domingo, 18 de janeiro de 2015

A Pirâmide Vermelha - Sadie

Capítulo 28 - Dou uma volta com o deus do papel higiênico

BASTET TINHA UMA DEFINIÇÃO INTERESSANTE de interessante: um lago borbulhante com vários quilômetros de largura e cheiro de petróleo queimado e carne podre. Nosso barco parou brevemente onde o rio encontrava o lago, porque um enorme portão de metal impedia a passagem. Era um disco de bronze como um escudo, tão largo quanto o barco, meio submerso no rio. Eu não sabia como aquilo não derretia no calor, mas seguir adiante era impossível. Em cada uma das margens do rio, virados para o disco, havia um grande babuíno de bronze com os braços erguidos.
— O que é isso? — perguntei.
— O Portão do Ocidente — respondeu Bastet. — O barco do sol de Rá o cruzava e era renovado pelo fogo do lago, depois continuava do outro lado e emergia pelo Portão do Oriente para iniciar um novo dia.
Olhando os babuínos gigantescos, imaginei se Khufu tinha algum tipo de código secreto dos babuínos para nos permitir entrar. Mas ele gritou para as estátuas e se encolheu heroicamente atrás de minhas pernas.
— Como vamos passar? — perguntei.
— Talvez deva me perguntar — sugeriu uma nova voz.
O ar vibrou. Carter recuou e Bastet sibilou.
Na minha frente apareceu um radiante espírito de pássaro: um ba. Tinha aquela combinação habitual de cabeça humana e corpo de peru assassino, as asas estavam recolhidas e toda sua forma brilhava, mas algo naquele ba era diferente. Percebi que conhecia o rosto do espírito: um homem idoso e calvo com a pele marrom, olhos leitosos e sorriso simpático.
— Iskandar? — arrisquei.
— Olá, minha querida. — A voz do mago soou como se ele estivesse no fundo de um poço.
— Mas... — Meus olhos se encheram de lágrimas. — Você morreu, então?
Ele riu.
— Na última vez que chequei, sim, eu estava morto.
— Mas por quê? Eu não fiz...
— Não, minha querida. Não foi culpa sua. Simplesmente chegou a hora.
— Péssima hora! — Minha surpresa e tristeza de repente se transformaram em raiva. — Você nos deixou antes de sermos treinados, ou coisa parecida, e agora Desjardins está atrás de nós e...
— Minha querida, veja como chegou longe. Veja como se saiu bem. Não precisava de mim, nem teria sido necessário mais tempo de treinamento. Meu confrade logo teria descoberto a verdade sobre você. Eles são excelentes para farejar deuses menores, e não teriam compreendido.
— Você sabia, não é? Sabia que estávamos possuídos por deuses.
— Vocês são hospedeiros dos deuses.
— Tanto faz! Você sabia.
— Depois de nosso segundo encontro, sim. Meu único pesar é não ter percebido antes. Eu não teria conseguido proteger você e seu irmão tanto quanto...
— Tanto quanto quem?
Os olhos de Iskandar ficaram tristes e distantes.
— Fiz escolhas, Sadie. Algumas pareceram sábias no momento em que as fiz. Outras, agora que reflito sobre elas...
— Sua decisão de banir os deuses. Minha mãe o convenceu de que não era boa ideia, certo?
Suas asas espectrais se moveram.
— Você precisa entender, Sadie. Quando o Egito caiu sob a força dos romanos, meu espírito ficou dilacerado. Milhares de anos de poder e tradição derrubados por aquela tola Rainha Cleópatra, que pensava poder hospedar uma deusa. O sangue dos faraós parecia fraco e diluído, perdido para sempre. Na época, culpei todo mundo: os deuses que usaram homens para realizar suas pequenas contendas, os governantes ptolomaicos que haviam lançado o Egito ao chão, meus irmãos na Casa por terem se tornado fracos, gananciosos e corruptos. Eu me comuniquei com Tot e nós concordamos: os deuses deviam ser afastados, banidos. Os magos precisavam encontrar seu caminho sem eles. As novas regras mantiveram a Casa da Vida intacta por mais dois mil anos. Na época, foi uma boa escolha.
— E agora? — indaguei.
O brilho de Iskandar diminuiu.
— Sua mãe previu um grande desequilíbrio. Ela previu o dia, logo, logo, quando o Maat seria destruído e o caos reclamaria toda a Criação. Ela dizia que só os deuses e a Casa, juntos, poderiam prevalecer. O jeito antigo, o caminho dos deuses, teria de ser restabelecido. Eu era um velho tolo. Sabia que ela estava certa, mas me recusava a acreditar... e seus pais decidiram tomar o problema nas mãos, agir por conta própria. Eles se sacrificaram tentando consertar as coisas, porque eu fui teimoso demais para mudar. E por isso eu sinto muito, sinceramente.
Por mais que eu tentasse, era difícil ficar zangada com o velho peru. É raro um adulto admitir que errou, especialmente a uma criança, principalmente um adulto sábio de dois mil anos de idade. É preciso saber valorizar esses momentos.
— Eu o perdoo, Iskandar. Honestamente. Mas Set se prepara para destruir a América do Norte com uma gigantesca pirâmide vermelha. O que fazer?
— Isso eu não posso responder, meu bem. A escolha é sua... — Ele inclinou a cabeça para o lago, como se ouvisse uma voz. — Nosso tempo está terminando. Preciso fazer meu trabalho de guardião do portão e decidir se permito ou não que tenha acesso ao Lago de Fogo.
— Mas eu tenho mais perguntas!
— E eu gostaria de ter mais tempo com você — disse Iskandar. — Tem um espírito forte, Sadie Kane. Um dia, será um excelente ba guardião.
— Obrigada — resmunguei. — Mal posso esperar para ter penas para sempre.
— Só posso lhe dizer isso: sua escolha se aproxima. Não deixe que seus sentimentos a impeçam de enxergar o que é melhor, como aconteceu comigo.
— Que escolha? Melhor para quem?
— Essa é a chave, não é? Seu pai, sua família. Os deuses, o mundo. Maat e Isfet, ordem e caos, estão para colidir com uma violência jamais vista. Você e seu irmão podem equilibrar essas forças ou destruir tudo. E essa também foi uma previsão de sua mãe.
— Espere aí. O que você...
— Até nosso próximo encontro, Sadie. Talvez um dia tenhamos a chance de conversar mais. Mas, por enquanto, passe! Meu trabalho é avaliar sua coragem, e isso é algo que você tem de sobra.
Pensei em dizer que não, que não tinha coragem alguma. Queria que Iskandar ficasse e me dissesse exatamente o que minha mãe tinha previsto. Mas o espírito desapareceu e tudo ficou em silêncio. Só então percebi que ninguém mais tinha falado dentro do barco.
Olhei para Carter.
— Deixando tudo nas minhas costas, não é?
Ele olhava para o espaço, sem piscar. Khufu ainda estava agarrado às minhas pernas, absolutamente petrificado.
O rosto de Bastet estava paralisado no meio de um sibilo.
— Ei, pessoal? — Estalei os dedos e todos descongelaram.
— Ba! — Bastet concluiu o sibilo. Depois olhou em volta e franziu o cenho. — Espere, pensei ter visto... O que aconteceu?
Eu me perguntava quão poderoso um mago precisava ser para fazer parar o tempo, congelar até uma deusa. Um dia Iskandar teria de me ensinar esse truque, morto ou não.
— Sim — respondi. — Tem razão, havia um ba, mas ele já foi.
As estátuas dos babuínos começaram a tremer e a ranger, e eles baixaram os braços. O disco dourado no meio do rio submergiu, abrindo caminho para o lago. O barco voltou a deslizar para a frente, para as chamas e as ondas vermelhas borbulhantes. Através das ondas de calor eu conseguia ver uma ilha no meio do lago. Nela se erguia um templo negro, que não parecia ser um lugar muito hospitaleiro.
— O Salão do Julgamento — supus.
Bastet assentiu.
— É nesses momentos que fico feliz por não ter uma alma mortal.
Quando atracamos na ilha, Lâmina Suja de Sangue desceu para se despedir de nós.
— Espero vê-los novamente, Lorde e Lady Kane — vibrou ele. — Seus aposentos estarão esperando a bordo do Rainha Egípcia. A menos, é claro, que julguem apropriado me desligar do serviço.
Atrás dele, Bastet balançou a cabeça com veemência.
— Nós, hum, vamos mantê-lo por perto — respondi ao capitão. — Obrigada por tudo.
— Como quiser — respondeu ele.
Se machados pudessem franzir o cenho, tenho certeza de que ele o teria feito.
— Mantenha-se afiado — disse Carter.
E, com Bastet e Khufu, descemos pela prancha. Em vez de partir, o barco simplesmente afundou na lava fervente e desapareceu.
Olhei, intrigada, para Carter.
— Mantenha-se afiado?
— Achei que era engraçado.
— Você não tem jeito.
Subimos a escada para o templo negro. Uma floresta de pilares de pedra sustentava o telhado. Todas as superfícies eram cobertas de hieróglifos e imagens, mas não havia cor – era só preto sobre preto. A névoa do lago pairava no templo, e, apesar de tochas de junco queimarem em cada coluna, era impossível enxergar muito longe na penumbra nebulosa.
— Fiquem atentos — avisou Bastet farejando o ar. — Ele está próximo.
— Quem? — perguntei.
— O Cão — respondeu ela com desdém.
Ouvi um rosnado, e uma grande forma preta saltou da névoa. O animal colidiu com Bastet, que rolou e miou num ultraje felino, depois correu, deixando-nos sozinhos com a criatura. Acho que ela já nos havia prevenido sobre sua falta de coragem.
O novo animal era esguio e negro, como o animal Set que vimos em Washington, porém mais canino, obviamente, gracioso e até bonitinho, na verdade. Um chacal, percebi, com uma coleira dourada no pescoço.
Então, ele se metamorfoseou num rapaz e meu coração quase parou. Era o garoto de meus sonhos, literalmente – o garoto de preto que eu encontrara duas vezes antes nas visões de meu ba.
Anúbis era ainda mais lindo em pessoa, se é que isso era possível. Lindo de morrer!
[É... he-he. Não peguei o trocadilho, mas obrigada, Carter. Deus dos mortos, lindo de morrer. Sim, hilário. Agora, posso continuar?]
Ele tinha a pele pálida, cabelos pretos e rebeldes e olhos castanhos que lembravam chocolate. Vestia jeans preto, coturnos (como os meus!), camiseta rasgada e uma jaqueta de couro preto que ficava perfeita nele. Era alto e esguio como um chacal. Suas orelhas, como as de um chacal, eram um pouco salientes (eu acho bonitinho), e ele usava uma corrente de ouro no pescoço.
Não, por favor, entenda, não sou doida por meninos. Não sou! Na escola, passo a maior parte do tempo rindo de Liz e de Emma, que estão sempre interessadas neles, e fiquei muito feliz por elas não estarem comigo nesse momento, porque iriam me atormentar para sempre.
O garoto de preto ajeitou o corpo e tirou o pó da jaqueta.
— Não sou um cachorro — disse ele.
— Não — concordei. — Você é...
Sem dúvida, eu teria dito maravilhoso ou algum outro adjetivo igualmente constrangedor, mas Carter me salvou.
— Você é Anúbis? — perguntou ele. — Viemos procurar a pena da verdade.
Anúbis franziu o cenho. E cravou aqueles olhos lindos em mim.
— Vocês não estão mortos.
— Não — respondi. — Apesar de estarmos tentando com muita dedicação.
— Não lido com os vivos — anunciou ele com firmeza. Depois, olhou para Khufu e Carter. — Porém, vocês viajam com um babuíno. Isso demonstra bom gosto. Não vou matá-los até que tenham uma chance de explicar. Por que Bastet os trouxe aqui?
— Na verdade, Tot nos mandou — esclareceu Carter.
Carter começou a contar a história, mas Khufu interrompeu impaciente.
— Agh! Agh!
A língua dos babuínos deve ser muito eficiente, porque Anúbis assentiu como se tivesse entendido tudo.
— Percebo.
Ele olhou muito sério para Carter.
— Então, você é Hórus. E você é... — O dedo apontou para mim.
— Eu sou... Eu sou... — Eu não costumava ficar sem palavras, confesso, mas olhar para Anúbis fazia eu me sentir como se o dentista tivesse aplicado uma enorme injeção anestésica em minha boca. Carter me olhava como se eu tivesse ficado maluca. — Não sou Ísis — consegui dizer. — Quer dizer, Ísis está aqui dentro, mas não sou ela. Ela é só... uma visita.
Anúbis inclinou a cabeça.
— E vocês planejam desafiar Set?
— Essa é a ideia geral — confirmou Carter. — Vai nos ajudar?
Anúbis brilhou. Lembrei Tot dizendo que Anúbis só ficava de bom humor de vez em quando, raramente. Tive a sensação de que aquele não era um desses dias.
— Não — respondeu ele, sem rodeios. — E vou mostrar por quê.
Ele se transformou em chacal e voltou correndo para o lugar de onde viera. Carter e eu nos entreolhamos. Sem saber o que fazer, fomos atrás dele, mergulhando mais fundo na escuridão.
No centro do templo havia uma grande câmara circular que parecia ser dois lugares ao mesmo tempo. Por um lado, era um grande salão com braseiros radiantes e um trono vazio no canto mais afastado. O centro da sala era dominado por um conjunto de balanças – um T de ferro preto com cordas sustentando dois pratos dourados, cada um grande o bastante para sustentar uma pessoa – mas estavam quebradas. Um dos pratos estava dobrado em V, como se algo muito pesado tivesse pulado em cima dele. O outro pendia de uma só corda.
Encolhido sob as balanças, dormindo profundamente, estava o monstro mais estranho que eu já tinha visto. Tinha cabeça de crocodilo e juba de leão. A metade frontal de seu corpo também era de leão, mas, atrás, ele era um hipopótamo gordo e viscoso. O mais esquisito era que a criatura era pequena – quer dizer, não era maior que um poodle comum, o que, suponho, fazia dele um hipopoodle.
Isso descrevia o ambiente, ou parte dele, pelo menos. Ao mesmo tempo, eu parecia estar em pé no meio de um cemitério fantasmagórico – como se uma projeção tridimensional fosse imposta sobre a sala. Em alguns lugares, o piso de mármore dava lugar a poças de barro e pedras de calçamento cobertas de limo. Fileiras de sepulturas surgiam do centro da câmara, como casas em miniatura em um padrão circular. Muitas estavam rachadas. Algumas eram cercadas por muretas de tijolos ou por cercas de ferro. Nos cantos da sala, os pilares negros mudavam de forma, às vezes parecendo antigos ciprestes. Eu me sentia vagando entre dois mundos, e não conseguia dizer qual deles era real.
Khufu saltou na direção das balanças quebradas e escalou uma delas, totalmente à vontade. Não dava a menor atenção ao hipopoodle.
O chacal caminhou até a escada do trono e recuperou a forma de Anúbis.
— Bem-vindos — disse ele — ao último aposento que jamais verão.
Carter olhou em volta, admirado.
— O Salão do Julgamento. — E olhou intrigado para o hipopoodle. — Isso é...
— Ammit, o Devorador — anunciou Anúbis. — Olhem para ele e tremam.
Ammit deve ter ouvido seu nome enquanto dormia, porque latiu uma vez, baixinho, e mudou de posição. As pernas de leão e hipopótamo tremeram. Fiquei pensando se monstros do mundo inferior sonham em perseguir coelhos.
— Eu sempre o imaginei... maior — confessou Carter.
Anúbis olhou-o com ar de censura.
— Ammit só precisa ser grande o bastante para devorar o coração dos impuros. Acredite, ele faz muito bem seu trabalho. Ou... fazia, pelo menos.
Khufu grunhiu em cima de uma das balanças. Ele quase se desequilibrou e o prato amassado despencou no piso com um barulho metálico.
— Por que as balanças estão quebradas? — indaguei.
Anúbis ficou ainda mais sério.
— O Maat está enfraquecendo. Tentei consertá-las, mas... — Ele abriu os braços num gesto de impotência.
Apontei para a fileira de sepulturas fantasmas.
— Por isso o, hum, cemitério está caindo aos pedaços?
Carter me olhou, confuso.
— Que cemitério?
— As tumbas — expliquei. — As árvores.
— Do que está falando?
— Ele não pode vê-las — disse Anúbis. — Mas você, Sadie... Você é perceptiva. O que ouve?
No início não entendi o que ele queria dizer. Tudo o que eu ouvia era o sangue pulsando em minha cabeça e o barulho distante do Lago de Fogo. (E Khufu se coçando e grunhindo, mas isso não é novidade.)
Então, fechei os olhos e escutei um som distante... Música que despertava antigas recordações, meu pai sorrindo enquanto dançava comigo na casa em Los Angeles.
— Jazz — respondi.
Abri os olhos, e o Salão do Julgamento havia desaparecido. Ou não, mas pelo menos tinha perdido nitidez. Eu ainda via as balanças quebradas e o trono. Mas não havia mais colunas negras, nem o fogo cintilante. Carter, Khufu e Ammit tinham desaparecido.
O cemitério era muito real. Pedras soltas do calçamento oscilavam sob meus pés. O ar úmido da noite tinha cheiro de especiarias, peixe ensopado e lugares antigos e mofados. Eu podia estar novamente na Inglaterra – em um cemitério em Londres, talvez – mas as inscrições nas sepulturas estavam em francês e o clima era ameno demais para um inverno inglês. Árvores frondosas estavam cobertas de musgo-espanhol.
E havia música. Logo além da cerca do cemitério, do lado de fora, uma banda de jazz desfilava pela rua em sóbrios ternos pretos e vistosos chapéus de festa. Saxofonistas sopravam seus instrumentos. Cornetas e clarinetes despejavam notas no ar. Percussionistas sorriam e dançavam, manejando as baquetas. E, atrás deles, carregando flores e tochas, uma multidão em trajes de funeral dançava em torno de um carro fúnebre muito antigo.
— Onde estamos? — perguntei, confusa.
Anúbis saltou do alto de uma sepultura e aterrissou a meu lado. Ele inspirou o ar do cemitério e sua expressão relaxou. Surpreendi-me estudando o desenho de sua boca, a curva do lábio inferior.
— Nova Orleans — respondeu ele.
— Como?
— A Cidade Alagada — acrescentou. — No Bairro Francês, do lado oeste do rio, a margem dos mortos. Adoro este lugar. Por isso o Salão do Julgamento frequentemente se conecta com esta parte do mundo mortal.
A procissão musical seguiu rua abaixo, atraindo mais gente.
— O que eles estão comemorando?
— Um funeral — explicou Anúbis. — Acabaram de enterrar o morto. Agora estão cortando os laços com o corpo. Aqui, as pessoas costumam marcar o fim de uma vida com música e dança enquanto acompanham o carro fúnebre vazio na saída do cemitério. É um ritual muito egípcio.
— Como sabe tudo isso?
— Sou o deus dos funerais. Conheço cada costume fúnebre do mundo: morrer de maneira apropriada, preparar corpo e alma para o pós-vida. Eu vivo para a morte.
— Você deve ser alguém divertido em uma festa. Por que me trouxe aqui?
— Para conversar.
Ele abriu as mãos, e o túmulo mais próximo tremeu. Uma faixa branca, comprida e maleável brotou de uma fenda na parede. A faixa continuava brotando, movendo-se sinuosa e formando alguma coisa perto de Anúbis. E meu primeiro pensamento foi: Meu Deus, ele produziu um rolo mágico de papel higiênico.
Depois percebi que era tecido, uma faixa branca de linho para embalsamar múmias. O material se contorceu até formar um banco, e Anúbis se sentou.
— Não gosto de Hórus. — Ele fez um gesto me convidando a sentar, também. — Ele é barulhento e arrogante, e se acha melhor que eu. Mas Ísis sempre me tratou como um filho.
Cruzei os braços.
— Você não é meu filho. E eu não sou Ísis.
Anúbis inclinou a cabeça.
— Não. Você não se comporta como um deus menor. Você me lembra sua mãe.
O comentário me atingiu como um balde de água fria (e, infelizmente, eu sabia exatamente como era essa sensação, graças a Zia).
— Você conheceu minha mãe?
Anúbis piscou, como se percebesse que havia cometido um erro.
— Eu... conheço todos os mortos, mas o caminho de cada espírito é um segredo. Não devia ter falado.
— Não pode falar uma coisa como essa e depois se calar! Ela está no pós-vida egípcio? Passou por seu Salão do Julgamento?
Anúbis olhou com evidente desconforto para as balanças douradas, que brilhavam como uma miragem no cemitério.
— Não é meu salão. Eu apenas cuido dele, até que Lorde Osíris volte. Lamento se a aborreço, mas não posso dizer mais nada. Não sei por que falei. É que... Sua alma e a dela têm brilhos similares. Um brilho muito forte.
— Lisonjeiro — resmunguei. — Minha alma brilha.
— Lamento — repetiu ele. — Por favor, sente-se.
Eu não queria mudar de assunto, nem me sentar em bandagens de embalsamar múmia, mas minha abordagem direta para obter informação parecia não estar funcionando. Por isso, eu me deixei cair no banco, tentando parecer muito aborrecida.
— Então... — Olhei para ele, carrancuda. — Que forma é essa, afinal? Você é um deus menor?
Ele franziu o cenho e pôs a mão no peito.
— Quer saber se habito um corpo humano? Não, posso habitar qualquer cemitério, qualquer lugar de morte ou luto. Essa é minha aparência natural.
— Ah...
Em parte, eu esperava que houvesse um corpo de verdade sentado a meu lado: alguém que hospedasse um deus. Mas devia saber que seria bom demais para ser verdade. Estava desapontada. Depois, fiquei furiosa comigo por me sentir desapontada.
Não é como se houvesse alguma chance, Sadiecensurei-meele é o deus dos funerais. Deve ter uns cinco mil anos.
— Então — falei novamente — se você não pode me dizer nada de útil, ao menos me ajude. Precisamos de uma pena da verdade.
Ele balançou a cabeça.
— Não sabe o que está pedindo. A pena da verdade é muito perigosa. Entregá-la a um mortal seria contrariar as regras de Osíris.
— Mas Osíris nem está aqui. — Apontei para o trono vazio. — Aquele é o lugar dele, não é? Está vendo Osíris?
Anúbis olhou para o trono. Ele deslizou os dedos pela corrente de ouro, como se ela de repente apertasse seu pescoço.
— É verdade que espero aqui há eras, guardando meu posto. Não fui aprisionado como os outros. Não sei por quê... Mas fiz o melhor que pude. Quando soube que cinco haviam sido libertados, tive esperanças de que Lorde Osíris retornasse, mas... — Ele balançou a cabeça com desânimo. — Por que ele negligenciaria seus deveres?
— Provavelmente porque está preso dentro do corpo de meu pai.
Anúbis me encarou.
— O babuíno não explicou essa parte.
— Bem, não posso explicar tão bem quanto um babuíno, mas, de maneira geral, meu pai queria libertar alguns deuses por motivos que eu não... Talvez ele tenha pensado: Ah, vou ali destruir o British Museum e explodir a Pedra de Roseta! E ele libertou Osíris, mas trouxe também Set e toda aquela turma.
— Então, Set aprisionou seu pai enquanto ele era hospedeiro de Osíris, o que significa que Osíris também foi aprisionado por meu... — Ele parou. — Por Set.
Interessante, pensei.
— Então você entendeu — concluí. — Precisa nos ajudar.
Anúbis hesitou, depois balançou a cabeça.
— Não posso. Vou me meter em encrenca.
Olhei para ele e ri. Não consegui me conter, porque ele parecia muito ridículo.
— Você vai se meter em encrenca? Quantos anos você tem, dezesseis? Você é um deus!
Era difícil afirmar na penumbra, mas eu poderia jurar que ele ficou vermelho.
— Você não entende. A pena não pode permitir sequer a menor mentira. Se eu puser uma delas em sua mão e você disser uma única inverdade enquanto a carregar, ou se agir de um jeito que não seja verdadeiro, você vai queimar até virar cinzas.
— Está presumindo que sou mentirosa.
Ele piscou.
— Não, eu só...
— Você nunca contou uma mentira? O que ia dizer agora há pouco... sobre Set? Ele é seu pai, imagino. É isso?
Anúbis fechou a boca, depois voltou a abri-la. Ele parecia querer ficar zangado, mas era como se não lembrasse como.
— Você é sempre tão irritante?
— Normalmente sou mais — confessei.
— Por que sua família ainda não casou você com alguém que a levasse para bem, bem longe?
Ele falou com sinceridade, e foi a minha vez de ficar perplexa e irritada.
— Desculpe, garoto morte, mas eu só tenho doze anos! Bem... quase treze, e sou madura demais para quase treze anos, mas não é isso o que importa. Na minha família as meninas não são “casadas” para serem despachadas para longe, e você pode saber tudo sobre funerais, mas não parece muito informado sobre os rituais de conquista e namoro.
Anúbis pareceu realmente confuso.
— É, acho que não.
— Ótimo! Espere... Do que estamos falando? Ah, pensou que poderia me distrair, não é? Lembrei. Set é seu pai, não é? Diga a verdade.
Anúbis olhou para fora do cemitério. O som da banda de jazz se distanciava pelas ruas do Bairro Francês.
— Sim — confirmou ele. — Pelo menos, é o que dizem. Nunca o conheci. Minha mãe, Néftis, entregou-me a Osíris quando eu era criança.
— Ela... deu você?
— Ela disse que não queria que eu conhecesse meu pai. Mas, na verdade, não sei se ela sabia bem o que fazer comigo. Eu não era como meu primo Hórus. Não era um guerreiro. Era uma criança... diferente.
Ele parecia tão magoado que eu não soube o que falar. Quer dizer, eu tinha pedido a verdade, mas normalmente não a recebemos, especialmente de um garoto. E eu também sabia algumas coisas sobre ser uma criança diferente... e sentir que meus pais tinham desistido de mim.
— Talvez sua mãe estivesse tentando protegê-lo — sugeri. — Sendo seu pai o Lorde do Mal, e tudo isso...
— Talvez — concordou ele sem muita convicção. — Osíris me tomou sob a proteção dele. Ele me fez o Lorde dos Funerais, o Guardião dos Caminhos da Morte. É um bom trabalho, mas... você perguntou quantos anos tenho. A verdade é que não sei. Os anos não passam no Mundo dos Mortos. Ainda me sinto bem jovem, mas o mundo envelhece à minha volta. E Osíris partiu há tanto tempo... Ele é minha única família.
Olhei para Anúbis à luz pálida do cemitério e vi um adolescente solitário. Tentei lembrar que ele era um deus, um ser de milhares de anos, provavelmente com capacidade de controlar poderes fabulosos e fazer muito mais do que produzir papel higiênico mágico, mas ainda senti pena dele.
— Ajude-nos a salvar meu pai — insisti. — Vamos mandar Set de volta ao Duat e Osíris será libertado. Todos nós ficaremos felizes.
Anúbis balançou a cabeça outra vez.
— Já disse...
— Suas balanças estão quebradas — lembrei. — É porque Osíris não está aqui, imagino. O que acontece com todas as almas que se apresentam para julgamento?
Eu sabia que tocara num assunto delicado. Anúbis se mexeu com desconforto no banco.
— Isso aumenta o caos. As almas ficam confusas. Algumas não conseguem chegar no pós-vida. Outras conseguem, mas precisam encontrar outros caminhos. Eu tento ajudar, mas... O Salão do Julgamento também é chamado de Salão do Maat. Significa o centro da ordem, uma fundação estável. Sem Osíris, está desmoronando, ruindo.
— Então, o que você está esperando? Entregue-nos a pena. A menos que tenha medo de que seu pai vá colocá-lo de castigo.
Os olhos dele brilharam com grande irritação. Por um momento, pensei que estivesse planejando meu funeral, mas Anúbis suspirou, exasperado apenas.
— Eu faço uma cerimônia chamada a abertura da boca. Ela permite que a alma da pessoa se apresente. Para você, Sadie Kane, eu inventaria uma nova cerimônia: o fechamento da boca.
— Ha-ha. Vai me dar a pena ou não?
Ele abriu a mão. Houve um lampejo de luz. Uma pena brilhante flutuou sobre sua palma, uma pena branca como aquelas de escrever.
— Pelo bem de Osíris... Mas devo insistir em várias condições. Primeiro, só você pode manuseá-la.
— Sim, é claro. Não creio que deixaria Carter...
— Além disso, vai ter de ouvir minha mãe, Néftis. Khufu me disse que você estava procurando por ela. Se conseguir encontrá-la, escute-a.
— Fácil — respondi, embora o pedido me deixasse estranhamente incomodada. Por que Anúbis me faria tal pedido?
— E antes de ir — continuou ele — precisará responder a algumas perguntas enquanto segura a pena da verdade, para provar que é honesta.
De repente, senti a boca seca.
— Hum... que tipo de perguntas?
— Todas que eu quiser. E, lembre-se, a menor mentira a destruirá.
— Dê logo a droga da pena.
Ele a pôs em minha mão. A pena parou de brilhar, mas eu a senti mais quente e pesada do que qualquer outra poderia ser.
— É a pena da cauda de um benu — explicou Anúbis. — Vocês chamariam de fênix. Tem o peso exato da alma de um humano. Pronta?
— Não — respondi, o que devia ser verdade, porque não peguei fogo. — Isso já conta como uma pergunta?
Anúbis sorriu, e o efeito foi fascinante.
— Suponho que sim. Você negocia como um mercador fenício, Sadie Kane. Segunda pergunta, então: Você daria a vida por seu irmão?
— Sim — respondi imediatamente.
(Eu sei. Também fiquei surpresa. Mas segurar a pena me obrigava a ser honesta. Obviamente, não me tornava mais sensata.)
Anúbis assentiu, como se não estivesse surpreso.
— Última questão: Se esse for o preço da salvação do mundo, está preparada para perder seu pai?
— Essa pergunta não é justa.
— Responda com honestidade.
Como eu poderia? Não era simplesmente um caso de sim ou não.
Eu sabia qual era a resposta “certa”, é claro. A heroína deve se negar a sacrificar o próprio pai. Depois, ela segue seu caminho com coragem e salva o pai o mundo, certo? Mas se fosse mesmo um caso de um ou outro? O mundo todo é um lugar muito grande: vovô e vovó, Carter, tio Amós, Bastet, Khufu, Liz e Emma, todos que eu conheço. O que meu pai diria se eu o escolhesse, em vez de todos os outros?
— Se... se realmente não tivesse outro jeito — comecei — nenhum outro jeito... Ah, por favor! Essa pergunta é ridícula!
A pena começou a brilhar.
— Tudo bem — cedi. — Se fosse mesmo necessário, acho que... acho que eu salvaria o mundo.
Uma culpa horrível apertou meu peito. Que tipo de filha era eu? Agarrei o amuleto tyetpendurado no pescoço, a única lembrança que eu tinha de meu pai. Sei que muitos de vocês devem estar pensando: Você quase nunca vê seu pai. Mal o conhece. Por que se importa tanto? Mas isso não o torna menos meu pai, certo? Nem torna menos horrível a ideia de perdê-lo para sempre. E pensar em falhar com ele, em escolher deixá-lo morrer para salvar o mundo... Que tipo de pessoa horrível eu era?
Mal podia encarar Anúbis, mas, quando olhei para ele, vi uma expressão suave.
— Acredito em você, Sadie.
— Ah, francamente! Estou segurando a porcaria da pena da verdade e você acredita em mim. Ah, obrigada.
— A verdade é cruel — Anúbis falou. — Espíritos chegam ao Salão do Julgamento o tempo todo e não conseguem desistir de suas mentiras. Negam seus erros, seus sentimentos reais, seus defeitos... mentem até Ammit devorar suas almas por toda a eternidade. É preciso força e coragem para reconhecer a verdade.
— Sim, eu me sinto forte e corajosa. Obrigada.
Anúbis levantou-se.
— Agora devo deixá-la. Seu tempo está acabando. Só tem pouco mais de vinte e quatro horas, e então o sol nascerá no dia do aniversário de Set e ele completará a pirâmide... A menos que o detenha. Talvez em nosso próximo encontro...
— Você vai continuar me irritando? — provoquei.
Ele cravou em mim aqueles lindos olhos castanhos.
— Ou talvez você possa me ajudar a entender os modernos rituais de conquista e namoro.
Fiquei ali sentada e perplexa até ele ensaiar um sorriso... O suficiente para eu entender que estava brincando. Em seguida, ele sumiu.
— Ah, muito engraçadinho! — gritei.
As balanças e o trono desapareceram. O banco de tecido se desfez e eu caí sentada no chão do cemitério.
Carter e Khufu surgiram a meu lado, mas continuei gritando para o local onde Anúbis tinha estado, chamando-o de vários nomes bem ilustrativos.
— O que está acontecendo? — Carter quis saber. — Onde estamos?
— Ele é horrível! — resmunguei. — Arrogante, sarcástico, incrivelmente maravilhoso, insuportável...
— Agh! — Khufu reclamou.
— É — concordou Carter. — Conseguiu ou não a pena?
Eu abri a mão e lá estava ela: uma pena branca brilhante flutuando em minha palma. Cerrei o punho e ela desapareceu novamente.
— Uau — exclamou Carter. — Mas e Anúbis? Como conseguiu...
— Vamos encontrar Bastet e sair daqui — interrompi. — Temos trabalho a fazer.
E caminhei para fora do cemitério antes que ele pudesse fazer mais perguntas, porque eu não estava nem um pouco a fim de dizer a verdade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário