quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A Sombra da Serpente - Sadie

Capítulo 9 - Zia separa uma luta de lava

Eu havia me tornado uma especialista em visitar a casa divina de enfermagem, o que é uma declaração triste em minha vida.
A primeira vez que Carter e eu estivemos lá, nós tivemos que viajar pelo Rio da Noite, mergulhar numa cachoeira de fogo e quase morrer num lago de lava. Desde então, eu descobri que podia simplesmente chamar Ísis para me transportar, já que ela pode abrir portas para muitos locais do Duat.
Honestamente, no entanto, lidar com Ísis era quase tão irritante quanto nadar através do fogo.
Após minha conversa shabti com Carter, me encontrei com Zia em um penhasco de calcário com vista para o Nilo. Já era meio-dia no Egito. Começando com o lapso do portal que tinha me levado mais longe do que eu esperava. Depois de mudar para roupas mais comuns, eu tive um almoço rápido e uma conversa estratégica com Amós no Salão das Eras. Em seguida, Zia e eu havíamos subido de volta a superfície. Agora estávamos em um santuário em ruínas para Ísis no rio ao sul de Cairo. Era um bom lugar para chamar a deusa, mas não tínhamos muito tempo.
Zia ainda usava seu traje de combate – calças camufladas e um top verde-oliva. Seu cajado estava jogado sobre suas costas, a varinha pendurada no cinto. Ela vasculhou a bolsa, verificando seus objetos uma última vez.
— O que Carter disse? — ela perguntou.
[Isso mesmo, querido irmão. Eu saí de perto dela antes de entrar em contato com você, então Zia não tinha ouvido nenhum desses comentários provocantes. Honestamente, eu não sou tão má.]
Eu disse a ela o que nós havíamos discutido, mas não lhe disse sobre como o espírito da minha mãe estava em perigo. Eu conhecia o problema em termos gerais, desde que eu tinha falado com Anúbis, é claro, mas saber que o fantasma de nossa mãe estava encolhido sob um penhasco em algum lugar no Duat, resistindo à força da sombra da serpente... bem, aquele pedaço de informação havia se apresentado no meu peito como uma bala. Se eu tentasse tocá-lo, temia que iria direto ao meu coração e me mataria.
Expliquei sobre meu amigo vilão fantasma, tio Vinnie, e como pretendíamos solicitar a sua ajuda.
Zia parecia chocada.
— Setne? O Setne? Carter percebeu...?
— Sim.
— E Tot sugeriu isso?
— Sim.
— E você está realmente indo junto com ele?
— Sim.
Ela olhou para baixo, para o Nilo. Talvez ela estivesse pensando em sua aldeia, que tinha ficado nas margens deste rio até que foi destruída pelas forças de Apófis. Talvez ela estivesse imaginando sua terra natal inteira desmoronando no Mar do Caos.
Eu esperava que ela me dissesse que o nosso plano era insano. Pensei que ela poderia me abandonar e voltar para o Primeiro Nomo. Mas acho que ela se acostumou com a família Kane, pobre menina. Deve ter reconhecido agora que todos os nossos planos são loucos.
— Tudo bem. Como chegamos a essa... casa de repouso dos deuses?
— Só um minuto — fechei os olhos e me concentrei.
Oláa, Ísis? Pensei. Alguém em casa
Sadie, a deusa respondeu imediatamente.
Na minha mente, ela apareceu como uma mulher bonita com tranças escuras. Seu vestido era leve e branco. Suas asas prismáticas brilhavam como o sol ondulando através da água clara.
Eu queria bater nela.
Ora, ora, eu disse. Se não é minha boa amiga que decide quem pode e não pode namorar.
Ela teve a coragem de parecer surpresa. Você está falando de Anúbis?
Acertou, na primeira tentativa! Eu deveria ter deixado quieto, já que eu precisava da ajuda de Ísis. Mas vê-la flutuante lá toda brilhante e majestosa me deixou mais irritada do que nunca.
Quando você começou com o descaramento, hein? Agindo pelas minhas costas, pressionando para manter Anúbis longe de mim. Qual é o seu plano?
Surpreendentemente, Ísis manteve a calma. Sadie, há coisas que você não entende. Existem regras.
Regras? O mundo está prestes a terminar, e você está preocupada com quais meninos são socialmente aceitáveis para mim?
Ísis estendeu os dedos.
As duas questões são mais conectadas do que você imagina. As tradições do Maat devem ser seguidas, ou o Caos ganha. Os imortais e mortais podem apenas interagir de formas específicas e limitadas. Além disso, você não pode se dar ao luxo de ser distraída. Eu estou lhe fazendo um favor.
Um favor! respondi. Se você quiser me fazer um favor de verdade, precisamos de uma passagem para a Quarta Casa da Noite – a Casa de Repouso, Acres Ensolarados, ou do que você quiser chamá-la. Depois disso você pode se manter fora da minha vida privada!
Talvez tivesse sido rude de minha parte, mas Ísis passou dos limites. Além disso, por que eu deveria agir adequadamente com uma deusa que já tinha alugado um espaço na minha cabeça? Ísis deveria ter me conhecido melhor!
A deusa suspirou. Sadie, a proximidade com os deuses é perigosa. Deve ser regulada com o máximo de cuidado. Você sabe disso. Seu tio ainda está contaminado por sua experiência com Set. Mesmo sua amiga Zia está lutando.
O que você quer dizer? perguntei.
Se você se juntar a mim, você compreenderá, Ísis prometeu. Sua mente ficará clara. Já passou da hora de nos unirmos novamente e combinarmos a nossa força.
Lá estava ele: o discurso de vendas. Todas as vezes que eu chamava Ísis, ela tentava me convencer a me fundir com ela como havíamos feito antes, mortal e deus que habitam um corpo, agindo com uma única vontade, todas as vezes eu disse que não.
Então, eu me aventurei, a proximidade com os deuses é perigosa, mas você está ansiosa para unir forças comigo novamente. Estou feliz por você estar olhando pela minha segurança.
Ísis estreitou os olhos. Nossa situação é diferente, Sadie. Você precisa da minha força.
Certamente era tentador. Ter o poder de uma deusa ao meu comando foi bastante útil. Com o Olho de Ísis, eu me sentiria confiante, invencível, completamente sem medo. Alguém poderia ficar viciado nesse poder, e esse era o problema.
Ísis poderia ser uma boa amiga, mas sua agenda não era sempre melhor para o mundo mortal – ou para Sadie Kane. Ela era impulsionada por sua lealdade para com seu filho Hórus. Faria qualquer coisa para vê-lo no trono dos deuses. Era ambiciosa, vingativa e sedenta de poder e invejava quem podia ter mais magia do que ela.
Alegou em minha mente que ficaria mais claro se eu a deixasse entrar. O que ela realmente quis dizer foi que eu começaria a ver as coisas à sua maneira. Seria mais difícil de separar meus pensamentos do dela. Eu poderia até mesmo vir a acreditar que ela estava certa, mantendo Anúbis distante de mim. (Ideia assustadora.)
Infelizmente, Ísis tinha razão sobre a união de forças. Mais cedo ou mais tarde, teríamos que nos unir. Não havia outra maneira de eu ter poderes para desafiar Apófis.
Mas agora não era o momento. Eu queria permanecer como Sadie Kane o máximo possível, apenas minha própria eu maravilhosa sem qualquer carona divina.
Logo, respondi a Ísis. Eu tenho coisas para fazer antes. Preciso ter certeza de que minhas decisões são minhas. Agora, sobre essa porta de entrada para a Casa de Repouso...
Ísis era muito boa em parecer desaprovada e magoada ao mesmo tempo, o que deve fazer dela uma mãe impossível. Quase senti pena de Hórus.
Sadie Kane, disse ela, você é a minha mortal favorita, minha maga escolhida. E ainda assim você não confia em mim.
Eu não me incomodei em contradizê-la. Ísis sabia como eu me sentia.
A deusa abriu os braços com resignação.
Muito bem. Mas o caminho dos deuses é a única resposta. Para todos os Kanes, e ela.Ela assentiu com a cabeça na direção de Zia. Você vai precisar aconselhá-la, Sadie. Ela deve aprender o caminho rapidamente.
O que você quer dizer? Perguntei de novo. Eu realmente queria que ela parasse de falar em enigmas. Deuses são tão irritantes assim.
Zia era uma maga muito mais experiente do que eu. Eu não sabia como eu poderia aconselhá-la. Além disso, Zia era uma elementar de fogo. Ela nos tolerava, os Kanes, mas nunca havia mostrado o menor interesse no caminho dos deuses.
Boa sorte, Ísis disse. Vou aguardar o seu chamado.
A imagem da deusa ondulou e desapareceu. Quando abri meus olhos, um quadrado de escuridão do tamanho de uma porta pairava no ar.
— Sadie? — Zia pediu. — Você esteve em silêncio por tanto tempo, eu estava ficando preocupada.
— Não há necessidade — tentei dar um sorriso. — Ísis apenas gosta de falar. Próxima parada, a Quarta Casa da Noite.

***

Vou ser sincera. Eu nunca entendi muito bem a diferença entre os rodopiantes portais de areia que os magos podem invocar com artefatos e as portas das trevas que os deuses são capazes de conjurar. Talvez os deuses usem uma rede sem fio mais avançada. Talvez eles simplesmente tenham melhor pontaria.
Seja qual for a razão, o portal de Ísis funcionou com muito mais segurança do que o que eu tinha criado para chegar ao Cairo. Fomos depositadas direto no saguão dos Acres Ensolarados.
Assim que atravessou, Zia olhou o ambiente e franziu a testa.
— Onde estão todos?
Boa pergunta. Nós tínhamos chegado à casa de enfermagem divina correta – com as mesmas plantas em vasos, o mesmo lobby enorme com janelas com vista para o Lago de Fogo, as mesmas linhas de colunas de calcário cobertas de cartazes e folhetos de idosos sorridentes e lemas como: Estes são os seus Séculos de Ouro!
Mas o balcão de informações estava vazio. Suportes de soro estavam agrupados em um canto como se estivessem tendo uma conferência. Os sofás estavam vazios. As mesas estavam cheias de jogos de damas e senet interrompidos. Ugh, eu odeio senet.
Olhei para uma cadeira de rodas vazia, imaginando onde o seu ocupante tinha ido, quando de repente a cadeira explodiu em chamas, se rompendo em uma pilha de couro queimado e aço meio derretido. Eu tropecei para trás. Atrás de mim, Zia fazia uma bola de fogo incandescente na mão. Seus olhos eram tão selvagens como um animal encurralado.
— Você está louca? — gritei. — O que você...?
Ela arremessou a segunda bola de fogo no balcão. Um vaso cheio de margaridas explodiu em uma chuva de pétalas de fogo de cerâmicas e cacos.
— Zia!
Ela parecia não me ouvir. Ela convocou outra bola de fogo e teve por objetivo os sofás.
Eu deveria ter corrido para me esconder. Não estava preparada para morrer gravemente salvando móveis estofados. Em vez disso, corri para ela e agarrei seu pulso.
— Zia, pare com isso!
Ela olhou para mim com chamas nos olhos e quero dizer, literalmente. Suas íris se tornaram discos de fogo laranja.
Foi terrível, é claro, mas eu mantive minha posição. Durante o ano passado eu tive várias surpresas, como a minha gata ser uma deusa, meu irmão ser transformando em um falcão, e Felix produzindo pinguins na lareira várias vezes por semana.
— Zia — falei com firmeza. — Não podemos queimar a casa de repouso. O que deu em você?
Um olhar de confusão passou sobre o seu rosto. Ela parou de lutar. Seus olhos voltaram ao normal. Ela olhou para a cadeira de rodas derretida, em seguida, os fumegantes restos de flores no tapete.
— Fui eu quem...?
— Decidiu que essas margaridas precisavam morrer? — terminei. — Sim, você mesma.
Ela extinguiu a bola de fogo, o que foi uma sorte, porque estava começando a assar o meu rosto.
— Sinto muito — ela murmurou. — Eu... eu pensei que tinha tudo sob controle...
— Sob controle? — soltei a mão dela. — Você quer dizer que está jogando um monte de bolas de fogo aleatórias ultimamente?
Ela ainda parecia confusa, seu olhar derivava em torno do lobby.
— N-não... talvez. Eu tenho tido apagões. Eu tenho, e eu não me lembro o que faço.
— Como o que aconteceu agora?
Ela assentiu com a cabeça.
— Amós disse... no início ele pensou que poderia ser um efeito colateral do meu tempo no sarcófago.
Ah, o sarcófago. Durante meses, Zia tinha estado presa em um sarcófago, enquanto seushabti andava por aí representando-a. O Sacerdote-leitor Chefe Iskandar achava que isso iria proteger a Zia verdadeira... de Set? De Apófis? Nós ainda não tínhamos certeza.
De qualquer forma, isso não me pareceu a ideia mais brilhante para um supostamente sábio mago de dois mil anos de idade ter. Durante seu sono, Zia tinha sofrido pesadelos horríveis sobre sua aldeia queimando e Apófis destruindo o mundo. Suponho que poderia levar a algum estresse pós-traumático desagradável.
— Você disse que Amós pensou isso a princípio. Há mais nesta história, então?
Zia olhou para a cadeira de rodas derretida. A luz que vinha do exterior deixou o cabelo da cor de ferro enferrujado.
— Ele estava aqui — ela murmurou. — Ele esteve aqui por eras, preso.
Eu levei um momento para processar isso.
— Você quer dizer Rá.
— Ele foi infeliz e sozinho. Tinha sido forçado a abdicar do trono. Deixou o mundo mortal e perdeu a vontade de viver.
Eu chutei uma margarida fumegante no carpete.
— Eu não sabia, Zia. Ele parecia muito feliz quando o acordei cantando e sorrindo e assim por diante.
— Não — Zia caminhou em direção à janela, como se atraída pela bela vista de enxofre. — Sua mente ainda está dormindo. Eu passei um tempo com ele, Sadie. Vi suas expressões enquanto ele cochila. Eu tenho ouvido-o gemer e resmungar. Esse velho corpo é uma jaula, uma prisão. O Rá verdadeiro está aprisionado no interior.
Ela estava começando a me preocupar agora. Com bolas de fogo eu poderia lidar. Com divagações incoerentes nem tanto.
— Acho que faz sentido que você tenha simpatia por Rá — chutei. — Você é uma elementar do fogo. Ele é uma espécie de deus do fogo. Você esteve presa em um sarcófago. Rá foi preso em uma casa de repouso. Talvez seja isso que causou o seu apagão agora. Este lugar lembrou-a de sua própria prisão.
Isso mesmo, Sadie Kane, psicóloga júnior. E por que não? Eu tinha passado tempo suficiente diagnosticando minhas enlouquecidas companheiras Liz e Emma em Londres.
Zia olhou para o lago ardente. Tive a sensação de que minha tentativa de terapia pode não ter sido tão terapêutica.
— Amós tentou me ajudar — disse ela. — Ele sabe o que eu estou passando. Ele lançou um feitiço em mim para concentrar a minha mente, mas... — ela sacudiu a cabeça. — Tem sido cada vez pior. Este é o primeiro dia em semanas que eu ainda não cuidei de Rá, e quanto mais tempo eu passo com ele, os meus pensamentos mais confusos ficam. Quando eu chamo o fogo agora, tenho dificuldade para controlá-lo. Mesmo magias simples que eu fiz por anos, canalizo muito poder. Se isso acontecer durante um apagão...
Eu entendi porque ela parecia assustada. Magos tem que ter cuidado com feitiços. Se canalizar muito poder, poderíamos inadvertidamente esgotar nossas reservas. Em seguida o feitiço iria explorar diretamente a força de vida do mago, com desagradáveis consequências.
Você vai precisar aconselhá-la, Ísis tinha dito. Ela deve aprender o caminho rapidamente.
Um pensamento incômodo começou a se formar. Lembrei-me da alegria de Rá quando ele conheceu Zia, a forma como ele tentou dar para ela o seu último escaravelho remanescente. Ele balbuciou e balbuciou sobre zebras, possivelmente querendo dizer Zia. E agora Zia estava começando a simpatizar com o velho deus, e mesmo tentou queimar a casa de repouso onde ele tinha ficado preso por tanto tempo. Isso não poderia ser bom. Mas como eu poderia aconselhá-la quando eu nem tinha ideia do que estava acontecendo?
O aviso de Ísis sacudiu na minha cabeça: O caminho dos deuses era a resposta para todos os Kanes. Zia estava se esforçando. Amós ainda estava manchado pelo seu tempo com Set.
— Zia... — hesitei. — Você disse que Amós sabe o que você está passando. É por isso que ele pediu a Bastet para cuidar de Rá hoje? Para lhe dar tempo longe do deus sol?
— Eu...eu acho que sim.
Tentei ritmar minha respiração. Então fiz a pergunta mais difícil.
— Na sala de guerra, Amós disse que ele poderia ter que usar outros meios para lutar contra seus inimigos. Ele não tem... hum, não tem tido problemas com Set?
Zia não me olhava nos olhos.
— Sadie, eu prometi a ele...
— Oh, deuses do Egito! Ele está chamando set? Tentando canalizar seu poder, depois de tudo que Set fez com ele? Por favor, não.
Ela não respondeu, o que era uma resposta em si.
— Ele vai ser dominado! — reclamei. — Se os magos rebeldes descobrirem que o Sacerdote-leitor Chefe está se intrometendo com o deus do mal, assim como eles suspeitavam...
— Set não é apenas o deus do mal — Zia me lembrou. — Ele é o tenente de Rá. Ele defendeu o deus do sol contra Apófis.
— Você acha que isso faz tudo melhor? — balancei a cabeça em descrença. — E agora Amós pensa que você está tendo problemas com Rá? Será que ele pensa que Rá está tentando... — eu apontei para a cabeça de Zia.
— Sadie, por favor... — sua voz foi sumindo com angustia.
Acho que não era justo que eu a pressionasse. Ela parecia mesmo mais confusa do que eu. Ainda assim, eu odiava a ideia de Zia sendo desorientada tão perto de nossa batalha – tendo apagões, atirando bolas de fogo aleatórias, perdendo o controle de seu próprio poder.
Ainda pior era a possibilidade de que Amós tinha algum tipo de ligação com Set, de que ele poderia realmente ter escolhido deixar o deus horrível voltar para sua cabeça.
O pensamento emaranhou minhas entranhas em tyets – os nós de Ísis.
Imaginei meu velho inimigo Michel Desjardins carrancudo. Não pode ver, Sadie Kane? Isto é o que vem do caminho dos deuses. É por isso que a magia era proibida.
Eu chutei os restos derretidos da cadeira de rodas. Uma roda dobrada rangeu e oscilou.
— Nós vamos ter que conversar depois — decidi. — Estamos correndo contra o tempo. Agora... onde todos os velhos foram?
Zia apontou para a janela.
— Lá— ela disse calmamente. — Eles estão tendo um dia de praia.

***

Nós fomos até a praia de areia preta do Lago de Fogo. Não teria sido a minha primeira opção para passar as férias, mas deuses idosos estavam descansando em cadeiras de praia sob guarda-chuvas coloridos e brilhantes. Outros roncavam em toalhas de praia ou estavam sentados em suas cadeiras de rodas e olhavam para a vista de ebulição.
Uma deusa com cabeça de pássaro enrugado em uma peça de banho estava construindo uma pirâmide de areia. Dois homens velhos – eu assumi que eram deuses do fogo – estavam até a cintura nas ondas em chamas, rindo e espirrando lava no rosto um do outro.
Taueret, a enfermeira, sorriu quando nos viu.
— Sadie! — ela chamou. — Você veio cedo nesta semana! E trouxe uma amiga!
Normalmente eu não teria ficado parada enquanto uma hipopótama sorridente vinha de pé em minha direção para um abraço, mas eu me acostumei com Taueret.
Ela havia trocado seus saltos altos por chinelos. No entanto, estava vestida com seu habitual uniforme de enfermeira branco. Seu rímel e batom estavam feitos com bom gosto, para um hipopótamo, e seu cabelo preto luxuriante estava preso sob um gorro de enfermeira. Sua blusa mal ajustada se abria sobre uma enorme barriga – possivelmente um sinal de gravidez permanente, já que ela era a deusa do parto, ou um sinal de comer bolinhos demais. Nunca tive muita certeza.
Ela me abraçou sem me esmagar, o que apreciei muito. Seu perfume de lavanda me fazia lembrar da minha avó, e o tom de enxofre em sua roupa me lembrava vovô.
— Taueret — apresentei — esta é Zia Rashid.
O sorriso de Taueret se apagou.
— Oh... Oh, eu vejo.
Eu nunca tinha visto a deusa hipopótama tão desconfortável. Será que ela sabia de alguma forma que Zia havia derretido sua cadeira de rodas e incendiado suas margaridas?
Como o silêncio ficou estranho, Taueret recuperou seu sorriso.
— Desculpe, sim. Olá, Zia. É só que você parece... bem, não importa! Você é amiga do Bes também?
— Uh, não realmente — Zia admitiu. — Quer dizer, acho que sim, mas...
— Estamos aqui em uma missão — interrompi. — As coisas lá em cima estão um pouco instáveis.
Contei a Taueret sobre os magos rebeldes, os planos de ataque de Apófis, e nosso esquema louco para encontrar a sombra da serpente e bater nela até a morte.
Taueret amassou suas mãos de hipopótamo juntas.
— Oh, querida. Dia do Juízo final amanhã? A noite do bingo era para ser sexta-feira. Meus pobres queridos ficarão tão decepcionados...
Ela olhou para a praia para seus velhos protegidos, alguns dos quais estavam babando durante o sono ou comendo areia preta ou tentando falar com a lava. Taueret suspirou.
— Acho que seria mais gentil não dizer a eles. Eles estiveram aqui por muito tempo, esquecidos pelo mundo mortal. Agora têm de perecer juntamente com todos os outros. Eles não merecem tal destino.
Eu queria lembrar-lhe que ninguém merecia tal destino. Nem meus amigos, nem a minha família, e certamente nem uma jovem e brilhante mulher chamada Sadie Kane, que tinha a vida inteira pela frente. Mas Taueret era tão bondosa que eu não quis parecer egoísta. Ela não parecia preocupada consigo mesma apesar de tudo, só com os deuses desvanecidos que ela cuidava.
— Nós não vamos desistir ainda — prometi.
— Mas esse plano de vocês! — Taueret estremeceu, causando um tsunami de carne de hipopótamo balançando. — É impossível!
— Da mesma forma que reviver o deus do sol? — perguntei.
Ela reconheceu isso, com um encolher de ombros.
— Muito bem, querida. Vou admitir você fez o impossível antes. No entanto... — ela olhou para Zia, como se a presença de minha amiga ainda a deixasse nervosa. — Bem, tenho certeza que você sabe o que está fazendo. Como posso ajudar?
— Podemos ver Bes? — perguntei.
— Claro... mas receio que ele não mudou.
Ela nos levou até a praia. Nos últimos meses, visitei Bes pelo menos uma vez por semana, então eu conhecia de vista muitos dos deuses idosos. Vi Heket, a deusa sapo, empoleirada no topo de um guarda-sol como se fosse uma almofada de lírio. Sua língua se atirou para pegar alguma coisa do ar. Será que eles têm moscas no Duat?
Mais adiante, vi o deus do ganso Gengen-Wer, cujo nome significava Grande Ganso (ou Grande Tesão, e não estou brincando). Na primeira vez que Taueret me disse, eu quase vomitei chá. O Gengen-Wer estava gingando ao longo da praia, gritando com os outros deuses e acordando-os de sua soneca.
No entanto, cada vez que eu visitava, a multidão mudava. Alguns deuses desapareciam. Outros apareciam – deuses das cidades que já não existiam; deuses que só haviam sido adorados por alguns séculos antes de serem substituídos por outros; deuses tão velhos que haviam esquecido os seus próprios nomes. A maioria das civilizações deixou para trás fragmentos de cerâmica ou monumentos ou literatura. O Egito era tão velho que tinha deixado para trás um valoroso aterro de divindades.
À meio caminho da praia, passamos pelos dois velhos excêntricos que estavam brincando na lava. Agora eles estavam lutando no lago pela altura da cintura. Um atacava o outro com um ankh e gorjeava:
— É o meu pudim! Meu pudim!
— Oh — disse Taueret. — Abraçador de Fogo e Pé Quente estão nisso de novo.
Eu sufoquei uma risada.
— Pé quente? Que tipo de nome de deus é esse?
Taueret estudou as ondas de fogo, como se estivesse procurando uma maneira de navegar por ele sem ser incinerada.
— Eles são deuses do Salão de Julgamento, querida. Coitados. Costumava haver quarenta e dois deles, cada um encarregado de julgar um crime diferente. Mesmo nos velhos tempos, nunca pudemos mantê-los todos já linha. Agora... — ela encolheu os ombros. — Eles estão muito esquecidos, infelizmente. Abraçador de Fogo, é aquele com o ankh, ele costumava ser o deus dos roubos. Receio que isso o deixou paranoico. Ele sempre acha que Pé Quente roubou seu pudim. Vou ter que separar a briga.
— Eu vou — afirmou Zia.
Taueret enrijeceu.
— Você, minha... querida?
Eu tive a sensação de que ela ia dizer outra coisa que não querida.
— O fogo não me incomoda — Zia assegurou-lhe. — Vocês duas vão na frente.
Eu não tinha certeza de como Zia podia estar tão confiante. Talvez ela tivesse preferido a natação em chamas, à ver Bes em seu atual estado. Se assim fosse, eu não podia culpá-la. A experiência era perturbadora.
Seja qual for o caso, Zia caminhou em direção às ondas e entrou em linha reta como um salva-vidas.
Taueret e eu continuamos ao longo da praia. Chegamos ao píer onde o barco do sol de Rá havia sido ancorado na primeira vez que Carter e eu tínhamos visitado este lugar.
Bes estava sentado no final do cais em uma cadeira de couro confortável, que Taueret deve ter trazido especialmente para ele. Ele vestia uma camisa havaiana azul e bermuda caqui. Seu rosto estava mais fino do que tinha estado na primavera passada, mas por outro lado ele parecia inalterado – o mesmo ninho desgrenhado de cabelos negros, a mesma juba eriçada que se passava por uma barba, o mesmo rosto amavelmente grotesco que me lembrava de um cão pug.
Mas a alma de Bes tinha ido embora. Ele olhou vagamente para o lago, sem nenhuma reação quando me ajoelhei ao lado dele e segurei sua mão peluda.
Lembrei-me da primeira vez que ele salvou a minha vida apanhando-me em uma limusine cheia de lixo, me levando da ponte de Waterloo, em seguida, afugentando dois deuses que tinham me perseguindo. Ele havia saltado para fora do carro vestindo apenas uma sunga e gritado, “Boo!”
Sim, ele tinha sido um verdadeiro amigo.
— Querido Bes, vamos tentar ajudá-lo.
Contei-lhe tudo o que havia acontecido desde a minha última visita. Eu sabia que ele não podia me ouvir. Desde que seu nome secreto havia sido roubado, sua mente simplesmente não estava lá. Mas conversar com ele me fazia sentir melhor.
Taueret fungou. Eu sabia que ela sempre tinha amado Bes, embora Bes nem sempre tivesse retornado seus sentimentos. Ele não poderia ter tido ninguém melhor para cuidar dele.
— Oh, Sadie... — a deusa hipopótama enxugou uma lágrima. — Se você realmente pode ajudá-lo, eu... eu não faço ideia. Mas como é possível?
— Sombras. Este sujeito, Setne... ele encontrou uma maneira de usar sombras em um encanto de execração. Se o sheut é uma cópia de segurança da alma, e se a magia de Setne puder ser usada no sentido inverso...
Os olhos de Taueret se arregalaram.
— Você acredita que poderia usar a sombra de Bes para trazê-lo de volta?
— Sim.
Eu sabia que parecia loucura, mas eu tinha que acreditar. Dizer isso em voz alta para Taueret, que se preocupava com Bes ainda mais do que eu... bem, eu simplesmente não poderia decepcioná-la. Além disso, se pudéssemos fazer isso para Bes, então quem sabe? Talvez nós pudéssemos usar a mesma mágica para trazer o deus do sol Rá de volta à forma de combate. Primeiro o mais importante, no entanto. Eu pretendia manter a minha promessa ao deus anão.
— Aqui está a parte complicada — eu disse. — Eu esperava que você pudesse me ajudar a localizar a sombra de Bes. Não sei muito sobre os deuses e seus sheuts e tudo o mais. Parece que muitas vezes vocês escondem?
Taueret se mexeu nervosamente, rangendo os pés nas placas do píer.
— Hum, sim...
— Eu esperava que eles fossem um pouco como nomes secretos — continuei. — Como eu não posso perguntar a Bes onde ele mantém a sua sombra, pensei em perguntar à pessoa que é mais próxima a ele. Imaginei que você teria a melhor chance de saber.
Ver uma hipopótama corar é muito estranho. Isso quase fez Taueret parecer delicada – de um jeito massivo.
— Eu... eu vi a sombra dele uma vez — ela admitiu. — Durante um dos nossos melhores momentos juntos. Estávamos sentados na parede do templo em Saïs.
— Onde?
— Uma cidade no Delta do Nilo — Taueret explicou. — A casa de uma amiga nossa, a deusa da caça Neith. Ela gostava de convidar Bes e eu em suas excursões de caça. Nós, ah, agitávamos a presa para ela.
Imaginei Taueret e Bes, dois deuses com super-horríveis poderes, abrindo caminho com a mão em pântanos gritando “Boo!” para assustar galinhas de codorna. Decidi manter essa imagem para mim.
— De qualquer forma — Taueret continuou — uma noite depois do jantar, Bes e eu estávamos sentados sozinhos nas paredes do templo de Neith, observando a lua subir ao longo do Nilo.
Ela olhou para o deus anão com olhos adoráveis, eu não pude deixar de me imaginar na parede do templo, compartilhando uma noite romântica com Anúbis... não, Walt... não... Gah! Minha vida era horrível.
Suspirei infeliz.
— Continue, por favor.
— Nós não conversamos sobre nada em particular — Taueret lembrou. — Estávamos de mãos dadas. Isso era tudo. Mas eu me senti tão próxima a ele. Apenas por um momento, olhei para a parede de tijolos de barro ao nosso lado, e vi a sombra de Bes à luz das tochas. Normalmente deuses não mantêm suas sombras tão perto. Ele deve ter confiado muito em mim para revelá-la. Perguntei a ele sobre isso, e ele riu. Ele disse, ‘Esse é um bom lugar para a minha sombra. Acho que vou deixá-la aqui. Dessa forma, ela pode sempre ser feliz, mesmo quando eu não estou’.
A história era tão doce e triste, eu mal podia suportar.
Descendo a encosta, o velho deus Abraçador de Fogo gritou algo sobre o pudim. Zia estava nas ondas, tentando manter os dois deuses separados à medida que eles espirravam lava nela de ambos os lados. Surpreendentemente, não parecia incomodá-la.
Virei-me para Taueret.
— Aquela noite, em Saïs... há quanto tempo foi isso?
— Alguns milhares de anos.
Meu coração se afundou.
— Alguma chance da sombra ainda estar lá?
Ela deu de ombros, impotente.
— Saïs foi destruída séculos atrás. O templo está desaparecido. Agricultores derrubaram os edifícios antigos e usaram os tijolos de barro como fertilizantes. A maior parte da terra foi revertida em pântanos.
Credo. Eu nunca fui fã de ruínas egípcias. Às vezes, eu ficava tentada a derrubar alguns templos eu mesma. Mas dessa vez, eu queria que as ruínas tivessem sobrevivido. Queria algemar aqueles agricultores.
— Então não há esperança? — perguntei.
— Oh, sempre há esperança — disse Taueret. — Você pode procurar na área, chamando a sombra de Bes. Você é amiga dele. Ela poderia aparecer se ainda estiver lá. E, se Neith ainda estiver na área, ela pode ser capaz de ajudar. Quer dizer, se ela não caçar você ao invés disso...
Decidi não me basear nessa possibilidade. Eu tinha problemas suficientes.
— Nós vamos ter que tentar. Se pudermos encontrar a sombra e decifrar o encanto adequado...
— Mas, Sadie — a deusa disse — você tem tão pouco tempo. Você tem que parar Apófis! Como pode ajudar Bes, também?
Olhei para o deus anão. Então me abaixei e beijei sua testa deformada.
— Fiz uma promessa. Além disso, vamos precisar dele se vamos ganhar.
Será que eu realmente acreditava nisso? Eu sabia que não poderia assustar Apófis simplesmente com Bes gritando “Boo!”, não importa o quão medonho ele parecia em sua cueca. No tipo de batalha que estávamos enfrentando, eu não tinha certeza se um deus a mais iria mesmo fazer a diferença. Eu tinha menos certeza ainda que essa ideia de reverter a sombra poderia ajudar Rá. Mas eu tinha que tentar em Bes. Se o mundo terminasse depois de amanhã, eu não iria pra minha morte sem antes saber que tinha feito tudo que podia para salvar meu amigo.
De todas as deusas que eu conhecia, Taueret era a mais provável que entendesse os meus motivos. Ela colocou as mãos protetoramente sobre os ombros de Bes.
— Nesse caso, Sadie Kane, desejo-lhe sorte... para Bes, e para todos nós.
Deixei-a no cais, em pé atrás de Bes como se os dois deuses estivessem desfrutando de um romântico pôr do sol juntos.
Na praia, eu me juntei à Zia, que estava tirando cinzas de seu cabelo. Exceto por alguns buracos de queimaduras em suas calças, ela parecia perfeitamente bem. Ela apontou para Abraçador de Fogo e Pé Quente, que estava novamente jogando amigavelmente na lava.
— Eles não são tão ruins — Zia afirmou — só precisam de alguma atenção.
— Como animais de estimação — eu disse. — Ou o meu irmão.
Zia realmente sorriu.
— Você achou a informação que precisava?
— Eu acho que sim. Mas, primeiro, precisamos chegar ao Salão de Julgamento. Está quase na hora do julgamento de Setne.
— Como é que vamos chegar lá? — Zia perguntou. — Outro portal?
Eu olhei através do Lago de Fogo, ponderando nesse problema. Eu me lembrava do Salão do Julgamento estar em uma ilha em algum lugar no lago, mas a geografia no Duat é um pouco duvidosa. Por tudo que eu sabia, o salão estava em um nível totalmente diferente do Duat, ou o lago tinha seis bilhões de quilômetros de largura. Eu não gostava da ideia de andar em torno da terra através de um território desconhecido, ou dar um mergulho. E certamente estava sem vontade de discutir com Ísis novamente.
Então eu vi alguma coisa através das ondas de fogo, a silhueta de um barco a vapor familiar se aproximando, chaminés gêmeas soltando fumaça dourada luminosa e uma roda de pás se agitando através da lava.
Meu irmão – abençoado seja – era absolutamente louco.
— Problema resolvido — eu disse a Zia. — Carter vai nos dar uma carona.

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