domingo, 18 de janeiro de 2015

A Pirâmide Vermelha - Sadie

Capítulo 27 - Um demônio com amostras grátis

EU? DORMI COMO SE ESTIVESSE MORTA, o que esperava não ser um sinal do que estava por vir. Dava para perceber que a alma de Carter tinha perambulado por alguns lugares pavorosos, mas ele nada falava sobre a experiência.
— Viu Zia? — perguntei. Ele reagiu tão surpreso que nem precisei de uma resposta. — Eu sabia — concluí.
Seguimos Bastet até a cabine do barco, onde Lâmina Suja de Sangue estudava um mapa enquanto Khufu pilotava.
— O babuíno está ao leme — notei. — Devo ficar preocupada?
— Silêncio, por favor, Lady Kane. — Lâmina Suja de Sangue deslizava um dedo por uma longa faixa de um mapa em papiro. — Este é um trabalho delicado. Dois graus a estibordo, Khufu.
— Agh! — Khufu respondeu.
O céu já estava escuro, e à medida que seguimos adiante, as estrelas desapareceram. O rio se tingiu da cor do sangue. As trevas engoliram o horizonte, e ao longo das margens as luzes das cidades deram lugar a fogueiras bruxuleantes, depois se apagaram por completo. A única iluminação vinha das bolas de fogo e da fumaça que brotava das chaminés, cercando-nos com seu brilho metálico.
— Deve ser logo ali na frente — anunciou o capitão.
Na penumbra, a lâmina manchada de sangue parecia ainda mais assustadora.
— Que mapa é esse? — perguntei.
— Feitiços para chegar à luz do dia — respondeu ele. — Não se preocupe. É uma boa edição.
Olhei para Carter, esperando uma tradução.
— Muitas pessoas o chamam de O livro dos mortos — ele me disse. — Os egípcios ricos eram quase sempre enterrados com uma cópia, para que pudessem encontrar o caminho pelo Duat para o Mundo dos Mortos. É como um “Guia do idiota para o pós-vida”.
O capitão vibrou, indignado.
— Não sou idiota, Lorde Kane.
— Não, não, só quis dizer... — A voz de Carter falhou. — É... O que é aquilo?
À frente, rochedos emergiam do rio como presas, transformando-o em uma borbulhante coleção de cataratas.
— A Primeira Catarata — anunciou Lâmina Suja de Sangue. — Segurem-se.
Khufu girou o leme para a esquerda, e o barco deslizou para o lado, passando entre duas rochas com poucos centímetros de folga.
Não sou muito de gritar, mas confesso que gritei até quase perder a voz.
[E não olhe para mim desse jeito, Carter. Você não agiu muito melhor.]
Caímos em um trecho de água clara – ou vermelha – e nos desviamos de uma rocha do tamanho da estação Paddington. O barco fez mais duas curvas suicidas entre as pedras, descreveu um giro de trezentos e sessenta graus, mergulhou em uma catarata de dez metros e caiu tão vertiginosamente que meus ouvidos estalaram, como tiros. Continuamos navegando como se nada tivesse acontecido, ouvindo o barulho ensurdecedor das cataratas atrás de nós.
— Não gosto de cataratas — decidi. — Ainda tem mais?
— Não tão grandes, felizmente — respondeu Bastet, que também parecia mareada. — Já entramos no...
— Mundo dos Mortos — anunciou Carter.
Ele apontou para a margem, que estava encoberta pela névoa. Coisas estranhas espreitavam da escuridão: luzes fantasmagóricas, rostos de fumaça gigantescos, sombras que flutuavam como se não estivessem ligadas a nada físico. Ao longo das margens, ossos eram arrastados pelo lodo, ligando-se a outros ossos aleatoriamente.
— Acho que esse não é o Mississippi — comentei.
— O rio da Noite — vibrou Lâmina Suja de Sangue. — Todos os rios e nenhum rio: uma sombra do Mississippi, do Nilo, do Tâmisa. Ele flui pelo Duat, com muitos afluentes e braços.
— Quero sair daqui — resmunguei.
As cenas foram piorando. Vimos vilarejos fantasmas de tempos antigos – pequenos aglomerados de choupanas de sapé feitas de névoa. Vimos vastos templos desmoronando e se reconstruindo muitas e muitas vezes, como um vídeo em loop. E, em todos os lugares, os fantasmas olhavam para o barco ao nos deslocarmos. Mãos nebulosas tentavam nos tocar. Sombras nos chamavam em silêncio, depois se viravam em desespero quando passávamos.
— Os perdidos e confusos — informou Bastet. — Espíritos que nunca encontraram o caminho para o Salão do Julgamento.
— Por que são tão tristes? — perguntei.
— Bem, eles estão mortos — especulou Carter.
— Não, é mais que isso — retruquei. — É como se estivessem... esperando alguém.
— Rá — confirmou Bastet. — Por eras, o glorioso barco do sol de Rá percorreu esta rota todas as noites, enfrentando as forças de Apófis. — Ela olhou em volta nervosa, como se lembrasse velhas emboscadas. — Era perigoso: todas as noites, uma luta pela sobrevivência. Mas, enquanto passava, Rá trazia calor e sol ao Duat, e esses espíritos perdidos se alegravam, relembrando o mundo dos vivos.
— Mas isso é uma lenda — comentou Carter. — A Terra gira em torno do Sol. O Sol nunca desce realmente até a Terra.
— Não aprendeu nada sobre o Egito? — disparou Bastet. — Histórias conflitantes podem ser igualmente verdadeiras. O sol é uma bola de fogo no espaço, sim. Mas a imagem que você vê quando ele cruza o céu, o calor gerador de vida e a luz derramada sobre a Terra, isso era personificado por Rá. O Sol era seu trono, sua fonte de força e de poder, seu espírito. Mas agora Rá se retirou para o céu. Ele dorme, e o Sol é só o Sol. O barco de Rá já não viaja em seu ciclo pelo Duat. Ele não ilumina mais a escuridão, e os mortos sentem intensamente sua ausência.
— De fato — concordou Lâmina Suja de Sangue, embora não parecesse muito preocupado com isso. — Diz a lenda que o mundo vai acabar quando Rá estiver cansado demais para viver em seu estado enfraquecido. Apófis engolirá o Sol. A escuridão reinará. O caos vai dominar o Maat e a Serpente reinará para sempre.
Em parte, eu achava isso absurdo. Os planetas não iam simplesmente parar de girar. O Sol não deixaria de se erguer todos os dias. Por outro lado, lá estava eu navegando pelo Mundo dos Mortos com um demônio e um deus. Se Apófis também era real, eu preferia não conhecê-lo.
E, para ser bem honesta, eu me sentia culpada. Se a história que Tot me contara era verdadeira, Ísis havia provocado a retirada de Rá para o céu com aquele negócio de nome secreto. O que significava, de um jeito ridículo e meio maluco, que o fim do mundo seria minha culpa. Típico. Pensei em me socar para castigar Ísis, mas desconfiei de que a dor maior seria minha.
— Rá devia acordar e cheirar o sahlab — comentei. — Ele devia voltar.
Bastet riu sem humor.
— E o mundo devia ser jovem novamente, Sadie. Gostaria que fosse possível...
Khufu grunhiu e apontou para a frente. Ele devolveu o leme ao capitão e saiu da cabine, descendo a escada aos saltos.
— O babuíno está certo — anunciou Lâmina Suja de Sangue. — Deviam ir para a proa. Logo surgirá um desafio.
— Que tipo de desafio? — indaguei.
— É difícil dizer — respondeu Lâmina Suja de Sangue, e tive a impressão de que havia certa satisfação em sua voz. — Boa sorte, Lady Kane.
— Por que eu? — gemi.
Bastet, Carter e eu nos posicionamos na proa do barco, vendo o rio surgir da escuridão. Embaixo, os olhos pintados da embarcação brilhavam fracos na escuridão, lançando raios de luz na água vermelha. Khufu estava empoleirado no topo da rampa de embarque, que ficava ereta quando era recolhida, e tinha unido as mãos acima dos olhos, como o vigia no mastro de um navio.
Mas toda essa vigilância de nada adiantou. Com a escuridão e a névoa, a visibilidade era nula. Rochas imensas, pilares quebrados e ruínas de estátuas de faraós surgiam do nada. Lâmina Suja de Sangue girava o leme para evitar os obstáculos, o que nos obrigava a segurar firme na balaustrada. De vez em quando, víamos linhas longas cortando a superfície da água, como tentáculos ou como as costas de criaturas submersas – eu realmente não queria saber.
— Almas mortais são sempre desafiadas — Bastet me disse. — Você precisa provar seu valor para entrar no Mundo dos Mortos.
— Como se fosse uma grande honra?
Não sei por quanto tempo olhei para a escuridão, mas em algum momento uma mancha vermelha apareceu ao longe, como se o céu começasse a clarear.
— É minha imaginação ou...
— Nosso destino — continuou Bastet. — Estranho, já devíamos ter sido desafiados a esta altura...
O barco balançou e a água começou a ferver. Uma figura gigantesca emergiu do rio. Eu só conseguia vê-lo da cintura para cima, mas era vários metros mais alto que o barco. O corpo era humanoide: peito nu e peludo com pele avermelhada. Um cinto de corda envolvia a cintura, e nele havia bolsas de couro, várias cabeças de demônio e outros penduricalhos muito encantadores. A cabeça era uma estranha combinação de leão e homem, com olhos dourados e uma juba negra de dreadlocks. A boca respingada de sangue era felina, com bigodes pontudos e dentes afiados. Ele rugiu, assustando Khufu, que correu de seu observatório. O pobre babuíno saltou para os braços de Carter e os dois caíram no convés.
— Você tinha que dizer alguma coisa... — eu me queixei com Bastet. — Suponho que seja algum parente seu?
Bastet balançou a cabeça.
— Dessa vez não posso ajudá-la, Sadie. Vocês são os mortais. O desafio é para vocês.
— Ah, muito obrigada.
— Eu sou Shezmu! — disse o homem-leão pavoroso.
Senti vontade de dizer “Ah, sim, claro que é”, mas achei melhor ficar quieta.
Ele voltou os olhos dourados para Carter e inclinou a cabeça. Suas narinas inflaram.
— Sinto cheiro de sangue de faraó. Uma guloseima deliciosa... ou você se atreve a me nomear?
— No... nomeá-lo? — Carter gaguejou. — Refere-se a seu nome secreto?
O demônio riu. Ele agarrou uma rocha próxima e a amassou como se fosse de gesso. Olhei para Carter sem disfarçar o desespero.
— Por acaso não tem o nome secreto dele anotado em algum lugar, tem?
— Talvez... O livro dos mortos — sugeriu meu irmão. — Esqueci de olhar.
— E então?
— Mantenha-o ocupado — respondeu Carter, antes de se afastar.
Manter um demônio ocupadoeu pensei. É claro. Talvez ele queira jogar palitinhos.
— Você desiste? — urrou Shezmu.
— Não! — gritei. — Não, nós não desistimos. Vamos nomeá-lo. Apenas... Ei, você é bem musculoso, hein? Faz exercícios?
Olhei para Bastet, e ela aprovou minha tática com um movimento de cabeça.
Shezmu vibrou de orgulho e flexionou os braços poderosos. Isso nunca falha com os homens, não é? Mesmo que tenham vinte metros de altura e cabeça de leão.
— Eu sou Shezmu! — urrou ele.
— Sim, você já disse isso — respondi. — Mas ainda não disse, por exemplo, que tipo de títulos acumulou ao longo dos anos. Lorde isso, lorde aquilo... Alguma coisa?
— Sou o algoz real de Osíris! — gritou ele, batendo com um punho fechado na água e balançando o barco. — Sou o Lorde de Sangue e Vinho!
— Brilhante — comentei, tentando não ficar enjoada. — Mas... é... como sangue e vinho se relacionam, exatamente?
— Garrr! — Ele se inclinou para a frente e mostrou as presas, que não eram mais bonitas de perto. A juba era enfeitada por pequenos pedaços de peixe e vegetação do fundo do rio. — Lorde Osíris me manda decapitar os impuros! Eu os esmago em minha prensa e faço vinho para os mortos!
Nota mental: nunca beber o vinho dos mortos.
Você está indo bem. A voz de Ísis me assustou. Ficara quieta por tanto tempo que eu quase tinha me esquecido de sua presença. Pergunte a ele sobre suas outras atribuições.
— E quais são suas outras atribuições... oh, poderoso demônio do vinho?
— Eu sou o Lorde do... — Ele flexionou os músculos para conseguir o máximo de efeito. — Perfume.
E ficou me olhando com um meio sorriso, como se esperasse ver o terror me dominando.
— Ah, puxa! — respondi. — Isso deve fazer seus inimigos tremerem!
— Ha-ha-ha-ha-ha! Sim! Quer uma amostra grátis? — Ele arrancou uma das bolsas de couro que levava no cinturão e tirou dali um pote de cerâmica cheio de um pó amarelo de cheiro adocicado. — Este eu chamo de... Eternidade!
— Delicioso — comentei, apesar do enjoo.
Olhei para trás, tentando descobrir onde estava Carter, mas não havia nem sinal dele.
Faça-o continuar falando, Ísis me instruiu.
— E, hum... perfume é parte de seu trabalho, porque... Espere, já sei: você o extrai das plantas, como extrai o vinho espremendo...
— Ou do sangue — acrescentou Shezmu.
— Bem, naturalmente — concordei. — Nem precisamos citar o sangue.
— Sangue!
Khufu gritou e cobriu os olhos.
— Você serve Osíris? — perguntei ao demônio.
— Sim! Pelo menos... — Ele hesitou, rosnando com alguma dúvida. — Eu servia. O trono de Osíris está vazio. Mas ele vai voltar. Ele vai!
— É claro. E seus amigos chamam você de... Sheezy? Tira-sangue?
— Não tenho amigos! Mas, se tivesse, eles me chamariam de Açougueiro de Almas, Face da Fúria! Mas não tenho amigos, por isso meu nome não corre perigo. Ha-ha-ha!
Olhei para Bastet, perguntando-me se eu acabara de ter a sorte que estava imaginando. Ela sorriu para mim.
Carter desceu a escada cambaleando, segurando O livro dos mortos.
— Achei! Está aqui, em algum lugar. Não consigo ler essa parte, mas...
— Nomeie-me ou serão devorados! — berrou Shezmu.
— Eu o nomeio! — gritei de volta. — Shezmu, Açougueiro de Almas, Face da Fúria!
— AAAAAHHHH— Ele se contorceu de dor. — Como eles sempre sabem?
— Deixe-nos passar! — ordenei. — Ah, e só mais uma coisa... meu irmão quer uma amostra grátis.
Só tive tempo de sair da frente, e Carter só teve tempo de fazer uma cara confusa quando o demônio soprou pó amarelo nele. Depois, Shezmu afundou sob as ondas.
— Que sujeito agradável — comentei.
Pfff!
Carter cuspiu perfume. Ele parecia um pedaço de peixe empanado.
— Que foi isso?
— Você está com um cheiro ótimo — garanti. — E agora?
Eu me sentia muito satisfeita comigo mesma, até o barco descrever uma curva no rio. De repente, o brilho vermelho no horizonte virou uma luz ofuscante. Na cabine de comando, o capitão acionou o alarme.
À frente, o rio estava em chamas, correndo por uma impressionante sequência de cataratas que mais pareciam a cratera borbulhante de um vulcão.
— O Lago de Fogo — anunciou Bastet. — É aqui que a coisa fica interessante.

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