segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Trono de Fogo - Sadie

Capítulo 8 - Grandes atrasos na estação de Waterloo (desculpem-nos pelo babuíno gigante)

O metrô de Londres tinha uma acústica encantadora. O som ecoava através dos túneis, assim, enquanto nós descíamos, eu podia ouvir o barulho dos trens, dos músicos tocando por moedas e, claro, o deus babuíno assassino que rugia por sangue enquanto pulverizava as catracas atrás de nós.
Com as ameaças de terrorismo e segurança intensificada, podia-se ter esperado alguns policiais à disposição, mas, infelizmente, não a esta hora da noite, e não nesse tipo de estação relativamente pequena.
Sirenes tocaram na rua acima, mas estaríamos mortas há muito tempo quando a ajuda mortal chegasse. E se a polícia tentasse atirar no babuíno enquanto ele possuía o corpo do vovô... não. Eu me forcei a não pensar sobre isso. Anúbis tinha sugerido que eu viajasse pelo subterrâneo. E que se eu tivesse de lutar, deveria encontrar uma ponte. Eu tive que ficar com esse plano.
Não havia muita escolha de trens em Canary Wharf. Felizmente, a linha Jubilee estava rodando em tempo. Fomos para a plataforma, pulamos a bordo do último vagão quando as portas estavam se fechando e desabamos em um banco.
O trem seguiu para dentro do túnel escuro. Atrás de nós, eu não vi nenhum sinal de Babi ou Nekhbet perseguindo-nos.
― Sadie Kane ― Emma arquejou. ― Você vai, por favor, nos dizer o que está acontecendo?
Minhas pobres amigas. Eu nunca tinha colocado-as em tantos problemas, nem mesmo quando ficamos presas no vestiário masculino na escola. (Longa história, envolvendo uma aposta de cinco libras, cuecas de Dylan Quinn, e um esquilo. Talvez eu te conte mais tarde.)
Os pés de Emma estavam com cortes e cheios de bolhas por correr descalça. Seu suéter rosa parecia uma pele de poodle mutilada, e seus óculos haviam perdido várias lantejoulas. O rosto de Liz estava vermelho como se houvesse recebido um cartão de dia dos namorados. Ela tinha tirado sua jaqueta jeans, o que nunca fazia, já que ela estava sempre com frio. Seu top branco estava manchado de suor. Seus braços eram tão sardentos, que me lembrou das constelações de Nut, deusa do céu.
Das duas, Emma parecia mais irritada, esperando pela minha explicação. Liz parecia horrorizada, sua boca se movia como se quisesse falar, mas tivesse perdido suas cordas vocais. Eu pensei que ela faria algum comentário sobre os deuses sanguinários nos perseguindo, mas quando ela finalmente encontrou sua voz, ela disse:
― Aquele garoto te beijou!
Liz tem suas prioridades bem definidas.
― Eu vou explicar ― prometi. ― Sei que fui uma amiga horrível por arrastar vocês duas para isso. Mas, por favor, me deem um minuto. Preciso me concentrar.
― Concentrar-se em quê? ― Emma indagou.
― Emma, silêncio! ― Liz censurou. ― Ela disse para deixá-la se concentrar.
Fechei os olhos, tentando acalmar os meus nervos. Não foi fácil, especialmente com público. Sem o meu material, no entanto, eu estava indefesa, e não era provável que eu tivesse outra chance de recuperá-los. Pensei: Você pode fazer isso, Sadie. É só alcançar a outra dimensão. Só abrir um rasgo no tecido da realidade.
Estendi a mão. Nada aconteceu. Tentei de novo, e minha mão desapareceu no Duat. Liz gritou. Felizmente, não perdi minha concentração (ou minha mão). Meus dedos se fecharam em torno da alça de minha bolsa mágica e puxei-a. Emma arregalou os olhos.
― Isso foi incrível. Como você fez isso?
Fiquei me perguntando a mesma coisa, na verdade. Dadas as circunstâncias, eu não podia acreditar que tinha conseguido apenas em minha segunda tentativa.
― É, hum... mágica ― respondi.
Minhas colegas me encararam, perplexas e assustadas, e a enormidade dos meus problemas de repente desabou sobre mim.
Um ano atrás, Liz, Emma e eu teríamos subido neste trem para ir ao shopping ou ao cinema. Nós teríamos rido dos ridículos toques do telefone da Liz ou das fotos editadas das meninas que Emma detestava na escola. As coisas mais perigosas na minha vida tinham sido a culinária da vovó e o temperamento do vovô quando via minhas notas do trimestre. Agora, vovô era um babuíno gigante e vovó era um abutre do mal. Minhas amigas me olhavam como se eu tivesse caído de outro planeta, o que não estava longe da verdade.
Mesmo com o meu material mágico na mão, eu não tinha ideia do que ia fazer. Eu não tinha mais os plenos poderes de Ísis ao meu comando. Se tentasse lutar com Babi e Nekhbet, eu poderia ferir meus avós e provavelmente me matar. Mas se eu não impedi-los, quem o faria? Possessão divina eventualmente mata o hospedeiro humano. Isso quase aconteceu com o tio Amós, que era um mago e sabia como se defender. Vovó e Vovô eram idosos, frágeis e muito “não-mágicos”. Eles não tinham muito tempo.
Desespero, muito pior do que as asas da deusa abutre, despencou sobre mim. Eu não sabia que estava chorando até Liz colocar a mão no meu ombro.
― Sadie, querida, desculpa. É apenas... um pouco estranho, sabe? Diga-nos qual é o problema. Deixe-nos ajudar.
Minha respiração estava instável. Eu sentia tanta falta das minhas colegas. Eu sempre as achei um pouco estranhas, mas agora elas pareciam alegres e normais, parte de um mundo que não era mais meu. Ambas estavam tentando bancar as corajosas, mas eu sabia que elas estavam apavoradas por dentro.
Eu gostaria de deixá-las, escondê-las, mantê-las fora de perigo, mas me lembrei do que tinha dito Nekhbet: Elas vão se tornar aperitivos encantadores. Anúbis tinha advertido que a deusa abutre ia caçar as minhas amigas e machucá-las apenas para me atingir. Pelo menos se elas estivessem comigo, eu poderia tentar protegê-las. Eu não queria arruinar suas vidas do jeito que a minha foi arruinada, mas eu devia a elas a verdade.
― Isso pode soar absolutamente maluco ― avisei.
Eu contei-lhes a versão mais curta possível de porque eu deixei Londres, como os deuses egípcios tinham escapado no mundo e como eu descobri minha ascendência como uma maga. Eu disse a elas sobre a nossa luta com Set, a ascensão de Apófis, e nossa ideia insana para despertar o deus Rá. Duas estações passaram, mas eu me senti tão bem ao contar a história às minhas amigas que perdi a noção do tempo.
Quando eu terminei, Liz e Emma se entreolharam, sem dúvida, procurando como dizer delicadamente que eu estava maluca.
― Eu sei que parece impossível, mas...
― Sadie, acreditamos em você ― disse Emma.
Eu pisquei incrédula.
― Acreditam?
― Claro que sim.
O rosto de Liz estava corado, do jeito que ela fica depois de vários passeios de montanha russa.
― Eu nunca ouvi você falar sobre qualquer coisa tão a sério. Você... você mudou.
― É só que eu sou uma maga agora, e... e eu não posso acreditar no quanto isso soa estúpido.
― É mais do que isso ― Emma estudava meu rosto como se eu estivesse me transformando em algo assustador ― você parece mais velha. Mais madura.
A voz dela estava com um toque de tristeza, e eu percebi que minhas amigas e eu estávamos nos distanciando. Era como se nós estivéssemos em lados opostos de um largo abismo, e eu tinha a triste certeza de que a fenda estava grande demais para que eu pulasse para o outro lado.
― Seu namorado é maravilhoso ― Liz acrescentou, provavelmente pra me animar.
― Ele não é meu... ― Eu parei.
Não havia como convencer Liz. Além disso, eu estava tão confusa sobre Anúbis que nem sabia por onde começar. O trem desacelerou. Eu vi o letreiro da estação de Waterloo.
― Oh deus. Eu devia ter saído na London Bridge, eu preciso de uma ponte!
― Não podemos voltar? ― Liz perguntou.
Um rugido no túnel atrás de nós respondeu a pergunta. Eu vi um corpo enorme com um pelo prateado brilhante galopando ao longo dos trilhos. Seu pé tocou o metal do trilho e faíscas voaram, mas o deus babuíno se moveu pesadamente, inabalado. Quando o trem freou, Babi começou a ganhar terreno.
― Sem volta ― falei ― vamos ter de fazer isso na Ponte de Waterloo.
― Ela está a quase um quilômetro da estação! ― Liz protestou ― e se ele nos alcançar?
Eu vasculhei minha bolsa e peguei meu novo cajado. Instantaneamente ele se expandiu até sua extensão total. O leão entalhado na ponta resplandecia com uma luz dourada.
― Então eu acho que teremos de lutar.
Devo descrever a estação de Waterloo como ela era antes ou depois de destruirmos ela? O pátio principal era enorme, tinha um piso de mármore polido, varias lojas, quiosques e um teto de vidro com vigas que era alto o suficiente para que um helicóptero voasse tranquilamente sob ele. Rios de pessoas entravam e saiam, misturavam-se, separavam-se e ocasionalmente colidiam enquanto iam em direção as diversas escadas rolantes e plataformas.
Quando eu era pequena, a estação me apavorava. Eu temia que o gigante relógio vitoriano suspenso no teto caísse e me esmagasse. As vozes dos locutores eram muito altas (eu prefiro ser a coisa mais barulhenta no ambiente em que estou, obrigada). As massas de trabalhadores embaixo das tabuas de partida, procurando por seus trens me lembravam uma multidão em um filme de zumbi que, eu admito, não devia ter assistido ainda criança, mas eu sempre fui muito precoce.
De qualquer forma, minhas colegas e eu estávamos correndo pela estação principal, empurrando todos em nosso caminho até a saída mais próxima, quando uma escadaria atrás de nós explodiu. A multidão se dispersou quando Babi escalou a alvenaria. Empresários gritavam, deixando cair suas maletas e correndo por suas vidas.
Liz, Emma e eu nos esprememos contra a parede de um quiosque para evitar sermos pisoteadas por um grupo de turistas gritando em italiano.
Babi uivou. Seu pelo estava coberto de sujeira e fuligem de sua corrida pelo túnel. O casaco de malha do vovô estava em frangalhos em seu braço, mas miraculosamente seus óculos continuavam no rosto. Ele cheirou o ar, provavelmente tentando captar meu cheiro. Então uma sombra negra passou por cima de sua cabeça.
― Aonde está indo, Sadie Kane? ― Guinchou Nekhbet.
Ela disparou pelo terminal, descendo até a já aterrorizada multidão.
― Você vai fugir da luta? Você não tem honra!
A calma voz de um locutor ecoou pelo terminal. “O trem das 8:02 para Basingstoke chegará pela plataforma três”.
ROOOAR!
Babi bateu numa estatua de bronze de alguém famoso e arrancou sua cabeça. Um policial correu armado com uma pistola. Antes que eu pudesse gritar pra que ele parasse, ele atirou em Babi. Liz e Emma gritaram. A bala ricocheteou no pelo de Babi como se ele fosse feito de titânio e quebrou um letreiro do Mcdonalds. O policial desmaiou.
Eu nunca tinha visto tantas pessoas esvaziarem o terminal tão rápido. Cheguei a pensar em segui-los, mas decidi que seria muito perigoso. Eu não podia deixar esses deuses insanos matarem centenas de pessoas apenas porque eu estava entre elas; e se tentássemos segui-las, apenas seriamos presas ou pisoteadas pelas pessoas em sua fuga desesperada.
― Sadie, olha!
Liz apontou para cima e Emma gemeu. Nekhbet deslizou pela viga mestra e lá se empoleirou com os pombos. Ela olhou para baixo e gritou para Babi.
― Ela está aqui, meu caro! Aqui!
― Eu queria que ela se calasse ― resmunguei.
― Ísis foi tola ao escolher você ― Nekhbet gritou ― eu vou comer suas entranhas!
ROOOAR!, concordou Babi vigorosamente.
― O trem das 8:14 para Brighton está atrasado ― disse o locutor ― Nós pedimos desculpas pela inconveniência.
Babi nos viu. Seus olhos ardiam em uma fúria primitiva, mas eu também vi algo do vovô em sua expressão. O jeito que ele enrugou as sobrancelhas e projetou o queixo do mesmo jeito que o vovô fazia quando ficava zangado com a televisão e gritava com os jogadores de rúgbi. Ver essa expressão no deus babuíno quase me fez perder a coragem.
Eu não iria morrer aqui. Não iria deixar esses dois deuses repulsivos machucarem minhas amigas e matarem meus avós.
Babi veio devagar em nossa direção. Agora que ele nos achara, não tinha nenhuma pressa em nos matar. Ele deu um profundo latido da esquerda para a direita, como se estivesse convidando, chamando amigos para o jantar.
Emma cravou os dedos em meu braço e Liz sussurrou:
― Sadie...?
A multidão já tinha se dispersado quase completamente. Nenhum policial a vista. Talvez tenham fugido ou talvez estivessem todos indo para Canary Wharf sem perceber que o problema estava aqui agora.
― Nós não vamos morrer ― prometi às minhas colegas ― Emma, segure meu cajado.
― Seu... ah, certo!
Ela pegou o cajado cautelosamente como se eu a tivesse dado um lança-foguetes, o que eu suponho que poderia ser com a magia adequada.
― Liz ― ordenei ― fique de olho no babuíno.
― Vigiando o babuíno ― ela disse. ― Meio difícil perder isso de vista.
Eu vasculhei minha bolsa mágica, fazendo um inventário desesperado. Varinha... Boa para defesa, mas para dois deuses de uma vez eu precisava de algo melhor. Filhos de Hórus e um giz mágico... esse não era o melhor lugar para desenhar um círculo de proteção. Eu tinha que chegar até a ponte. Precisava arrumar tempo pra sair do terminal.
― Sadie... ― Liz avisou.
Babi pulou no telhado de uma loja de produtos de beleza. Ele rugiu e babuínos menores começaram a aparecer vindo de todas as direções, escalando as cabeças dos passageiros em fuga, balançando nas vigas e pulando nas escadarias das lojas. Havia dúzias deles, todos vestindo camisas de basquete pretas e prateadas. O basquete era o esporte internacional dos babuínos?
Até hoje, eu havia encontrado poucos babuínos. Os que eu conheci, como Khufu e seus sociáveis amigos, eram os animais sagrados de Tot, deus do conhecimento. Eles geralmente eram sensatos e prestativos. Suspeitei, entretanto, que a tropa de babuínos de Babi era totalmente diferente. Eles tinham pelo vermelho-sangue, olhos selvagens e presas que fariam um tigre dente-de-sabre se sentir humilhado. Eles se aproximavam, rosnando enquanto se preparavam para atacar.
Tirei um bloco de cera da minha bolsa. Não, não tenho tempo para moldar um shabti. Dois amuletos tyet, a marca sagrada de Ísis – ah, esses podem ser úteis. Então achei um frasco de vidro fechado com uma rolha que eu havia me esquecido. Dentro havia uma lama escura: minha primeira tentativa de fazer uma poção. Isso ficou no fundo da minha bolsa por anos, porque eu nunca tinha estado desesperada o suficiente para testá-lo. Eu sacudi a poção. O liquido brilhou com uma pálida luz verde. A lama se agitou lá dentro. Eu abri o vidro. Aquilo cheirava pior que Nekhbet.
― O que é isso? ― Liz perguntou. ― É repugnante
― Pergaminho de animação misturado com óleo, água e alguns ingredientes secretos. Temo que tenha ficado um pouco espesso.
― Animação? ― Emma perguntou ―Você vai invocar desenhos?
― Seria ótimo ― eu admiti. ― Mas isso vai ser um pouco mais perigoso. Se eu fizer isso certo, poderei absorver uma grande quantidade de magia sem entrar em combustão.
― E se você errar? ― Liz perguntou.
Eu entreguei a cada uma delas um amuleto de Ísis.
― Segurem isso. Quando eu disser corram, vão para um ponto de táxi. Não parem.
― Sadie ― Emma protestou ― por que diabos...
Antes que eu perdesse a coragem, engoli a poção. Acima de nós Nekhbet cacarejou.
― Desista, você não pode se opor a nós!
A sombra de suas asas pareceu se estender até cobrir todo o pátio, fazendo o último dos passageiros fugir e fazendo meu corpo pesar com o medo. Eu sabia que aquilo era só uma magia, mas a tentação de me entregar a uma morte rápida era avassaladora.
Alguns babuínos se distraíram com o cheiro de comida e foram para o McDonald‘s. Vários outros estavam perseguindo um condutor de trem, batendo nele com rolos de revistas de moda. Infelizmente, a maioria deles ainda estava focada em nós. Eles fizeram um largo anel ao redor do quiosque. De sua central de comando no topo da loja de produtos de beleza Babi uivou – um claro comando para atacar.
Então a poção atingiu minhas vísceras. Magia corria pelo meu corpo. Minha boca estava como se eu tivesse engolido um sapo morto, mas agora eu entendia porque as poções eram tão populares entre os magos antigos.
O feitiço de animação, que teria me tomado dias para escrever e pelo menos uma hora para lançar, estava agora ardendo em minha corrente sanguínea. Energia fluía na ponta dos meus dedos. Meu único problema era canalizar a magia, me certificando de que ela não me queimasse como uma batata frita.
Eu chamei Ísis do melhor jeito que pude, tocando seu poder para me ajudar a dar forma ao encantamento. Eu imaginei o que eu queria e a palavra de poder adequada surgiu em minha mente: Protect N’dah. Eu liberei a magia. Um hieróglifo dourado apareceu na minha frente, como se estivesse queimando. Uma oscilante luz dourada ondulou pelo pátio. A tropa de babuínos hesitou. Babi tropeçou no telhado da loja. Até Nekhbet piou e hesitou sobre as vigas do teto.
Por toda estação, objetos inanimados começaram a se mover. Mochilas e pastas subitamente começaram a voar. Prateleiras de revistas, chicletes, balas e diversas bebidas geladas explodiam das lojas para atacar a tropa de babuínos. A cabeça de bronze decepada disparou do nada e atingiu o peito de Babi, jogando-o para os fundos da loja.
Um tornado rosa de jornais Financial Times rodou em direção ao teto. Eles tragaram Nekhbet, que tropeçou e caiu cegamente de sua viga, gritando em um turbilhão de rosa e preto.
― Corram! ― Gritei para as minhas amigas.
Nós corremos para a saída, costurando entre os babuínos que estavam ocupados demais para nos impedir. Um deles estava sendo esmurrado por meia dúzia de garrafas de água brilhante. Outro estava apanhando de uma pasta e vários BlackBerrys. Babi tentou se levantar, mas um turbilhão de produtos da loja de cosméticos surgiu ao redor dele – loções, esponjas e xampus estavam todos o golpeando, espirrando nos seus olhos e tentando maquiá-lo. Ele berrou em fúria, escorregou e caiu de volta à loja em ruínas.
Eu duvidava que minha magia fizesse algum dano permanente aos deuses, mas podia deixá-los ocupados por alguns minutos.
Liz, Emma e eu saímos do terminal. Com a estação completamente evacuada, eu não esperava que houvesse algum táxi no ponto, e realmente o meio-fio estava deserto. Eu me resignei em correr todo o caminho até a Ponte de Waterloo, já que Emma estava descalça e a poção tinha me deixado enjoada.
― Olhem! ― disse Liz.
― Oh, muito bem, Sadie ― disse Emma.
― O quê? ― perguntei. ― O que eu fiz?
Então eu vi o chofer – um homem extremamente baixo, mal vestido parado no fim da rua, usando uma roupa preta e segurando um letreiro onde se lia: KANE. Eu supus que minhas amigas acharam que eu o havia convocado por magia. Antes que eu pudesse lhes corrigir, Emma disse “Vamos!” e elas correram em direção ao homenzinho.
Eu não tinha escolha se não segui-las. Eu me lembrei do que Anúbis disse sobre mandar meu “motorista” me pegar. Imaginei que este devia ser ele, mas quanto mais perto chegava, menos ansiosa estava para conhecê-lo.
Ele tinha metade do meu tamanho, era mais robusto que meu tio Amós e mais feio que qualquer um na Terra. Seu rosto parecia o de um Neandertal. Abaixo de sua única sobrancelha, havia um olho maior que o outro. Parecia que sua barba havia sido usada para limpar panelas engorduradas. Sua pele estava cheia de espinhas e verrugas, seu cabelo parecia um ninho de pássaros que fora queimado e então pisoteado.
Quando ele me viu, franziu o cenho, o que não ajudou a melhorar sua aparência.
― Bem a tempo.
Seu sotaque era americano. Ele cuspiu em seu punho, e o cheiro de curry quase me fez desmaiar.
― A amiga de Bastet? Sadie Kane?
― Hum... Possivelmente.
Decidi ter uma conversa séria com Bastet sobre seu circulo de amizades.
― A propósito, há dois deuses tentando nos matar.
O homenzinho verruguento estalou os lábios, claramente não estava impressionado.
― Imagino que você queira chegar a uma ponte, então.
Ele se virou para o meio-fio e gritou “BOO!”
Uma limusine Mercedes preta surgiu do nada. O chofer olhou para trás e arqueou a sua sobrancelha.
― Bem, entrem!
Eu nunca estive um uma limusine antes. Espero que a maioria delas seja melhor que a nossa. O banco de trás estava repleto de recipientes de curry, papéis velhos, sacos de batatas fritas e várias meias sujas. Mesmo assim, Emma, Liz e eu nos amontoamos no lado de trás, já que nenhuma se atreveu a ir na frente.
Você pode pensar que eu estava louca por entrar num carro com um homem estranho. Você está certo, é claro. Mas Bastet me prometeu ajuda e Anúbis me disse para esperar meu motorista.
O fato de que nossa ajuda era um baixinho de higiene ruim e com uma limusine mágica não foi muito surpreendente. Eu já vi coisas mais estranhas. Além do mais, eu não tinha muita escolha. O efeito da poção havia passado, e o esforço de usar tanta magia me deixou enjoada e de pernas bambas. Eu não tinha certeza se poderia ir andando até a Ponte de Waterloo sem desmaiar.
O chofer pisou fundo e saímos da estação. A polícia a havia cercado, mas nossa limusine passou pelas barricadas, um grupo de vans da BBC, uma multidão de espectadores e ninguém prestou nenhuma atenção em nós. O chofer começou a assobiar uma melodia que parecia com a de Short People. Sua cabeça mal chegava ao apoio de cabeça do banco. Tudo o que eu podia ver dele era um ninho de cabelo sujo e um conjunto de mãos peludas no volante. Preso no quebra-sol estava um cartão de identificação com sua imagem... ou algo parecido. Ela havia sido tirada de qualquer jeito, mostrando apenas um nariz fora-de-foco e uma boca horrível, como se ele tivesse tentado comer a câmera. O cartão dizia: Seu motorista é BES.
― Você é Bes, posso supor ― falei.
― Sim, Bes, ao seu dispor ― disse ele.
― Seu carro tem um fedor ― murmurou Liz.
― Se alguém mais rimar ― Emma resmungou. ― Eu vou vomitar.
― É Sr. Bes? ― perguntei, tentando colocar o seu nome da mitologia egípcia.
Eu tinha quase certeza de que não tinha um deus dos motoristas.
― Lorde Bes? Bes, o Extremamente Baixo?
― Só Bes ― ele resmungou. ― Com um S. E não, esse NÃO é um nome feminino. Chame-me de Bessie, e eu vou ter que matar vocês. Quanto a ser pequeno, eu sou o deus anão, então o que você esperava? Oh, há uma garrafa d‘agua lá atrás se você estiver com sede.
Olhei para baixo. Rolando sobre os meus pés estavam duas garrafas parcialmente vazias de água. Uma delas tinha batom na tampa. A outra parecia que tinha sido mastigada.
― Não estou com sede ― decidi.
Liz e Emma murmuraram em acordo. Fiquei surpresa, elas não estavam absolutamente catatônicas após os eventos da noite, mas, novamente, elas eram minhas colegas. Eu não saio com meninas de vontade fraca, saio? Mesmo antes de eu descobrir a magia, era necessária uma constituição forte e uma quantidade razoável de adaptação para ser minha amiga.
[Não faça comentários, Carter.]
Veículos da polícia estavam bloqueando a Ponte de Waterloo, mas Bes desviou deles, pulou no pavimento e continuou dirigindo. A polícia nem piscou.
― Estamos invisíveis? ― perguntei.
― Para a maioria dos mortais ― Bes arrotou. ― Eles são muito estúpidos, não são? Exceto a companhia presente e etc.
― Você é realmente um deus? ― Liz perguntou.
― Enorme ― disse Bes. ― Sou enorme no mundo dos deuses.
― Um enorme deus dos anões ― Emma ficou admirada. ― Você quer dizer como na Branca de Neve, ou...
― Todos os anões.
Bes acenou com a mão efusivamente, o que me deixou um pouco nervosa.
― Egípcios eram inteligentes. Eles honravam pessoas que nasciam incomuns. Anões eram considerados extremamente mágicos. Então sim, eu sou o deus dos anões.
Liz limpou a garganta.
― Não há um termo mais educado que é suposto que se use hoje em dia? Como... pessoa pequena, verticalmente deficiente ou...
― Eu não vou chamar a mim mesmo de o deus das pessoas verticalmente deficientes ― resmungou Bes. ― Eu sou um anão! Agora, aqui estamos nós, na hora certa.
Ele virou o carro em uma parada no meio da ponte. Olhando para trás, quase perdi o conteúdo de meu estômago. Uma forma de asas negras estava sobrevoando o rio. No final da ponte, Babi estava cuidando da barricada do seu próprio modo. Ele estava jogando carros da polícia no rio Tâmisa, enquanto os oficiais se dispersavam e disparavam suas armas, embora as balas parecessem não ter efeito sobre o pelo de aço do deus babuíno.
― Por que paramos? ― Emma perguntou.
Bes levantou-se no seu assento e esticou-se, o que ele podia fazer facilmente.
― É um rio ― disse ele. ― Bom local para combater os deuses. Toda a força da natureza que corre sob os nossos pés torna difícil ficar ancorados no mundo mortal.
Olhando mais de perto, pude ver o que ele queria dizer. Seu rosto estava brilhando como uma miragem. Um caroço se formou na minha garganta. Este era o momento da verdade. Eu me senti mal por causa da poção e do medo. Não tinha certeza se eu tinha magia suficiente para combater esses dois deuses. Mas eu não tinha escolha.
― Liz, Emma ― eu disse. ― Nós estamos saindo.
― Sa...indo? ― Liz choramingou.
Emma engoliu a seco.
― Tem certeza?
― Eu sei que vocês estão com medo, mas precisam fazer exatamente o que eu digo.
Elas acenaram hesitantes e abriram as portas do carro. Coitadas. Mais uma vez eu gostaria de tê-las deixado para trás, mas, honestamente, depois de ver os meus avós sendo possuídos, eu não podia suportar a ideia de deixar as minhas amigas fora da minha vista.
Bes reprimiu um bocejo.
― Precisa da minha ajuda?
― Hum...
Babi estava cambaleando em nossa direção. Nekhbet descrevia círculos em cima dele, gritando ordens. Se o rio estava lhes afetando, eles não mostram isso. Eu não vejo como um deus anão poderia ficar contra os dois, mas eu disse:
― Sim. Preciso de ajuda.
― Certo. ― Bes estalou seus dedos. ― Então saia.
― O quê?
― Eu não posso trocar de roupa com você no carro, posso? Eu tenho que colocar minha roupa feia.
― Roupa feia?
― Vão! ― O anão ordenou. ― Eu sairei em um minuto.
Não precisou de muito estímulo. Nenhuma de nós queria ver mais de Bes do que o necessário. Saímos, e Bes fechou as portas atrás de nós. A película das janelas era muito escura, então eu não podia ver o que acontecia dentro do carro, mas aposto que Bes deveria estar relaxando e ouvindo música enquanto nós éramos massacradas. Eu certamente não tinha muita esperança que mudar de roupa fosse ajudar para derrotar Nekhbet e Babi. Olhei para minhas companheiras assustadas, então os dois deuses investiram em nossa direção.
― Nós vamos fazer a nossa resistência final aqui.
― Oh, não, não ― disse Liz. ― Eu realmente não gosto do termo “resistência final”.
Eu vasculhei minha bolsa e tirei um pedaço de giz e as estátuas dos quatro filhos de Hórus.
― Liz, ponha as estátuas nos pontos cardeais Norte, Sul, e assim por diante. Emma pegue o giz. Desenhe um círculo conectando as estátuas. Temos apenas alguns segundos.
Eu troquei o giz pelo meu cajado, então tive uma sensação horrível de déjà vu. Eu tinha acabado de dar ordens para minhas amigas agirem, exatamente como Zia Rashid tinha me ordenado na primeira vez que tínhamos enfrentado um deus inimigo juntas. Eu não queria ser como Zia. Por outro lado, percebi pela primeira vez, quanta coragem ela deve ter tido para enfrentar uma deusa protegendo ao mesmo tempo dois completos novatos.
Eu odeio dizer isso, mas me deu um novo respeito por ela. Queria ter sua coragem. Eu levantei meu cajado e minha varinha e tentei me concentrar. O tempo pareceu desacelerar. Estendi meus sentidos até que eu estava consciente de tudo ao meu redor. Emma rabiscando com giz para terminar o círculo, o coração de Liz batendo muito rápido, os maciços pés de Babi batendo na ponte enquanto corria em direção a nós, o Tâmisa fluindo debaixo da ponte, e as correntes do Duat fluindo ao meu redor poderosamente.
Bastet me disse uma vez que o Duat era como um oceano de magia sob a superfície do mundo mortal. Se isso era verdade, então este lugar – uma ponte sobre a água em movimento – era como um cruzamento de correntes. Magia flui mais fortemente aqui. Poderia afogar os desavisados. Até mesmo os deuses poderiam ser varridos.
Eu tentei ancorar-me concentrando na paisagem ao meu redor. Londres era minha cidade. Daqui eu podia ver tudo – as Casas do Parlamento, o London Eye e até mesmo a agulha de Cleópatra na Victoria Embankment, onde minha mãe tinha morrido. Se falhasse agora, tão perto de onde minha mãe tinha feito sua última magia... Não. Eu não podia deixar isso chegar a esse ponto.
Babi estava a apenas um metro de distância quando Emma terminou o círculo. Eu toquei o giz com meu cajado, e uma luz dourada irrompeu do círculo. O deus babuíno bateu em meu campo de força como se fosse uma parede de metal. Ele cambaleou para trás. Nekhbet afastou-se no último segundo e voou em torno de nós, grasnando em frustração.
Infelizmente, o círculo de luz começou a piscar. Minha mãe me ensinou quando eu era jovem: para cada ação, há uma reação igual e oposta. Que se aplicam à magia, bem como ciência. A força do ataque de Babi me deixou vendo manchas pretas. Se ele atacasse novamente, eu não tinha certeza se poderia manter o círculo.
Eu me perguntava se deveria sair dele, tornando-me o alvo. Se eu canalizasse alguma energia para o círculo antes, ele poderia se manter por um tempo, mesmo se eu morresse. Pelo menos, minhas amigas iam viver.
Zia Rashid tinha provavelmente pensado a mesma coisa no último Natal, quando ela saiu do seu círculo para proteger Carter e eu. Ela realmente tinha sido corajosa.
― Aconteça o que acontecer comigo ― eu disse às minhas amigas ― permaneçam dentro do círculo.
― Sadie ― Emma disse ― eu conheço esse tom de voz. O que quer que você esteja planejando, não faça.
― Você não pode nos deixar ― Liz defendeu. Então ela gritou para Babi em uma voz esganiçada: ― V-vá embora, seu macaco horroroso coberto de espuma! Minha amiga aqui não quer destruí-lo, mas... mas ela vai!
Babi rosnou. Ele estava coberto de espuma, graças ao ataque na loja de produtos de beleza, e seu cheiro estava maravilhoso. Várias cores diferentes de espuma de xampu e sais de banho estavam emaranhadas na sua pele prateada.
Nekhbet não tinha se saído tão bem. Ela estava empoleirada no topo de um poste nas proximidades, parecendo como se tivesse sido esmurrada por todos os pratos da lanchonete do metrôPedaços de presunto, queijo e batata frita estavam presos em seu manto de penas, provas das bravas tortas de carne encantadas que tinham dado suas breves vidas para atrasá-la. Seu cabelo estava decorado com garfos de plástico, guardanapos e pedaços de papel de jornal rosa. Ela parecia muito interessada em me fazer em pedaços.
A única boa notícia: os capangas de Babi, evidentemente, não tinham saído da estação de trem. Eu imaginei uma tropa de babuínos empurrados contra viaturas policiais e algemados. Isso levantou meu ânimo um pouco.
Nekhbet rosnou.
― Você nos surpreendeu na estação, Sadie Kane. Eu admito que foi bem feito. E nos trazendo nesta ponte, boa tentativa. Mas nós não somos tão fracos. Você não tem força para lutar contra nós por mais tempo. Se você não pode nos derrotar, não tem como levantar Rá.
― Você deveria estar me ajudando ― eu disse. ― Não tentando me impedir.
― Uhh! ― Babi ganiu.
― De fato ― concordou a deusa abutre. ― Os fortes sobrevivem sem ajuda. Os fracos devem ser abatidos e comidos. Qual deles é você, criança? Seja honesta.
A verdade? Eu estava prestes a cair. A ponte parecia estar girando abaixo de mim. Sirenes soavam em ambas as margens do rio. Mais policiais chegaram às barricadas, mas por hora, não fizeram nenhum esforço para avançar.
Babi arreganhou os dentes. Ele estava tão perto que eu podia sentir o cheiro de xampu de seu pelo e seu hálito horrível. Então eu olhei para os óculos do vovô ainda presos na sua cabeça, e toda a minha raiva voltou.
― Teste-me ― eu disse. ― Eu sigo o caminho de Ísis. Fique no meu caminho, e eu vou te destruir.
Eu consegui iluminar meu cajado. Babi deu um passo atrás. Nekhbet vibrou em seu poste. Sua forma brilhou por alguns instantes. O rio os estava enfraquecendo, soltando a sua ligação ao mundo dos mortais, como interferência em uma linha de celular. Mas não era o suficiente. Nekhbet deve ter visto o desespero na minha cara. Ela era um abutre. Era especializada em saber quando a presa estava acabada.
― Uma boa última tentativa criança ― falou ela, quase com gratidão ― mas você não tem mais nada. Babi, ataque!
O deus babuíno levantou-se sobre as patas de trás. Eu me preparei para carregar e liberar uma explosão final de energia – usando minha própria fonte de vida na esperança de vaporizar os deuses. Eu tinha que ter certeza que Liz e Emma sobreviveriam.
Então a porta da limusine se abriu atrás de mim. Bes anunciou:
― Ninguém vai atacar ninguém! Exceto por mim, é claro.
Nekhbet gritou alarmada. Virei-me para ver o que estava acontecendo. Imediatamente, desejei que pudesse queimar meus olhos e arrancá-los.
Liz gaguejou.
― Senhor, não! Isso é crime!
― Agh! ― Emma gritou, em uma perfeita fala de babuíno. ― Faça-o parar!
Bes tinha realmente vestido a sua roupa feia. Ele subiu no telhado da limusine e parou ali, pernas retas, braços cruzados, como Superman – exceto que somente com roupa de baixo.
Para aqueles de coração fraco, não vou entrar em grandes detalhes, mas Bes, em todo seu um metro de altura, estava mostrando seu físico nojento – sua barriga proeminente, pernas peludas, os pés horríveis, tudo um pouco flácido – e vestindo apenas uma sunga azul. Imagine a pessoa mais feia que você já viu numa praia pública, a pessoa para quem roupa de banho deveria ser ilegal. Bes parecia pior do que isso.
Eu não sabia o que dizer, exceto:
― Ponha alguma roupa!
Bes riu – o tipo de gargalhada que diz Ha-ha! Eu sou incrível!
― Não até que eles saiam ― disse ele. ― Ou vou ser obrigado a assustá-los de volta ao Duat.
― Isso não é da sua conta, deus anão! ― Nekhbet rosnou, desviando os olhos de sua horripilância. ― Vá embora!
― Essas crianças estão sob minha proteção ― insistiu Bes.
― Eu não sei você ― falei ― eu não te conhecia antes de hoje.
― Bobagem. Você expressamente pediu por minha proteção.
― Eu não pedi por um segurança de sunga!
Bes saltou da limusine e pousou na frente do meu círculo, colocando-se entre Babi e eu. O anão era ainda mais terrível por trás. Suas costas eram tão peludas que parecia um casaco de pelos. E atrás da sunga estava impresso orgulho anão. Bes e Babi circulavam-se, como lutadores. O deus babuíno tentou golpear Bes, mas o anão era ágil. Ele subiu pelo peito Babi e deu-lhe uma cabeçada no nariz. Babi cambaleou para trás enquanto o anão continuou martelando-o, usando seu rosto como uma arma mortal.
― Não o machuque! ― gritei. ― É o meu avô aí!
Babi caiu contra o parapeito. Ele piscou, tentando se orientar, mas Bes soprou sobre ele, e o cheiro de curry deve ter sido demais. Os joelhos do babuíno fraquejaram. Seu corpo brilhou e começou a contrair-se. Ele entrou em colapso na calçada e derreteu-se em um aposentado atarracado de cabelos brancos em um casaco esfarrapado.
― Vovô!
Eu não aguentei. Deixei o círculo de proteção e corri para seu lado.
― Ele vai ficar bem ― prometeu Bes. Então ele se virou em direção à deusa abutre. ― Agora é sua vez, Nekhbet. Saia!
― Eu roubei esse corpo de forma justa ― ela lamentou. ― Eu gosto de estar nele!
― Você pediu por isso.
Bes esfregou as mãos, respirou fundo, e fez algo que nunca serei capaz de apagar da minha memória. Eu poderia simplesmente dizer que ele fez uma careta e gritou BOO, o que seria tecnicamente correto, mas não seria nem o começo de transmitir o horror que senti.
A cabeça de Bes inchou. Sua mandíbula desarticulou-se até sua boca ter quatro vezes o tamanho anterior. Seus olhos se arregalaram como laranjas. Seus cabelos se arrepiaram para cima, como os de Bastet. Ele balançou a cara, sacudiu sua viscosa língua verde e rugiu BOOO! tão alto que o som ecoou no Tâmisa como um tiro de canhão. Esta explosão de pura feiura soprou as penas Nekhbet e drenou toda a cor de seu rosto. Ele arrancou a essência da deusa como papel de seda em uma tempestade. A única coisa que sobrou foi uma mulher velha tonta em um vestido estampado de flores, de cócoras sobre o poste.
― Oh, querida... ― Vovó desmaiou.
Bes pulou e a pegou antes que ela pudesse cair no rio. O rosto do anão voltou ao normal – bem, pelo menos seu nível normal de feiura – quando ele deitou a vovó na calçada ao lado do vovô.
― Obrigada ― agradeci a Bes. ― Agora, por favor você poderia colocar uma roupa?
Ele me deu um sorriso cheio de dentes, eu poderia viver sem isso.
― Está tudo bem, Sadie Kane. Vejo porque Bastet gosta de você.
― Sadie? ― Meu avô gemeu, as suas pálpebras abertas tremulando.
― Estou aqui, vovô. ― Acariciei sua testa. ― Como você se sente?
― Com um estranho desejo de comer mangas. ― Ele ficou vesgo. ― E, possivelmente, insetos. Você... que nos salvou?
― Não realmente ― admiti. ― Meu amigo aqui...
― Certamente ela te salvou ― disse Bes. ― Menina corajosa que é esta aqui. Uma ótima maga.
Vovô focou-se em Bes e fez uma careta.
― Deuses egípcios desprezíveis em suas infames roupas de banho reveladoras demais. É por isso que não fazemos magia.
Eu suspirei de alívio. Depois que vovô começou a reclamar, eu sabia que ia dar tudo certo. Vovó ainda estava desmaiada, mas a respiração dela parecia estável. A cor foi voltando ao seu rosto.
― Nós devemos ir ― Bes falou. ― Os mortais estão prontos para invadir a ponte.
Olhei para as barricadas e vi o que ele quis dizer. Uma equipe estava reunida – homens armados com fuzis, lança-granadas e provavelmente muitos outros brinquedos divertidos que poderiam nos matar.
― Liz, Emma! ― chamei. ― Ajudem-me com os meus avós.
Minhas amigas correram e começaram a ajudar vovô a sentar, mas Bes disse:
― Eles não podem vir.
― O quê? ― exigi. ― Mas você disse...
― Eles são mortais. Não pertencem a essa busca. Se nós vamos obter o segundo pergaminho de Vlad Menshikov, precisamos ir embora agora.
― Você sabe sobre isso?
Então me lembrei que ele tinha falado com Anúbis.
― Seus avós e amigos estarão mais seguros aqui ― disse Bes. ― A polícia vai interrogá-los, mas eles não vão ver pessoas idosas e crianças como uma ameaça.
― Nós não somos crianças ― Emma resmungou.
― Abutres... ― vovó sussurrou em seu sono. ― Tortas de Carne...
Vovô tossiu.
― O anão está certo, Sadie. Vá. Eu estarei bem em um momento, mas é uma pena que esse babuíno não me deixou um pouco do seu poder. Não me sentia tão forte há anos.
Olhei para os meus avós e amigas. Meu coração parecia que estava sendo esticado em mais direções que o rosto de Bes. Eu percebi que o anão estava certo: eles estariam mais seguros aqui diante de uma equipe de assalto do que com a gente. E percebi, também, que eles não pertenciam a uma busca mágica. Meus avós tinham escolhido há muito tempo não usar suas habilidades ancestrais. E minhas amigas eram apenas mortais – corajosas, loucas e ridículas mortais maravilhosas. Mas elas não podiam ir para onde eu tinha que ir.
― Sadie, tudo bem. ― Emma ajeitou os óculos quebrados e tentou dar um sorriso ― nós podemos lidar com a polícia. Não será a primeira vez que tive que fazer alguns improvisos, hein?
― Nós vamos cuidar de seus avós ― Liz prometeu.
― Não preciso que cuidem de mim ― vovô reclamou. Então ele teve um acesso de tosse. ― Apenas vá, minha querida. Esse deus babuíno estava na minha cabeça. Posso te dizer, ele quer destruí-la. Termine a sua busca antes que ele venha atrás de você outra vez. Eu não pude impedi-lo. Eu não podia... ― Ele olhava com rancor para suas frágeis e velhas mãos. ― Eu nunca teria me perdoado. Agora, fora daqui!
― Sinto muito ― eu disse a todos eles. ― Eu não queria...
― Sinto muito? ― Emma estranhou. ― Sadie Kane, esta foi a festa de aniversário maislegal da história! Agora, vá!
Ela e Liz me abraçaram, e antes que eu pudesse começar a chorar, Bes guiou-me para a Mercedes. Seguimos em direção ao norte até Victoria Embankment. Estávamos quase nas barricadas quando Bes desacelerou.
― O que há de errado? ― perguntei. ― Não podemos passar invisíveis?
― Não é com os mortais que eu estou preocupado.
Ele apontou. Todos os policiais, repórteres e espectadores em torno das barricadas tinham adormecido. Vários militares em armaduras corporais estavam enrolados no chão, abraçando seus rifles de assalto, como ursos de pelúcia. Parados na frente das barricadas, bloqueando o nosso carro, estavam Carter e Walt. Eles estavam desalinhados e respirando pesadamente, como se tivessem corrido por todo o caminho do Brooklyn até a barricada. Ambos tinham varinhas de prontidão. Carter adiantou-se, apontando sua espada contra o para-brisa.
― Deixe-a ir ― ele gritou para Bes. ― Ou eu vou te destruir!
Bes olhou para mim.
― Eu deveria assustá-lo?
― Não! ― respondi rapidamente.
Isso era algo que eu não precisava ver de novo.
― Eu vou lidar com isso.
Eu saí da limusine.
― Olá, meninos. Ótimo timing.
Walt e Carter fizeram uma careta.
― Você não está em perigo? ― Walt me perguntou.
― Não mais.
Carter abaixou sua espada com relutância.
― Você quer dizer que o cara feio...
― É um amigo ― eu disse. ― Amigo de Bastet. Ele também é o nosso motorista.
Carter parecia igualmente confuso, irritado e inquieto, o que foi um satisfatório final para minha festa de aniversário.
― E vai dirigir para onde? ― perguntou ele.
― Até a Rússia, é claro ― falei ― para dentro.

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