segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Trono de Fogo - Carter

Capítulo 9 - Fazemos um passeio com o deficiente vertical pela Rússia

COMO DE COSTUME, SADIE DEIXOU DE FORA alguns detalhes importantes, como a forma que Walt e eu quase nos matamos tentando encontrá-la. Não foi divertido o voo para o Museu do Brooklyn. Tivemos que nos pendurar em uma corda sob a barriga do grifo como uma dupla de Tarzans, nos esquivando de policiais, equipes de emergência, funcionários municipais e várias senhoras de idade que nos perseguiram com guarda-chuvas, gritando:
― Ali está o beija-flor! Mate-o!
Uma vez que conseguimos abrir um portal, eu queria levar Freak conosco, mas o portão de areia redemoinhando meio que... bem, o assustou, então tivemos que deixá-lo para trás.
Quando chegamos a Londres, monitores de televisão nas vitrines estavam mostrando imagens da Estação de Waterloo – algo sobre um estranho distúrbio dentro do terminal com animais fugidos e vendavais. Nossa, que maravilha poderia ter sido?
Usamos o amuleto de Walt, do deus do ar Shu para convocar uma rajada de vento e saltar para a ponte de Waterloo. Naturalmente, caímos bem no meio de uma tropa de choque fortemente armada. Que sorte que me lembrei do feitiço do sono. Então,finalmente, estávamos prontos para carregar e salvar Sadie e ela aparece em uma limusine dirigida por um anão feioso em um maiô, e ela nos acusa de estarmos atrasados. Então, quando ela nos disse que o anão estava nos levando para a Rússia, eu fiquei tipo, “Que seja”. E entrei no carro.
A limusine atravessou Westminster enquanto Sadie, Walt e eu trocávamos histórias. Depois de ouvir o que tinha acontecido através de Sadie, eu não me senti tão mal sobre o meu dia. Um sonho de Apófis e uma cobra de três cabeças na sala de treinamento não pareciam tão assustadores quanto deuses assumindo o controle de nossos avós.
Eu nunca tinha gostado muito de vovô e vovó, mas ainda assim... caramba. Também não podia acreditar que nosso chofer era Bes. Meu pai e eu costumávamos rir de suas imagens nos museus – seus olhos esbugalhados, balançando a língua e a falta geral de roupas. Supostamente, ele poderia assustar quase qualquer coisa – espíritos, demônios, até mesmo outros deuses – razão pela qual os plebeus egípcios o tinham adorado.
Bes parecia um pequeno rapaz... hum, o que não significava uma piada de anão. Em carne e osso, ele parecia exatamente como suas imagens, só que em todas as cores, com todo o cheiro.
― Te devemos essa ― eu disse a ele. ― Então você é um amigo de Bastet?
As orelhas dele ficaram vermelhas.
― Sim... com certeza. Ela me pede um favor, de vez em quando. Eu tento ajudar.
Tive a sensação de que havia alguma história ali que ele não queria contar.
― Quando Hórus falou comigo, ele advertiu que alguns dos deuses podem tentar nos impedir de acordar Rá. Agora eu acho que sei quem.
Sadie expirou.
― Se eles não gostaram do nosso plano, tivessem mandado uma mensagem de texto com raiva. Nekhbet e Babi quase me rasgaram em pedaços!
Seu rosto estava um pouco verde. Seus coturnos estavam manchados de xampu e lama, e sua jaqueta de couro favorita tinha uma mancha no ombro que parecia suspeitosamente com cocô de urubu. Ainda assim, fiquei impressionado que ela estivesse consciente. Poções são difíceis de fazer e ainda mais difíceis de usar. Existe sempre um preço para a canalização de muita magia.
― Você foi ótima ― eu disse a ela.
Sadie olhou ressentidamente para a faca negra em seu colo – a lâmina cerimonial que Anúbis tinha dado a ela.
― Eu estaria morta se não fosse por Bes.
― Que nada ― disse Bes. ― Bem, certo, você provavelmente estaria. Mas você teria ido para baixo em grande estilo.
Sadie virou a estranha faca negra como se pudesse encontrar instruções escritas nela.
― É uma netjeri  falei. ― Uma lâmina de serpente. Sacerdotes a usavam para...
― A cerimônia-da-abertura-da-boca ― ela disse. ― Mas como isso pode nos ajudar?
― Não sei ― admiti. ― Bes?
― Rituais da morte. Tento evitá-los.
Olhei para Walt. Itens mágicos eram sua especialidade, mas ele não parecia estar prestando atenção. Desde que Sadie tinha nos contado sobre sua conversa com Anúbis, Walt esteve muito quieto. Ele se sentou ao lado dela, mexendo em seus anéis.
― Você está bem? ― Perguntei a ele.
― Sim... só pensando ― ele olhou para Sadie. ― Sobre lâminas netjeri, quero dizer.
Sadie puxou seu cabelo, como se estivesse tentando fazer uma cortina entre ela e Walt. A tensão entre eles era tão densa, eu duvidava que mesmo uma faca mágica conseguisse cortá-la.
― Anúbis sanguinário ― ela murmurou. ― Eu poderia ter morrido, pelo tanto que ele se importava.
Dirigimos em silêncio por um tempo depois disso. Finalmente, Bes virou na ponte Westminster e dobrou por trás do rio Tâmisa.
Sadie franziu o cenho.
― Onde estamos indo? Precisamos de um portal. Todos os melhores artefatos estão no British Museum.
― É ― Bes disse. ― E todos os outros magos sabem disso.
― Outros magos? ― Perguntei.
― Criança, a Casa da Vida tem clãs por todo o mundo. Londres é o Nono Nomo. Com aquela façanha em Waterloo, a senhorita Sadie só mandou uma grande labareda dizendo aos seguidores de Desjardins, eu estou aqui! Pode apostar que eles vão estar te caçando agora. Eles estarão guardando o museu no caso de vocês correrem para lá. Felizmente, conheço um lugar diferente onde podemos abrir um portal.
Ensinado por um anão. Devia ter ocorrido para mim que Londres tinha outros magos. A Casa da Vida estava em todo lugar. Fora da segurança da casa no Brooklyn, não havia um continente onde estaríamos a salvo.
Rodamos pelo sul de Londres. A cena ao longo da Rodovia Camberwell estava quase tão depressiva quanto meus pensamentos. Fileiras de apartamentos construídos com tijolos e lojas de baixa renda se alinhavam na rua. E uma idosa fez uma careta para nós de um ponto de ônibus. Na porta de uma mercearia Asda, uns caras durões olharam a Mercedes como se quisessem roubá-la. Me perguntei se eram deuses ou magos disfarçados, porque a maioria das pessoas não notou o carro.
Não podia imaginar onde Bes estava nos levando. Não parecia com o tipo de bairro onde você vá encontrar muitos artefatos egípcios.
Finalmente um parque amplo apareceu à nossa esquerda: campos verdes nebulosos, caminhos de árvores enfileiradas e algumas paredes arruinadas como aquedutos, cobertos de vinhas. O terreno inclinou para o topo de uma colina com uma torre de rádio.
Bes pulou o meio-fio e dirigiu reto pela grama, atropelando uma placa que dizia PERMANEÇA NO CAMINHO. A noite estava cinzenta e chuvosa, então não havia muitas pessoas ao redor. Um casal de corredores próximos ao caminho nem mesmo olhou para nós, como se vissem limusines Mercedes atravessarem o parque todo dia.
― Onde estamos indo? ― Perguntei.
― Veja e aprenda, criança ― Bes respondeu.
Ser chamado de criança por um cara menor que eu era um pouco irritante, mas deixei minha boca fechada. Próximo ao topo estava uma escada de pedra, talvez 10 metros de altura, construída ao lado da colina. Parecia levar a lugar nenhum.
Bes pisou nos freios e paramos. A colina era mais alta que eu tinha percebido. Atrás de nós, estava o resto de Londres. Então olhei a escada mais de perto. Duas esfinges feitas de pedra estavam prostradas em cada lado da escada, observando a cidade. Cada uma tinha cerca de três metros de comprimento com o típico corpo de leão e cabeça de faraó, mas elas pareciam totalmente fora do lugar em um parque em Londres.
― Elas não são reais ― falei.
Bes bufou.
― Claro que são reais.
― Quero dizer que não são do Egito Antigo. Elas não são antigas o suficiente.
― Exigente, exigente ― Bes disse. ― Essas são escadas para o Palácio de Cristal. Um salão grande de exposição de vidro e aço do tamanho de uma catedral costumava ficar bem aqui nessa colina.
Sadie franziu o cenho.
― Li sobre isso na escola. A rainha Vitória teve uma festa aqui ou algo do tipo.
― Uma festa ou algo do tipo? ― Bes grunhiu. ― Foi a Grande Exibição de 1851. Mostra do Império Britânico, etc. Eles tinham maçãs carameladas deliciosas.
― Você esteve lá? ― perguntei.
Bes encolheu os ombros.
― O palácio queimou na década de 1930, graças a alguns magos, mas isso é outra história. Tudo o que está aqui agora são algumas relíquias, como essas escadas e as esfinges.
― Uma escada para lugar nenhum ― repliquei.
― Não para lugar nenhum ― Bes corrigiu. ― Essa noite vai nos levar para São Petersburgo.
Walt se levantou. Seu interesse nas estátuas tinha aparentemente o tirado da melancolia.
― Mas se as esfinges não são realmente egípcias ― ele disse ― como podemos abrir um portal?
Bes deu a ele um sorriso cheio de dentes.
― Depende do que quer dizer realmente egípcio, criança. Todo grande império é um aspirante ao Egito. Ter coisas egípcias ao redor os faz sentir importante. É por isso que vocês têm artefatos egípcios novos em Roma, Paris, Londres... se chama assim. Aquele obelisco em Washington...
― Não mencione esse, por favor ― Sadie disse.
― De qualquer maneira ― Bes continuou ― estas ainda são esfinges egípcias. Foram construídos para manter a conexão entre o Império Britânico e o Império Egípcio. Então sim, podem canalizar magia. Especialmente se eu estou fazendo isso. E agora... ― ele olhou para Walt. ― Acho que é hora de você ir.
Fiquei tão surpreso para dizer alguma coisa, mas Walt olhou para baixo como se estivesse esperando isso.
― Espera aí ― Sadie interviu. ― Por que Walt não pode vir com a gente? Ele é um mago. Ele pode ajudar.
A expressão de Bes ficou séria.
― Walt, você não falou pra eles?
― Falou para a gente o quê? ― Sadie exigiu.
Walt segurou os amuletos, como se pudesse ter um que o ajudaria a evitar essa conversa.
― Não é nada. Sério. É só... eu deveria ajudar na casa do Brooklyn. E Jaz acha que...
Ele hesitou, provavelmente percebendo que não deveria ter mencionado o nome dela.
― Sim? ― O tom de Sadie estava perigosamente calmo. ― O que Jaz acha?
― Ela está... ela ainda está em coma ― Walt disse. ― Amós disse que ela provavelmente vai melhorar, mas não é que eu...
― Bom ― Sadie disse. ― Fico feliz que ela melhore. Você precisa voltar, então. Isso é brilhante. Vai logo. Anúbis disse que devemos nos apressar.
Não foi muito sutil o jeito com que ela atirou o nome para ele. Walt pareceu ter sido golpeado por ela no peito. Eu sabia que Sadie não estava sendo justa com ele. Pela minha conversa com Walt na casa do Brooklyn, sabia que ele gostava de Sadie. O que quer que estivesse o incomodando, não houve qualquer tipo de coisa romântica com Jaz. Por outro lado, se eu tentasse tomar partido dele, Sadie só me diria para cair fora. Eu poderia até piorar as coisas entre Sadie e ele.
― Não é que eu queira voltar ― ele falou.
― Mas você não pode ir conosco ― Bes disse firmemente. Pensei que ouvi preocupação em sua voz, até pena. ― Vá, criança. Está tudo bem.
Walt pescou alguma coisa de sua bolsa.
― Sadie, sobre seu aniversário... você, hum, provavelmente não quer mais nenhum presente. Não é uma faca mágica, mas fiz isso para você.
Ele despejou um colar dourado em sua mão. Era um pequeno símbolo egípcio.
― É a cesta de basquete da cabeça de Rá ― eu disse.
Walt e Sadie franziram o cenho para mim, e percebi que eu provavelmente não estava fazendo o momento mais mágico para eles.
― Quero dizer que é o símbolo que envolve a coroa do sol de Rá ― corrigi. ― Um ciclo sem fim, o símbolo da eternidade, certo?
Sadie engoliu como se a poção mágica ainda estivesse borbulhando em seu estômago.
― Eternidade? ― Walt disparou um olhar para mim que claramente significava Por favor pare de ajudar. ― É ― ele disse ― hum, se chama shen. Eu só achei, você sabe, vocês estão procurando por Rá. E coisas boas, coisas importantes, devem ser eternas. Então talvez eu te traga sorte. Quis dar isso para você essa manhã, mas... eu meio que perdi a cabeça.
Sadie olhou o talismã brilhando em sua mão.
― Walt, eu não... quer dizer, obrigada, mas...
― Só lembre que eu não quis partir ― ele disse. ― Se precisar de ajuda, vou estar lá para você.
Ele olhou para mim e se corrigiu:
― Quis dizer para vocês dois, claro.
― Mas agora ― Bes disse ― você precisa ir.
― Feliz aniversário, Sadie ― Walt falou. ― E boa sorte.
Ele saiu do carro e marchou colina abaixo. Assistimos até ele ser só uma figura minúscula na escuridão. Então ele sumiu nas árvores.
― Dois presentes de despedida ― Sadie murmurou ― de dois caras deslumbrantes. Eu odeio a minha vida.
Ela prendeu o colar dourado em seu pescoço e tocou o símbolo shen. Bes olhou para baixo nas árvores onde Walt tinha desaparecido.
― Pobre criança. Nasceu fora do normal, certo. Isso não é justo.
― O que quer dizer? ― indaguei. ― Por que você estava tão ansioso de Walt ir embora?
O anão esfregou sua barba desdenhada.
― Não é meu trabalho explicar. Nesse momento temos trabalho a fazer. Quando mais tempo demoramos, Menshikov prepara suas defesas, o mais difícil é que isso vai começar.
Eu não estava pronto para deixá-lo, mas Bes olhou para mim com teimosia, e eu soube que não iria ter mais nenhuma resposta dele. Ninguém conseguia olhar com teimosia como um anão.
― Então, Rússia ― eu disse. ― Conduzidos por uma escada vazia.
― Exatamente.
Bes pisou no acelerador. A Mercedes agitou grama, lama e água até as escadas. Eu tinha certeza que chegaríamos ao topo e não conseguiríamos nada além de um eixo de rodas quebrado, mas no último segundo, um portal de turbilhão de areia abriu na nossa frente. Nossas rodas deixaram o chão, e a limusine preta voou de cabeça para o turbilhão.
Batemos no pavimento do outro lado, dispersando um grupo de adolescentes surpresos. Sadie gemeu e tirou a cabeça do encosto.
― Não podemos ir a nenhum lugar suavemente? ― ela perguntou.
Bes ligou o limpador de para-brisas e tirou a areia. Lá fora estava escuro e nevando. Prédios de pedra do século dezoito alinhados em um rio congelado iluminado com postes. Além do rio, mais prédios de contos de fadas brilhavam: cúpulas douradas, palácios brancos, mansões enfeitadas com ovos de páscoa pintados de verde e azul.
Eu poderia ter acreditado que tínhamos viajado de volta em trezentos anos – exceto pelos carros, as luzes elétricas e é claro, os adolescentes com piercings no corpo, cabelo colorido e roupas pretas de couro gritando para nós em russo e batendo no capô da Mercedes porque nós quase os tínhamos matado.
― Eles conseguem nos ver? ― Sadie perguntou.
― Russos ― Bes disse com um tipo de admiração invejosa. ― Pessoas muito supersticiosas. Eles tendem a ver magia pelo que ela é. Temos que ser cuidadosos aqui.
― Você já esteve aqui antes? ― Perguntei.
Ele me deu um olhar , então apontou para o outro lado do carro. Tínhamos aterrissado entre duas esfinges de pedra em pedestais. Elas se pareciam com várias esfinges que eu tinha visto – com cabeças humanas coroadas e corpos de leão – mas eu nunca tinha visto esfinges cobertas de neve.
― Elas são autênticas?
― Os artefatos egípcios mais longe ao norte do mundo ― Bes respondeu. ― Saqueadas de Tebas e trazidas aqui para decorar a nova cidade imperial da Rússia, São Petersburgo. Como eu disse, todo novo império quer uma peça do Egito.
As crianças do lado de fora ainda estavam gritando e batendo no carro. Um quebrou uma garrafa contra nosso para-brisa.
― Hum ― Sadie disse ― temos que nos mover?
― Não. As crianças russas sempre passeiam pelas esfinges. Têm feito isso por centenas de anos.
― Mas é tipo meia noite aqui ― eu disse. ― E está nevando.
― Mencionei que eles são russos? ― Bes falou. ― Não se preocupe. Vou cuidar disso.
Ele abriu a porta. Um vento frio varreu a Mercedes, mas Bes saiu vestindo nada além de sunga. As crianças foram para trás rapidamente. Eu não podia culpá-las. Bes disse algo em russo, então rugiu como um leão. As crianças gritaram e correram. A forma de Bes pareceu tremeluzir. Quando ele voltou para dentro do carro, estava vestindo um casaco de inverno quente, um chapéu forrado e luvas.
―Viram? ― ele disse. ― Supersticiosos. Sabem o suficiente para correr de um deus.
― De um deus peludo e pequeno em uma sunga, sim ― Sadie replicou. ― Então o que vamos fazer agora?
Bes apontou do outro lado do rio para um palácio brilhante de pedra branca e dourada.
― Esse é o Eremitério.
― Eremitas moram aqui? ― Sadie perguntou.
― Não ― eu disse. ― Já ouvi falar desse lugar. Era o palácio do czar. Agora é um museu. A melhor coleção egípcia da Rússia.
― Papai te trouxe aqui, suponho? ― Sadie perguntou.
Pensei que tínhamos terminado o assunto ciúmes-de-viajar-com-papai, mas de vez em quando ele aparece de novo.
― Nunca viemos. ― Tentei não soar defensivo. ― Ele ganhou um convite para palestrar aqui uma vez, mas recusou.
Bes riu.
― Seu pai era esperto. Magos russos não dão exatamente boas vindas a forasteiros. Eles protegem seu território violentamente.
Sadie olhou do outro lado do rio.
― Quer dizer que os quartéis generais do Décimo Oitavo Nomo estão dentro do museu?
― Em algum lugar dele ― Bes concordou. ― Mas está escondido com magia, porque eu nunca achei a entrada. Essa parte que vocês estão vendo é o Palácio de Inverno, a antiga casa do czar. Há um complexo de outras mansões atrás dele. Ouvi falar que levaria onze dias para ver a coleção inteira do Eremitério.
― Mas a não ser que acordemos Rá, o mundo acaba em quatro dias ― eu disse.
― Três dias agora ― Sadie corrigiu ― se é depois da meia-noite.
Eu encolhi.
― Obrigado por lembrar.
― Então peguem o passeio mais curto ― Bes disse. ― Comecem com a seção egípcia. Andar térreo, museu principal.
― Não vai vir com a gente?
― Ele não pode, não é? ― Sadie adivinhou. ― Como Bastet não pôde entrar na casa de Desjardins em Paris. Os magos encantam seus quartéis generais contra os deuses. Não é isso?
Bes fez uma cara ainda mais feia.
― Vou andar com vocês pela ponte, mas não posso ir mais longe. Se eu atravessar o rio Neva mais perto do Eremitério, vou acionar todos os tipos de alarmes. Vocês têm que entrar sorrateiramente de algum jeito...
― Invadindo um museu à noite ― Sadie murmurou. ― Tivemos sorte com isso.
― ...e achar a entrada para o Décimo Oitavo Nomo. E não sejam capturados vivos.
― O que você quer dizer? ― Perguntei. ― É melhor sermos capturados mortos?
O olhar em seus olhos era severo.
― Acredite em mim. Você não vai querer ser prisioneiro de Menshikov.
Bes estalou os dedos, e de repente estávamos vestindo casacos de lã, calças de esqui e botas de inverno.
― Vamos lá, malishi  ele incitou. ― Vou andar com vocês pela Ponte Dvortsovyy.
A ponte só estava a algumas centenas de metros de distância, mas parecia mais longe. Março obviamente não era tempo de primavera em São Petersburgo. A escuridão, o vento e a neve faziam sentir mais como janeiro no Alasca. Pessoalmente, eu preferiria um dia abafado no deserto egípcio. Mesmo com as roupas quentes que Bes tinha invocado para nós, meus dentes não paravam de bater.
Bes não estava com pressa. Ele continuou a desacelerar e nos dar um tour até eu achar que meu nariz cairia de congelado. Ele nos disse que estávamos na Ilha Vasilevsky, do outro lado do Rio Neva no centro de São Petersburgo. Ele apontou para torres de igreja diferentes e monumentos, e quando ficava empolgado, começava a escorregar em russo.
― Você perdeu muito tempo aqui ― eu disse.
Ele caminhou em silêncio por alguns passos.
― A maior parte disso foi há muito tempo. Eu não...
Ele parou tão abruptamente que tropecei nele. Ele olhou para o outro lado da rua para um grande palácio com paredes amarelo canário e telhado triangular verde. Iluminado durante a noite com um redemoinho de neve, parecia surreal, como uma das imagens fantasmagóricas no Salão das Eras do Primeiro Nomo.
― O palácio do príncipe Menshikov ― Bes murmurou.
Sua voz estava cheia de repugnância. Eu quase achei que ele iria gritar BOO para o prédio, mas ele só cerrou os dentes. Sadie olhou para mim para uma explicação, mas eu não era um Wikipédia ambulante como ela parecia achar. Eu sabia coisas sobre o Egito, mas Rússia? Nem tanto.
― Você quer dizer Menshikov como Vlad, o Inalador? ― Perguntei.
― Ele é um descendente.
Bes contraiu os lábios com desgosto. Ele disse uma palavra em russo que eu estava disposto a apostar que era um insulto muito ruim.
― No século dezessete, o príncipe Menshikov deu uma festa para Pedro, o Grande, o czar que construiu essa cidade. Pedro adorava anões. Ele era muito parecido com os egípcios desse ponto de vista. Ele achava que davam sorte, então sempre deixava alguns de nós em sua corte. De qualquer maneira, Menshikov quis entreter o czar, então ele achou que seria engraçado encenar um casamento anão. Ele forçou-os... elenos forçou a vestir, casar e dançar. Todo o grande povo estava rindo, zombando...
Sua voz vacilou.
Bes descreveu a festa como se fosse ontem. Então lembrei que esse cara pequeno estranho era um deus. Ele esteve por aí por eras. Sadie colocou a mão em seu ombro.
― Sinto muito, Bes. Deve ter sido terrível.
Ele fez uma careta.
― Magos russos... eles amavam capturar deuses, nos usar. Ainda posso ouvir aquela música de casamento, e o czar rindo...
― Como você fugiu? ― Perguntei.
Bes me encarou. Obviamente, tinha feito uma pergunta ruim.
― Chega ― Bes arrumou sua blusa. ― Estamos desperdiçando tempo.
Ele seguiu em frente, mas tive um pressentimento que ele não fugiu realmente do palácio de Menshikov. De repente as alegres paredes amarelas e janelas iluminadas pareceram sinistras.
Algumas centenas de metros através do vento severo, e tínhamos alcançado a ponte. Do outro lado, o Palácio de Inverno brilhava.
― Vou levar a Mercedes para longe daqui ― Bes disse. ― Descendo a próxima ponte, na circunferência sul do Eremitério. É menos provável alertar os magos que eu estou aqui.
Agora percebi por que ele estava tão paranoico a respeito de acionar alarmes. Os magos tinham capturado ele em São Petersburgo uma vez antes. Lembrei o que ele tinha nos falado no carro: Não sejam capturados vivos.
― Como vamos te encontrar se conseguirmos? ― Sadie perguntou.
― Quando conseguirem ― Bes disse. ― Pense positivo, garota, ou o mundo acaba.
― Certo ― Sadie tremeu em seu novo casaco. ― Positivo.
― Vou encontrar vocês no Nevsky Prospekt, a rua principal com todas as lojas, ao sul do Eremitério. Vou estar no Museu do Chocolate.
― No o quê? ― Perguntei.
― Bem, não é realmente um museu. É mais para uma loja... fechada a essa hora da noite, mas o dono sempre abre para mim. Eles tem tudo de chocolate – xadrez, conjuntos, leões, cabeças de Vladimir Lênin...
― O cara comunista? ― Perguntei.
― Sim, Professor Brilhante ― Bes respondeu. ― O cara comunista, de chocolate.
― Então deixa ver se entendi ― Sadie disse. ― Vamos invadir um museu nacional russo fortemente armado, encontrar o quartel general secreto dos magos, achar o pergaminho perigoso e escapar. Enquanto isso, você vai estar comendo chocolate.
Bes assentiu solenemente.
― É um bom plano. Deve funcionar. Se alguma coisa acontecer e eu não achar vocês no Museu do Chocolate, nosso ponto de saída é a Ponte Egípcia, no sul do Rio Fontanka. Só tomem...
― Chega ― Sadie interrompeu. ― Você vai nos encontrar na loja de chocolate. E vaime providenciar uma sacola para viagem. Ponto final. Agora, vai!
Bes deu a ela um sorriso torto.
― Você está certa, garota.
Ele marchou de volta para a Mercedes. Olhei para o outro lado do rio quase congelado do Palácio de Inverno. De algum jeito, Londres não parecia mais triste e perigosa.
― Estamos mais em apuros do que eu acho? ― Perguntei a Sadie.
― Mais ― ela concordou. ― Vamos arrombar o palácio do czar, ok?

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