domingo, 25 de janeiro de 2015

A Sombra da Serpente - Carter

Capítulo 19 - Bem-vindo ao parque de diversões do mal

Sadie disse que eu parecia confiante?
Essa é boa.
Na verdade, a oferta de realeza do universo (ou comando supremo sobre deuses e magos, ou o que quer que seja) realmente abalou minhas bases.
Eu estava agradecido que isso tinha acontecido quando estávamos prestes a entrar em combate, assim eu não teria muito tempo para pensar sobre isso ou eu surtaria.
Vai fundo, Hórus disse. Use minha coragem.
Pela primeira vez eu estava contente em deixá-lo no comando. Caso contrário, quando nós alcançássemos a superfície e eu visse quão ruim as coisas estavam, eu poderia correr de volta pra dentro, gritando como uma criancinha.
[Sadie diz que isso não é justo. Nossas criancinhas não gritam. Elas estavam mais ansiosas para o combate do que nós.]
De qualquer forma, nossa pequena gangue de magos surgiu de um túnel secreto na metade do caminho de Quéfren e olhamos para o fim do mundo.
Dizer que Apófis era enorme seria como dizer que o Titanic ocupava um pedaço d’água. Desde que estávamos no subterrâneo, a serpente tinha crescido. Agora ele estava enrolado sobre o deserto por quilômetros, enroscado nas pirâmides e túneis sob os arredores do Cairo, elevando bairros inteiros como tapetes antigos.
Somente a cabeça da serpente estava acima do solo, mas ela surgiu tão grande quanto as pirâmides. Ela era formada por tempestade de areia e relâmpagos, como Sadie havia descrito; e quando se mostrava a crista da cobra, aparecia um hieróglifo ardente que nenhum mago jamais escreveria: Isfet, o sinal do Caos:


Os quatro deuses lutando contra Apófis pareciam minúsculos em comparação. Sobek montou nas costas da serpente, mordendo de novo e de novo com suas poderosas mandíbulas de crocodilo e esmagando tudo com seu cajado. Seus ataques eram conexos, mas não pareciam incomodar Apófis.
Bes dançava ao redor em sua sunga, balançando um taco de madeira e gritando “Boo!” tão alto, que as pessoas do Cairo estavam provavelmente encolhidas sob suas camas. Mas a cobra gigante do Caos não parecia aterrorizada.
Nossa amiga gata Bastet não estava tendo muita sorte também. Ela saltou sobre a cabeça da serpente e golpeava descontroladamente com suas facas, então pulava antes que Apófis pudesse sacudi-la para fora, mas a serpente só parecia interessada num único alvo.
De pé no deserto entre a Grande Pirâmide e a Esfinge, Zia estava cercada em luz dourada brilhante. Era difícil olhar diretamente para ela, mas ela estava atirando bolas de fogo, como fogos de artifício – cada uma explodindo contra o corpo da serpente e interrompendo a sua forma. A serpente revidou, mordendo pedaços do deserto, mas ele não conseguia encontrar Zia. Sua localização mudava como uma miragem – sempre vários passos de distância de onde quer que Apófis atingisse.
Mesmo assim, ela não podia manter isso para sempre. Olhando pelo Duat, eu podia ver as auras dos quatro deuses enfraquecendo, e Apófis continuava crescendo e ficando mais forte.
— O que nós faremos? — Jaz perguntou nervosamente.
— Esperamos pelo meu sinal — falei.
— Que é o quê? — perguntou Sadie.
— Eu ainda não sei. Já volto.
Eu fechei meus olhos e enviei meu ba para os céus. De repente, eu estava na sala do trono dos deuses. Colunas de pedra elevavam-se acima. Braseiros de fogo mágico espalhados até longe, sua luz refletindo sobre o chão de mármore polido. No centro da sala, o barco do sol de Rá repousava sobre seus estrados. Seu trono de fogo estava vazio.
Eu parecia estar sozinho, até que entoei:
— Vinde a mim — Hórus e eu falamos em uníssono. — Cumpram o seu juramento de lealdade.
Trilhas de fumaça brilhante entravam no ambiente como cometas em câmera lenta. Luzes brilhavam até criarem vida, girando entre as colunas. Ao meu redor, os deuses se materializaram.
Um enxame de escorpiões correu pelo chão e se fundiram para formar a deusa Serket, que olhou para mim com desconfiança por debaixo de sua coroa em forma de escorpião. Babi, o deus babuíno, desceu da coluna mais próxima e mostrou suas presas. Nekhbet, a deusa abutre, empoleirou-se na proa do barco do sol. Shu, o deus do vento, entrou num sopro como uma poeira do mal, em seguida, tomou a aparência de um piloto da Segunda Guerra Mundial, com seu corpo criado inteiramente a partir de poeira, folhas e pedaços de papel.
Havia mais uma dúzia: o deus da lua Khonsu em seu terno prateado; a deusa do céu Nut, com sua pele azul galáctica brilhando com estrelas; Hapi, o hippie com sua saia verde de escamas de peixe e seu sorriso louco; e uma mulher de aspecto severo em roupas camufladas de caça, um arco ao seu lado, pintura de graxa no rosto, e duas folhas de palmeiras ridículas saindo de seu cabelo – Neith, assumi.
Eu esperava por mais rostos amigáveis, mas eu sabia que Osíris não poderia deixar o mundo inferior. Tot ainda estava preso em sua pirâmide. E muitos deuses – provavelmente aqueles mais susceptíveis a ajudar-me – também estavam sob cerco das forças do Caos. Nós teríamos que fazer dar certo.
Eu encarei os deuses reunidos e esperava que minhas pernas não estivessem tremendo muito. Eu ainda me sentia como Carter Kane, mas sabia que, quando olhavam para mim, eles estavam vendo Hórus, o Vingador.
Eu brandi o cajado e o mangual.
— Esses são os símbolos do faraó, que me foram dados pelo próprio Rá. Ele me nomeou como seu líder. Mesmo agora, ele está enfrentando Apófis. Devemos nos juntar à batalha. Sigam-me e façam o seu dever.
Serket assobiou.
— Nós só seguimos os fortes. Você é forte?
Eu me movi com velocidade relâmpago. Atravessei o mangual através da deusa, cortando-a em uma pilha flamejante de escorpiões assados.
A poucas criaturas vivas corriam para fora dos destroços. Eles se moveram para uma distância segura e começaram a tomar forma novamente, até que a deusa estava inteira novamente, escondendo-se atrás de um braseiro de chamas azuis.
A deusa abutre Nekhbet gargalhou.
— Ele é forte.
— Então venham — eu disse.
Meu ba retornou à terra. Eu abri meus olhos.
Acima de pirâmide de Quéfren, nuvens de tempestade estavam reunidas. Com um trovão elas se separaram, e os deuses entraram para a batalha, alguns montando carruagens de guerra, alguns em navios de guerra flutuantes, alguns nas costas dos falcões gigantes. O deus babuíno Babi pousou no topo da Grande Pirâmide. Ele bateu no peito e gritou.
Eu virei para Sadie.
— Que tal isso como sinal?
Nós escalamos a pirâmide e nos juntamos à luta.
Primeira dica numa luta contra uma serpente gigante do Caos: não lute.
Mesmo com um esquadrão de deuses e magos em sua volta, não é uma batalha que você provavelmente irá ganhar. Descobri isso enquanto chegamos mais perto e o mundo pareceu rachar. Percebi que Apófis não estava apenas enrolando-se dentro e fora do deserto, enrolando-se em torno das pirâmides. Ele estava enrolando para dentro e para fora do Duat, fragmentando a realidade em diferentes camadas. Tentar encontrá-lo era como correr por um Parque de Diversões cheio de espelhos, cada espelho leva a outro Parque de Diversões cheio de mais espelhos.
Nossos amigos começaram a dividir-se. Em torno de nós, deuses e magos ficaram isolados, alguns afundando mais fundo no Duat que outros. Nós lutávamos contra um único inimigo, mas cada um lutava apenas contra um fragmento de seu poder.
Na base da pirâmide, parte da serpente se enroscava em Walt. Ele tentou forçar seu caminho para fora, explodindo a serpente com luz cinzenta que transformou suas escamas em cinzas, mas a serpente simplesmente se regenerava, apertando mais e mais em torno de Walt.
A poucos metros de distância, Julian tinha convocado um avatar de Hórus completo, um gigante guerreiro verde com cabeça de falcão com um khopesh em cada mão. Ele cortou fora a cauda da serpente – ou pelo menos uma versão dela – enquanto a cauda chicoteava em volta e tentava acertá-lo. Mais profundo no Duat, a deusa Serket estava praticamente no mesmo lugar. Ela transformou-se em um escorpião negro gigante e foi confrontar outra imagem da cauda da serpente, desviando-a com seu ferrão em uma luta de espadas bizarra.
Mesmo Amós tinha sido emboscado. Ele enfrentava a direção errada (ou pelo menos assim me parecia) e brandia seu cajado através do ar, gritando palavras de comando para o nada.
Eu esperava que estivéssemos enfraquecendo Apófis por força-lo a lidar com tantos de nós ao mesmo tempo, mas eu não conseguia ver nenhum sinal de sua força diminuindo.
— Ele está nos dividindo! — Sadie gritou.
Mesmo estando do meu lado, ela parecia estar falando através de um túnel de vento barulhento.
— Segure firme! — estendi o cajado do faraó. — Temos que ficar juntos!
Ela pegou a outra extremidade do cajado, e nós seguimos em frente.
Quanto mais perto chegávamos à cabeça da serpente, mais difícil era para se mover. Eu me senti como se estivéssemos passando por camadas de xarope límpido, cada uma mais espessa e mais resistente do que a anterior. Eu olhei ao nosso redor e percebi que a maioria dos nossos aliados tinha caído. Alguns eu não podia nem ver por causa da distorção do Caos.
Diante de nós, uma luz brilhante brilhou como se estivesse através da água.
— Nós temos que chegar até Rá — eu disse. — Concentre-se nele!
O que eu realmente estava pensando: eu tenho que salvar Zia. Mas eu tinha certeza que Sadie sabia sem eu ter que dizer. Eu podia ouvir a voz de Zia, convocando ondas de fogo contra seu inimigo. Ela não poderia estar mais longe, talvez poucos metros de distância mortal? Através do Duat, poderiam ter sido milhares de quilômetros.
— Quase lá! — falei.
Vocês estão muito atrasados, pequenos seres, a voz de Apófis zunia em meus ouvidos.Rá será meu café-da-manhã hoje.
Uma parte tão grande da cobra quanto um vagão do metrô bateu na areia aos nossos pés, quase nos esmagando. As escamas ondulavam com energia do Caos, me fazendo querer dobrar com náuseas. Sem Hórus me protegendo, tenho certeza que eu teria sido vaporizado só estando tão perto dele. Balancei meu mangual. Três linhas de fogo atravessaram o couro da cobra, lançando-o em pedaços de névoa vermelha e cinza.
— Tudo bem? — perguntei a Sadie.
Ela parecia pálida, mas assentiu. Nós seguimos em frente.
Alguns dos deuses mais poderosos ainda lutavam ao nosso redor. Babi, o babuíno, estava montando uma versão de cabeça da serpente, batendo os punhos enormes entre os olhos de Apófis, mas a serpente parecia apenas levemente irritada. A deusa caçadora Neith se escondeu atrás de uma pilha de blocos de pedra, acertando em outra cabeça da cobra com suas flechas. Ela era muito fácil de identificar por causa das folhas de palmeiras em seu cabelo, e ela continuou gritando alguma coisa sobre uma conspiração de Ursos de Gelatina. Mais adiante, a boca de outra serpente afundou suas presas em Nekhbet, a deusa abutre, que gritou de dor e explodiu em uma pilha de penas pretas.
— Nós estamos ficando sem deuses! — Sadie gritou.
Finalmente chegamos ao meio da tempestade de Caos. Paredes de fumaça vermelha e cinza giravam em torno de nós, mas o rugido morria no centro, como se tivéssemos entrado no olho de um furacão. Acima de nós surgiu a verdadeira cabeça da serpente, ou pelo menos a manifestação que detinha a maior parte de seu poder.
Como eu sabia disso? Sua pele parecia mais sólida, brilhando com escamas vermelho-douradas. Sua boca era uma caverna rosa com presas. Seus olhos brilhavam, e sua silhueta se espalhava tão amplamente que bloqueava um quarto do céu.
Diante dele estava Rá, uma aparição brilhante muito forte para se olhar diretamente. Se eu olhasse pelo canto do meu olho, no entanto, eu podia ver Zia no centro da luz. Ela agora usava as roupas de uma princesa egípcia – um vestido de seda branco e dourado, um colar de ouro e braçadeiras. Até mesmo seu cajado e varinha eram dourados. Sua imagem dançava como vapor quente, fazendo com que a serpente julgasse mal sua localização a cada vez que ele atacava.
Zia atirava bolas de fogo vermelho em direção a Apófis – cegando seus olhos e queimando sua pele – mas o dano parecia se curar quase que instantaneamente. Ele estava cada vez mais forte e maior.
Zia não estava com tanta sorte. Se eu me concentrasse, podia sentir a sua força de vida, seu ka, cada vez mais fraco. O brilho luminoso no centro de seu peito ia se tornando menor e mais concentrado, como uma chama reduzida a uma luz piloto.
Enquanto isso, nossa amiga felina Bastet estava fazendo seu melhor para distrair seu velho inimigo. Mais e mais, ela pulava nas costas da serpente, cortando com suas facas e miando com raiva, mas Apófis apenas a sacudia para fora, a jogando de volta na tempestade.
Sadie observou a área com alarme.
— Onde está Bes?
O deus anão tinha desaparecido. Eu estava começando a temer o pior quando uma voz rabugenta perto da borda da tempestade chamou:
— Uma ajudinha, talvez?
Eu não tinha prestado muita atenção às ruínas ao nosso redor. As planícies de Gizé estavam cheias de grandes blocos de pedra, valas e fundações de construções antigas de escavações anteriores. Sob um bloco de calcário quase do tamanho de um carro, surgia a cabeça do deus anão.
— Bes! — Sadie gritou enquanto corria em sua direção. — Você está bem?
Ele olhou para nós.
— Eu pareço bem para você, garota? Estou com um bloco de calcário de dez toneladas sobre meu peito. A respiração da serpente me abateu e fez cair essa coisa em cima de mim. Ato mais descarado de crueldade contra os anões de todos os tempos!
— Você pode mover isso? — perguntei.
Ele me deu um olhar quase tão feio quanto sua cara de Boo!
— Nossa, Carter, eu nem tinha pensado nisso. Está tão confortável aqui embaixo. É claro que não posso mover, seu idiota! Blocos de pedra não se assustam tão facilmente. Ajude esse anão, sim?
— Se afaste — eu disse para Sadie.
Eu convoquei a força de Hórus. Uma luz azul envolveu minha mão, e eu fatiei a pedra com um golpe de caratê. Rachou bem no meio, caindo de cada lado do deus anão.
Teria sido mais impressionante se eu não tivesse gemido como um cachorrinho e segurado meus dedos. Aparentemente, eu precisava trabalhar mais no truque caratê, porque a minha mão parecia que estava fervendo em óleo. Eu tinha certeza que havia quebrado alguns ossos.
— Tudo bem? — perguntou Sadie.
— Sim — menti.
Bes se apoiou em seus pés.
— Valeu, garoto. Agora é hora de lutar contra essa cobra no estilo Bes.
Nós corremos para ajudar Zia, o que se revelou uma má ideia. Ela espiou e nos viu – e, por um momento, ela ficou distraída.
— Carter, graças aos deuses!
Ela falou em uma harmonia de duas partes – parte ela, parte a voz comandante profunda de Rá, o que era um pouco demais para aguentar. Chame-me de mente fechada, mas ouvir minha namorada falar como um deus de cinco mil anos de idade não estava na minha lista de Coisas que Eu Acho Atraente. Mesmo assim, eu estava tão feliz de vê-la que quase nem me importei.
Ela arremessou outra bola de fogo goela abaixo de Apófis.
— Você chegou bem na hora. Nossa amiga serpente está ficando mais for...
— Cuidado! — Sadie gritou.
Desta vez, Apófis não se intimidou pelo fogo. Ele atacou imediatamente – e ele não errou. Sua boca acertou como uma bola de demolição.
Quando Apófis surgiu novamente, Zia tinha ido. Havia uma cratera na areia onde ela estava em pé, e uma protuberância de tamanho humano iluminava a goela da cobra por dentro, brilhando enquanto descia pela sua garganta.
Sadie diz que eu fiquei um pouco insano. Honestamente, eu não me lembro. A próxima coisa que me lembro era da minha voz rouca de tanto gritar, e eu estava cambaleando para longe de Apófis, minha magia quase esgotada, a minha mão quebrada latejando, meu cajado e mangual fumegando com um líquido vermelho-acinzentado – o sangue do Caos.
Apófis tinha três cortes em seu pescoço que não se fechavam. Fora isso, ele parecia bem. É difícil dizer se uma serpente tem uma expressão, mas eu tinha certeza que ele estava exultante.
— Como foi previsto! — Ele falou em voz alta, e a terra tremeu.
Rachaduras se espalharam através do deserto como se tivesse de repente se tornado gelo fino. O céu ficou preto, iluminado apenas pelas estrelas e raios de luz vermelha. A temperatura começou a cair.
— Você não pode enganar o destino, Carter Kane! Eu engoli Rá. Agora, o fim do mundo está próximo!
Sadie caiu de joelhos e chorou. O desespero tomou conta de mim, pior do que o frio. Senti o poder de Hórus falhar, e eu era apenas Carter Kane novamente. Ao nosso redor, em diferentes níveis do Duat, deuses e magos pararam de lutar conforme o terror se espalhava através de suas fileiras.
Com agilidade felina, Bastet pousou ao meu lado, respirando com dificuldade. Seu cabelo estava tão inchado que parecia um ouriço do mar, coberto com areia. Seu traje fora rasgado e despedaçado. Ela tinha uma contusão desagradável no lado esquerdo de sua mandíbula. Suas facas estavam fumegantes e marcadas com a corrosão do veneno da serpente.
— Não — ela disse firmemente. — Não, não, não. Qual é o nosso plano?
— Plano? — tentei fazer sentido à sua pergunta.
Zia tinha morrido. Nós tínhamos falhado. A antiga profecia tinha se tornado realidade, e eu ia morrer sabendo que era um completo e total perdedor. Olhei para Sadie, mas ela parecia tão abalada quanto eu.
— Acorda, garoto! — Bes veio até mim e me chutou no joelho, o que era o máximo que ele poderia alcançar.
— Ai! — protestei.
— Você é o líder agora — ele rosnou. — Então é melhor você ter um plano. Eu não voltei à vida para ser morto de novo!
Apófis assobiou. A terra continuou a rachar, sacudindo as bases das pirâmides. O ar estava tão frio que minha respiração soltava fumaça.
— Muito atrasado, pobre criança — os olhos vermelhos da serpente me encaravam. — O Maat vem morrendo por séculos. Seu mundo era apenas um grão temporário no Mar do Caos. Tudo que vocês construíram não significa nada. Eu sou seu passado e seu futuro! Curve-se a mim agora, Carter Kane, e talvez e poupe você e sua irmã. Eu vou gostar de ter sobreviventes para testemunhar meu triunfo. É preferível à morte, não?
Meus membros estavam pesados. Em algum lugar lá dentro, eu era um menino assustado que queria viver. Eu perdi meus pais. Tinha sido convidado a lutar uma guerra que era muito grande para mim. Por que eu deveria continuar quando não havia esperança? E se eu pudesse salvar Sadie...
Então eu me concentrei na garganta da serpente. O brilho do deus sol engolido afundava mais e mais na garganta de Apófis. Zia tinha dado a sua vida para nos proteger.
Não tenha medo, ela disse. Eu vou segurar Apófis até você chegar.
A raiva limpou meus pensamentos. Apófis estava tentando me influenciar, da mesma maneira que tinha corrompido Vlad Menshikov, Kwai, Sarah Jacobi, e até mesmo Set, o deus do mal em si. Apófis era o mestre em corroer a razão e a ordem, de destruir tudo o que era bom e admirável. Ele era egoísta, e queria que eu fosse egoísta também.
Eu me lembrei do obelisco branco ascendendo do Mar do Caos. Ele tinha permanecido lá por milhares de anos, contra todas as probabilidades. Ele representava coragem e civilização, fazer a escolha certa em vez da escolha fácil. Se eu falhasse hoje, aquele obelisco finalmente iria desmoronar. Tudo que os humanos tinham construído desde as primeiras pirâmides do Egito seria por nada.
— Sadie — eu disse — você está com a sombra?
Ela ficou de pé, sua expressão chocada transformada em raiva.
— Pensei que nunca perguntaria.
De sua bolsa ela pegou a estatueta de granito, agora preta da cor da meia-noite, com a sombra de Apófis.
A serpente recuou, sibilando. E pensei ter detectado medo em seus olhos.
— Não seja tolo — Apófis resmungou. — Esse feitiço ridículo não funcionará, não agora, quando sou vitorioso! Além disso, você está muito fraco. Você nunca sobreviveria à tentativa.
Como todas as ameaças efetivas, era a verdade. Minhas reservas mágicas estavam quase esgotadas. Sadie não poderia estar muito melhor. Mesmo se os deuses ajudassem, nós provavelmente iríamos nos queimar em chamas lançando uma execração.
— Pronto? — Sadie me perguntou com seu tom desafiador.
— Tentem — Apófis avisou — e eu irei trazer suas almas do Caos de novo e de novo, só para que eu possa matá-los lentamente. E será o mesmo com seus pais. Vocês conhecerão uma eternidade de dor.
Eu senti como se tivesse engolido uma das bolas de fogo de Rá. Meus punhos cerraram em torno do cajado e do mangual, apesar da dor latejante na minha mão. O poder de Hórus cresceu novamente em mim, e mais uma vez nós estávamos em concordância absoluta. Eu era o seu Olho. Eu era o Vingador.
— Grande erro — falei à serpente. — Você nunca deveria ter ameaçado minha família.
Eu arremessei o cajado e o mangual. Eles esmagaram no rosto Apófis e explodiram numa coluna de fogo como uma explosão nuclear.
A serpente uivava de dor, envolta em chamas e fumaça, mas eu suspeitava que só tivesse ganhado alguns segundos.
— Sadie, você está pronta?
Ela assentiu com a cabeça e me ofereceu a estatueta. Juntos, nós a seguramos e nos preparamos para o que poderia ser a última magia de nossas vidas. Não houve necessidade de consultar um pergaminho. Nós estávamos praticando para esta execração por meses. Sabíamos as palavras de cor. A única questão era se a sombra iria fazer a diferença. Depois que começássemos, não teria como parar. E se nós falhássemos ou tivéssemos sucesso, provavelmente iríamos queimar em chamas.
— Bes e Bastet — eu disse — vocês dois podem manter Apófis longe de nós?
Bastet sorriu e ergueu suas facas.
— Proteger meus gatinhos? Você não precisa nem perguntar — ela olhou para Bes. — E no caso de morrermos, eu sinto muito por todas as vezes que brinquei com suas emoções. Você merecia algo melhor.
Bes bufou.
— Tudo bem. Finalmente voltei aos meus sentidos e encontrei a garota certa. Além disso, você é uma gata. É da sua natureza pensar que é o centro do universo.
Ela olhou para ele fixamente.
— Mas eu sou o centro do universo.
Bes riu.
— Boa sorte, garotos. Está na hora de trazer o Feio.
— MORTE! — Apófis gritou, saindo da coluna de fogo com seus olhos brilhando.
Bastet e Bes – os dois melhores amigos e protetores que já tivemos – estavam encarregados de Apófis. Sadie e eu começamos o feitiço.

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