segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

A Pirâmide Vermelha - Sadie

Capítulo 32 - O lugar das cruzes

ACORDEI COM MUFFIN ANINHADA junto a minha cabeça, ronronando e mastigando meus cabelos. Por um momento, pensei que estivesse em casa. Lá era comum acordar com Muffin assim. Depois, lembrei que eu não tinha uma casa, e que Bastet se fora. Meus olhos se encheram de lágrimas outra vez.
Não, Ísis me censurou. Precisamos manter o foco.
Pela primeira vez, a deusa estava certa. Eu me sentei e limpei a areia branca do rosto. Muffin miou em sinal de protesto, depois se afastou dois passos e decidiu que poderia se contentar com meu lugar no cobertor quente.
— Que bom que acordou — disse Amós. — Já íamos chamá-la.
Ainda estava escuro. Carter estava no convés do barco, retirando uma nova túnica de linho do armário de suprimentos. Khufu saltou sobre mim e fez um som parecido com o ronronar de um gato. Para minha surpresa, Muffin pulou em seus braços.
— Pedi a Khufu que levasse a gata de volta ao Brooklyn — Amós me informou. — Aqui não é lugar para ela.
Khufu grunhiu, infeliz com sua missão.
— Eu sei, velho amigo — disse Amós. A voz dele tinha uma nota severa, como se estivesse tentando se impor como o babuíno alfa. — É melhor assim.
— Agh — Khufu reagiu, sem encarar Amós.
Uma inquietação me invadiu. Lembrei o que Amós tinha dito: que sua libertação podia ter sido um truque de Set. E a visão de Carter: Set esperava que Amós nos conduzisse à montanha, para que pudéssemos ser capturados. E se Set estivesse influenciando Amós
de alguma forma? Eu não gostava do fato de ele mandar Khufu para longe de nós. Por outro lado, não via alternativa senão aceitar a ajuda de Amós. E vendo Khufu ali, segurando Muffin, não suportei a ideia de colocar um ou outro em perigo. Talvez Amós estivesse certo.
— Ele pode viajar com segurança? — perguntei. — Sozinho?
— Ah, sim — garantiu Amós. — Khufu, como todos os outros babuínos, tem sua própria magia. Ele vai ficar bem. E só por precaução...
Amós me mostrou uma figura de cera, um crocodilo.
— Isso vai ajudar, caso seja necessário.
Eu tossi.
— Um crocodilo? Depois de tudo que...
— É Filipe da Macedônia — explicou Amós.
— Filipe é de cera?
— É claro. Crocodilos de verdade são muito difíceis de manter. E eu disse que ele era mágico.
Amós jogou o boneco para Khufu, que o cheirou e depois o colocou em uma sacola com seus utensílios de cozinha. Khufu lançou um último olhar nervoso em minha direção, olhou temeroso para Amós, depois partiu caminhando com a sacola pendurada em um braço e Muffin aninhada no outro.
Eu não entendia como eles poderiam sobreviver ali, com ou sem magia. Esperei Khufu aparecer no topo da duna seguinte, mas nada aconteceu. Ele havia desaparecido.
— Agora, bem — disse Amós. — Pelo que Carter me falou, Set planeja desencadear a destruição amanhã, quando o sol nascer. Isso nos dá pouco tempo. O que Carter não me explicou é como vocês pretendem destruir Set.
Virei-me para Carter e vi que ele me prevenia com o olhar. Compreendi imediatamente, e fui obrigada a reconhecer: talvez o garoto não fosse tão burro, afinal. Ele também desconfiava de Amós.
— É melhor guardarmos isso só para nós — respondi sem rodeios. — Você mesmo disse: Set pode ter plantado uma escuta mágica em você ou algo parecido.
Amós comprimiu a mandíbula.
— Tem razão — reconheceu de má vontade. — Nem eu mesmo posso confiar em mim. Isso é muito... frustrante.
Ele soava realmente angustiado, e eu me senti culpada. Quase mudei de ideia e contei nosso plano, mas um olhar na direção de Carter me fez manter nossa decisão.
— Devíamos ir para Phoenix — sugeri. — Talvez no caminho...
Pus a mão no bolso. A carta de Nut havia desaparecido. Pensei em contar a Carter sobre minha conversa com o deus da terra, Geb, mas não sabia se seria seguro falar diante de Amós. Carter e eu estávamos juntos havia dias, trabalhando em equipe, e percebi que me ressentia um pouco com a presença de nosso tio. Não queria confiar em mais ninguém. Deus, não posso acreditar no que acabei de dizer.
— Precisamos parar em Las Cruces — disse Carter.
Não sei quem ficou mais surpreso: Amós ou eu.
— Fica perto daqui — Amós respondeu devagar. — Mas...
Ele pegou um punhado de areia, murmurou um feitiço e atirou-o ao ar. Em vez de se espalharem, os grãos flutuaram e formaram uma seta, que apontava para sudoeste, para uma cadeia de montanhas que desenhava uma silhueta escura no horizonte.
— Como eu pensava. — A areia caiu na terra. — Las Cruces está fora de nosso caminho uns sessenta quilômetros, depois daquelas montanhas. Phoenix fica a noroeste.
— Percorrer sessenta quilômetros não é tão ruim — decidi. — Las Cruces... — O nome soava estranhamente familiar, mas eu não sabia por quê. — Carter, por que Las Cruces?
— Eu só... — Ele ficou tão perturbado que compreendi que a decisão tinha algo a ver com Zia. — Tive uma visão.
— Uma visão agradável? — arrisquei.
Ele me olhou com cara de quem tentava engolir uma bola de golfe, o que confirmou minhas suspeitas.
— Só acho que devemos ir para lá — respondeu ele. — Podemos encontrar algo importante.
— É muito arriscado — opinou Amós. — Não posso permitir, não com a Casa da Vida atrás de vocês. Precisamos nos manter longe das cidades.
Então, de repente... clic. Meu cérebro teve um daqueles momentos fabulosos quando tudo funciona perfeitamente.
— Não, Carter está certo — retruquei. — Devemos ir a Las Cruces.
Foi a vez de meu irmão parecer surpreso.
— Estou? Devemos?
— Sim.
Contei a eles sobre minha conversa com Geb.
Amós limpou um pouco de areia do paletó.
— Isso é interessante, Sadie. Mas não vejo como Las Cruces se encaixa nessa história.
— Porque é espanhol, não é? Las Cruces. As cruzes. Exatamente como Geb me disse.
Amós hesitou, mas assentiu, relutante.
— Entrem no barco.
— Não acha que temos pouca água para uma viagem de barco? — perguntei.
Mesmo assim, porém, eu os segui. Amós tirou o paletó e disse uma palavra mágica. Imediatamente, a roupa ganhou vida, flutuou até o leme e manejou os comandos.
Amós sorriu para mim, e um pouco daquele antigo brilho voltou aos olhos dele.
— Quem precisa de água?
O barco estremeceu e decolou.
Se Amós algum dia se cansasse da magia, poderia trabalhar como agente de turismo em barcos voadores. A paisagem na região das montanhas era simplesmente fascinante.
No início, o deserto parecera estéril e feio, comparado à exuberância verdejante da Inglaterra, mas eu começava a perceber que aquela paisagem tinha uma beleza própria, especialmente à noite. As montanhas se erguiam como ilhas escuras num mar de luzes. Eu nunca tinha visto tantas estrelas no céu, e o vento seco tinha aroma de sálvia e pinho.
Las Cruces ocupava o vale abaixo de nós: um patchwork cintilante de ruas e bairros.
Quando nos aproximamos, vi que boa parte da cidade nada tinha demais. Podia ser Manchester, Swindon ou qualquer outro lugar, de verdade, mas Amós direcionou o barco para o sul, até uma região que era, evidentemente, mais antiga: com construções de adobe e alamedas.
Quando pousamos, eu comecei a ficar nervosa.
— Ninguém vai notar um barco voador? — perguntei. — Quer dizer, sei que é difícil enxergar a magia, mas...
— Estamos no Novo México — explicou Amós. — Aqui eles veem óvnis o tempo todo.
Aterrissamos no telhado de uma igrejinha.
Foi como voltar no tempo ou entrar no cenário de um filme do Velho Oeste. A praça da cidade era cercada por casinhas de taipa que lembravam um povoado indígena. As ruas eram iluminadas e movimentadas – parecia estar acontecendo algum tipo de festival – com ambulantes vendendo pimenta-vermelha, cobertores indígenas e outros produtos típicos da região. Uma carroça coberta estava estacionada perto de um canteiro de cactos. No coreto da praça, homens com grandes violões e voz forte tocavam músicamariachi.
— Esta é a área histórica — informou Amós. — Acho que eles a chamam de Mesilla.
— Tem muita coisa do Egito aqui, não tem? — perguntei, em dúvida.
— Ah, as culturas antigas do México têm muito em comum com o Egito — concordou Amós, pegando do leme seu paletó. — Mas essa é uma conversa para outro dia.
— Felizmente! — resmunguei.
Respirei fundo e senti no ar um cheiro desconhecido, mas delicioso, como o de manteiga derretendo em pão quente, porém mais temperado, mais suculento.
— Estou... faminta.
Não levamos muito tempo para encontrar as tortillas do outro lado da praça. Eram deliciosas. Sei que Londres tem restaurantes mexicanos. Temos quase tudo lá. Mas eu nunca tinha estado em um, e duvido que servissem tortillas tão maravilhosas quanto aquelas.
Uma mulher gorda de vestido branco fazia bolas de massa com as mãos cobertas de farinha, depois as achatava no formato de discos, fritava em uma frigideira quente e as entregava aos clientes em guardanapos de papel. Não precisavam de manteiga, de geleia, de nada. Eram tão delicadas que derretiam na boca. Fiz Amós comprar pelo menos uma dúzia, só para mim.
Carter também parecia ter gostado da comida, até que decidiu experimentar ostamales de pimenta-vermelha em outra barraca. Tive medo de que o rosto dele explodisse.
— Está ardendo! — anunciou ele. — Água!
— Coma mais uma tortilla — Amós aconselhou, tentando não rir. — A massa corta a ardência. Melhor que água.
Experimentei os tamales e adorei. Ardiam menos que um bom curry. Como sempre, Carter só estava sendo um chato.
Terminamos de comer e começamos a percorrer as ruas, procurando... bem, eu não sabia o quê, exatamente. O tempo passava depressa. O sol estava se pondo e eu sabia que aquela seria nossa última noite, a menos que detivéssemos Set. Mas eu não tinha a menor ideia de por que Geb nos mandara para aquele lugar. “Você também vai encontrar lá aquilo de que mais precisa.” O que ele tinha tentado me dizer?
Estudei a multidão e vi no meio dela um rapaz alto com cabelos escuros. Um arrepio percorreu minhas costas. Anúbis? E se ele estivesse me seguindo, certificando-se de que eu estava segura? E se ele fosse aquilo de que eu mais precisava?
Ideia maravilhosa, mas não era Anúbis. Censurei-me por pensar que poderia ter toda essa sorte. Além do mais, Carter tinha visto Anúbis como um monstro com cabeça de chacal. Talvez a aparência que ele me mostrara fosse só um truque para me confundir – um truque que funcionava muito bem.
Eu estava pensando nisso, e imaginando se haveria ou não tortillas no Mundo dos Mortos, quando meus olhos encontraram os de uma garota do outro lado da praça.
— Carter. — Agarrei o braço de meu irmão e continuei olhando para Zia Rashid. — Alguém veio ver você.
Zia estava pronta para a batalha, com suas roupas largas de linho preto, empunhando varinha e cajado. Os cabelos curtos e escuros estavam para o lado, como se ela tivesse voado até ali enfrentando vento forte. Os olhos cor de âmbar pareciam tão amistosos quanto os de um jaguar.
Atrás dela havia uma barraca cheia de lembranças para turistas, e nela eu li um cartaz com a inscrição: NOVO MÉXICO – TERRA DA MAGIA. Duvido que o vendedor soubesse quanta magia havia bem ali, na frente de sua barraca.
— Você veio — disse Zia, o que me pareceu um comentário meio óbvio.
Seria minha imaginação ou ela olhava para Amós com apreensão... E até certo medo?
— Sim — respondeu Carter, nervoso. — Você deve se lembrar de Sadie. E esse é...
— Amós — completou Zia, incomodada.
Amós se curvou.
— Zia Rashid, há quantos anos. Vejo que Iskandar mandou só os melhores.
Zia pareceu ter sido atingida por uma bofetada, e só então percebi que Amós não sabia das últimas notícias.
— Ah, Amós... Iskandar está morto — revelei.
Ele me olhou, incrédulo, e nós lhe contamos a história completa.
— Entendo. Então, o novo Sacerdote-leitor Chefe é...
— Desjardins — confirmei.
— Ah. Má notícia.
Zia franziu o cenho. Em vez de se dirigir a Amós, ela falou comigo.
— Não subestime Desjardins. Ele é muito poderoso. Vai precisar da ajuda dele, denossa ajuda, para desafiar Set.
— Você nunca pensou que Desjardins pode estar ajudando Set? — perguntei.
— Nunca! — reagiu Zia. — Outros podem estar, mas não Desjardins.
Ela se referia a Amós, evidentemente. Acho que isso deveria ter alimentado minhas suspeitas sobre ele, mas, em vez disso, só me deixou mais furiosa.
— Você está cega — disparei. — A primeira ordem de Desjardins como Sacerdote-leitor Chefe foi mandar nos matar. Ele está tentando nos deter, mesmo sabendo que Set se prepara para destruir o continente. E Desjardins estava presente naquela noite no British Museum. Se Set precisava de um corpo...
O topo do cajado de Zia explodiu em chamas.
Carter se colocou entre nós.
— Ei, ei, vocês duas, acalmem-se. Estamos aqui para conversar.
— Eu estou conversando — disse Zia. — Vocês precisam da Casa da Vida de seu lado. Precisam convencer Desjardins de que não representam uma ameaça.
— Rendendo-nos? — perguntei. — Não, obrigada. Prefiro não ser transformada em inseto e esmagada.
Amós pigarreou.
— Receio que Sadie esteja certa. A menos que Desjardins tenha mudado desde que o vi pela última vez, ele não é um homem que vá ouvir a voz da razão.
Zia estava furiosa.
— Carter, podemos conversar em particular?
Ele se mexeu, desconfortável.
— Escute, Zia... Concordo que devemos trabalhar juntos. Mas se vai tentar me convencer a me entregar à Casa...
— Há algo que precisa saber — insistiu ela. — Precisa saber.
O jeito como ela falou me deixou com um arrepio na nuca. Era isso o que Geb tinha tentado me falar? Seria possível que Zia tivesse a chave para derrotarmos Set?
De repente, Amós ficou tenso. Ele pegou o cajado, após invocá-lo do nada, e anunciou:
— É uma armadilha.
Zia pareceu perplexa.
— O quê? Não!
Então, todos nós vimos o que Amós pressentira. Marchando em nossa direção, vindo do extremo leste da praça, vimos o próprio Desjardins. Ele vestia roupas cor de creme e tinha nos ombros a pele de leopardo do Sacerdote-leitor Chefe. Seu cajado emitia um brilho roxo. Turistas e pedestres abriam caminho, confusos, nervosos, como se não soubessem o que estava acontecendo, mas tivessem o bom-senso de se afastar.
— Para o outro lado!— indiquei.
No entanto, quando eu me virei, vi outros dois magos em vestes negras se aproximando a oeste. Peguei minha varinha e a apontei para Zia.
— Você nos atraiu para uma armadilha!
— Não! Eu juro... — Ela baixou os olhos. — Mel. Mel deve ter contado a ele.
— É claro — resmunguei. — Agora a culpa é de Mel.
— Não há tempo para explicações — disse Amós.
Ele derrubou Zia com um raio, atirando-a na barraca de suvenires.
— Ei! — protestou Carter.
— Ela é uma inimiga — disse Amós. — E já temos muitos deles.
Carter correu para perto de Zia (naturalmente), enquanto os pedestres em pânico corriam do centro da praça.
— Sadie, Carter — chamou Amós — se a situação piorar, corram para o barco, fujam.
— Amós, não vamos abandoná-lo — avisei.
— Vocês são mais importantes. Eu posso deter Desjardins por... Cuidado!
Amós apontou o cajado para os dois magos de preto. Eles murmuravam feitiços, mas uma rajada de vento criada por Amós os desequilibrou, soprando-os para o meio de um turbilhão de areia. Eles rolaram pela rua junto com lixo, folhas e tamales, até o tornado em miniatura atirá-los no topo de um edifício, bem longe dali.
Do outro lado da praça, Desjardins rugiu, furioso.
— Kane!
O Sacerdote-leitor Chefe bateu com o cajado no chão. Uma fresta se abriu no pavimento e começou a se aproximar de nós. Com o alargamento da fenda, os edifícios tremeram. Reboco caía das paredes. A fissura nos teria tragado, mas a voz de Ísis soou em minha cabeça, com a palavra de que eu precisava.
Eu ergui minha varinha.
— Calma. Hah-ri.
Hieróglifos brilharam diante de nós. A fissura parou a centímetros de meus pés. O terremoto cessou.
Amós respirou fundo.
— Sadie, como...?
— Palavras Divinas, Kane! — Desjardins se aproximou, pálido. — A criança ousa dizer as Palavras Divinas. Ela está corrompida por Ísis, e você é acusado de ajudar os deuses.
— Para trás, Michel — avisou Amós.
Achei engraçado o primeiro nome de Desjardins ser Michel, mas estava assustada demais para rir.
Amós empunhava a varinha, pronto para nos defender.
— Precisamos deter Set. Se tivesse algum bom-senso...
— O que eu faria? Eu me juntaria a vocês? Colaboraria? Os deuses nada trazem além de destruição.
— Não! — Era a voz de Zia. Com a ajuda de Carter, ela tinha se levantado. — Mestre, não podemos lutar entre nós. Não era isso o que Iskandar queria.
— Iskandar está morto! — gritou Desjardins. — Agora, afaste-se deles, Zia, ou será destruída também!
Zia olhou para Carter. Depois, ergueu o queixo e encarou Desjardins.
— Não. Precisamos agir juntos.
Olhei para Zia com um novo respeito.
— Então não os trouxe mesmo até aqui?
— Eu não minto — respondeu ela.
Desjardins ergueu seu cajado e grandes rachaduras surgiram nas construções em volta dele. Pedaços de adobe e de taipa vieram em nossa direção, mas Amós invocou o vento e os desviou.
— Crianças, saiam daqui! — gritou ele. — Os outros magos não vão ficar longe para sempre.
— Pela primeira vez, ele tem razão — Zia nos preveniu. — Mas não podemos abrir um portal...
— Temos um barco voador — Carter sugeriu.
Zia assentiu, agradecida.
— Onde?
Apontamos para a igreja, mas, infelizmente, Desjardins estava em nosso caminho. Ele provocou uma nova chuva de pedras. Amós as desviou com vento e raios.
— Tempestade mágica! — grunhiu Desjardins. — Desde quando Amós Kane é perito nas forças do caos? Estão vendo, crianças? Como ele pode ser seu protetor?
— Cale a boca! — urrou Amós, usando o cajado para provocar uma tempestade de areia tão forte que cobriu toda a praça.
— Agora — decidiu Zia.
Contornamos Desjardins e corremos às cegas para a igreja. A tempestade de areia feria a pele e ardia nos olhos, mas conseguimos encontrar a escada e subimos para o telhado. O vento perdeu força e, do outro lado da praça, vi Desjardins e Amós ainda se encarando, envoltos em redomas de força. Amós cambaleava: o esforço era demais para ele.
— Preciso ajudar — anunciou Zia, relutante — ou Desjardins vai matá-lo.
— Pensei que não confiasse nele — observou Carter.
— Não confio. Mas se Desjardins vencer esse duelo, estaremos perdidos. Jamais escaparemos.
Ela rangeu os dentes como se estivesse se preparando para algo realmente doloroso.
Em seguida, empunhou o cajado e murmurou um encantamento. O ar começou a esquentar. O cajado brilhou. Ela o soltou e ele explodiu em fogo, criando uma coluna de chamas de um metro de diâmetro e quatro de altura.
— Cace Desjardins — entoou ela.
Imediatamente, a coluna de fogo se ergueu do telhado e começou a se mover, devagar, mas com determinação, no rumo do Sacerdote-leitor Chefe.
Zia cambaleou. Carter e eu tivemos de segurá-la pelos braços para impedir que caísse.
Desjardins olhou para cima. Quando viu o fogo, seus olhos se arregalaram de medo.
— Zia! — gritou ele. — Como ousa me atacar?
A coluna desceu, passando pelos galhos de uma árvore e abrindo um buraco na copa. Pousou na rua, pairando poucos centímetros acima do pavimento. O calor era tão intenso que o fogo chamuscava o meio-fio e derretia a pavimentação. O fogo chegou a um carro estacionado e, em vez de desviar, abriu caminho partindo em duas partes a lataria.
— Bom! — gritou Amós da rua. — Muito bom, Zia!
Em desespero, Desjardins deu alguns passos para a esquerda. A coluna corrigiu seu curso. Ele atacou com água, mas o líquido evaporava antes de atingir as chamas. Ele invocou rochas, que atravessavam o fogo e caíram do outro lado em montes derretidos e fumegantes.
— O que é aquilo? — perguntei.
Zia estava inconsciente e Carter balançava a cabeça, perplexo. Mas Ísis falou em minha mente, admirada:
Um pilar de fogoÉ o feitiço mais poderoso que um mestre do fogo pode realizar. É impossível vencê-lo, é impossível fugir. Pode ser usado para conduzir o mago que o produziu a um objetivo. Ou para perseguir um inimigo, forçando-o a correr. Se Desjardins tentar se concentrar em qualquer outra coisa, o fogo o alcançará e destruirá. Não o deixará em paz até se dissipar.
Quanto tempo?, perguntei.
Depende da força do mago que o cria. Entre seis e doze horas.
Eu ri alto. Brilhante! Zia desmaiara criando o feitiço, mas, ainda assim era brilhante.
Esse feitiço esgotou a energia dela, Ísis revelou. Ela não poderá fazer nenhuma outra magia até que o pilar se dissipe. Para ajudar vocês, ela ficou completamente sem forças.
— Ela vai ficar bem — eu disse a Carter. Depois, gritei: — Amós, venha! Precisamos partir!
Desjardins continuava recuando. Era evidente que estava com medo do fogo, mas ainda não tinha desistido de nós.
— Vão se arrepender por isso! Querem brincar de deuses? Então não me dão alternativa. — Ele invocou do Duat vários espetos.
Não, eram flechas. Sete flechas, acho.
Amós olhou para elas com verdadeiro horror.
— Você não ousaria! Nenhum Sacerdote-leitor jamais...
— Eu invoco Sekhmet! — Desjardins gritou.
Ele lançou as flechas ao alto, e elas começaram a girar em volta de Amós. Desjardins sorriu, satisfeito. E ainda sorria quando olhou para mim.
— Você escolheu ficar do lado dos deuses? Então, morra pelas mãos de um deus!
Ele se virou e correu. O pilar de fogo ganhou velocidade e o seguiu.
— Crianças, saiam daqui! — gritou Amós, cercado pelas flechas. — Vou tentar distraí-la!
— Quem? — perguntei. Eu sabia que já escutara o nome Sekhmet, mas tinha ouvidomuitos nomes egípcios. — Quem é Sekhmet?
Carter olhou para mim, e mesmo depois de tudo o que tínhamos enfrentado nos últimos dias, eu jamais o tinha visto tão apavorado.
— Precisamos sair daqui — disse ele. — Agora.

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