quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A Sombra da Serpente - Carter

Capítulo 12 - Touros com raios laser malucos

Ser liquidado não é divertido. Eu nunca vou ser capaz de andar em outra liquidação sem começar a ficar enjoado e sentir como se meus ossos viraram tapioca.
Sei que eu vou soar como um anúncio de serviço público, mas para todas as crianças em casa: se alguém oferecer para você pílulas Hapi, apenas diga, “Não!”
Eu me senti entrando no meio da lama, viajando em uma velocidade incrível. Quando bati na areia quente, eu evaporei, erguendo-me do solo como uma nuvem de umidade, empurrado para o oeste pelos ventos entrando no deserto. Eu não podia ver normalmente, mas podia sentir o movimento e a temperatura. Minhas moléculas se agitavam como se o sol me dispersasse.
De repente, a temperatura caiu de novo. Senti pedra fria ao meu redor – uma caverna ou uma sala no subsolo, talvez. Eu me aglutinei em umidade, espalhado no chão como uma poça, então levantei e me solidifiquei em Carter Kane mais uma vez.
Em seguida, eu caí de joelhos e perdi meu café da manhã.
Zia ficou ao meu lado, abraçando seu estômago. Nós parecíamos estar na entrada de um túnel de um sarcófago. Ao nosso redor, pedras nos guiavam para dentro da escuridão. A poucos metros, o sol do deserto brilhava.
— Isso foi horrível — Zia ofegou.
Eu só podia acenar com a cabeça. Agora entendi a lição de ciências que meu pai me ensinou uma vez nas minhas aulas em casa – a matéria tem três formas: sólida, líquida, e gasosa. Nos últimos minutos eu fui todas três. E não gostei.
Setne se materializou fora da porta, sorrindo para nós.
— Então, acertei de novo, ou o quê?
Eu não me lembrava de ter afrouxado suas amarras, mas seus braços estavam livres agora. Isso teria me preocupado mais se eu não estivesse me sentindo tão doente.
Zia e eu ainda estávamos molhados e enlameados do nosso mergulho no Nilo, mas Setne parecia imaculado – jeans e blusa recém engomadas, cabelo do Elvis perfeito, nem mesmo uma mancha no seu sapato de corrida branco. Isso me aborreceu muito, eu cambaleei até a luz solar e vomitei nele. Infelizmente, meu estômago estava praticamente vazio e ele era um fantasma, então nada de mais aconteceu.
— Hey, camarada — Setne ajeitou seu colar ankh dourado e endireitou sua jaqueta. — Algum respeito, certo? Eu fiz um favor para você.
— Um favor? — eu engoli em seco o gosto horrível na minha boca. — Nunca... mais...
— Nunca mais Hapi de novo — Zia finalizou para mim. — Nunca.
— Ah, por favor — Setne estendeu suas mãos. — Esta foi uma viagem suave! Olhe, até seu navio a fez.
Eu apertei os olhos. Nós estávamos cercados principalmente por deserto, rochas, como a superfície de Marte, mas encalhado em uma duna de areia nas proximidades, estava um barco ligeiramente quebrado – o Rainha Egípcia. A cabine não estava mais pegando fogo, mas o navio parecia ter sofrido mais danos durante a viagem. Uma seção de corrimões estava quebrada. Uma das chaminés estava perigosamente inclinada. Por alguma razão, uma lona enorme e viscosa de escamas de peixe estava pendurada fora da cabine como um paraquedas enroscado.
Zia murmurou.
— Oh, deuses do Egito... por favor, não deixe aquilo ser a tanga do Hapi.
Lâmina Suja de Sangue estava na proa, olhando para a nossa direção. Ele não tinha expressão, sendo uma cabeça de machado, mas pelo jeito que seus braços estavam cruzados, eu pude dizer que ele não era um dos seguidores de Hapi.
— Você pode consertar o navio?
— Sim, meu mestre — ele respondeu. — Dê-me algumas horas. Infelizmente, nós parecemos estar presos no meio do deserto.
— Nós nos preocupamos com isso depois. Conserte o navio. Espere o nosso retorno aqui. Você receberá mais instruções quando voltarmos.
— Como quiser — Lâmina Suja de Sangue se virou e começou a falar com as esferas brilhantes em uma língua que eu não entendia. A tripulação se agitou com as atividades.
Setne sorriu.
— Vê? Tudo está bem!
— Exceto que nós estamos correndo contra o tempo. — Eu olhei para o sol.
Percebi que era uma ou duas da tarde, e nós tínhamos muito a fazer antes do fim do mundo amanhã de manhã.
— Aonde aquele túnel vai? O que é um serapeum? E por que Hapi disse que era uma armadilha?
— Tantas perguntas — Setne disse. — Vamos lá, você verá. Você amará esse lugar.

***

Eu não amei aquele lugar.
Os passos seguintes nos levaram a um amplo salão esculpido a partir de rocha dourada. O teto era muito baixo, eu podia tocá-lo sem esticar os braços. Eu podia dizer que os arqueólogos estiveram aqui, por causa das lâmpadas que deixaram sombras nos arcos. Vigas metálicas apoiavam as paredes, mas as rachaduras no teto não ajudaram a me sentir seguro. Nunca me senti confortável em lugares fechados.
A cada 10 metros ou mais, nichos quadrados se abriam nos dois lados do corredor. Cada nicho segurava uma pedra maciça de sarcófagos.
Depois de passar pelo quarto caixão, eu parei.
— Essas coisas são muito grandes para humanos. O que tem aí dentro?
— Touros — Setne respondeu.
— Como?
A risada de Setne ecoou através do corredor. Eu percebi que se tivesse algum monstro dormindo nesse lugar, ele iria acordar agora.
— Essas são as câmaras de enterro do Touro Apis — Setne mostrou ao seu redor orgulhoso. — Eu construí tudo isso, você sabe, quando eu era o Príncipe Khaemwaset.
Zia moveu sua mão ao longo da pedra branca que cobria os sarcófagos.
— O Touro Apis. Meus ancestrais pensavam que ele era a encarnação de Osíris no mundo mortal.
— Pensavam? — Setne bufou. — Era a encarnação dele, boneca. Pelo menos por um tempo... como dias de festas e outras coisas. Nós levávamos nosso Touro Apis muito a sério naquela época.
Ele deu um tapinha no caixão como se tivesse mostrando um carro.
— Esse garoto malvado aqui? Ele tinha uma vida perfeita. Toda a comida que podia comer. Tinha um harém de vacas, oferendas queimadas, um tecido de ouro para suas costas... todas as regalias. Só tinha que se mostrar em público poucas vezes no ano em grandes festivais. Quando ele fez vinte e cinco anos, foi massacrado em uma grande cerimônia, mumificado como um rei e colocado aqui em baixo. Então um novo touro pegou seu lugar. Boa apresentação, não é?
— Morto aos vinte e cinco anos — repeti. — Parece incrível.
Imaginei quantos touros mumificados tinham aqui em baixo no corredor. Eu não queria descobrir. Eu gostaria de ficar bem aqui, onde ainda podia ver o fim e a luz do sol lá fora.
— Então porque esse lugar é chamado de... o que era mesmo?
— Serapeum. — Zia respondeu. Sua face estava iluminada por uma luz dourada – provavelmente apenas as lâmpadas refletindo na pedra, mas parecia que ela estava brilhando. — Iskandar, meu antigo professor... ele me contou sobre este lugar. O Touro Apis era um receptáculo para Osíris. Nos tempos antigos. Os nomes eram mesclados: Osíris-Apis. Então os gregos encurtaram para Serapis.
Setne zombou.
— Gregos estúpidos. Mexendo em nosso território. Assumindo os nossos deuses. Eu vou te dizer, não tenho nenhum amor por esses caras. Mas sim, isso foi o que aconteceu. Esse lugar se tornou conhecido como um serapeum, uma casa para deuses touros mortos. Eu queria chamar de Memorial Khaemwaset de Pura Grandiosidade, mas meu pai não deixou.
— Seu pai? — perguntei.
Setne deixou de lado a pergunta.
— De qualquer forma, eu escondi o Livro de Tot aqui embaixo antes de morrer, pois sabia que ninguém iria perturbá-lo. Você teria que ser um louco espumando pela boca para mexer com a tumba sagrada do Touro Apis.
— Ótimo — senti que estava me tornando um líquido de novo.
Zia franziu a testa para o fantasma.
— Não me diga que você escondeu o livro em um desses sarcófagos com um touro mumificado, e o touro irá ressuscitar se nós o perturbarmos?
Setne piscou para ela.
— Oh, eu fiz melhor que isso, boneca. Arqueólogos descobriram esta parte do complexo. — Ele mostrou as lâmpadas e os metais de suporte. — Mas eu vou levar você para um passeio por trás das cenas.
As catacumbas pareciam não ter fim. Corredores enormes se dividiam em direções diferentes, todos eles alinhados com sarcófagos para vacas sagradas. Depois de descer uma rampa longa, nós passamos através de uma passagem secreta atrás de uma parede iluminada.
Do outro lado, não tinha luzes elétricas. Nenhuma viga de aço segurando o teto rachado. Zia conjurou fogo no topo do seu cajado e queimou várias teias de aranha. Nossas pegadas eram as únicas marcas no piso sujo.
— Nós estamos perto? — perguntei.
Setne riu.
— Está ficando bom.
Ele nos deixou mais para dentro do labirinto. De vez em quando, ele parava para desativar armadilhas com um comando ou toque. Às vezes ele me deixava fazer isso – supostamente porque ele não podia realizar certos feitiços, estando morto – embora eu tivesse a sensação que ele acharia incrivelmente engraçado se eu falhasse e morresse.
— Como você pode tocar algumas coisas e outras não? — indaguei. — Você parece ter uma incrível habilidade seletiva.
Setne encolheu os ombros.
— Eu não faço as regras do mundo espiritual, camarada. Nós podemos tocar em dinheiro e joias. Recolher o lixo e mexer com espinhos envenenados, não. Nós temos que deixar esse trabalho sujo para os vivos.
Sempre que as armadilhas estavam desativadas, hieróglifos escondidos brilhavam ou sumiam. Às vezes nós tínhamos que pular poços abertos no chão, ou desviar de flechas atiradas do teto. Pinturas de deuses e faraós descansavam nas paredes, transformadas em guardiões fantasmagóricos e desbotados. O tempo todo, Setne mantinha um breve comentário.
— Aquela maldição teria feito seus pés apodrecerem — explicou. — Esta aqui? Conjuraria uma praga de pulgas. E essa... oh, cara. Esta é uma das minhas favoritas. Transforma você em um anão! Eu odeio aqueles carinhas pequenos.
Fiz uma careta. Setne era menor do que eu, mas essa eu deixei passar.
— Sim, de fato — ele continuou. — Vocês são sortudos de me ter aqui junto, caras. Agora, você seria um anão com picadas de pulgas e nenhum pé. E você ainda não viu a pior. Por aqui.
Eu não tinha certeza de como Setne se lembrava de tantos detalhes sobre este lugar de tantos anos atrás, mas ele estava obviamente orgulhoso dessas catacumbas. Deve ter apreciado projetar horríveis armadilhas para matar os intrusos.
Nós viramos em outro corredor. O chão inclinou de novo. O teto ficou baixo, eu tive que me abaixar. Tentei ficar calmo, mas eu estava tendo problemas na respiração. Tudo que eu podia pensar era nas toneladas de pedras acima da minha cabeça, prontas para entrar em colapso a qualquer momento.
Zia pegou minha mão. O túnel estava tão estreito, que nós estávamos andando em fila indiana; mas eu olhei para ela.
— Você está bem? — perguntei.
Ela sussurrou as palavras: Preste atenção nele.
Eu acenei. Seja qual for a armadilha que Hapi nos advertiu, eu tinha o pressentimento que nós não a vimos ainda, mesmo que estivéssemos rodeados de armadilhas. Nós estávamos sozinhos com um fantasma assassino, no subsolo do seu território. Eu não tinha mais a minha khopesh. Por alguma razão, eu não era capaz de invocá-la do Duat. E eu não podia usar meu avatar guerreiro em um túnel tão pequeno. Se Setne se virasse contra nós, minhas opções seriam limitadas.
Finalmente o corredor alargou. Nós alcançamos um beco sem saída – uma parede sólida guardada por duas estátuas do meu pai... Quero dizer, Osíris.
Setne se virou.
— Ok, aqui é o nosso destino, caras. Eu vou ter que fazer um desencantamento para abrir essa parede. O feitiço demora alguns minutos. Não quero vocês pirando no meio disso e nem me amarrando com fitas rosa, ou as coisas vão ficar feias. Na metade final da magia aqui, todo esse túnel poderá entrar em colapso no topo das nossas cabeças.
Eu evitei gritar como uma garota – mas apenas por pouco.
Zia ajeitou o fogo do cajado dela para branco quente.
— Cuidado, Setne. Eu sei como um desencantamento soa. Se eu suspeitar que você está fazendo outra coisa, irei te explodir em pó de ectoplasma.
— Relaxa, boneca — Setne estalou os dedos. Seu anel de diamantes rosados brilhou na luz do fogo. — Você tem que manter aquele escaravelho sob controle, ou irá nos transformar em cinzas.
Eu fiz uma careta.
— Escaravelho?
Setne olhou para trás e para frente entre nós e riu.
— Quer dizer que ela não te contou? E você não percebeu? Essas crianças de hoje! Eu amo a ignorância!
Ele se virou para a parede e começou o encantamento. O fogo de Zia suavizou para uma chama vermelha. Lancei meu olhar questionador para ela.
Ela hesitou – então tocou a base da sua garganta. Ela não estava usando um colar antes. Eu tinha certeza disso. Mas quando ela tocou sua garganta, um amuleto apareceu para a existência – um escaravelho brilhante de ouro em uma corrente de ouro. Ela deve tê-lo escondido com um feitiço – uma mágica de ilusão como Setne tinha feito com as Fitas de Hathor.
O escaravelho parecia de metal, mas eu percebi que já o tinha visto antes, e o tinha visto ao vivo. Quando Rá aprisionou Apófis no mundo inferior, ele deixou uma parte de sua alma – sua encarnação como Khepri, o escaravelho do sol do amanhecer – para manter seu inimigo preso. Ele tinha enterrado Apófis em uma avalanche de besouros vivos.
Quando Sadie e eu encontramos a prisão na primavera passada, milhões de escaravelhos tinham sidos reduzidos a carapaças. Quando Apófis se libertou, só um besouro dourado sobreviveu: o último poder remanescente de Khepri.
Rá tentou engolir o escaravelho. (Sim, nojento. Eu sei.) Quando isso não funcionou... Ele o ofereceu a Zia. Eu não lembrava que Zia tinha mantido o escaravelho, mas de alguma forma eu sabia que aquele amuleto era o mesmo inseto.
— Zia...
Ela balançou a cabeça com firmeza.
— Mais tarde.
Ela gesticulou para Setne, que estava no meio do feitiço.
Ok, provavelmente não era o melhor momento para conversar. Eu não queria que o túnel caísse sobre nossas cabeças. Mas a minha mente estava cambaleando.
Você não percebeu? Setne me insultou.
Eu sabia que Rá estava fascinado por Zia. Ela era sua babá preferida. Setne mencionou que Zia estava tendo problemas com o controle da temperatura. O velho está gostando de você, ele disse. E Rá deu o escaravelho para Zia – literalmente uma parte de sua alma – como se ela fosse sua maior sacerdotisa... Ou talvez alguém mais importante.
O túnel roncou. A parede sem saída virou poeira, revelando uma câmara através dela. Setne se virou para nós com um sorriso.
— Hora do show, crianças.
Nós o seguimos em um salão circular que me lembrou da biblioteca da Casa do Brooklyn. O piso era um mosaico brilhante de pastagens e rios. Nas paredes, os sacerdotes foram pintados decorando as vacas pintadas com flores e cocares de penas de algum tipo de festival, enquanto os antigos egípcios agitavam ramos e balançavam um apito de bronze chamado de sistrums. O teto abobadado retratava Osíris em seu trono, julgando mais de um touro. Por um momento absurdo, eu me perguntava se Ammit devorou os corações de vacas más, e se ele gostava do sabor carnudo.
No meio da câmara, num pedestal em forma de caixão, havia uma estátua em tamanho real do Touro Apis. Era feito de uma pedra escura – basalto, talvez – mas pintada com tanta habilidade que parecia estar viva. Os olhos pareciam me seguir. Sua pele brilhava preto exceto por um pequeno diamante branco na frente de seu peito, e sobre suas costas um cobertor de ouro cortado e bordado para parecer com asas de um falcão. Entre seus chifres estava um frisbee de ouro – uma coroa de disco solar. Abaixo dele, saindo da testa do touro como um chifre de unicórnio encaracolado, estava uma cobra se erguendo.
Um ano atrás eu diria. “Estranho, mas é apenas uma estátua.” Agora eu tive um monte de experiências com estátuas egípcias voltando à vida e tentando me matar.
Setne não parecia estar preocupado. Ele caminhou até a pedra do touro e acariciou sua perna.
— O Santuário de Apis! Eu construí essa câmara apenas para meus sacerdotes escolhidos e eu. Agora nós só temos que esperar.
— Esperar pelo quê? — Zia perguntou.
Sendo uma garota esperta, ela estava pendurada de volta na entrada comigo.
Setne checou seu relógio que não existia.
— Não demorará muito. Apenas um timer, mais ou menos isso. Entrem! Sintam-se a vontade.
Eu me movi para dentro. Esperei que a porta se solidificasse atrás de mim, mas continuou aberta.
— Você tem certeza que o livro está aqui?
— Oh, sim — Setne andou ao redor da estátua, chegando à base. — Eu só preciso lembrar qual desses painéis sobre o estrado irá abrir. Eu queria fazer esse salão todo de ouro, você sabe? Isso seria muito mais legal. Mas meu pai cortou meu financiamento.
— Seu pai — Zia veio até mim e escorregou sua mão até a minha, e eu não me importei. O colar do escaravelho de ouro apareceu ao redor do seu pescoço. — Você quer dizer Ramsés, o Grande?
A boca de Setne se contorceu em um sorriso cruel.
— Sim, assim é como o departamento de relações públicas o chama. Eu gosto de chamá-lo de Ramsés II, ou Ramsés Número Dois.
— Ramsés? — eu disse. — Seu pai é Ramsés?
Suponho que não processei como Setne entrava na história egípcia. Olhando para esse carinha magricelo com seu cabelo gorduroso, jaqueta com ombreira e o ridículo colar, eu não podia acreditar que ele fosse parente de uma pessoa tão famosa. E para piorar, isso faz dele meu parente, já que o lado da família da nossa mãe tinha a herança de magia de Ramsés, o Grande.
[Sadie diz que ela pode ver uma semelhança familiar entre Setne e eu. Cala a boca, Sadie].
Acho que Setne não gostou do meu olhar surpreso. Ele empinou o nariz no ar.
— Você saberia como é, Carter Kane... crescer na sombra de um pai famoso. Sempre tentando viver de acordo com sua lenda. Olhe para você. Filho do grande Dr. Julius Kane. Você finalmente está fazendo um nome para si mesmo como um grande mago, o que o seu pai faz? Ele vai e se torna um deus.
Setne riu friamente. Eu nunca senti qualquer ressentimento em relação ao meu pai antes; sempre pensei que era legal ser o filho do Dr. Kane. Mas as palavras de Setne rolaram por mim, e raiva começou a crescer no meu peito.
Ele está jogando com você, disse a voz de Hórus.
Eu sabia que Hórus estava certo, mas não me fazia me sentir melhor.
— Onde está o livro, Setne? — perguntei. — Sem mais atrasos.
— Não deforme sua varinha, camarada. Não irá demorar muito. — Ele contemplou a pintura de Osíris no teto. — Aqui está ele! O cara de azul. Eu estou te dizendo, Carter, você e eu somos muito parecidos. Eu não posso ir a qualquer lugar do Egito sem ver a cara do meu pai, também. Abu Simbel? Tem o papai Ramsés em cima de mim – quatro cópias dele, com 18 metros de altura. É como num pesadelo. Metade dos templos do Egito? Ele encomendou e colocou estátuas de si mesmo. É de se admirar que eu quisesse ser o maior mago do mundo? — ele inflou seu peito magro. — E eu o fiz. O que eu não entendo, Carter Kane, é por que você não tomou o trono do faraó ainda. Você tem Hórus ao seu lado, ansiando por poder. Deve se fundir com o deus, tornar-se o faraó do mundo, e, ah... — Ele deu um tapinha na estátua de Apis. — Pegue o touro pelos chifres.
Ele está certo. Hórus disse. Esse humano é sábio.
Ajeite a sua mente, reclamei.
— Carter, não o escute. — Zia disse. — Setne, o que você estiver armando... pare. Agora.
— O que eu armaria? Olhe boneca...
— Não me chame assim! — Zia disse.
— Ei, eu estou do seu lado. — Setne garantiu. — O livro está aqui nesse estrado. Assim que o touro se mexer...
— O touro se mexer? — perguntei.
Setne estreitou os olhos.
— Eu não mencionei isso? Peguei a ideia desse feriado que nós costumávamos ter nos tempos antigos, o festival de Sed. Muita diversão! Você nunca esteve na corrida dos touros, onde é mesmo, Espanha?
— Pamplona.
Outra onda de ressentimento levou o melhor de mim. Meu pai me levou à Pamplona uma vez, mas ele não me deixou ir para a rua enquanto os touros estavam correndo nela. Ele disse que era muito perigoso – como se sua vida secreta como um mago não fosse mais perigosa que isso.
— Certo, Pamplona — Setne concordou. — Bem, você sabe onde essa tradição começou? Egito. O faraó costumava fazer essa corrida ritual com o Touro Apis para renovar seu poder real, provando sua força, sendo abençoado pelos deuses... toda essa porcaria. Nos tempos antigos, se tornou apenas uma brincadeira, sem perigo real. Mas no começo, a coisa era real. Vida e morte.
Na palavra morte, a estátua de touro se moveu. Ele curvou as pernas rigidamente. Então levantou sua cabeça e me encarou, cheirando a nuvem de poeira.
— Setne! — Eu invoquei minha espada, mas é claro que não estava lá. — Faça isso parar, ou vou envolvê-lo tão rápido...
— Oh, eu não faria isso. — Setne avisou. — Veja, eu sou o único que pode pegar o livro sem ser atingido por dezesseis maldições diferentes.
Entre os chifres do touro, estava um disco de sol de ouro. Na sua cabeça, a cobra veio à vida, assobiando e cuspindo gotas de fogo.
Zia chamou sua varinha. Era a minha imaginação, ou de seu colar de escaravelho começou a sair fumaça?
— Chame de volta essa criatura, Setne. Ou eu juro...
— Eu não posso, boneca. Desculpe. — Ele sorriu para nós entre os estrados dos touros. Não parecia se importar. — Isso é parte do sistema de segurança, vê? Se você quer o livro, tem que distrair o touro e sair daqui, enquanto eu abro o estrado e pego o Livro de Tot. Eu tenho total fé em você.
O touro escavou o pedestal e pulou para fora. Zia me puxou de volta para o corredor.
— É isso! — Setne disse. — Do mesmo jeito que o festival de Sed. Prove que você merece o trono de faraó, criança. Corra ou morra!
O touro atacou.
Uma espada seria muito boa. Eu teria me resolvido com uma capa de toureiro e uma lança. Ou um rifle. Em vez disso, Zia e eu corremos através das catacumbas e rapidamente percebemos que estávamos perdidos. Deixar Setne nos guiar por esse labirinto foi uma ideia estúpida. Eu deveria ter deixado cair migalhas de pão ou marcado hieróglifos nas paredes ou algo assim.
Eu esperava que os túneis fossem estreitos para o Touro Apis. Sem muita sorte. Ouvi uma parede de rochas cair atrás de nós enquanto o touro se movia pelo caminho até nós. Teve outro som que eu não gostei muito – um profundo zumbido seguido de uma explosão. Eu não sabia o que era, mas era um bom incentivo para correr mais rápido.
Nós provavelmente passamos por dezenas de corredores. Cada um com vinte ou trinta sarcófagos. Eu não podia acreditar quantos Apis tinham sido mumificados aqui embaixo – centenas de touros. Atrás de nós, nosso monstruoso amigo de pedra nos seguia esmagando tudo em seu caminho no túnel.
Eu olhei para trás uma vez e me arrependi. O touro estava se aproximando rápido, a cobra na sua testa expelindo fogo.
— Por aqui! — Zia gritou.
Ela me puxou para um corredor lateral. No outro extremo, o que parecia ser a luz do dia saia de uma porta aberta. Nós corremos em direção a ela.
Eu estava esperando que fosse uma saída. Em vez disso, chegamos à outra câmara circular. Nessa não tinha nenhuma estátua de touro no meio, mas ao redor da circunferência estavam quatro sarcófagos de pedra gigantes. As paredes estavam pintadas com pinturas do paraíso bovino – vacas sendo alimentadas, vacas brincando em prados, vacas sendo adoradas por seres humanos pequenos e idiotas. A luz do dia saía de um buraco no teto, seis metros acima. Um feixe de luz do sol cortava o ar empoeirado e batia no meio do chão como um refletor, mas não havia nenhuma maneira de nós usarmos a fenda para escapar. Mesmo que eu virasse um falcão, a abertura era muito estreita, e eu não iria sair e deixar Zia sozinha.
— Fim da linha. — Ela disse.
— HRUUUFF!
O Touro Apis apareceu na porta, bloqueando a nossa saída. Seu ornamento de cobra sibilou.
Nós entramos no salão até ficarmos na quente luz do dia. Parecia cruel morrer aqui, presos embaixo de toneladas de pedra, mas capazes de ver o sol. O touro escavou o chão. Ele deu um passo à frente, então hesitou, como se a luz do sol o incomodasse.
— Talvez eu possa falar com ele. Ele está conectado a Osíris, certo?
Zia me olhou como se eu fosse louco – e eu era – mas eu não tive outras ideias.
Ela invocou sua varinha e cajado.
— Eu te dou cobertura.
Eu andei até o monstro e mostrei minhas mãos vazias.
— Bom touro. Eu sou Carter Kane. Osíris é meu pai, quase. Que tal uma trégua e...
A cobra cuspiu fogo na minha cara.
Eu teria me transformado em um Carter extra-crocante, mas Zia gritou um comando. Quando tropecei para trás, seu cajado absorveu a explosão, sugando as chamas como um limpador a vácuo. Ela cortou o ar com sua varinha, e uma parede vermelha cintilante de fogo irrompeu em torno do Touro Apis. Infelizmente, o touro ficou lá e olhou para nós, completamente ileso.
Zia praguejou.
— Parece que nós estamos em um impasse com o fogo mágico.
O touro baixou seus chifres.
Meus instintos de deus da guerra tomaram o controle.
— Proteja-se.
Zia mergulhou para um lado. E eu para o outro. O disco de sol do touro brilhou e zumbiu, então um tiro de raio dourado de calor foi para o lugar onde nós estávamos. Eu mal coube atrás do sarcófago. Minhas roupas estavam queimando. Os solados dos meus sapatos estavam derretidos. Onde o laser tinha atingido, o chão estava enegrecido e borbulhante, como se a rocha tivesse entrando em ebulição.
— Vacas com lasers? — protestei. — Isso é completamente injusto!
— Carter! — Zia me chamou do outro lado do salão. — Você está bem?
— Nós temos que nos separar! — gritei de volta. — Eu irei distraí-lo. Saia daqui!
— O que? Não!
O touro virou para o som da voz dela. Eu tive que me mover rápido.
Meu avatar não seria de grande ajuda em um lugar fechado e pequeno como esse, mas eu precisava da força e velocidade do deus da guerra. Eu invoquei o poder de Hórus. Luz azul tremulou ao meu redor. Minha pele era como aço, esmurrei o sarcófago e o reduzi a uma pilha de pedra e poeira de múmia. Eu peguei um pedaço da tampa – uma pedra tipo escudo de cento e trinta e seis quilos – e investi no touro.
Nós colidimos um com o outro. De alguma forma eu aguentei, mas isso tomou um pouco de força mágica. O touro berrou e puxou. A cobra cuspia chamas que passavam pelo meu escudo.
— Zia, saia daqui! — gritei.
— Eu não vou te deixar!
— Você tem que ir! Eu não posso...
Os cabelos dos meus braços se arrepiaram antes que eu ouvisse o som sibilante. Meu bloco de pedra se desintegrou em um flash de ouro, e eu mergulhei para trás, batendo em outro sarcófago.
Minha visão embaçou. Eu ouvi Zia gritar. Quando meus olhos puderam se focar de novo, a vi parada no meio do salão, envolta da luz do sol, fazendo um feitiço que eu não reconheci. Ela tinha conseguido a atenção do touro, o que provavelmente salvou a minha vida. Mas antes que eu pudesse gritar, o touro apontou o seu disco do sol e atirou um laser superaquecido direto em Zia.
— Não! — gritei.
A luz me cegou. A explosão sugou todo o oxigênio dos meus pulmões. Não tinha nenhum jeito de Zia ter sobrevivido a essa temperatura.
Mas quando a luz dourada desapareceu, Zia ainda estava lá. Em torno dela queimava um escudo maciço na forma de... de uma carapaça de escaravelho. Seus olhos brilhavam com um fogo laranja. Chamas giravam ao seu redor. Ela olhou para o touro e falou com uma voz profunda e áspera que definitivamente não era dela:
— Eu sou Khepri, o sol do amanhecer. Não serei renegado.
Só depois eu percebi que ela estava falando em Egípcio Antigo.
Ela estendeu sua mão. Um cometa em miniatura foi atirado no Touro Apis e o monstro queimou em chamas, girando e batendo, de repente em pânico. Suas pernas se desintegraram. Ele entrou em colapso e se quebrou em uma pilha de fumaça de escombros carbonizados.
O salão estava de repente quieto. Eu estava receoso de me mexer. Zia ainda estava coberta de fogo, e parecia estar ficando mais quente – queimando amarelo, então branco. Ela parecia estar em transe. O escaravelho dourado no pescoço dela estava definitivamente fumegando agora.
— Zia! — Minha cabeça palpitava, mas eu consegui me erguer.
Ela se virou para mim e ergueu outra bola de fogo.
— Zia, não! Sou eu. Carter.
Ela hesitou.
— Carter...? — Sua expressão ficou confusa, então com medo.
As chamas laranjas enfraqueceram nos seus olhos, e ela caiu no raio de sol.
Eu corri até ela. Tentei pegá-la em meus braços, mas a sua pele estava muito quente. O escaravelho dourado deixou uma queimadura desagradável em sua garganta.
— Água — murmurei para mim mesmo. — Eu preciso de água.
Eu nunca fui bom com palavras divinas, mas eu gritei:
— Maw!
O símbolo brilhou ao nosso redor:


Muitos galões de água se materializaram no ar e caíram em nós. O rosto de Zia vaporizou. Ela tossiu e balbuciou, mas não acordou. A febre ainda estava perigosamente alta.
— Eu tenho que te tirar daqui — falei, levantando-a em meus braços.
Eu não precisava da força de Hórus. Tinha muita adrenalina circulando pelo meu corpo, não sentia nenhum dos meus ferimentos. Eu corri para Setne quando ele passou por mim no corredor.
— Ei, camarada — ele se virou e correu até mim, acenando com um espesso rolo de papiro. — Bom trabalho! Eu peguei o Livro de Tot!
— Você quase matou Zia! — reclamei. — Tire-nos daqui... AGORA!
— Ok, ok. — Setne disse. — Se acalme.
— Eu vou te levar de volta para a sala de tribunal do meu pai — rosnei. — Voupessoalmente te enfiar na boca do Ammit, como um galho em um triturador de madeira.
— Whoa, grandão. — Setne me levou até uma inclinada passagem de volta para os túneis escavados com iluminação. — Que tal nós sairmos daqui primeiro, huh? Lembre-se, você ainda precisa de mim para decifrar o livro e encontrar a sombra da serpente. E então nós resolvemos sobre o triturar de madeira, ok?
— Ela não pode morrer — insisti.
— Certo, eu entendi. — Setne me levou por mais túneis, aumentando a velocidade.
Zia parecia não pesar nada. Minha dor de cabeça tinha desaparecido. Finalmente, nós encontramos a luz do sol e corremos para o Rainha Egípcia.
Eu vou admitir que não estava pensando corretamente.
Quando nós subimos no barco, Lâmina Suja de Sangue reportou os reparos do navio, mas eu nem o ouvi. Passei direto por ele e levei Zia para a cabine mais próxima. Eu a deitei na cama e mexi na minha bolsa procurando por material médico – uma garrafa de água, um pouco de pomada mágica que Jaz tinha me dado, alguns poucos encantos escritos. Eu não era um rekhet como Jaz. Meus poderes de cura consistiam basicamente em ataduras e aspirinas, mas comecei a trabalhar.
— Vamos lá — murmurei. — Vamos lá, Zia. Você vai ficar bem.
Ela estava tão quente, suas roupas encharcadas tinham quase secado. Seus olhos estavam girando nas órbitas. Ela começou a resmungar, e eu podia jurar que ela disse “Bolas de esterco. Tempo para rolar as bolas de esterco”.
Pode parecer engraçado – exceto pelo fato que ela estava morrendo.
— Esse é Khepri falando — Setne explicou. — Ele é o escaravelho divino, rolando o sol através do céu.
Eu não queria processar isso – a ideia que a garota que eu gostava tinha sido possuída por um escaravelho e estava tendo sonhos sobre puxar uma gigante esfera de chamas através do céu. Mas não havia dúvidas: Zia usou o caminho dos deuses. Ela canalizou Rá – ou pelo menos uma de suas encarnações, Khepri.
Rá a tinha escolhido, como Hórus tinha me escolhido.
De repente, fez sentido que Apófis tivesse destruído a vila de Zia quando ela era pequena, e que o antigo Sacerdote-leitor Chefe Iskandar tivesse ido tão longe em seu treinamento e então a escondido num sono mágico. Se ela tinha o segredo para acordar o deus do sol...
Eu passei pomada na garganta dela. Pressionei um pano molhado na cabeça dela, mas não parecia ajudar.
Eu me virei para Setne.
— Cure-a!
— Oh, hum... — ele estremeceu. — Veja, mágica de cura não é realmente minha praia. Mas pelo menos você tem o Livro de Tot! Se ela morrer, não será por nada...
— Se ela morrer — avisei. — Eu vou... eu vou...
Eu não pude pensar em uma tortura dolorosa o bastante.
— Vejo que você precisa de um pouco de tempo. — Setne disse. — Sem problema. Que tal eu ir dizer ao seu capitão aonde nós vamos? Nós temos que voltar para o Duat, de volta para o Rio da Noite o mais rápido possível. Eu tenho sua permissão para dar ordens a ele?
— Certo — falei bruscamente. — Apenas saia da minha vista.
Eu não sei quanto tempo se passou. A febre de Zia parecia diminuir. Ela começou a respirar mais facilmente e mudou para um sono sossegado. Eu beijei sua testa e fiquei ao seu lado, segurando sua mão.
Eu estava vagamente consciente do movimento do navio. Nós caímos momentaneamente em queda livre, então o bater de água formou um arrepio um pouco alto. Eu senti um rio correndo sob o casco, mais uma vez, e pelo formigamento na barriga, achei que estávamos de volta ao Duat.
A porta abriu atrás de mim, mas eu mantive os olhos em Zia.
Eu esperei que Setne dissesse algo – provavelmente para vangloriar-se sobre o quão bem ele estava nos fazendo navegar de volta ao Rio da Noite – mas ele ficou em silêncio.
— E então? — perguntei.
O som de fragmentação de madeira me fez pular.
Setne não estava na porta. Em vez dele, Lâmina Suja de Sangue se elevava sobre mim, sua cabeça de machado tinha acabado de se separar da porta. Seus punhos estavam cerrados.
Ele falou em um zumbido, irritado e frio.
— Senhor Kane, é hora de morrer.

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