quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A Sombra da Serpente - Carter

Capítulo 11 - Don't Worry, Be "Hapi"

Típico.
Sadie e Walt saem à procura de uma sombra amigável, enquanto Zia e eu temos de escoltar um fantasma assassino psicótico para o seu esconderijo cheio de armadilhas de magia proibida. Pô, quem levou a melhor afinal?
Rainha Egípcia saiu do Mundo Inferior para o rio Nilo como um salto de uma baleia. Sua roda de pás agitando através da água azul. De suas chaminés subia fumaça cor de ouro no ar do deserto.
Depois da escuridão do Duat, a luz do sol era ofuscante. Quando meus olhos se ajustaram, vi que estávamos navegando rio abaixo, rumo ao norte, então devemos ter aparecido em algum lugar no sul de Memphis.
De cada lado, o cenário era decorado por margens verdes pantanosas com colunas de palmeiras esticadas na névoa úmida. Algumas casas se espalhavam pela paisagem. Na estrada ribeirinha, uma picape roncou baixo. Um veleiro deslizava a bombordo. Ninguém prestava atenção em nós.
Eu não tinha certeza de onde estávamos. Poderia ser em qualquer lugar ao longo do Nilo. Julgando pela posição do sol, já no final da manhã. Nós comemos e dormimos no domínio do meu pai, descobrindo que não conseguiríamos pregar os olhos enquanto tivéssemos a custódia de Setne. Não foi muito como um descanso, mas obviamente passamos mais tempo no Mundo Inferior do que eu imaginei.
O dia estava passando. Amanhã de madrugada os rebeldes iriam atacar o Primeiro Nomo e Apófis irá ascender.
Zia ficou ao meu lado na proa. Ela tomou banho, vestiu um conjunto extra de roupas de combate – top camuflado e calças de oliva enfiadas em suas botas. Talvez não soe glamoroso, mas na luz da manhã ela estava linda. O melhor de tudo, ela estava aqui em pessoa – não um reflexo da tigela de vidência, não um shabti. Quando o vento mudou de direção, eu peguei o cheiro de seu xampu de limão. Nossos antebraços se tocaram enquanto encostávamos no anteparo, mas ela não pareceu se importar. Sua pele estava febrilmente quente.
— O que você está pensando? — perguntei
Ela tinha dificuldades para se focar em mim. De perto, as manchas de verde e preto em seus olhos cor de âmbar eram meio que hipnotizantes.
— Eu estava pensando sobre Rá — ela disse. — Imaginando quem irá tomar conta dele hoje.
— Tenho certeza que ele está bem.
Mas eu me senti um pouco desapontado. Pessoalmente, eu estava pensando sobre o momento quando Zia havia pegado na minha mão na sala de jantar noite passada: Às vezes você tem que seguir seu coração.
Este deve ser nosso último dia na Terra. Se fosse, eu realmente deveria dizer a Zia como eu me sinto sobre ela. Quero dizer, acho que ela sabia, mas eu não sabia se ela sabia então... Ah cara, que dor de cabeça.
Comecei a dizer:
— Zia...
Setne se materializou do nosso lado.
— Bem melhor!
Na luz do dia, ele parecia quase de carne e osso, mas quando se virava em círculo, mostrando suas novas roupas, suas mãos e face tremulavam holograficamente. Eu lhe dei permissão para colocar algo além da tanga. De fato, eu insisti. Mas não esperava uma roupa tão incompreensível.
Talvez ele estivesse tentando trazer à vida o apelido que Sadie deu para ele: Tio Vinnie. Ele usava um paletó preto com ombreiras, uma camiseta vermelha, um par de jeans, e um par incrivelmente ofuscante de sapatos de correr brancos. Em seu pescoço estava uma corrente de ouro ankhs. Em cada dedo mindinho ele usava um anel do tamanho de um quebra-nozes, com o símbolo de poder “foi” incrustado em diamantes. Seu cabelo estava penteado ainda mais para trás com o que parecia graxa. Seus olhos estavam delineados com kohl. Ele parecia um antigo egípcio mafioso.
Aí eu notei algo faltando em seu traje. Ele não parecia estar usando as Fitas de Hathor.
Eu admito: entrei em pânico. Eu gritei a palavra de comando que Zia me ensinou:
— Tas!
O símbolo para Amarrar apareceu na frente de Setne:


As Fitas de Hathor reaparecerem ao redor de seu pescoço, pulsos, tornozelos, peito e cintura. Elas se expandiram agressivamente, enrolando Setne em um rolo rosa até que ele estava como uma múmia, sem nada à mostra a não ser seus olhos.
— Mm! — Ele protestou.
Eu respirei profundamente. Quando estalei meus dedos, as amarras voltaram para seu tamanho normal.
— Por que você fez isso? — Setne retrucou.
— Eu não vi as fitas.
— Você não... — Setne começou a rir. — Carter, Carter, Carter. Qual é, cara. Isso é só uma ilusão... uma mudança estética. Eu não posso realmente sair dessas coisas.
Ele estendeu seus pulsos. As fitas desapareceram, então reapareceram.
— Viu? Estou apenas escondendo-as, rosa não combina com minha roupa.
Zia bufou.
— Nada combina com essa roupa.
Setne olhou para ela irritado.
— Não precisa ir para o lado pessoal, boneca, apenas relaxe, ok? Você viu o que acontece, uma palavrinha sua, e fico todo amarrado. Sem problema.
Seu tom soou razoável. Setne não era um problema. Setne iria cooperar. Eu poderia relaxar. Atrás de minha cabeça, a voz de Hórus disse: cuidado.
Eu levantei minha guarda mental. De repente, eu estava consciente de hieróglifos flutuando ao meu redor – tufos de fumaça meio visíveis. Eu quis que eles desaparecessem, e eles fracassaram como mosquitos em um mata-mosquito.
— Pare com as palavras mágicas, Setne. Eu irei relaxar quando seu trabalho for feito e você voltar para a custódia do meu pai. Agora onde estamos indo?
Um momento de surpresa passou sobre o rosto de Setne. Ele escondeu um sorriso.
— Claro, sem problema. Feliz em ver que a magia do caminho dos deuses está funcionando em você. Como você está aí, Hórus?
Zia rosnou impaciente.
— Apenas responda a pergunta, seu verme, antes que eu exploda esse sorriso da sua cara.
Ela estendeu sua mão. Chamas cobriram seus dedos.
— Zia, calma aí.
Eu já a vi com raiva antes, mas a tática explodir-seu-sorriso pareceu um pouco dura para ela. Setne não parecia preocupado. Da sua jaqueta ele puxou um estranho pente – aquilo eram dedos humanos? – e penteou seu cabelo gorduroso.
— Pobre Zia — ele disse. — Aquele cara velho está pegando no seu pé, não é? Tendo algum problema com, ah, controle de temperatura ainda? Eu já vi algumas pessoas na sua situação ter uma combustão espontânea. Não é bonito.
Suas palavras obviamente incomodaram Zia. Seus olhos fervilhavam com ódio, mas ela fechou sua mão e extinguiu as chamas.
— Seu vil, desprezível...
— Fique calma, boneca — Setne disse. — Estou apenas demonstrando preocupação. Quanto a onde estamos indo... sul de Cairo, ruínas de Memphis.
Imaginei o que ele quis dizer sobre Zia. Decidi que não era hora para perguntar. Eu não queria as chamas de Zia na minha cara.
Tentei lembrar o que eu sabia sobre Memphis. Lembrei-me que era uma das velhas capitais do Egito, mas havia sido destruída séculos atrás. A maior parte está queimada debaixo da Cairo moderna. Outras partes estavam dispersas no deserto ao sul. Meu pai provavelmente me levou em locais de escavação naquela área uma ou duas vezes, mas eu não tinha uma lembrança clara. Depois de uns anos, todos os locais de escavações meio que se misturaram.
— Onde exatamente? — perguntei. — Memphis era um lugar grande.
Setne levantou suas sobrancelhas.
— Você está certo. Cara, os tempos que eu passava em Gambler’s Alley... mas não importa. Quanto menos você saber colega, melhor. Não queremos nosso amigo cobra Caos colhendo informações da sua mente, queremos? Falando nisso, é um milagre que ele ainda não descobriu nossos planos e enviou alguns monstros desagradáveis para pará-los. Você precisa seriamente trabalhar na sua defesa mental. Ler sua mente é muito fácil. Agora, quanto a sua namorada aqui...
Ele inclinou-se para mim com um sorriso.
— Você gostaria de saber o que ela está pensando?
Zia entendia das Fitas de Hathor melhor do que eu. Instantaneamente, a faixa apertou ao redor do pescoço de Setne, se tornando um lindo colar rosa. Setne pestanejou e colocou a mão na sua garganta. Zia agarrou a outra extremidade da faixa.
— Setne, nós dois estamos indo para a cabine — ela anunciou. — Você irá dar a informação exata para onde estamos indo ou você não irá respirar de novo. Entendeu?
Ela não esperou por uma resposta. Ele não poderia dar uma de qualquer jeito. Ela o arrastou pelo convés como se fosse um cachorro mau.
Assim que eles desapareceram pelo convés, alguém perto de mim riu.
— Me lembre de não ir para o lado negro da força dela.
Os instintos de Hórus entraram. Antes de eu perceber o que estava acontecendo, eu convoquei o meu Khopesh direto do Duat e descansei a aresta curva contra a garganta do meu visitante.
— Sério? — disse o deus do caos. — É assim que você cumprimenta um velho amigo?
Set inclinou-se casualmente contra o parapeito em uma roupa preta de três peças com um chapéu porkpie combinando. A roupa era impressionante contra sua pele vermelho-sangue. A última vez que eu o vi, ele estava careca. Agora ele tinha trancinhas decoradas com rubis. Seus olhos negros brilhavam por trás de pequenos óculos redondos. Com um calafrio, percebi que ele estava representando Amós.
— Pare com isso — pressionei minha espada contra sua garganta. — Pare de zombar do meu tio!
Set pareceu ofendido.
— Zombar? Meu caro rapaz, a imitação é a forma mais sincera de lisonja! Agora, por favor, podemos conversar como seres semi-divinos civilizados?
Com um dedo, ele empurrou o khopesh para longe de seu pescoço. Eu abaixei minha lâmina. Agora que eu estava por cima do meu choque inicial, tive que admitir que estava curioso sobre o que ele queria.
— Por que você está aqui? — exigi.
— Ah, escolha um motivo. O mundo acaba amanhã. Talvez eu queria dizer adeus. — Ele sorriu e acenou. — Bye-bye! Ou talvez eu queira explicar. Ou dar-lhe um aviso.
Olhei para a cabine. Eu não podia ver Zia. Nenhum alarme estava tocando. Ninguém parecia ter notado que o deus do mal tinha acabado de se materializar em nosso barco.
Set seguiu o meu olhar.
— O que acha sobre Setne, hein? Eu amo esse cara.
— Você ama — eu murmurei. — Ele foi nomeado por sua causa?
— Nah. Setne é apenas o seu apelido. Seu nome real é Khaemwaset, assim você pode ver por que ele gosta mais de Setne. Espero que ele não lhe mate imediatamente. Ele é muito divertido... até que ele te mata.
— É isso que você queria explicar?
Set ajeitou os óculos.
— Não, não. É a coisa com Amós. Você não entendeu.
— Você quer dizer de quando você o possuiu e tentou destruí-lo? — perguntei. — Que quase quebrou sua mente? E que agora quer fazer isso de novo?
— As duas primeiras sim. A última não. Amós me chamou, garoto. Você tem que entender, eu nunca poderia ter invadido sua mente primeiramente se ele não partilhasse algumas das minhas qualidades. Ele me entende.
Eu apertei a minha espada.
— Eu entendo você, também. Você é mau.
Set riu.
— Você descobriu isso sozinho? O deus do mal é mau? Claro que eu sou, mas não puro mal. Não puro caos, também. Depois que passei algum tempo na cabeça de Amós, ele entendeu. Eu sou como aquela improvisação de jazz que ele ama – o caos com a ordem. Essa é a nossa conexão. E eu ainda sou um deus, Carter. Eu sou... o que você pode chamar? A oposição leal.
— Leal. Sim, certo.
Set me deu um sorriso malicioso.
— Ok, eu quero dominar o mundo. Destruir qualquer um que esteja no meu caminho? Claro. Mas aquela cobra Apófis, ele leva as coisas longe demais. Ele quer puxar o conjunto da criação para baixo em uma grande sopa de confusão primordial. Onde está a diversão nisso? Se tratando de Rá ou Apófis, eu luto ao lado de Rá. É por isso que Amós e eu temos um acordo. Ele está aprendendo o caminho de Set. Vou ajudá-lo.
Meus braços tremiam. Eu queria cortar a cabeça de Set fora, mas eu não sabia se tinha a força. Também não tinha certeza se conseguiria machucá-lo. Eu sabia de Hórus que os deuses tendiam a rir de lesões simples, como decapitação.
— Você espera que eu acredite que você vai cooperar com Amós? Sem tentar dominá-lo?
— Claro, eu vou tentar. Mas você deve ter mais fé em seu tio. Ele é mais forte do que você pensa. Quem acha que me enviou aqui para explicar?
Uma carga elétrica passou pelo meu corpo. Eu queria acreditar que Amós tinha tudo sob controle, mas era Set falando. Ele me lembrava muito do mago fantasma Setne, e que isso não era coisa boa.
— Você já fez a sua explicação. Agora pode sair.
Set encolheu os ombros.
— Ok, mas parece que havia mais uma coisa... — ele tocou seu queixo. — Oh, certo. O aviso.
— O aviso? — repeti.
— Porque geralmente quando Hórus e eu lutamos, seria eu quem seria responsável por estar prestes a te matar. Mas desta vez, não é. Eu acho que você deveria saber. Apófis está copiando meus movimentos, mas como eu disse... — Ele tirou o chapéu porkpie e curvou-se, os rubis brilharam em suas trancinhas. — A imitação é a lisonja.
— Do que você está...?
O barco balançou e gemeu como se tivéssemos atingido um banco de areia. Na cabine, o alarme tocou. A equipe de órbitas brilhantes ziguezaguearam em torno da plataforma em pânico.
— O que está acontecendo? — me segurei no parapeito.
— Oh, isso seria o hipopótamo gigante — Set disse casualmente. — Boa sorte!
Ele desapareceu em uma nuvem de fumaça vermelha enquanto uma forma monstruosa se levantava do Nilo.

***

Você não poderia pensar que um hipopótamo pudesse inspirar terror. Gritar “Hipopótamo!” não tem o mesmo impacto que gritar “Tubarão!” Mas eu estou lhe dizendo, quando o Rainha Egípcia tombou para um lado e sua roda de pás levantou completamente fora da água e vi um monstro surgir das profundezas, eu quase descobri quais eram os hieróglifos para acidente em minhas calças.
A criatura era facilmente tão grande quanto o nosso barco. Sua pele brilhava roxa e cinza. Quando ele subiu perto da proa, fixou os seus olhos em mim com inconfundível malícia e abriu uma bocarra do tamanho do hangar de um avião. Seus dentes inferiores eram mais altos do que eu. Olhando para baixo na garganta da criatura, senti como se estivesse vendo um túnel brilhante rosa direto para o Mundo Inferior. O monstro poderia ter me comido ali, juntamente com a metade dianteira do barco. Eu estaria paralisado demais para reagir.
Em vez disso, o hipopótamo berrou. Imagine alguém acelerando uma moto suja, em seguida, soprando uma trombeta. Agora imagine aqueles sons amplificados vinte vezes, chegando até você em uma explosão de ar que cheirava a peixe podre e escória de lagoa. É assim que é o grito de guerra de um hipopótamo gigante.
Em algum lugar atrás de mim, Zia gritou:
— Hipopótamo!
O que na minha opinião foi um pouco tarde.
Ela tropeçou em direção a mim sobre o convés oscilante, a ponta de seu cabelo chamuscado. Nosso amigo fantasmagórico Setne flutuava atrás dela, sorrindo com prazer.
— Aí está! — Setne sacudiu os anéis de diamante do dedo mindinho. — Eu te disse que Apófis poderia enviar um monstro para matá-lo.
— Você é tão inteligente! — gritei. — Agora, como é que vamos pará-lo?
— BRRRAAHHHHH! — O hipopótamo empurrou seu rosto contra o Rainha Egípcia.
Eu caí para trás e bati contra a cabine.
Pelo canto do olho, vi que Zia tinha jogado uma coluna de fogo no rosto da criatura. As chamas foram direto até a sua narina esquerda, deixando o hipopótamo louco. Ele bufou e bateu no navio mais forte, catapultando Zia no rio.
— Não! — Eu cambaleei com meus pés.
Tentei invocar o avatar de Hórus, mas minha cabeça latejava. Meu foco estava ruim.
— Quer um conselho? — Setne flutuava ao meu lado, sem se afetar pelo balanço do navio. — Eu poderia lhe dar um feitiço para usar.
Seu sorriso do mal não me encheu exatamente de confiança.
— Apenas fique parado! — apontei para as suas mãos e gritei: — Tas!
As fitas de Hathor amarraram seus pulsos juntos.
— Oh, vamos lá! — ele reclamou. — Como é que eu vou pentear o cabelo assim?
O hipopótamo olhou para mim sobre o parapeito – seus olhos como um gorduroso prato preto. Na cabine, Lâmina Suja de Sangue tocou o alarme e gritou para a tripulação:
— Dano a bombordo! Dano a bombordo!
Em algum lugar pela lateral, ouvi Zia engasgar e espirrar, o que, pelo menos, significava que ela estava viva, mas eu tinha que manter o hipopótamo longe dela e dar tempo para desengatar o Rainha Egípcia. Eu peguei minha espada, corri até o deque inclinado e saltei direto sobre a cabeça do monstro.
Minha primeira descoberta: os hipopótamos são escorregadios. Eu lutei por um apoio – o que não é fácil enquanto se empunha uma espada – e quase escorreguei para o outro lado da cabeça do hipopótamo antes de colocar meu braço livre em torno da sua orelha.
O hipopótamo rugiu e me sacudiu como um brinco de argola.
Eu tive um vislumbre de um barco de pesca navegando com calma como se nada estivesse errado. A tripulação do Rainha Egípcia se fechou em torno de uma grande rachadura na popa. Apenas por um momento, eu vi Zia se debatendo na água, a cerca de 20 metros rio abaixo. Em seguida, a cabeça dela foi para baixo. Eu invoquei toda a minha força e abaixei minha espada no ouvido do hipopótamo.
— BRRRAAHHHHH! — O monstro balançou a sua cabeça.
Perdi meu aperto e fui lançado pelo rio como um cesta de três pontos.
Eu teria atingido a água dura, mas no último segundo eu me transformei em um falcão.
Eu sei que parece... Loucura. Ah, a propósito, apenas aconteceu de eu conseguir me transformar em um falcão. Mas foi magicamente fácil para mim, já que o falcão era o animal sagrado de Hórus. De repente, em vez de cair, eu estava voando sobre o Nilo.
Minha visão era tão afiada que pude ver ratos do campo nos pântanos. Eu podia ver Zia lutando na água, assim como todos os pelos no focinho do hipopótamo. Eu mergulhei no olho do monstro, arranhando com minhas garras.
Infelizmente, tinha uma espécie de tampa, estava coberto com uma membrana de algum tipo. O hipopótamo pestanejou e berrou em aborrecimento, mas eu não tinha feito nenhum dano real.
O monstro virou-se para mim. Eu era muito mais rápido. Voei para o navio e pousei no telhado da popa, tentando recuperar meu fôlego. O Rainha Egípcia tinha conseguido voltar ao normal. Estava lentamente criando distância entre ele e o monstro, mas o casco tinha sérios danos. Uma grande nuvem de fumaça estava saindo das rachaduras na popa. Estávamos inclinando a estibordo, e Lâmina Suja de Sangue continuava a tocar o alarme, o que era realmente irritante.
Zia estava trabalhando para se manter fora d’água, mas ela havia se afastado rio abaixo do hipopótamo e não parecia estar em perigo imediato. Ela tentou invocar o fogo – o que não é fácil de fazer quando você está afundando em um rio.
O hipopótamo se balançava para frente e para trás, aparentemente procurando a irritante ave que tinha cutucado em seu olho. O ouvido do monstro ainda estava sangrando, embora a minha espada não estivesse mais lá – talvez no fundo do rio em algum lugar. Finalmente, o hipopótamo virou sua atenção para o navio.
Setne se materializou ao meu lado. Seus braços ainda estavam amarrados, mas ele parecia estar se divertindo.
— Você está pronto para o conselho agora, colega? Eu não posso lançar o feitiço porque estou morto e tudo mais, mas posso te contar o que dizer.
O hipopótamo atacou. Estava menos de cinquenta metros de distância, nadando rápido. Se acertasse o navio naquela velocidade, o Rainha Egípcia iria quebrar como um graveto.
O tempo pareceu andar mais devagar. Tentei reunir o meu foco. As emoções são ruins para a magia, e eu estava completamente em pânico, mas sabia que tinha apenas uma chance. Eu abri minhas asas e voei diretamente para o hipopótamo. No meio do caminho, eu me transformei novamente em um humano, cai como uma pedra, e convoquei o avatar de Hórus.
Se não tivesse funcionado, eu teria acabado com minha vida como uma mancha de gordura insignificante no peito de um hipopótamo assassino.
Felizmente, a aura azul piscou em torno de mim. Caí no rio envolto no corpo brilhante de um guerreiro cabeça de falcão de 20 metros de altura. Comparado com o hipopótamo, eu ainda era pequeno, mas tive sua atenção quando dirigi o meu punho para seu focinho.
Isso funcionou muito bem durante cerca de dois segundos. O monstro se esqueceu do navio. Eu contornei e o fiz voltar-se para mim, mas eu estava muito lento. Andar no rio em forma de avatar era tão fácil como correr através de uma sala cheia de bolinhas.
O monstro avançou. Ele torceu a cabeça e fechou a boca em torno da minha cintura. Eu cambaleei, tentando me libertar, mas suas mandíbulas eram como um aperto de ferro. Seus dentes afundaram na blindagem mágica. Eu não tinha minha espada. Tudo que eu podia fazer era bater em sua cabeça com meus brilhantes punhos azuis, mas o meu poder estava enfraquecendo rapidamente.
— Carter! — Zia gritou.
Eu tinha uns dez segundos de vida. Em seguida, o avatar iria entrar em colapso, e eu seria engolido ou seria mordido pela metade.
— Setne! — gritei. — Qual é o feitiço?
— Ah, agora você quer o feitiço — Setne falou de cima do navio. — Repitam comigo:Hapi, u-ha ey pwah.
Eu não sabia o que aquilo significava. Setne poderia ter me enganado para eu fazer uma autodestruição ou me transformado em um pedaço de queijo suíço. Mas eu estava sem opções. Eu gritei:
— Hapi, u-ha ey pwah!
Hieróglifos azuis – os mais brilhantes que eu já tinha convocado – arderam em cima da cabeça do hipopótamo:


Ao vê-los escritos, compreendi o significado: Hapi, levante-se e ataque. Mas o que isso significava?
Pelo menos eles distraíram o hipopótamo. Ele me soltou e bateu nos hieróglifos. Meu avatar falhou. Mergulhei na água, a minha magia drenada, minhas defesas se foram – eu era apenas um pequeno e minúsculo Carter Kane na sombra de um hipopótamo de 16 toneladas.
O monstro engoliu os hieróglifos e bufou. Ele sacudiu sua cabeça como se tivesse acabado de engolir uma pimenta chili.
Ótimo, eu pensei. A magia incrível de Setne convocou um aperitivo para o hipopótamo mal.
Então, do barco, Setne gritou:
— Espere! Três, dois, um...
O Nilo ferveu ao meu redor. Uma enorme massa de algas castanhas surgiu debaixo de mim e me levantou em direção ao céu. Instintivamente eu me segurei, lentamente percebendo que as algas não eram algas. Era cabelo no topo de uma cabeça colossal. O homem gigante subiu do Nilo, maior e maior, até o hipopótamo parecia quase bonito em comparação. Eu não podia dizer muito sobre o gigante do topo de sua cabeça, mas sua pele era de um azul mais escuro do que o de meu pai. Ele tinha o cabelo castanho desgrenhado cheio de lama do rio. Sua barriga estava enormemente inchada, e ele parecia que estava vestindo nada mais que uma tanga feita de escamas de peixe.
— BRRRAAHHHHH! — O hipopótamo atacou, mas o gigante azul agarrou seus dentes de baixo e o parou. A força do impacto quase me jogou da cabeça.
— Yay! — O gigante azul berrou. — Lançamento de hipopótamos! Eu amo este jogo!
Ele balançou os braços em um movimento de balanço de golfe e lançou o monstro para fora da água.
Poucas coisas são mais estranhas do que assistir a um hipopótamo gigante voar. Ele se mexeu descontroladamente, chutando suas pernas grossas enquanto navegava ao longo do pântano. Finalmente ele caiu em um penhasco de calcário lá longe, causando uma avalanche de menor importância. Pedregulhos desabaram sobre o hipopótamo. Quando a poeira baixou, não havia nenhum sinal do monstro. Carros continuavam dirigindo pela estrada do rio. Barcos de pesca continuaram seus negócios, como se gigantes azuis que lutam contra hipopótamos fosse algo normal neste trecho do rio Nilo.
— Legal! — O gigante azul aplaudiu. — Agora, quem me invocou?
— Aqui em cima! — gritei.
O gigante congelou. Ele tocou com cuidado o couro cabeludo até que ele me encontrou. Então ele me pegou com dois dedos, nadou até a margem, e gentilmente me depositou.
Ele apontou para Zia, que lutava para chegar à costa, e para o Rainha Egípcia, que estava à deriva rio abaixo, fumaça vindo da popa.
— Aqueles são seus amigos?
— Sim. Você poderia ajudá-los?
O gigante sorriu.
— Volto já!
Poucos minutos depois, o Rainha Egípcia estava seguramente atracado.
Zia sentou ao meu lado na margem da água do Nilo, torcendo seu cabelo. Setne pairou próximo a nós, parecendo muito presunçoso, apesar de seus braços ainda estarem amarrados.
— Então, talvez da próxima vez você vá confiar em mim, Carter Kane! — ele acenou para o gigante, que pairava sobre nós, ainda sorrindo como se ele estivesse realmenteanimado por estar aqui. — Posso apresentar o meu velho amigo, Hapi!
O gigante azul acenou para nós.
— Oi!
Seus olhos eram completamente dilatados. Seus dentes eram brancos brilhantes. Uma massa de cabelos pegajosos castanhos caia sobre os ombros, e sua pele ondulava em diferentes tons de azul. Sua barriga era grande demais para seu corpo. Ela cedia sobre sua saia de escama de peixe como se ele estivesse grávido ou tivesse engolido um dirigível. Ele era, sem dúvida, o mais alto, mais gordo, mais azul, mais alegre gigante hippie que eu já tinha conhecido.
Eu tentei entender seu nome, mas eu não pude.
— Hapi? — Eu perguntei.
— Por que, sim, eu sou feliz! — Hapi gritou. — Eu estou sempre feliz porque eu sou Hapi! Você está feliz?
Olhei para Setne, que parecia achar isso tudo terrivelmente divertido.
— Hapi é o deus do Nilo — o fantasma explicou. — Junto com suas outras tarefas, Hapi é o provedor de colheitas abundantes e todas as coisas boas, e por isso ele está sempre...
— Feliz — adivinhei.
Zia franziu a testa para o gigante.
— Por que ele tem que ser tão grande?
O deus riu. Imediatamente ele encolheu para o tamanho humano, embora o olhar louco alegre em seu rosto ainda fosse muito enervante.
— Então! — Hapi esfregou as mãos com antecipação. — Posso fazer mais alguma coisa por vocês, crianças? Há séculos desde que alguém me chamou. Desde que eles construíram aquela estúpida represa de Aswan, assim o Nilo não inundaria a cada ano como costumava. Ninguém depende mais de mim. Eu poderia matar esses mortais!
Ele disse isso com um sorriso, como se tivesse sugerido trazer para os mortais alguns biscoitos caseiros.
Eu tive alguns pensamentos rápidos. Não é sempre que um deus se oferece para fazer favores – mesmo que esse deus esteja psicologicamente com excesso de cafeína.
— Na verdade, sim — falei. — Veja, Setne sugeriu que eu lhe invocasse para lidar com o hipopótamo, mas...
— Oh, Setne! — Hapi riu e empurrou o fantasma brincalhão. — Eu odeio esse cara. Absolutamente o desprezo! Ele é o único mago que já aprendeu o meu nome secreto. Há!
Setne encolheu os ombros.
— Não foi nada, realmente. E eu tenho que dizer, você veio a calhar muitas vezes nos velhos tempos.
— Haha! — O sorriso de Hapi tornou-se dolorosamente largo. — Eu adoraria rasgar os seus braços e pernas, Setne. Isso seria incrível!
Setne permaneceu calmo, mas ele se afastou um pouco do deus risonho.
— Hum, mesmo assim. Estamos em uma busca. Precisamos encontrar este livro de magia para derrotar Apófis. Setne estava nos levando para as ruínas de Memphis, mas agora o nosso barco está preso. O que você acha?
— Oh! — Hapi aplaudiu com entusiasmo. — O mundo vai acabar amanhã. Eu esqueci!
Zia e eu trocamos olhares.
— Certo... — eu disse. — Então, se Setne lhe dissesse exatamente onde nós estamos indo, você poderia nos levar lá? E, hum, se ele não lhe contar, então você pode rasgar seus membros. Isso seria ótimo.
— Yay! — Hapi gritou.
Setne me deu um olhar assassino.
— Sim, claro. Nós vamos ao serapeum, o templo do Touro Apis.
Hapi bateu em seu joelho.
— Eu devia ter imaginado! Brilhante lugar para esconder alguma coisa. Isso é muito longe no interior, mas com certeza, posso lhe mandar lá se quiser. E só para você saber, Apófis tem demônios de limpeza nas margens dos rios. Você nunca iria chegar a Memphis sem a minha ajuda. Você ficaria dividido em milhões de pedaços!
Ele parecia genuinamente satisfeito por compartilhar essa notícia.
Zia pigarreou.
— Ok, então. Nós adoraríamos sua ajuda.
Eu me virei para o Rainha Egípcia, onde Lâmina Suja de Sangue  estava no parapeito, à espera de novas ordens.
— Capitão — chamei — espere aqui e continue com a reparação do navio. Nós vamos...
— Oh, o navio pode ir também! — Hapi interrompeu. — Isso não é problema.
Eu fiz uma careta. Não tinha certeza de como o deus-rio iria fazer para mover o navio, especialmente desde que ele nos disse Memphis é no interior, mas resolvi não perguntar.
— Mantenha a ordem — eu disse para o capitão. — O navio está indo com a gente. Assim que chegarmos a Memphis, você vai continuar os reparos e aguardar novas ordens.
O capitão hesitou. Então, ele abaixou sua cabeça de lâmina.
— Eu obedecerei, meu senhor.
— Ótimo! — Hapi disse.
Ele estendeu a palma da mão, que continha duas esferas pretas viscosas como ovos de peixes.
— Engula isso. Cada um.
Zia franziu o nariz.
— O que é isso?
— Eles vão te levar aonde você quer ir! — O deus prometeu. — São comprimidos Hapi.
Eu pisquei.
— O que agora?
O fantasma de Setne limpou a garganta. Parecia que ele estava tentando não rir.
— Sim, você sabe. Hapi inventou. Então é assim que eles são chamados.
— Basta comer! — Hapi disse. — Você vai ver.
Relutantemente, Zia e eu tomamos as pílulas. Provaram ser ainda pior do que pareciam. Imediatamente, eu me senti tonto. O mundo cintilou como água.
— Foi bom te conhecer! — Hapi gritou, sua voz se tornando turva e distante. — Você percebe que está indo para uma armadilha, não é? Ok! Boa sorte!
Com isso, minha visão ficou azul, e meu corpo derreteu como líquido.

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