quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A Sombra da Serpente - Carter

Capítulo 16 - Sadie anda no banco do passageiro (Pior. Ideia. De todas.)

Aqui vai um conselho gratuito: Não ande em direção ao Caos.
A cada passo, eu me sentia como se estivesse sendo tragado por um buraco negro. Árvores, pedras e demônios passavam voando por nós e eram sugados pelo oceano. Enquanto raios cintilavam através da névoa vermelho-cinzenta. Debaixo dos nossos pés, pedaços de terra continuavam rachando e deslizando para a maré.
Eu segurei o cajado e o mangual com uma mão e a mão de Zia com a outra. Setne assobiava e flutuava do nosso lado. Ele tentava parecer descolado, mas, já que suas cores estavam desaparecendo e seus cabelos untados apontavam em direção ao mar como uma cauda de cometa, eu percebi que ele estava passando por um momento difícil se segurando à terra.
Depois de eu ter perdido meu equilíbrio, quase caí na rebentação, mas Zia me puxou de volta. Poucos passos depois, um demônio com cabeça de peixe veio voando do nada e bateu em mim. Ele segurou minha perna, tentando desesperadamente evitar ser sugado. Antes que eu pudesse decidir se o ajudava ou não, ele acabou se soltando e desapareceu no mar.
A pior coisa sobre essa pequena viagem? Parte de mim estava tentada a desistir e deixar o Caos me puxar. Porque continuar lutando? Porque não dar um fim à dor e à preocupação? E daí, se Carter Kane se dissolvesse em um trilhão de moléculas?
Eu sabia que esses pensamentos não eram realmente meus. A voz de Apófis estava sussurrando na minha cabeça, me tentando como tinha feito antes. Eu me concentrei no obelisco branco brilhante – nosso farol na tempestade do Caos. Eu não sabia se aquele pináculo era a primeira parte da criação, ou como aquele mito idiota do Big Bang, ou como Deus criando o mundo em sete dias, ou qualquer outra coisa que as pessoas possam acreditar. Talvez o obelisco fosse só a manifestação de uma coisa maior – alguma coisa que minha mente não podia entender. Qualquer que fosse o caso, eu sabia que o obelisco pertencia ao Maat, e eu tinha que me focar nele. De outro modo eu estaria perdido.
Chegamos até a base do píer. Eu me senti muito mais tranquilizado com o sólido caminho pedregoso abaixo dos meus pés, mas a força do Caos era forte em ambos os lados. À medida que avançávamos, me lembrei dos construtores que construíam os arranha-céus antigamente, atravessando sem medo vigas que estavam a 600 metros de altura sem cintos de segurança.
Eu me sentia desse modo, exceto que eu estava com medo. Os ventos me esbofeteavam. O píer tinha 3 metros de largura, mas eu ainda me sentia como se fosse perder o equilíbrio e cair nas ondas. Tentei não olhar para baixo. O material de Caos agitado batia contra as rochas. Aquilo cheirava a ozônio, escapamento de carro e formol, tudo misturado. Só os gases já eram quase o suficiente para me fazer desmaiar.
— Só um pouco mais longe — Setne disse.
Sua forma tremulava de forma irregular. O disfarce de demônio verde de Zia também estava falhando, ele ficava indo e voltando. Eu levantei meu braço e vi o encantamento que o encobria tremulando com o vento, ameaçando se desfazer. Eu não me importava de perder a aparência de chipanzé roxo com cabeça de abridor de garrafa, mas esperava que o vento desfizesse apenas a minha ilusão, não minha pele real.
Finalmente, nós chegamos ao obelisco. Ele era esculpido com pequenos hieróglifos, milhares deles, branco no branco, então eram quase impossíveis de ler. Eu vi nomes de deuses, encantamentos para o Maat e algumas palavras divinas tão poderosas que elas quase me cegaram.
À nossa volta o Mar do Caos se erguia. Toda vez que o vento soprava, um escudo brilhante em forma de escaravelho tremulava em volta de Zia – a carapaça mágica de Khepri, abrigando todos nós. Eu suspeitava de que aquilo era a única coisa nos impedia de morrer instantaneamente.
— E agora? — perguntei.
— Leia o feitiço — Setne disse. — Você vai ver.
Zia me passou o pergaminho. Eu tentei achar as linhas certas, mas eu não conseguia enxergar direito. Os hieróglifos estavam embaçados. Eu deveria ter previsto esse problema. Mesmo quando nós não estávamos em pé ao lado do Mar do Caos, eu nunca fui bom com encantamentos. Eu queria que Sadie estivesse aqui.
[Sim Sadie. Eu realmente disse isso. Não arqueje tão alto.]
— Eu... eu não consigo ler isso — admiti.
— Deixe-me te ajudar — Zia desceu seu dedo pelo pergaminho.
Quando ela encontrou os hieróglifos que procurava, ela franziu a testa.
— Esta é uma magia simples de invocação — ela olhou para Setne. — Você disse que a magia era complicada. Você disse que nós precisávamos da sua ajuda. Como você mentiu enquanto segurava a Pena da Verdade?
— Eu não menti! — Setne disse. — A magia é complicada pra mim. Eu sou um fantasma. Alguns feitiços... como feitiços de invocação... Eu não posso fazê-los. E vocês realmente precisavam da minha ajuda para encontrar a sombra. Vocês precisavam do Livro de Tot para isso, e precisavam de mim para interpretá-lo. De outro modo, vocês ainda seriam náufragos no rio.
Eu odiava admitir isso, mas falei:
— Ele está certo.
— Claro que estou — Setne disse. — Agora que vocês estão aqui, o resto não é tão ruim. Apenas forcem a sombra a se mostrar, e depois eu... é... vocês a capturam.
Zia e eu trocamos um olhar nervoso. Eu imaginava que ela sentia a mesma coisa que eu. À beira da criação, diante do infinito Mar de Caos, a última coisa que eu queria fazer era um feitiço que conjuraria parte da alma de Apófis. Era como disparar um sinalizador, dizendo, Ei, sombra gigante desagradável! Nós estamos aqui! Venha e nos mate!
No entanto, não vi nenhuma outra escolha.
Zia fez as honras. Era uma invocação simples, do tipo que um mago podia usar para conjurar um shabti, ou um espanador encantado, ou qualquer criatura menor do Duat.
Quando Zia terminou, um tremor enorme veio de todas as direções, como se uma pedra gigante tivesse caído no Mar do Caos. A perturbação ondulou até a praia e por cima das colinas.
— Hum... o que foi aquilo? — perguntei.
— Sinal de socorro, — Setne disse. — Eu estou achando que a sombra acabou de chamar as forças do Caos para protegê-la.
— Maravilhoso. Melhor nós nos apressarmos então. Onde está a...? Ah...
A sombra de Apófis era tão grande que levou um tempo para que eu entendesse o que eu estava olhando. O obelisco branco parecia jogar sua sombra sobre o oceano, mas enquanto a sombra escurecia, eu percebi que aquilo não era a silhueta do obelisco. Ao contrário, era uma sombra que se contorcia sobre a superfície da água como o corpo de uma serpente gigante. A sombra cresceu até a cabeça da serpente alcançar o horizonte. Ela atacava o outro lado do mar, lançando sua língua e mordendo o nada.
Minhas mãos tremiam. Eu me sentia como se tivesse tomado um grande copo de água do Caos. A sombra da serpente era tão grande, irradiava tanto poder, que eu não via como seria possível capturá-la. No que eu estava pensando?
Só uma coisa me impedia de entrar em pânico.
A serpente não estava completamente livre. A cauda dela parecia estar ancorada ao obelisco, como se alguém tivesse enfiado um espinho nela e isso estivesse a impedindo de escapar.
Por um momento perturbador, senti os pensamentos da serpente. Eu vi as coisas do ponto de vista de Apófis. Ele estava preso pelo obelisco branco – fervendo de dor. Ele odiava o mundo dos mortais e deuses, que o prenderam ali retirando sua liberdade. Apófis odiava a criação do mesmo modo que eu odiaria um prego enferrujado que furasse o meu pé, me impedindo de andar.
Tudo o que Apófis queria era acabar com a luz ofuscante do obelisco. Ele queria aniquilar a terra, então poderia voltar à escuridão e nadar para sempre nas extensões infinitas do Caos. Eu precisei de toda minha força de vontade para não sentir pena da pequena serpente destruidora de mundos e devoradora de sóis.
— Bem — falei com a voz rouca. — Nós encontramos a sombra. Agora, o que nós fazemos com ela?
Setne riu.
— Eu posso assumir daqui. Vocês foram ótimos. Tas!
Se eu não tivesse tão distraído, eu poderia ter percebido o que ia acontecer, mas não percebi. Meu corpo de demônio encantado se transformou em sólidas bandagens de linho egípcio, cobrindo primeiro minha boca, envolvendo todo o meu corpo com uma velocidade incrível. Eu perdi o equilíbrio e caí, completamente encapsulado, exceto pelos meus olhos. Zia bateu nas pedras perto de mim, também encasulada. Eu tentei respirar, mas era como respirar através de um travesseiro.
Setne se inclinou sobre Zia. Ele pegou cuidadosamente o Livro de Tot de debaixo das bandagens e o botou embaixo do braço. Então ele sorriu para mim.
— Ah, Carter, Carter. — Ele balançou a cabeça como se estivesse um pouco desapontado. — Eu gosto de você, amigo. Eu realmente gosto. Mas você confiou demais. Depois de tudo aquilo que aconteceu no barco, você ainda me dá permissão para lançar um encantamento em você? Qual é! Transformar um encantamento em uma camisa de força é tão fácil.
— Mmm! — grunhi.
— O que foi isso? — Setne fez uma concha com a mão no ouvido. — Difícil falar quando você está todo enfaixado, não é? Olha, isso não é pessoal, eu não poderia fazer o feitiço de invocação eu mesmo, ou já teria feito isso eras atrás. Eu precisava de vocês dois! Bem... um de vocês, de qualquer modo. Eu achava que seria capaz de matar você ou sua namorada ao longo do caminho, usando aquele que fosse mais fácil de eu manipular. Eu nunca pensei que os dois sobreviveriam até tão longe. Impressionante!
Eu me contorci e quase cai na água. Por alguma razão, Setne me puxou de volta a salvo.
— Não, não — ele repreendeu. — Não há nenhum motivo para você se matar, amigo. Seu plano não está arruinado. Eu só vou alterá-lo. Vou prender a sombra. Essa parte posso fazer eu mesmo! Mas no lugar de realizar a execração, eu vou chantagear Apófis, vê? Ele só vai destruir o que eu o deixar destruir. Depois ele vai voltar para o Caos, ou sua sombra vai ser pisoteada, e a grande cobra vai dizer tchau-tchau.
— Mmm! — protestei, mas estava ficando mais difícil de respirar.
— Sim, sim — Setne suspirou. — Essa é a parte em que você diz, “Você é maluco, Setne! Você nunca vai se safar dessa!” Mas a verdade é, eu vou. Eu tenho me safado de coisas impossíveis por milhares de anos. Tenho certeza que a serpente e eu podemos entrar em um acordo. Ah, eu vou deixá-la matar Rá e o resto dos deuses. Grande negócio. Eu vou deixá-la destruir a Casa da Vida. Eu definitivamente vou deixá-la botar o Egito abaixo e também toda as malditas estátuas do meu pai, Ramsés. Eu quero aquele fanfarrão apagado da existência! Mas todo o mundo mortal? Não se preocupe com isso, amigo. Vou poupar a maior parte dele. Tenho que ter algum lugar para comandar, não tenho?
Os olhos de Zia queimaram laranja. Suas bandagens começaram a esfumaçar, mas elas a prenderam rapidamente. Seu fogo diminuiu e ela caiu sem forças nas pedras.
Setne gargalhou.
— Boa tentativa, boneca. Vocês vão sentar e esperar. Se vocês tentarem alguma coisa, vou voltar e pegar vocês. Talvez vocês possam ser meus bobos ou alguma coisa. Vocês dois vão me divertir! Mas enquanto isso, temo que nós tenhamos acabado por aqui. Nenhum milagre vai cair do céu e salvar vocês.
Um retângulo de escuridão apareceu no ar bem acima da cabeça de Setne. Sadie saiu dele. Eu vou dizer uma coisa para a minha irmã: ela tem um timing perfeito, e ela é rápida no gatilho. Ela caiu em cima do fantasma e o deixou estatelado. Então percebeu que nós estávamos embrulhados como presentes e percebeu rápido o que estava acontecendo e se virou para Setne.
— Tas! — ela gritou.
— Nãooooo!
Setne foi envolto por fitas rosas até ele ficar parecendo um garfo cheio de espaguete.
Sadie se levantou e se afastou de Setne. Seus olhos estavam inchados como se ela tivesse estado chorando. Suas roupas estavam cobertas de lama seca e folhas.
Walt não estava com ela. Meu coração apertou. Eu estava quase feliz por minha boca estar coberta, por que eu não sabia o que dizer.
Sadie absorveu a cena – o Mar do Caos, a sombra da serpente se contorcendo, o obelisco branco. Eu podia dizer que ela sentia a força do Caos. Ela apoiou os pés e se inclinou para longe do mar como alguém que está lutando em um cabo de guerra. Eu a conhecia bem o suficiente para dizer que ela estava se recompondo, suprimindo suas emoções e forçando a tristeza a ir.
— Olá, querido irmão — ela disse com a voz tremula. — Precisa de alguma ajuda?
Ela conseguiu tirar o encantamento de nós. Pareceu surpresa ao me descobrir segurando o cajado e o mangual de Rá.
— Como diabos...?
Zia explicou brevemente o que tinha acontecido até ali – da luta com o hipopótamo gigante até as mais recentes traições de Setne.
— Tudo isso — Sadie se maravilhou — e ainda você teve que carregar meu irmão até aqui? Coitadinha. Mas como nós podemos ao menos sobreviver aqui? O Poder do Caos... — Ela olhou para o pingente de escaravelho de Zia. — Ah, como eu sou estúpida. Não me surpreende que Taueret olhou para você tão estranho. Você está canalizando o poder de Rá.
— Rá me escolheu — Zia disse. — Eu não queria isso.
Sadie ficou muito quieta – o que não era do feitio dela.
— Irmãzinha — falei, o mais gentilmente que consegui — o que aconteceu com Walt?
Os olhos dela estavam tão cheios de dor que eu queria até mesmo me desculpar por ter perguntado. Eu não a via ficar desse jeito desde... bem, desde que nossa mãe morreu, quando Sadie era pequena.
— Ele não vai vir. Ele se... foi.
— Sadie, eu sinto muito. — Você está...?
— Eu estou bem!
Tradução: Eu definitivamente não estou nada bem, mas se você perguntar de novo eu vou encher sua boca de cera.
— Nós temos que nos apressar — ela continuou, tentando modular a voz. — Eu sei como capturar a sombra. Só me dê a estatueta.
Tive um momento de pânico. Eu ainda tinha a estatueta de Apófis que Walt tinha feito? Vir por todo o caminho até aqui e esquecê-la teria sido a maior das cagadas. Felizmente, ela ainda estava no fundo da minha bolsa de magia.
Eu a passei para Sadie, que ficou olhando para a estatueta vermelha cuidadosamente feita da serpente enrolada, com os hieróglifos de ligação em torno do nome de Apófis. Imaginei que ela estava pensando em Walt, e todo o seu esforço para fazer isso.
Ela ficou na ponta do píer, onde a base do obelisco se encontrava com a sombra.
— Sadie — chamei.
Ela congelou.
— Sim?
Parecia que minha boca estava cheia de cola. Eu queria dizer para ela esquecer tudo aquilo.
Olhando para ela no obelisco, com a gigantesca sombra se debatendo no horizonte... Eu só sabia que alguma coisa iria dar errado. A sombra atacaria. Ou o feitiço iria sair pela culatra de algum modo.
Sadie me lembrava tanto nossa mãe. Eu não conseguia afastar a impressão de que nós estávamos repetindo a história. Nossos pais tinham tentado conter Apófis uma vez, na Agulha de Cleópatra, e nossa mãe tinha morrido. Eu tinha passado anos vendo nosso pai lidar com a sua culpa. Se eu ficasse parado enquanto Sadie se machucava...
Zia pegou minha mão. Seus dedos tremiam, mas eu estava grato pela sua presença.
— Vai funcionar — ela prometeu.
Sadie soprou uma mecha de cabelo do rosto.
— Escute a sua namorada Carter. E pare de me distrair.
Ela soava irritada, mas não havia irritação em seus olhos. Sadie compreendeu minhas preocupações tão claramente como ela sabia meu nome secreto. Ela só estava tão assustada quanto eu, mas da sua própria maneira irritante ela estava tentando me irritar.
— Posso continuar? — ela perguntou.
— Boa sorte — consegui dizer.
Ela assentiu.
Ela tocou a estatueta da sombra e começou o encantamento.
Eu estava com medo de que as ondas do Caos pudessem dissolver a estatueta, ou pior, dissolver Sadie também. No lugar disso, a sombra da serpente começou a se debulhar. Lentamente ela começou a encolher, se debatendo e tentado agarrar com a boca como se ela tivesse sido perfurada por um arpão. Logo a sombra tinha sumido completamente, e estatueta ficou da cor preta da meia noite. Sadie disse um feitiço simples de ligação na estatueta.
— Hi-nehm.
Um silvo longo escapou do mar – quase como um suspiro de alívio – e o som ecoou pelas colinas. As ondas revoltas se tornaram um tom mais claro de vermelho, como se um sedimento escuro tivesse sido dragado. A força do Caos parecia ter diminuído só um pouco.
Sadie ficou parada.
— Certo. Nós estamos prontos.
Eu olhei para a minha irmã. Algumas vezes ela me importunava dizendo que ela, eventualmente, me alcançaria na idade e se tornara a mais velha. Olhando para ela agora, com aquele brilho determinado nos olhos e a confiança na voz, eu quase podia acreditar nela.
— Isso foi maravilhoso. Como você sabia o feitiço?
Ela fez uma careta. É claro, a resposta era óbvia: ela tinha visto Walt fazer o mesmo feitiço na sombra de Bes… antes do que quer que tenha acontecido com Walt.
— A execração vai ser fácil — ela disse. — Nós temos que estar cara-a-cara com Apófis, mas tirando isso, é o mesmo feitiço que nós estivemos praticando.
Zia cutucou Setne com o pé.
— Essa é outra coisa sobre a qual esse verme mentiu. O que nós devemos fazer com ele? Nós vamos ter que tirar o Livro de Tot dessas bandagens, obviamente, mas depois disso, devemos empurrá-lo na mistura?
— MMM! — Setne protestou.
Sadie e eu trocamos olhares. Nós silenciosamente concordamos que não podíamos dissolver Setne – mesmo ele sendo tão horrível como ele era. Talvez nós já tivéssemos visto muitas coisas ruins ao longo dos últimos dias, e nós não precisássemos ver mais. Ou talvez nós soubéssemos que deveria ser Osíris quem teria que decidir a punição de Setne, já que nós prometemos que levaríamos o fantasma de volta ao Salão dos Julgamentos.
Talvez, ali perto do obelisco do Maat, cercados pelo Mar do Caos, nós dois percebemos que nos conter de nos vingar era o que nos diferenciava de Apófis. As regras tinham seu lugar. Elas nos impediam de nos enrolar.
— Arraste-o junto — Sadie disse. — Ele é um fantasma. Não pode ser tão pesado.
Eu agarrei o pé dele, e nós fizemos nosso caminho de volta para o cais. A cabeça de Setne batia nas rochas, mas aquilo não me preocupava. Precisei de toda minha concentração para continuar colocando um pé a frente do outro. Ir para longe do Mar do Caos era ainda mais difícil do que ir para perto dele.
No momento em que chegamos à praia, eu estava exausto. Minhas roupas estavam encharcadas de suor. Nós caminhamos pela praia e finalmente chegamos à crista da colina.
— Ah... — proferi algumas palavras que definitivamente não eram divinas.
No campo de crateras abaixo de nós, demônios tinham se reunido – centenas deles, todos marchando em nossa direção. Como Setne tinha adivinhado, a sombra tinha enviado um sinal de socorro às forças de Apófis, e o chamado tinha sido respondido. Nós estávamos presos entre o Mar do Caos e um exército hostil.
Nesse momento eu estava começando a me perguntar, Por que eu?
Tudo o que eu queria era me infiltrar na parte mais perigosa do Duat, roubar a sombra do lorde primordial do Caos e salvar o mundo. Isso era muito para se pedir?
Os demônios estavam a mais ou menos dois campos de futebol de distância, vindo rapidamente. Eu estimava que houvesse pelo menos três ou quatro centenas deles, e mais continuavam a chegar ao campo. Várias dúzias de demônios alados estavam ainda mais perto, voando em círculos cada vez mais perto de nós. Contra esse exército nós tínhamos dois Kanes, Zia e um fantasma embrulhado para presente. Eu não gostava dessas probabilidades.
— Sadie, você poderia fazer uma porta para a superfície? — perguntei.
Ela fechou seus olhos e se concentrou. Ela balançou a cabeça.
— Nenhum sinal de Ísis. Possivelmente porque estamos muito perto do Mar do Caos.
Esse era um pensamento assustador. Tentei conjurar o avatar de Hórus. Nada aconteceu. Acho que eu deveria saber que seria difícil canalizar seus poderes ali em baixo, especialmente depois de eu ter pedido a ele uma arma no barco, e o melhor que ele conseguiu foi uma pena de avestruz.
— Zia? Seus poderes de Khepri ainda estão funcionando. Você pode nos tirar daqui?
Ela agarrou seu amuleto de escaravelho.
— Eu acho que não. Toda a energia de Khepri está sendo gasta nos protegendo do Caos. Ele não pode fazer mais nada.
Considerei correr de volta para o obelisco branco. Talvez nós pudéssemos usá-lo para abrir um portal. Mas eu rapidamente me livrei da ideia. Os demônios podiam estar sobre nós antes de chegarmos lá.
— Nós não vamos sair dessa — decidi. — Podemos fazer a execração de Apófis agora?
Zia e Sadie disseram ao mesmo tempo:
— Não.
Eu sabia que elas estavam certas. Nós tínhamos que estar cara-a-cara com Apófis para o feitiço funcionar. Mas eu não conseguia acreditar que nós tínhamos chegado até ali só para pararmos agora.
— Pelo menos nós podemos morrer lutando.
Tirei o cajado e o mangual do meu cinto. Sadie e Zia ergueram seus cajados e varinhas.
Então, no outro fim do campo, uma onda de confusão se espalhou pelas fileiras de demônios. Eles começaram a se virar lentamente para longe de nós, correndo em diferentes direções. Bolas de fogo iluminaram o céu. Nuvens de fumaça subiram das crateras recém abertas no chão. A batalha parecia estar acontecendo na extremidade errada do campo.
— Com quem eles estão lutando? — perguntei. — Uns contra os outros?
— Não — Zia apontou, com um sorriso se formando no seu rosto. — Olhem.
Era difícil de ver través do ar fumacento, mas um punhado de combatentes estava lentamente forçando seu caminho através das fileiras de demônios. Seu número era menor – talvez uma centena ou mais – mas os demônios estavam lhes dando espaço. Aqueles que não eram cortados, pisoteados ou explodidos com fogos de artifícios.
— São os deuses! — Sadie disse.
— Isso é impossível. Os deuses não marchariam para o Duat para nos resgatar!
— Os grandes deuses não — ela sorriu para mim. — Mas os velhos esquecidos da Casa de Repouso marchariam! Anúbis disse que ele estava chamando reforços.
— Anúbis? — Eu estava realmente confuso agora. Quando ela tinha visto Anúbis?
— Ali! — Sadie apontou. — Oh...!
Ela pareceu esquecer como falar. Ela só balançou seu dedo na direção dos nossos novos amigos. As linhas inimigas se abriram momentaneamente. Um carro preto elegante estava em combate. O motorista tinha que ser um maníaco. Ele estava atropelando as fileiras de demônios, saindo do caminho para bater neles. Ele saltou sobre as fendas de fogo e girou em círculos, com os faróis piscando e buzinando. Então ele veio direto para nós, até que as primeiras fileiras de demônios começaram a se dispersar. Só alguns poucos demônios alados tiveram a coragem de encará-lo.
Enquanto o carro chegava perto, eu pude ver que era uma limusine Mercedes. Ela subiu a colina, seguida por demônios morcegos, o carro gemeu ao parar em uma nuvem de poeira vermelha. A porta do motorista se abriu, e um pequeno homem peludo em uma sunga azul, saiu.
Eu nunca tinha ficado tão feliz em ver alguém tão feio.
Bes, em toda sua verrugosa horrível glória, subiu no telhado do seu carro. Ele se virou para enfrentar os demônios morcegos. Seus olhos se arregalaram. Sua boca se abriu de um modo impossível. Seu cabelo se levantou como os pelos de um porco espinho, e ele gritou:
— BOO!
Os demônios alados gritaram e se desintegraram.
— Bes! — Sadie correu na direção dele.
O deus anão se abriu em um sorriso. Ele deslizou para o capô, então estava quase com a altura de Sadie quando ela o abraçou.
— Aqui está minha garota! — ele disse. — E, Carter, traga essa sua pele lamentável até aqui!
Ele me abraçou também. Eu nem sequer me importei de ele esfregar os dedos na minha cabeça.
— E, Zia Rashid! — Bes gritou generosamente. — Eu tenho um abraço pra você também...
— Eu estou bem — Zia disse, dando um passo para trás. — Obrigada.
Bes berrou rindo.
— Você está certa. Tempo para alegria e entusiasmo depois. Nós temos que tirar vocês daqui!
— O... o feitiço da sombra? — Sadie gaguejou. — Ele realmente funcionou?
— É claro que funcionou, criança maluca! — Bes bateu no seu peito peludo, e de repente ele estava usando um uniforme de chofer. — Agora, entrem no carro!
Eu me virei para pegar Setne... e meu coração quase parou.
— Ah, santo Hórus...
O mago tinha sumido. Eu vasculhei a terra em todas as direções, esperando que ele só tivesse rastejado por ali. Não havia sinal dele.
Zia explodiu uma bola de fogo no local onde ele havia estado deitado. Aparentemente, o fantasma não havia só ficado invisível, por que não houve grito.
— Setne estava bem ali! — Zia protestou. — Amarrado pelas Fitas de Hathor! Como ele pôde simplesmente desaparecer?
Bes franziu a testa.
— Setne, é? Eu odeio aquela doninha! Vocês pegaram a sombra da serpente?
— Sim — respondi — mas Setne tem o Livro de Tot.
— Vocês pode realizar a execração sem ele? — Bes perguntou.
Sadie e eu trocamos olhares.
— Sim — nós dois dissemos.
— Então vamos ter que nos preocupar com Setne depois. Nós não temos muito tempo!

***

Eu acho que se você tem que viajar pela Terra dos Demônios, uma limusine é o jeito de ir. Infelizmente, o novo sedan de Bes estava tão sujo quanto o que nós tínhamos deixado no fundo do mediterrâneo na última primavera. Eu me pergunto se ele já o encomendou repleto de potes de comida chinesa, revistas pisadas e roupa suja.
Sadie foi no banco do passageiro. Zia e eu fomos na parte de trás. Bes pisou no acelerador e jogou um jogo de acerte-o-demônio.
— Cinco pontos se você bater naquele cara com cabeça de facão! — Sadie gritou.
Boom! Cabeça de facão voa sobre o teto.
Sadie aplaudiu.
— Dez pontos se você puder acertar aquelas coisas libélulas de uma só vez.
Boom, boom! Dois insetos muito grandes acertaram o para-brisa.
Sadie e Bes gargalhavam como loucos. Eu, eu estava muito ocupado gritando:
— Fenda! Cuidado! Geyser de fogo! Vai para a esquerda!
Me chame de prático. Eu queria viver. Agarrei a mão de Zia e tentei me segurar.
Quando nos aproximamos do centro da batalha. Eu pude ver os deuses empurrando os demônios de volta. Parecia que toda a Comunidade de Deuses Aposentados Acres Ensolarados havia desencadeado sua ira geriátrica nas forças das trevas. Taueret, a deusa hipopótama, estava na liderança vestindo sua roupa de enfermeira e salto alto, balançando uma tocha na mão e uma agulha hipodérmica na outra. Ela acertou um demônio na cabeça, então deu uma injeção na garupa de outro, fazendo-o desmaiar imediatamente.
Dois caras velhos de tanga estavam mancando por ali, atirando bolas de fogo no céu e incinerando demônios voadores. Um dos caras ficava gritando, “Meu pudim!” Sem nenhuma razão aparente.
Heket, a deusa sapo, pulava pela batalha, derrubando demônios com a sua língua. Ela parecia preferir os demônios com cabeças de insetos. A poucos metros dali, a velha deusa leoa Mekhit estava partindo demônios com o seu andador, gritando, “Miau!” e silvando.
— Nós deveríamos ajudá-los? — Zia perguntou.
Bes deu uma risadinha.
— Eles não precisam de ajuda. Essa é a maior diversão que eles têm em séculos. Eles têm um propósito de novo! Vão cobrir nossa retaguarda enquanto eu levo vocês até o rio.
— Mas nós não temos mais um barco! — protestei.
Bes levantou uma de suas sobrancelhas peludas.
— Você tem certeza disso? — Ele diminuiu a velocidade e abaixou o vidro da janela. — Ei docinho! Tudo bem aí?
Taueret se virou e deu para ele um grande sorriso de hipopótamo.
— Nós estamos bem, bolinho de mel! Boa sorte!
— Eu vou voltar! — ele prometeu.
Ele jogou um beijo para ela, e pensei que Taueret fosse desmaiar de felicidade.
A Mercedes cantou o pneu.
— Bolinho de mel? — perguntei.
— Ei garoto — Bes rosnou. — eu critico seus relacionamentos?
Eu não tive coragem de olhar para Zia, mas ela apertou minha mão. Sadie ficou quieta. Talvez ela estivesse pensando em Walt.
A Mercedes pulou uma última fenda de fogo e bateu na areia parando na praia de ossos. Apontei para os destroços do Rainha Egípcia.
— Vê? Sem barco.
— Ah, sim? — Bes perguntou. — Então o que é aquilo?
Acima no rio, uma luz brilhava na escuridão.
Zia inalou bruscamente.
— Rá — ela disse. — O barco do sol se aproxima.
Enquanto a luz chegava mais perto, vi que ela estava certa. A vela branca e dourada se aproximava. Esferas brilhantes esvoaçavam ao redor do convés do barco. O deus com cabeça de crocodilo Sobek estava na proa, batendo com uma vara imensa ocasionalmente em monstros aleatórios no rio. E sentado em um trono de fogo no meio do barco do sol estava o velho deus Rá.
— Olááááá! — ele gritou por cima da água. — Nós temos biscoooitooosss!
Sadie beijou Bes na bochecha.
— Você é brilhante!
— Ei, agora — o anão resmungou. — Você vai deixar Taueret com ciúmes. Isso só aconteceu porque chegamos na hora certa. Se tivéssemos perdido o barco do sol, teríamos ficado sem sorte.
Aquele pensamento me fez estremecer.
Por milênios, Rá tinha seguido seu ciclo – navegando no Duat no pôr do sol, viajando ao longo do Rio da Noite até ele emergir no mundo mortal ao amanhecer. Mas era uma vigem só de ida, e o barco mantinha um cronograma apertado. Assim que Rá passava pelas várias Casas da Noite, seus portões se fechavam até a próxima noite, tornando fácil para mortais como nós ficarmos presos. Sadie e eu tínhamos passado por isso antes, e não tinha sido legal.
Enquanto o barco se dirigia à costa, Bes nos deu um sorriso torto.
— Prontas, crianças? Tenho a impressão de que as coisas lá em cima no mundo mortal não vão estar muito bonitas.
Aquela foi a primeira coisa no dia que não me surpreendeu.
As luzes brilhantes baixaram a prancha, e nós subimos a bordo para o que poderia ser o último nascer do sol da história.

Nenhum comentário:

Postar um comentário