quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A Sombra da Serpente - Carter

Capítulo 7 - Sou estrangulado por um velho amigo

Então, sim.
Sadie sai em uma aventura com um cara, me deixando fazer o trabalho chato de descobrir como salvar o mundo. Porque isso soa tão familiar? Ah, claro. Sadie sempre faz isso desse jeito. Se for hora de seguir em frente, você pode contar que a TDAH vai fazê-la sair por aí por conta própria.
[Porque você está me agradecendo, Sadie? Isso não foi um elogio.]
Depois do baile da Brooklyn Academy, fiquei muito irritado. Já era ruim o suficiente ser forçado a dançar música lenta com a amiga de Sadie, Lacy. Mas desmaiar na pista de dança, acordar com Lacy roncando na minha axila e depois descobrir que eu tinha perdido a visita de dois deuses foi muito constrangedor.
Depois de Sadie e do cara russo irem embora, levei o nosso pessoal de volta à Casa do Brooklyn. Walt estava confuso por nos ver tão cedo. Levei ele e Bastet para uma reunião particular no terraço. Expliquei o que Sadie tinha me dito sobre Shu, Anúbis e o cara russo, Leonid.
— Eu vou levar Freak para Memphis — falei. — Nós voltamos assim que eu falar com Tot.
— Eu vou com você — Walt disse.
Sadie tinha me pedido para levá-lo junto, é claro, mas olhando para ele agora, pensei de novo. As bochechas de Walt estavam fundas. Seus olhos estavam vidrados.
Eu estava alarmado com o quão pior ele parecia desde ontem. Sei que é horrível, mas eu não pude evitar pensar sobre as práticas de enterro egípcias – como eles embalavam um corpo com sais de embalsamento para que eles secassem lentamente por dentro. Walt parecia que tinha sido iniciado nesse processo.
— Olha cara — eu disse. — Sadie me pediu para te manter a salvo. Ela estava preocupada com você. Eu também estou.
Ele serrou sua mandíbula.
— Se você está planejando usar uma sombra para o seu feitiço, vai ter que capturá-la com aquela estatueta. Você vai precisar de um sau, e eu sou o melhor que você tem.
Infelizmente, Walt estava certo. Nem Sadie nem eu tínhamos a habilidade para capturar a sombra, mesmo se isso fosse possível.
— Tudo bem — murmurei. — Apenas... não se esforce demais. Eu não quero que minha irmã venha explodindo para cima de mim.
Bastet cutucou o braço de Walt, do mesmo jeito que um gato faz com um inseto para ver se ele ainda está vivo. Ela cheirou o cabelo dele.
— Sua aura está fraca — Bastet disse. — Mas você pode estar bem o suficiente para viajar. Tente não se esforçar... Sem magia a menos que seja absolutamente necessário.
Walt rolou seus olhos.
— Sim, mamãe.
Bastet pareceu gostar daquilo.
— Eu vou olhar os outros gatinhos — ela prometeu. — Er, eu quero dizer iniciados. Vocês dois tenham cuidado. Eu não morro de amores por Tot, mas não quero vocês se metendo nos problemas dele.
— Quais problemas? — perguntei.
— Você vai ver. Só voltem para mim. Todo esse dever de guarda está acabando com a minha programação de sonecas.
Ela nos enxotou para o estábulo de Freak e voltou lá para baixo, resmungando alguma coisa sobre erva de gato.
Nós desatrelamos o barco. Freak gritou e zumbiu suas asas, ansioso para ir. Ele parecia ter tido um bom descanso. Além disso, sabia que uma jornada significava mais perus congelados para ele.
Logo nós estávamos voando sobre o rio East.

***

Nosso passeio pelo Duat parecia mais instável que o normal, como a turbulência de um avião, exceto pelo pranto fantasmagórico e pelo nevoeiro denso. Eu estava feliz por ter tido um almoço leve. Meu estômago estava agitado.
O barco estremeceu assim que Freak nos tirou do Duat. Abaixo de nós se espalhava uma paisagem diferente, as luzes noturnas de Memphis, Tennessee, cursando-se ao longo das margens do rio Mississippi.
No litoral, se erguia uma pirâmide de vidro negro – uma arena de esportes abandonada que Tot tinha tomado como sua casa. Explosões de luzes multicoloridas recheavam o ar, ondulações refletindo através da pirâmide. No início, pensei que Tot estivesse apresentando uma exibição de fogos de artifícios. Depois percebi que a pirâmide estava sob ataque.
Escalando os lados havia uma variedade horrível de demônios – criaturas humanoides com pernas de galinha, ou patas, ou pernas de insetos. Alguns tinham pelos. Alguns tinham escamas ou cascos de tartarugas. No lugar da cabeça, muitos tinham armas ou ferramentas que brotavam de seus pescoços – martelos, espadas, machados, serras elétricas e até algumas chaves de fenda.
Pelo menos uma centena de demônios estava escalando até o topo, cavando com suas garras nas emendas do vidro. Alguns tentavam fazer o seu caminho quebrando o vidro, mas onde quer que eles atingissem, a pirâmide brilhava com uma luz azul, repelindo seus ataques. Demônios alados atacavam pelo ar, gritando e atingindo um pequeno número de defensores.
Tot estava no pico. Ele parecia como um desalinhado assistente de laboratório de uma faculdade em um jaleco branco de médico, uma camisa, barba mal feita e com o cabelo maluco de Einstein – o que não soava muito intimidador, mas você deveria vê-lo em combate.
Ele jogava hieróglifos brilhantes como granadas, causando explosões iridescentes ao seu redor, enquanto seus assistentes, uma tropa de babuínos e aves de bico longo chamadas íbis, atacavam os inimigos. Os babuínos jogavam bolas de basquete nos demônios, enviando-os de volta tombando pirâmide a baixo. Os íbis corriam entre as pernas dos monstros, bicando os lugares mais sensíveis que pudessem encontrar.
Assim que voamos para mais perto, eu mudei minha visão para o Duat. A cena era ainda mais assustadora. Os demônios estavam conectados por cordas vermelhas de energia que formavam uma massiva serpente transparente. O monstro envolvia a pirâmide inteira. No topo, Tot brilhava em sua forma ancestral – um gigante com um kilt branco e a cabeça de uma íbis, lançando raios de energia em seus inimigos.
Walt assobiou.
— Como os mortais podem não perceber uma batalha como aquela?
Eu não tinha certeza, mas me lembrei de algumas das notícias de desastres recentes. Fortes tempestades tinham causado enchentes em todo o entorno do rio Mississippi, incluindo aqui em Memphis. Centenas de pessoas têm desaparecido. Magos podiam ser capazes de ver o que estava realmente acontecendo, mas os mortais comuns que ainda estavam na cidade provavelmente pensavam que era apenas uma grande tempestade de trovões.
— Eu vou ajudar Tot. Você fica no barco.
— Não — Walt disse. — Bastet disse que eu só deveria usar magia em emergências. Isso é uma emergência.
Eu sabia que Sadie me mataria se eu deixasse Walt se machucar. Mas por outro lado, o tom de Walt disse que ele não iria recuar. Ele poderia ser tão teimoso quanto a minha irmã quando queria.
— Certo. Segure firme.
Um ano atrás, se eu me visse de cara numa luta como essa, eu teria me enrolado em formato de bola e tentado me esconder. Mesmo nossa batalha na Pirâmide Vermelha no último natal parecia pequena se comparada a cair de cabeça no meio de um exército de demônios sem nenhum apoio a não ser um cara doente e um grifo ligeiramente disfuncional.
Mas muito tinha acontecido no último ano. Agora isso era só mais um dia ruim na vida da família Kane.
Freak veio gritando descendo do céu noturno e pousou duramente no lado direito, acertando todo o lado da pirâmide. Ele engoliu demônios menores e partiu ao meio os maiores com suas asas-serra. Alguns que sobreviveram vieram rápido para cima até o nosso barco.
Assim que Freak começou a subir de novo, Walt e eu pulamos fora, lutando por um apoio na encosta vítrea. Walt jogou um amuleto. Em um flash de luz, uma esfinge dourada apareceu, com o corpo de um leão e a cabeça de uma mulher. Depois da nossa experiência no Museu de Dallas, eu não gostava muito de esfinges, mas felizmente esta estava do nosso lado.
Walt pulou em cima dela e entrou na batalha. A esfinge rosnou e saltou em um demônio reptiliano, rasgando-o em pedaços. Outros monstros fugiram. Eu não podia culpá-los. Um maciço leão de ouro teria sido assustador o suficiente, mas a cabeça de mulher rosnando fazia ficar ainda mais terrível, com impiedosos olhos de esmeralda, uma coroa egípcia brilhante, a uma boca cheia de presas e cheia de batom.
Conjurei meu khopesh do Duat. Chamei o poder de Hórus, e o avatar azul brilhante do deus da guerra se formou ao meu redor. Logo eu estava envolto por uma aparição de seis metros de altura e cabeça de falcão.
Eu pisei a frente. O avatar copiou meus movimentos. Varri com minha espada os demônios mais próximos, e a massiva espada brilhante do avatar os derrubou como pinos de boliche. Dois dos monstros realmente tinham pinos de boliche no lugar das cabeças, então achei apropriado.
Os babuínos e as íbis estavam lentamente fazendo progressos contra a horda de demônios. Freak voava ao redor da pirâmide, abocanhando demônios alados e jogando-os para fora do ar com seu barco.
Tot continuava lançando granadas de hieróglifos.
— Inchar — ele gritou.
O hieróglifo correspondente voou através do ar, explodindo contra o peito de um demônio em uma nuvem de luz. Instantaneamente, o demônio inchou como um balão d’agua e rolou pirâmide abaixo.
— Achate!
Tot explodiu outro demônio, que desmoronou e murchou ficando no formato de um tapete monstro.
— Problemas intestinais! — Tot gritou.
O pobre demônio que foi acertado ficou verde e se curvou.
Eu fui por entre os monstros, jogando-os de lado e os reduzindo a pó. Tudo estava indo bem até um demônio alado vir como um kamikaze no meu peito. Eu caí para trás, batendo na pirâmide com tanta força que perdi minha concentração. Minha armadura mágica se dissolveu. Eu teria derrapado pirâmide abaixo se o demônio não tivesse agarrado minha garganta e me mantido no lugar.
— Carter Kane — ele sibilou. — Você é estupidamente persistente.
Eu reconheci aquela face que era como um cadáver de uma classe de anatomia com músculos e tendões, mas sem pele. Seus olhos sem pálpebras brilhavam vermelhos. Suas presas estavam arreganhadas em um sorriso assassino.
— Você — grunhi.
— Sim. — O demônio riu, com suas garras apertando o meu pescoço. — Eu.
Rosto do Terror – tenente de Set na Pirâmide Vermelha e servo secreto de Apófis. Nós o tínhamos matado à sombra do Monumento a Washington, mas acho que isso não havia significado nada. Agora ele estava de volta, e, julgando pela voz áspera e pelos olhos brilhando vermelhos, ele ainda estava possuído pela minha serpente menos preferida.
Eu não me lembrava de ele ser capaz de voar, mas agora ele tinha asas de couro como as de um morcego brotando de seus ombros. Ele me prendeu com suas pernas de frango, as mãos apertando forte minha traqueia. Seu hálito fedia a suco fermentado com spray de gambá.
— Eu poderia ter te matado várias vezes — o demônio disse. — Mas você me interessa, Carter.
Tentei lutar contra ele. Meus braços enfraqueceram. Eu mal conseguia segurar minha espada.
À nossa volta, os sons da batalha ficaram mudos. Freak voava acima de mim, mas suas asas batiam tão lentamente que eu podia realmente vê-las. Um hieróglifo explodiu em câmera lenta como se estivesse embaixo d’agua. Apófis estava me arrastando mais fundo no Duat.
— Eu posso sentir as suas tentativas — o demônio disse. — Porque está lutando essa batalha sem esperança? Você não percebe o que vai acontecer?
Imagens começaram a vir à minha mente.
Eu vi uma paisagem de colinas mudando para gêiseres de fogo. Demônios alados tornando o céu ácido. Os espíritos dos mortos deslizando pelas colinas, gemendo em desespero e arranhando o chão por um apoio. Eles estavam todos sendo puxados para a mesma direção – uma mancha de escuridão no horizonte. O que quer que fosse, sua gravidade era tão poderosa quanto a de um buraco negro. Aquilo sugava os espíritos, dobrava e curvava as colinas, fazendo as colunas de fogo se curvarem. Até os demônios no ar tinham dificuldade para se manter.
Encolhida em um refúgio de um penhasco, a brilhante forma branca de uma mulher tentava se ancorar contra a corrente negra. Eu queria chorar. A mulher era minha mãe. Outros fantasmas passavam voando por ela, gemendo impotentes. Minha mãe tentou chegar até eles, mas ela não podia salvá-los.
A cena mudou. Eu vi o deserto egípcio à beira do Cairo sob um sol escaldante. De repente as areias explodiram. Uma serpente vermelha gigante ergueu-se do Duat. Ela lançou-se ao céu e de alguma forma, impossivelmente, engoliu o sol em um só bote. O mundo escureceu. Um vento frio se espalhou entre as duas. Fendas apareceram no chão. A paisagem desmoronou. Bairros inteiros do Cairo afundaram no abismo. Um oceano vermelho de Caos começou a se formar do Nilo, dissolvendo a cidade e o deserto, lavando do caminho pirâmides que tinham estado ali por milênios.
Logo não havia sobrado nada mais, a não ser por um mar fervente sob um céu negro sem estrelas.
— Nenhum deus pode salvar você, Carter — Apófis parecia quase simpático. — Esse destino está decretado desde o início dos tempos. Entregue-se a mim, e vou poupar você e todos os que você ama. Você me viu montar o Mar do Caos. Você vai ser o mestre do seu próprio destino.
Eu vi uma pequena ilha flutuando no meio do mar fervente – um pequeno pedaço de terra verde que parecia um oásis. Minha família e eu poderíamos ficar juntos naquela ilha. Nós poderíamos sobreviver. Poderíamos ter qualquer coisa que quiséssemos só imaginando-a. A morte não significaria nada.
— Tudo o que eu te peço é um sinal de boa vontade — Apófis insistiu. — Me entregue Rá. Eu sei que você o odeia. Ele representa tudo o que há errado com o seu mundo mortal. Ele ficou velho, podre, fraco e inútil. Entregue-o a mim. Eu vou poupá-lo. Pense nisso, Carter Kane. Os deuses te prometeram algo mais justo?
As visões desapareceram. Rosto do Terror sorriu para mim, mas de repente suas feições se contorceram em dor. Um hieróglifo de fogo queimou na sua testa – o símbolo para dissecar – e o demônio virou pó.
Eu engasguei tentando respirar. Sentia como se a minha garganta estivesse cheia de carvões em brasa. Tot estavam em cima de mim, parecendo triste e cansado. Seus olhos giravam com cores caleidoscópicas, como um portal para outro mundo.
— Carter Kane.
Ele me ofereceu a mão para me ajudar a me levantar. Todos os outros demônios haviam sumido. Walt estava no pico da pirâmide com os babuínos e as íbis, que estavam escalando a esfinge dourada como se ela fosse um animalzinho de carrossel. Freak rodeava ali perto, parecendo cheio e feliz por ter comido tantos demônios.
— Você não deveria ter vindo — Tot repreendeu.
Ele tirou a poeira de demônio da sua blusa, que tinha um logotipo de um coração flamejante e as palavras CASA DO BLUES.
— Isso foi muito perigoso, especialmente para Walt.
— De nada — resmunguei. — Parecia que você precisava de ajuda.
— Os demônios? — Tot acenou com desdém. — Eles vão estar de volta um pouco antes do nascer do sol. Eles têm atacado a cada seis horas desde a semana passada. Muito irritante.
— A cada seis horas? — tentei imaginar aquilo.
Se Tot tem estado lutando contra um exército como aquele várias horas por dia por uma semana... Eu não conseguia ver como mesmo um deus tinha aquele tanto de poder.
— Onde estão os outros deuses? — perguntei. — Eles não deveriam estar te ajudando?
Tot enrugou seu nariz como se ele tivesse sentido o cheiro de um demônio com problemas intestinais.
— Talvez você e Walt devessem entrar. Agora que você está aqui nós temos muito o que conversar.

***

Eu ia dizer isso para Tot. Ele sabia como decorar uma pirâmide.
A quadra da arena de basquete ainda estava ali, sem dúvidas para que os seus babuínos pudessem jogar. (Babuínos amam basquete.) O Jumbotron ainda estava pendurado no teto, mostrando uma série de hieróglifos que diziam coisas como: Vai time! Defesa! e Tot 25X0 Demônios, em egípcio antigo.
Os assentos do estádio tinham sido trocados por varandas em camadas. Algumas estavam alinhadas com estações de computadores, como a missão de controle de um lançamento de foguete. Outras tinham tabelas periódicas desordenadas com copos e bicos de Bunsen, frascos com órgãos em conserva e coisas estranhas.
A seção de camarotes estava cheia de cubículos de pergaminhos – uma biblioteca tão grande quanto à do Primeiro Nomo. E atrás da última tabela erguia-se um quadro branco de três andares de altura coberto de cálculos e hieróglifos.
Penduradas na viga, no lugar dos banners de campeonato e dos números dos aposentados, estavam tapeçarias negras bordadas com encantamento dourados.
Ao lado da quadra ficava a área onde Tot vivia – uma cozinha gourmet independente, uma luxuosa coleção de sofás e poltronas, pilhas de livros, baldes de Legos e Tinker Toys, uma dúzia de televisões de tela plana mostrando diferentes jornais e documentários e uma pequena floresta de guitarras e amplificadores – tudo o que um deus desmiolado precisaria para fazer vinte coisas ao mesmo tempo.
Os babuínos de Tot levaram Freak para prepará-lo e deixá-lo descansar. Acho que eles estavam preocupados que ele pudesse comer as íbis, já que elas pareciam um pouco com perus.
Tot se virou para Walt e eu, olhando para nós mais criticamente.
— Vocês precisam descansar. Depois eu vou conseguir algum jantar.
— Nós não temos tempo — repliquei. — Nós temos que...
— Carter Kane — Tot repreendeu. — Acabou de lutar com Apófis, Hórus foi tirado de você, você foi dragado para o Duat e foi meio estrangulado. Você não estará bom para ninguém até dormir um pouco.
Eu queria protestar, mas Tot pressionou sua mão contra minha testa. O cansaço tomou conta de mim.
— Durma — Tot insistiu.
Eu apaguei no sofá mais próximo.

***

Não tenho certeza de quanto tempo dormi, mas Walt se levantou primeiro. Quando eu acordei, ele e Tot estavam conversando profundamente.
— Não — Tot disse. — Isso nunca foi feito. E temo que você não tenha tempo... — Ele vacilou quando percebeu que eu estava sentado. — Oh. Bom, Carter, você está acordado.
— O que eu perdi?
— Nada — ele disse um pouco alegre demais. — Venha e coma.
Seu balcão da cozinha estava carregado com peito de frango fresco, linguiça, costelas e pão de milho, além de um pote de chá gelado de tamanho industrial.
Tot uma vez me disse que churrasco era uma forma de magia, e acho que ele estava certo. O cheiro da comida me fez esquecer meus problemas temporariamente.
Mandei para dentro um sanduiche de peito e bebi dois copos de chá; Walt mordiscou uma costela, mas não parecia estar com muito apetite.
Enquanto isso, Tot pegou uma guitarra Gibson. Ele tocou uma corda com tanta potência que fez tremer todo o chão da arena. Ele ficou melhor desde a última vez que eu o ouvi tocar. O acorde atualmente soava como um acorde, não com uma cabra montanhesa sendo torturada. Fiz um gesto ao redor com o pão de milho.
— Esse lugar está maneiro.
Tot riu.
— Melhor que a minha última sede, né?
A primeira vez que Sadie e eu tínhamos cruzado caminhos com o deus do conhecimento, ele estava escondido em um campus de uma universidade local. Tinha testado nosso valor nos enviando em uma missão para invadir a casa de Elvis Presley (longa história), mas espero que a fase dos testes tenha passado agora. Eu preferia ficar comendo churrasco na quadra.
Depois eu pensei nas visões que Rosto do Terror tinha me mostrado – minha mãe em perigo, uma escuridão engolindo as almas dos mortos, o mundo se dissolvendo no mar do Caos – exceto por uma pequena ilha flutuando por entre as ondas; a memória meio que acabou com o meu apetite.
— Então... — empurrei meu prato. — Me fale sobre os ataques dos demônios. E o que você estava falando para Walt?
Walt olhou para a sua meio comida costela de porco.
Tot dedilhou um acorde menor.
— Por onde começar...? Os ataques começaram há sete dias. Eu estou separado dos outros deuses. Eles não vieram para me resgatar. Imagino que seja porque eles estejam tendo problemas parecidos. Dividir e conquistar... Apófis entende os princípios básicos militares. Mesmo se meus irmãos pudessem me ajudar... bem, eles têm outras prioridades. Rá foi trazido de volta recentemente. Como você deve se lembrar.
Tot me deu um olhar duro, como se eu fosse uma equação que ele não pudesse balancear.
— O deus do sol deve ser guardado em sua jornada noturna. Isso exige muito poder divino.
Meus ombros cederam. Eu não precisava de mais uma coisa para me sentir culpado. Também achava que não era muito justo de Tot me criticar daquele jeito. Tot tinha estado do nosso lado, mais ou menos, sobre trazer de volta o deus do Sol.
— Talvez sete dias de ataques de demônios tivessem começado a mudar sua opinião.
— Você não pode só ir embora? — perguntei.
Tot balançou a cabeça.
— Talvez você não consiga ver tão fundo no Duat, mas o poder de Apófis cercou completamente essa pirâmide. Eu estou preso.
Eu olhei para o teto da arena, que de repente me pareceu muito menor.
— O que significa... nós estamos presos também?
Tot jogou a questão de lado.
— Vocês devem ser capazes de sair. A rede da Serpente foi feita para capturar deuses. Você e Walt não são grandes ou importantes o suficiente para serem presos.
Eu me perguntei se isso era verdade ou se Apófis tinha me permitido ir e vir – para que eu tivesse a escolha de entregar Rá.
Você me interessa, Carter. Apófis tinha dito. Renda-se, e eu vou poupá-lo.
Eu respirei fundo.
— Mas, Tot, se você está por conta própria... quero dizer, quanto tempo você pode aguentar?
O deus escovou seu jaleco. Que estava coberto com escritas em uma dúzia de línguas diferentes. A palavra tempo flutuou até a sua manga. Tot a pegou, e de repente ele estava segurando um relógio de bolso de ouro.
— Vamos ver. A julgar pelo enfraquecimento das defesas da pirâmide e o quanto meu poder está sendo gasto, eu diria que eu poderia suportar mais nove ataques, ou pouco mais de dois dias, o que nos deixa no dia do equinócio. Há! Isso não pode ser só uma coincidência.
— E depois? — Walt perguntou.
— Depois minha pirâmide será tomada. Meus ajudantes serão mortos. Acho que o Dia do Juízo Final vai acontecer de qualquer forma, na verdade. O equinócio de outono seria uma hora sensata para Apófis reerguer-se. Ele provavelmente vai me lançar no abismo, ou simplesmente dispersar minha essência em um bilhão de pedaços pelo universo. Hum... a física da morte de um deus.
O relógio dele se tornou uma caneta. Ele rabiscou alguma coisa no cabo da sua guitarra.
— Isso daria um excelente trabalho de pesquisa.
— Tot — Walt pediu. — Conte à Carter o que você me disse, sobre porque você está sendo perseguido.
— Eu pensei que estivesse óbvio — Tot disse. — Apófis quer me distrair para que eu não possa ajudar você. Por isso que você veio, não é? Para descobrir sobre a sombra da Serpente?
Por um momento eu estava muito chocado para falar.
— Como você sabe?
— Por favor — Tot tocou um refrão de Jimi Hendrix, e depois guardou a guitarra. — Eu sou o deus do conhecimento. Eu sabia que mais cedo ou mais tarde você iria chegar à conclusão de que a nossa única esperança de vitória era a execração da sombra.
— A execração da sombra — repeti. — Existe realmente um feitiço com um nome real? Ele poderia funcionar?
— Em teoria.
— E você não divulgou essa informação... por quê?
Tot bufou.
— O conhecimento sobre qualquer coisa não pode ser dado. Ele deve ser procurado e aprendido. Você é um professor agora, Carter. Deveria saber disso.
Eu não tinha certeza se eu queria estrangulá-lo ou abraçá-lo.
— Então, eu estou buscando o conhecimento. Estou aprendendo o conhecimento. Como derroto Apófis?
— Eu estou tão feliz por você ter perguntado! — Tot riu para mim com seus olhos multicoloridos. — Infelizmente, eu não posso te dizer.
Eu olhei para Walt.
— Você quer matá-lo ou eu faço isso?
— Agora — Tot continuou — eu posso guiá-lo um pouco. Mas você vai ter que ligar os pingos, como eles dizem.
— Pontos — corrigi.
— Sim. Você está no caminho certo. O sheut pode ser usado para destruir um deus, ou até mesmo Apófis. E sim, como todos os seres vivos, Apófis tem uma sombra, embora ele mantenha essa parte de sua alma bem escondida e guardada.
— Então onde está? — perguntei. — Como a usamos?
Tot estendeu as mãos.
— A segunda pergunta eu não posso responder. A primeira questão eu não estou autorizado a responder.
Walt empurrou o prato de lado.
— Eu estive tentando tirar isso dele, Carter. Para um deus do conhecimento, ele não está sendo muito útil.
— Vamos lá, Tot. Nós não podemos fazer uma missão para você ou qualquer coisa? Não poderíamos explodir a Casa do Elvis de novo?
— Tentador — o deus disse. — Mas você tem que entender. Entregar a um mortal a localização da sombra de um imortal... mesmo Apófis, seria um crime grave. Os outros deuses já pensam que eu sou um traidor. Através dos séculos, divulguei tantos segredos à raça humana. Eu ensinei a vocês a arte de escrever. Ensinei a vocês a magia e fundei a Casa da Vida.
— É por isso que os magos ainda te honram — eu disse. — Então nos ajude mais uma vez.
— E dar aos humanos conhecimento que poderia ser usado para destruir os deuses? — Tot suspirou. — Você pode entender porque meus irmãos podem objetar tal coisa?
Eu cerrei meus punhos. Pensei sobre o espírito da minha mãe escondido embaixo de um penhasco, lutando para não ser arrastada. A escuridão tem que ser a sombra de Apófis. Apófis me mostrou aquela visão para fazer eu me desesperar. Conforme seu poder cresceu, sua sombra ficou mais forte também. Ele fez isso atraindo os espíritos dos mortos, consumindo eles.
Eu podia imaginar que a sombra estava em algum lugar no Duat, mas aquilo não ajudava. Era como dizer em algum lugar do Oceano Pacífico. O Duat era imenso.
Olhei para Tot.
— Sua outra opção é não nos ajudar e deixar Apófis destruir o mundo.
— Você tem um ponto — ele admitiu. — Que é o porquê de eu estar conversando com você. Existe um modo que você poderia encontrar a localização da sombra. Há muito tempo atrás, eu era jovem e ingênuo, e escrevi um livro – um estudo de campo, de espécies – chamado O Livro de Tot.
— Nome lindo — Walt murmurou.
— Eu pensava assim! — Tot disse. — De qualquer forma, ele descreve todas as formas e disfarces que cada deus pode tomar, seus lugares mais secretos, todo o tipo de detalhes embaraçosos.
— Incluindo como encontrar suas sombras? — perguntei.
— Sem comentários. De qualquer forma, eu nunca quis que os humanos lessem o livro, mas ele foi roubado nos tempos antigos por um mago astuto.
— Onde ele está agora? — perguntei. Então eu levantei minhas mãos. — Espere... deixe-me adivinhar. Você não pode nos contar.
— Honestamente, eu não sei — Tot disse. — Esse mago astuto escondeu o livro. Felizmente, ele morreu antes de poder tirar o máximo de vantagem disso, mas usou esse conhecimento para formular vários feitiços, incluindo a execração da sombra. Ele anotou seus pensamentos em uma variação especial do Livro da Derrota de Apófis.
— Setne. É o mago de quem você está falando.
— De fato. Seus feitiços eram somente teóricos, é claro. Mesmo assim, nunca tive aquele conhecimento. E, como você sabe, todas as cópias de seus manuscritos foram destruídas.
— Então não há esperança. Beco sem saída.
— Ah. Não — Tot disse. — Você poderia perguntar ao próprio Setne. Ele escreveu o feitiço. Ele escondeu O Livro de Tot que, de qualquer forma, pode ou não descrever a localização da sombra. Se ele estiver tão inclinado, ele poderia ajudar você.
— Mas Setne não morreu a milhares de anos?
Tot sorriu.
— Sim. E esse é só o primeiro problema.
Tot nos contou sobre Setne, que aparentemente tinha sido bem famoso no Antigo Egito – como Robin Hood, Merlin e Átila, o Huno são hoje. Quanto mais eu ouvia, menos eu queria encontrá-lo.
— Ele era um mentiroso patológico — Tot disse. — Um canalha, traidor e um mago brilhante. Orgulhava-se do roubo de livros de conhecimento, incluindo o meu. Ele lutou contra monstros, se aventurou no Duat, conquistou deuses e invadiu os túmulos sagrados. Ele criou maldições que não podiam ser detidas e descobriu segredos que deveriam ter ficado enterrados. Ele era um gênio bastante mau.
Walt puxou seus amuletos.
— Soa como se você o admirasse.
O deus deu pra ele um sorriso de soslaio.
— Bem, aprecio a busca pelo conhecimento, mas eu não poderia aprovar os métodos dele. Ele não pararia por nada para possuir os segredos do universo. Ele queria ser um deus, você vê, não o olho de um deus. Um, plenamente desenvolvido, imortal.
— O que era impossível — adivinhei.
— Difícil, não impossível — Tot corrigiu. — Imhotep. O primeiro mago mortal se tornou um deus depois de sua morte — Tot se virou para seus computadores. — Isso me lembra, eu não tenho visto Imhotep há milênios. Eu me pergunto o que ele está fazendo. Talvez eu devesse pesquisá-lo no Google...
— Tot — Walt chamou. — Concentração.
— Certo. Então, Setne, ele criou esse feitiço para destruir qualquer ser, mesmo um deus. Eu nunca poderia aceitar que tal conhecimento caísse nas mãos dos mortais, mas hipoteticamente falando, se você precisasse de um feitiço para derrotar Apófis, você poderia convencer Setne a ensiná-lo o encanto e te levar até a sombra de Apófis.
— Exceto que Setne está morto.Nós continuamos voltando a isso.
Walt se sentou.
— A menos... você está sugerindo que nós encontremos Setne no Duat. Mas se Setne era tão mau, Osíris não o teria condenado no Salão do Julgamento? Ammit teria comido seu coração e ele deixaria de existir.
— Normalmente, sim — Tot disse. — Mas Setne é um caso especial. Ele é bastante... persuasivo. Mesmo antes do tribunal do Mundo Inferior, ele foi capaz de, ah, manipular o sistema legal. Algumas vezes, Osíris o sentenciou ao esquecimento, mas Setne sempre conseguiu escapar da punição. Ele conseguiu uma sentença mais leve, fez um acordo judicial ou simplesmente escapou. Ele conseguiu sobreviver – como um espírito, pelo menos – todos esses anos.
Tot voltou seus olhos turbulentos na minha direção.
— Mas recentemente, Carter Kane, seu pai se tornou Osíris, e tem estado reprimindo os fantasmas rebeldes tentando restaurar o Maat no Mundo Inferior. Na próxima vez que o sol se por, aproximadamente 14 horas a partir de agora, Setne será julgado novamente. Ele vai estar perante seu pai. Nessa hora...
— Meu pai não vai deixá-lo ir — senti como se as mãos do demônio estivessem apertando minha garganta de novo.
Meu pai era justo, mas severo. Ele não aceitava desculpas de ninguém. Durante todos os anos em que viajamos juntos, eu não conseguia escapar nem com a minha camisa fora da calça. Se Setne fosse tão mau quanto Tot disse, meu pai não mostraria piedade a ele. Ele jogaria seu coração na cara de Ammit, o Devorador, como se fosse um biscoito de cachorro.
Os olhos de Walt brilharam com excitação. Ele parecia mais animado do que eu não o via há muito tempo.
— Nós poderíamos negociar com o seu pai — ele disse. — Nós poderíamos atrasar o julgamento de Setne, ou pedir uma pena reduzida em troca de sua ajuda. As leis do Mundo Inferior permitem isso.
Eu fiz uma careta.
— Como você sabe tanto sobre o tribunal dos mortos?
Eu me arrependi de dizer aquilo imediatamente. Percebi que ele provavelmente tem estado se preparando para enfrentar o julgamento ele mesmo. Talvez fosse por isso que ele estava discutindo com Tot mais cedo. Temo que você não tenha muito tempo, Tot disse.
— Desculpe cara.
— Está tudo bem — Walt disse. — Mas nós temos que tentar. Se nós pudermos convencer seu pai a poupar Setne...
Tot gargalhou.
— Isso seria divertido, não seria? Setne se safar de novo porque seus caminhos maus eram a única coisa que poderia salvar o mundo?
— Hilário — eu disse. O sanduiche de peito não estava caindo bem no meu estômago. — Então você está sugerindo que nós vamos para o tribunal de meu pai e que tentemos salvar o fantasma de um mago psicótico. Depois nós pedimos para esse fantasma nos levar até a sombra de Apófis e a nos ajudar a destruí-la, enquanto acreditamos que ele não vai escapar, ou nos trair para o nosso inimigo.
Tot assentiu com entusiasmo.
— Você tem que ser louco! Eu certamente espero que você seja.
Eu respirei fundo.
— Acho que eu sou louco.
— Excelente! — Tot aplaudiu. — Mais uma coisa, Carter. Para que isso funcione, você vai precisar da ajuda de Walt, mas ele está correndo contra o tempo. A única chance dele...
— Tudo bem — Walt disse. — Eu mesmo contarei a ele.
Antes que eu pudesse perguntar o que ele queria dizer, poderosos alarmes soaram através dos autofalantes da arena.
— Está quase amanhecendo — Tot lembrou — é melhor vocês dois irem, antes que os demônios voltem. Boa sorte. E de toda forma, dê a Setne meus comprimentos, se viverem o suficiente para isso, é claro.

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