se concentrar em nós.
— Quando Rá... Quando ele mandou Sekhmet punir os humanos pela primeira vez, porque eles se rebelavam... Ela escapou ao controle.
— Difícil imaginar — sussurrei, vendo Sekhmet atropelar o que tinha restado de nosso barco.
— Ela começou a matar todo mundo — prosseguiu Zia. — Não só os maus e impuros. Nenhum outro deus conseguiu detê-la. Ela simplesmente matava e matava o dia inteiro, até se entupir de sangue. Depois, ela se retirava até o dia seguinte. As pessoas imploraram aos magos que pensassem em um plano, e...
— Ousam se esconder? — As chamas rugiram quando as flechas de Sekhmet destruíram pilha após pilha de pimentas secas. — Vou assá-los vivos!
— Correr agora — decidi. — Falar depois.
Sadie e eu levamos Zia, dividindo o peso entre nós dois. Conseguimos tirá-la do depósito segundos antes de tudo explodir em chamas e uma nuvem em forma de cogumelo e com cheiro de pimenta se formar no céu.
Corremos por um estacionamento de caminhões e nos escondemos atrás de um oito eixos. Eu espiei pela lateral, esperando ver Sekhmet sair do meio das chamas. Em vez disso, ela surgiu na forma de um imenso leão. Seus olhos queimavam e no alto de sua cabeça flutuava um pequeno disco de fogo, que era como uma miniatura do sol.
— O símbolo de Rá — murmurou Zia.
Sekhmet rugiu:
— Onde estão vocês, meus petiscos saborosos?
Ela abriu a boca e soprou um jato de ar quente que atravessou o estacionamento. Onde seu hálito tocava, o asfalto derretia, carros se desintegravam em areia e o estacionamento se transformava em um deserto estéril.
— Como ela faz isso? — sussurrou Sadie.
— Seu sopro cria os desertos — respondeu Zia. — Essa é a lenda.
— Cada vez melhor. — O medo me dava um nó na garganta, mas eu sabia que não podia mais me esconder.
Invoquei minha espada.
— Vou distraí-la. Vocês duas, fujam...
— Não — Zia me interrompeu. — Tem outro jeito.
Ela apontou para uma fileira de silos do outro lado do estacionamento. Cada um tinha a altura de três andares e uns vinte metros de diâmetro, com uma pimenta vermelha gigante pintada na lateral.
— Tanques de petróleo? — perguntou Sadie.
— Não — respondi. — Deve ser salsa, não?
Sadie me olhou, confusa.
— Isso não é um tipo de música?
— Também é uma palavra em espanhol para molho apimentado — expliquei. — É o que eles fabricam aqui.
Sekhmet soprou em nossa direção e três caminhões próximos se transformaram em pó. Nós fugimos para trás de uma parede de blocos de concreto.
— Escutem — pediu Zia, com o rosto coberto de suor. — Quando precisavam deter Sekhmet, os homens encontraram grandes tonéis de cerveja e os pintaram de vermelho com suco de romã.
— Sim, agora eu lembro — interrompi. — Disseram a Sekhmet que era sangue, e ela bebeu até desmaiar. Então, Rá conseguiu levá-la de volta ao céu. Eles a transformaram em algo mais manso. Uma deusa vaca ou coisa parecida.
— Hátor — disse Zia. — Essa é a outra forma de Sekhmet. O outro lado de sua personalidade.
Sadie balançou a cabeça, incrédula.
— Estão me dizendo que vamos pagar umas bebidas para Sekhmet e ela vai se transformar numa vaca?
— Não exatamente — respondeu Zia. — Mas salsa é vermelha, não é?
Percorremos o terreno da fábrica enquanto Sekhmet destruía caminhões e transformava em deserto grandes faixas do estacionamento.
— Odeio esse plano — resmungou Sadie.
— Trate de mantê-la ocupada por mais alguns segundos — eu disse. — E não morra.
— Essa é a parte mais difícil, não é?
— Um... — contei. — Dois... três.
Sadie apareceu em espaço aberto e gritou seu feitiço favorito.
— Ha-di!
Os hieróglifos brilharam no alto da cabeça de Sekhmet:
E tudo em volta dela explodiu. Os caminhões se despedaçaram. O ar vibrou cheio de energia. O piso se elevou, criando uma cratera de quinze metros de profundidade que engoliu a leoa.
Foi muito impressionante, mas eu não tinha tempo para admirar o trabalho de Sadie. Transformei-me num falcão e me atirei na direção dos tanques de salsa.
— RRAAAAAARR!
Sekhmet saltou da cratera e soprou o ar do deserto na direção de Sadie, mas ela já tinha saído dali. Ela corria em zigue-zague, escondendo-se atrás de caminhões e lançando metros e mais metros de corda mágica enquanto fugia. As cordas tremulavam no ar e tentavam se prender em volta da boca da leoa. Não conseguiram, é claro, mas irritaram a Destruidora.
— Mostre-se! — gritou Sekhmet. — Vou me alimentar de sua carne!
Empoleirado em um dos silos, concentrei todo meu poder para me transformar de falcão em avatar. Minha forma brilhante era tão pesada, que seus pés afundaram no telhado do galpão.
— Sekhmet! — urrei.
A leoa se virou e rugiu, tentando localizar a voz.
— Aqui em cima, gatinha! — chamei.
Ela me viu e abaixou as orelhas.
— Hórus?
— A menos que conheça outro cara com cabeça de falcão...
Ela andou de um lado para o outro, insegura, mas rugiu numa atitude de desafio.
— Por que fala comigo enquanto estou em minha forma colérica? Sabe que nesta forma devo destruir tudo o que encontro, inclusive você!
— Se é necessário — eu disse. — Mas, antes, talvez queira se banquetear do sangue de seus inimigos!
Enterrei minha espada no tanque e criei uma cachoeira de salsa. Saltei para o tanque ao lado e repeti a operação. E de novo, de novo, de novo, até que o Molho Mágico de seis silos estivesse jorrando pelo estacionamento.
— Rá-rá! — Sekhmet estava adorando. Ela se jogou na torrente de salsa, rolando e lambendo grandes porções do molho. — Sangue. Delicioso sangue!
Sim, aparentemente, ou os leões não são muito brilhantes, ou suas papilas gustativas não são muito desenvolvidas, porque Sekhmet não parou até estar com a barriga cheia e sua boca começar a fumegar, literalmente.
— Que gosto forte... — disse ela, caindo para o lado e piscando. — E meus olhos ardem. Que tipo de sangue é esse? Persa? Núbio?
— Jalapeño — respondi. — Experimente um pouco mais. Fica cada vez melhor.
Agora as orelhas também fumegavam, e ela tentava beber mais e mais. Com os olhos lacrimejando, ela começou a gaguejar.
— Eu... — Uma coluna de vapor brotava de sua boca. — Ardido... boca ardida...
— Leite é bom para isso — sugeri. — Se fosse uma vaca, talvez...
— Armadilha... — Sekhmet gemeu. — Você... armadilha...
Mas os olhos dela estavam muito pesados. Sekhmet girou num círculo e caiu deitada. Enroscando-se como uma bola, sua forma tremulou e mudou, a armadura vermelha transformando-se em porções de pele dourada, até que eu estava olhando para uma enorme vaca adormecida.
Saltei do silo e contornei com grande cuidado a deusa que dormia. Ela fazia ruídos estranhos, roncos de vaca, talvez, algo como Muuuzzzzmuuuuzzzz. Balancei a mão diante de seu focinho e, quando tive certeza de que ela estava apagada, eu me desfiz de meu avatar. Sadie e Zia saíram de trás de um caminhão.
— Bem — comentou Sadie — isso foi diferente.
— Nunca mais vou comer salsa — decidi.
— Vocês dois foram brilhantes — Zia nos elogiou. — Mas o barco queimou. Como nós vamos chegar a Phoenix?
— Nós? — disparou Sadie. — Não me lembro de ter convidado você.
O rosto de Zia ficou vermelho como molho de pimenta.
— Ainda está pensando que os atraí para uma armadilha?
— Não sei. Atraiu?
Eu não podia acreditar no que ouvia.
— Sadie. — Minha voz soou perigosamente irada, até mesmo para mim. — Chega. Zia fez aquela coisa do pilar de fogo. Sacrificou a magia dela para nos salvar. E foi ela quem nos disse como vencer a leoa. Precisamos dela.
Sadie me encarou. Depois olhou para Zia, e para mim, e para Zia, e para mim de novo, provavelmente tentando julgar até onde podia ir.
— Tudo bem. — Ela cruzou os braços e fez um beicinho. — Mas precisamos encontrar Amós primeiro.
— Não! — gritou Zia. — Essa é uma péssima ideia.
— Ah, então podemos confiar em você, mas não em Amós?
Zia hesitou. Tive a sensação de que era exatamente isso que ela queria dizer, mas depois decidiu tentar uma abordagem diferente:
— Amós não ia querer que vocês esperassem. Ele disse para irmos em frente, não disse? Se sobreviveu a Sekhmet, ele nos encontrará no caminho. Se não...
Sadie a interrompeu.
— E como vamos para Phoenix? Andando?
Olhei para o outro lado do estacionamento, onde havia um caminhão ainda intacto.
— Talvez não seja necessário. — Tirei a túnica de linho que tinha pego no armário de suprimentos do barco de Amós. — Zia, Amós tinha um jeito de animar seus paletós e colocá-los no comando do barco. Conhece esse feitiço?
Ela assentiu.
— É muito simples, se tiver os ingredientes certos. Eu poderia fazer, se tivesse minha magia.
— Não pode me ensinar?
Ela comprimiu os lábios.
— A parte mais difícil é o figurino. Na primeira vez que encanta uma peça de roupa, você precisa amassar um shabti no tecido e dizer um feitiço para uni-los, como se fossem cera derretida. Isso requer uma estátua de argila com um espírito já imbuído nela.
Sadie e eu nos entreolhamos.
— Doughboy! — dissemos ao mesmo tempo.

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