segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Trono de Fogo - Sadie

Capítulo 11 - Carter faz algo incrivelmente estúpido (e ninguém se surpreende)

EU ENTENDI, CARTER. Eu entendi. Me deixou contar a parte mais dolorosa, eu não posso te culpar. O que aconteceu foi ruim o suficiente para mim, mas para você... bem, eu não quero falar sobre esse assunto.
Nós estávamos no Palácio de Inverno, correndo pelos corredores de mármore polido que não foram projetados para correr. Atrás de nós, um tjesu heru de duas cabeças derrapava e batia nas paredes enquanto tentava virar os cantos, muito parecido como Muffin costumava fazer sempre que a vovó esfregava o chão. Essa foi a única razão para o monstro não nos pegar imediatamente.
Assim surgimos na Sala Malaquita, eu não tinha ideia de onde ficava a saída mais próxima. Eu nem tinha certeza se realmente estávamos no Palácio de Inverno, ou se o escritório de Menshikov tinha algum fax inteligente que só existia no Duat. Estava começando a achar que nunca sairíamos quando viramos uma curva, descemos correndo uma escada, e vimos um conjunto de portas de vidro e ferro que levava para a Praça do Palácio.
tjesu heru estava bem atrás de nós. Ele escorregou e rolou pela escada, demolindo uma estátua de gesso de algum czar infeliz. Estávamos a dez metros da saída quando vi os cadeados entre as portas.
― Carter ― arquejei, acenando desesperadamente para os cadeados.
Odeio admitir quão fraca eu estava. Eu não tinha forças para outra magia. Rachar o vaso de Set na Sala Malaquita foi meu último suspiro, que é um bom exemplo de por que você não deve usar magia para resolver todos os seus problemas. Invocar a Palavra Divina para quebrar o vaso tinha tomado tanta energia, que eu me sentia como se estivesse cavando buracos no sol ardente. Seria bem mais fácil apenas arremessar uma pedra. Se eu sobrevivesse àquela noite, decidiria acrescentar algumas pedras na minha bolsa de utilidades.
Estávamos a três metros quando Carter empurrou sua mão em direção à porta. O Olho de Hórus queimou contra o cadeado e as portas explodiram como se tivessem sido golpeadas por um punho gigante. Eu não tinha visto Carter fazer nada como isso desde nossa luta na Pirâmide Vermelha, mas não tive tempo para ficar de boca aberta.
Disparamos pela noite de inverno, o tjesu heru rugindo atrás de nós.
Você vai achar que eu estava louca, mas meu primeiro pensamento foi: Isso foi muito fácil. Apesar de o monstro nos perseguir e dos negócios com Set (quem eu estrangularia na primeira oportunidade – que traidor imbecil!), eu não pude deixar de sentir que tínhamos violado o santuário de Menshikov e apanhado o rolo sem problemas o suficiente.
Onde estavam as armadilhas? Os alarmes? As maldições de explodir burros? Eu tinha certeza que tínhamos roubado o rolo autêntico. Senti o mesmo formigamento em meus dedos como quando eu tinha pegado o único do Museu do Brooklyn (sem o incêndio, felizmente).
Então por que o rolo não tinha sido mais bem protegido? Eu estava tão cansada, que caí alguns passos atrás de Carter, o que provavelmente salvou a minha vida. Senti uma sensação de arrepio pelo meu coro cabeludo. Senti a escuridão acima de mim – um sentimento que me lembrava muito da trevas das asas de Nekhbet. Olhei para cima e vi o tjesu heru voando por cima de nossas cabeças como uma enorme rã-touro, a tempo de colocar sua garra para pousar...
― Carter, pare! ― gritei.
É mais fácil dizer do que fazer no pavimento congelado. Eu derrapei até parar, mas Carter estava indo rápido demais. Ele caiu sobre seu traseiro e escorregou. Sua espada deslizou para o lado. O tjesu heru pousou bem em cima dele. Se não tivesse uma forma de U, Carter seria esmagado; mas aquilo se curvou ao redor dele como um enorme par de fones de ouvido, uma cabeça olhando abaixo para ele dos dois lados. Como alguma coisa tão grande podia saltar tão longe? Tarde demais, percebi que poderíamos ter ficado lá dentro onde era mais difícil para o monstro se mexer. Lá fora, não tínhamos chance de ultrapassá-lo.
― Carter ― falei. ― Fique totalmente parado.
Ele congelou na posição de caranguejo. As duas cabeças do monstro pingavam veneno que sibilaram e cozinharam as pedras de gelo.
― Oi! ― gritei.
Não tendo nenhuma pedra, peguei um pedaço grosso de gelo quebrado e arremessei no tjesu heru. Certamente acertei as costas de Carter ao invés disso. Mesmo assim, peguei a atenção do tjesu heru. As duas cabeças se viraram na minha direção, as duas línguas tremulando.
Primeira etapa concluída: distrair o monstro. Segunda etapa: encontrar algum jeito inteligente de afastar aquilo de Carter. Essa parte estava me dando um pouco mais de trabalho. Eu tinha usado minha única poção. A maioria dos meus suprimentos mágicos se foi. Meu cajado e minha varinha não melhorariam a situação com as minhas reservas mágicas drenadas. A faca de Anúbis? De algum jeito eu duvidava que aquela fosse a situação certa para abrir a boca de alguém. O amuleto de Walt? Eu não tinha a menor ideia de como usar.
Pela milionésima vez, me arrependi de ter aberto mão do espírito de Ísis. Eu sem dúvida podia ter usado o arsenal mágico completo da deusa. Mas, é claro, aquilo foi exatamente o porquê que eu tive que me separar dela. Aquele tipo de poder é embriagante, perigosamente viciante. Pode destruir sua vida, bem rápido.
E se eu pudesse criar um elo limitado? Na Sala Malaquita, eu dominei a magia ha-dipela primeira vez em meses. E embora tivesse sido difícil, não foi impossível. Certo, Ísis, pensei. Aqui está o que eu preciso...
Não pense Sadie, sua voz sussurrou de volta quase imediatamente, o que foi um choque muito grande. A magia divina tem que ser involuntária, como respirar.
Você quer dizer... Parei.
Não pense.
Bem, aquilo não poderia ser tão difícil. Levantei meu cajado e um hieróglifo dourado brilhou no ar. Um tyet de um metro de altura iluminou o pátio como uma estrela de árvore de Natal. O tjesu heru rosnou, seus olhos amarelos fixos no hieróglifo.
― Não gosta disso, hein? ― gritei. ― O símbolo de Ísis, seu vira-lata feio. Agora, fique longe do meu irmão!
Foi um blefe total, é claro. Eu duvidava que um sinal brilhante pudesse fazer algo de útil. Mas esperava que a criatura cobra não fosse inteligente o suficiente para saber disso.
Lentamente, Carter se moveu para trás. Ele olhou para sua espada, mas ela estava a dez metros de distância – muito fora de alcance. Mantive meus olhos no monstro. Usei o topo do meu cajado para traçar um círculo mágico na neve ao meu redor. Isso não daria muita proteção, mas era melhor que nada.
― Carter ― gritei ― quando eu disser vai, corra para cá.
― Essa coisa é muito rápida! ― ele disse.
― Vou tentar detonar o hieróglifo e cegá-lo.
Eu ainda acho que o plano teria funcionado, mas não tive chance de tentar. Em algum lugar à minha esquerda, botas esmagaram o gelo. O monstro se virou na direção do som. Um homem jovem corria para a luz do hieróglifo. Ele estava vestido em um casaco de lã pesado e um chapéu de policial, com uma espingarda em suas mãos, mas não podia ser muito mais velho que eu. Ele estava praticamente se afogando em seu uniforme. Quando ele viu o monstro, seus olhos se arregalaram. Ele tropeçou para trás, quase derrubando sua arma.
Ele gritou alguma coisa para mim em russo, provavelmente, “Por que tem um monstro serpente de duas cabeças sem traseiro?”
O monstro sibilou para nós dois – o que ele podia fazer, tendo duas cabeças.
― Isso é um monstro ― eu disse ao guarda.
Eu tinha quase certeza que ele não conseguia entender, mas tentei manter meu tom firme.
― Fique calmo e não atire. Estou tentando salvar meu irmão.
O guarda engoliu. Suas orelhas largas eram as únicas coisas que apareciam sob seu chapéu. Ele olhou do monstro para Carter e para o tyet brilhando acima de minha cabeça. Então ele fez algo que eu não esperava. Ele disse uma palavra do Egito Antigo:
― Heqat — o comando que eu sempre usava para invocar meu cajado.
Sua espingarda virou um bastão de carvalho de dois metros de altura com uma cabeça de falcão esculpida. Que maravilha, pensei. Os guardas de segurança eram magos em segredo. Ele se dirigiu a mim em russo – algum tipo de aviso. Reconheci o nomeMenshikov.
― Deixe-me adivinhar ― eu disse. ― Você quer me levar para seu líder.
tjesu heru estalou as mandíbulas. Ele estava perdendo medo do meu tyet brilhante muito rápido. Carter não estava longe o suficiente para correr dele.
― Olha ― falei ao guarda ― seu chefe, Menshikov, é um traidor. Ele invocou essa coisa para nos matar, assim não iríamos atrapalhar seus planos de libertar Apófis. Entende a palavra Apófis? Cobra má. Cobra muito má! Agora, ou me ajude a matar esse monstro ou fique fora do meu caminho!
O guarda-mago hesitou. Ele apontou para mim nervoso.
― Kane.
Não era uma pergunta.
― Sim ― concordei. ― Kane.
Sua expressão era uma mistura de emoções – medo, incredulidade, até mesmo respeito. Eu não sabia o que ele tinha ouvido sobre nós, mas antes de poder decidir entre nos ajudar ou lutar contra nós, a situação saiu do controle. O tjesu heru investiu. Meu irmão ridículo, em vez de rolar para fora do caminho, enfrentou o monstro. Ele fechou seus braços ao redor do pescoço direito da criatura e tentou subir em suas costas, mas o tjesu heru simplesmente virou sua outra cabeça e o atacou.
O que Carter estava pensando? Talvez ele achasse que podia montar a besta. Talvez estivesse tentando me comprar alguns segundos para conjurar um feitiço. Se você perguntar a ele sobre isso agora, ele vai afirmar que não foi completamente um acidente. Mas se você perguntar para mim, o idiota estava tentando me salvar, mesmo que isso significasse se sacrificar. Que raiva!
[Oh, sim, agora você tenta se explicar, Carter. Você acha que eu não me lembro disso! Só fique quieto e me deixe contar a história.]
Como eu estava dizendo, o tjesu heru atacou Carter, e tudo pareceu desacelerar. Eu me lembro de gritar, baixando meu cajado para o monstro. O soldado-mago gritou alguma coisa em russo. A criatura afundou suas presas no ombro esquerdo de Carter, e ele caiu no chão.
Esqueci meu círculo improvisado. Corri em direção a ele, e meu cajado brilhou. Eu não sei como manejei o poder. Como Ísis disse, eu não pensei. Eu simplesmente canalizei toda a minha raiva para meu cajado. Ver Carter machucado foi a última ofensa. Meus avós foram possuídos. Minhas amigas foram atacadas e meu aniversário arruinado.
Atacar Carter passou dos limites. Ninguém podia machucar meu irmão. Soltei um raio de luz dourada que atingiu o monstro com a força de um jato de areia. O tjesu heru se desfez em pedaços, até não ter nada restando além de uma camada de areia fumegando na neve e algumas lascas do cajado destruído de Menshikov.
Corri para o lado de Carter. Ele estava tremendo, seus olhos girando em sua cabeça. Dois furos em seu casaco estavam fumegando.
― Kane ― o jovem russo disse com um tom de medo.
Peguei uma lasca de madeira e levantei para ele ver.
― Seu chefe Menshikov fez isso. Ele está trabalhando para Apófis. Menshikov: Apófis. Agora, SAIA DAQUI!
O mago não deveria ter entendido minhas palavras, mas ele captou a mensagem. Virou-se e correu. Aninhei a cabeça de Carter. Eu não conseguia carregá-lo, mas tinha que tirá-lo de lá. Estávamos em território inimigo. Eu precisava encontrar Bes. Lutei para coloca-lo de pé.
Então alguém pegou o outro braço de Carter e nos ajudou. Encontrei Set sorrindo para mim, ainda em seu terno de discoteca vermelho ridículo, empoeirado com destroços de malaquita. Os óculos de sol quebrados de Menshikov estavam apoiados em sua cabeça.
― Você ― eu disse, muito cheia de nojo para fazer uma ameaça de morte boa.
― Eu ― Set concordou alegremente. ― Vamos tirar seu irmão daqui, vamos? Vladimirnão está de bom humor.

***

O Nevsky Prospekt seria um belo lugar para fazer compras se não tivesse uma tempestade de neve durante as primeiras horas da manhã. E se eu não estivesse carregando meu irmão desmaiado e envenenado.
A rua tinha grandes calçadas, perfeito para ambulantes, alinhados com uma variedade impressionante de boutiques, cafés, igrejas e mansões. Com todas as placas em russo, eu não via como encontraríamos a loja de chocolates. Não consegui localizar a Mercedes preta de Bes em lugar nenhum.
Set se voluntariou para carregar Carter, mas eu não estava disposta a deixar o deus do caos se encarregar de meu irmão, então ele se arrastou entre nós. Set decidiu conversar amigavelmente sobre o veneno do tjesu heru.
― Completamente incurável! Fatal em cerca de doze horas. É uma coisa incrível!
E sua luta com Menshikov:
― Seis vasos se quebraram sobre sua cabeça, e ele ainda sobreviveu! Eu invejo seu crânio duro.
E minhas perspectivas de viver o bastante para encontrar Bes:
― Oh, você está frita, minha querida! Uma dúzia de magos mais velhos estavam se juntando a Menshikov quando eu fiz minha... er... saída estratégica. Eles vão te alcançar em pouco tempo. Eu poderia ter destruído todos eles, é claro, mas não podia arriscar que Vladimir usasse meu nome secreto de novo. Talvez ele fique com amnésia e esqueça. Então se vocês morrerem seriam dois problemas resolvidos. Oh, desculpe, suponho que soou insensível. Venha!
A cabeça de Carter pendeu. Sua respiração soava quase tão ruim quanto o inalador do Darth Vader. Agora, por favor não pense que eu fui estúpida. Claro que me lembrei da mini-figura de cera de Carter que Jaz me deu. Reconheci que aquele era o tipo de emergência onde isso poderia vir a calhar.
Como Jaz tinha previsto que Carter precisaria de cura, eu não tinha ideia. Mas era possível que a figura podia extrair o veneno dele, apesar do que Set disse sobre isso ser incurável. O que um deus do mal sabia sobre cura, de qualquer jeito?
Havia problemas, no entanto. Primeiro, eu sabia muito pouco sobre magia de cura. Eu precisava de tempo para descobrir a fusão adequada, e como só tinha uma estátua de cera, não podia me dar ao luxo de errar. Segundo, eu não podia fazer isso muito bem enquanto estava sendo perseguida por Menshikov e seu pelotão de magos russos valentões, nem queria baixar minha guarda com Set em algum lugar perto de mim.
Eu não sabia por que ele decidiu ser útil de repente, mas o quanto mais rápido eu pudesse perdê-lo, melhor. Precisava encontrar Bes e fugir para um lugar seguro – se houvesse um lugar assim.
Set ficou falando de todos os jeitos excitantes que os magos deveriam me matar assim que me pegarem. Finalmente vi uma fonte à frente sobre um lago congelado. Estacionada no meio estava a Mercedes preta.
Bes estava encostado ao capô, comendo peças de um tabuleiro de xadrez de chocolate. Próximo a ele estava uma bolsa grande de plástico – felizmente com mais chocolate para mim.
Gritei para ele, mas ele estava tão ocupado comendo chocolate (acho que eu poderia entender) que ele não nos notou até estarmos a alguns metros de distância. Então ele olhou para cima e viu Set. Eu comecei a dizer, “Bes, não” tarde demais. Como um gambá, o deus anão ativou seu modo de defesa. Seus olhos incharam. Sua boca se abriu incrivelmente grande. Ele gritou “BUU!” tão alto, que meu cabelo se arrepiou e pingentes de gelo choveram dos postes da ponte.
Set não pareceu nem um pouco intimidado.
― Olá, Bes ― ele cumprimentou. ― Sério, você não é tão assustador com chocolate esfregado no seu rosto.
Bes olhou para mim.
― O que ele está fazendo aqui?
― Não foi minha ideia! ― jurei.
Dei a ele uma história resumida de nosso encontro com Menshikov.
― E então Carter foi machucado ― resumi, o que pareceu bastante óbvio. ― Temos que tirá-lo daqui.
― Mas primeiro ― Set interrompeu, apontando para a sacola do Museu do Chocolate perto de Bes, ― Não aguento surpresas. O que tem aí? Um presente para mim?
Bes franziu o cenho.
― Sadie queria um souvenir. Comprei a cabeça de Lênin para ela.
Set deu um tapa na coxa com prazer.
― Bes, que malvado! Há esperança para você ainda.
― Não é sua cabeça de verdade ― Bes disse. ― É de chocolate.
― Ah... Que vergonha. Posso ter parte de seu tabuleiro de xadrez, então? Eu simplesmente adoro comer peões.
― Saia daqui, Set! ― Bes falou.
― Bem, eu poderia fazer isso, mas já que nossos amigos estão a caminho, acho que talvez nós possamos fazer um acordo.
Set estalou os dedos e um globo de luz vermelha apareceu em frente a ele. Nele, havia imagens holográficas de seis homens em uniformes de seguranças amontoados em dois carros esportivos. Seus faróis brilhavam em vida. Os carros desviaram de um estacionamento, então passaram direto através de uma parede de pedra como se fosse feita de fumaça.
― Eu diria que vocês tem cerca de dois minutos ― Set sorriu, e o globo de luz desapareceu. ― Você se lembra dos servos de Menshikov, Bes. Tem certeza que quer conhecê-los de novo?
O rosto do deus anão escureceu. Ele esmagou uma peça de xadrez de chocolate branco na mão.
― Você está mentindo, planejando, assassinando...
― Parem! ― gritei.
Carter gemeu em seu envenenamento atordoado. Ou ele estava ficando mais pesado, ou eu estava ficando cansada de segurá-lo de pé.
― Não temos tempo para discutir ― eu disse. ― Set, você está se oferecendo para parar os magos?
Ele riu.
― Não, não. Ainda estou esperando eles matarem vocês, sabe. Mas estou oferecendo a vocês a localização do último pergaminho do Livro de Rá. É isso que vocês estão procurando, não é?
Achei que ele estivesse mentindo. Ele normalmente estaria, mas se estivesse falando sério... Olhei para Bes.
― É possível que ele saiba a localização?
Bes grunhiu.
― Mais que possível. Os sacerdotes de Rá deram a ele o pergaminho para manter a salvo.
― Por que diabos eles fizeram isso?
Set tentou parecer modesto.
― Convenhamos, Sadie. Eu era um tenente leal de Rá. Se você fosse Rá, e não quisesse ser incomodado por qualquer mago velho tentando te incomodar, você não confiaria a chave da sua localização com seu servo mais assustador?
Ele tinha um ponto.
― Onde está o pergaminho, então?
― Não tão rápido. Vou te dar a localização se você me der de volta meu nome secreto.
― Nem sonhando!
― É bem simples. É só você dizer “eu devolvo seu nome”. Você vai se esquecer da forma adequada de dizê-lo...
― E então não vou mais ter poder sobre você! Você vai me matar!
― Você tem minha palavra que não vou.
― Certo. É uma pena. E se eu usar seu nome secreto para te forçar a me dizer?
Set encolheu os ombros.
― Com alguns dias de procura pelo encantamento correto, você deve conseguir. Infelizmente...
Ele colocou a mão na orelha. À distância, pneus de dois carros guincharam, viajando rápido, chegando mais perto.
― Vocês não tem alguns dias.
Bes xingou em egípcio.
― Não faça isso, garota. Ele pode não ser confiável.
― Nós podemos achar o pergaminho sem ele?
― Bem... Talvez. Provavelmente não. Não.
Os faróis dos dois carros desviaram para a Nevsky Prospekt, a cerca de um quilômetro e meio distância. Estávamos fora do tempo. Eu tinha que tirar Carter dali, mas se Set realmente fosse nosso único jeito de achar o pergaminho, não podia fugir sem ele.
― Tudo bem, Set. Mas eu vou te dar uma última ordem.
Bes suspirou.
― Não posso suportar ver isso. Dê-me seu irmão. Vou colocá-lo no carro.
O anão pegou Carter e o enfiou no banco de trás da Mercedes.
Eu mantive meus olhos em Set, tentando achar o jeito menos terrível de fazer esse acordo. Eu não podia simplesmente falar para ele nunca machucar minha família. Um pacto mágico precisava ser cuidadosamente formulado, com limites claros e uma data de expiração, ou toda a magia se desvencilharia.
― Dia do mal, você não fará mal para a família Kane. Você vai manter uma trégua conosco até... até Rá ser acordado.
― Ou até vocês tentarem e falharem em acordá-lo? ― Set perguntou inocentemente.
― Se isso acontecer ― eu disse ― o mundo vai acabar. Então por que não? Vou fazer o que você pede a respeito de seu nome. Em troca, você vai me dizer a localização do último pergaminho do Livro de Rá, sem trapaça ou engano. Então vai partir para o Duat.
Set considerou a oferta. Os dois carros esportivos brancos estavam a apenas alguns quarteirões de distância agora. Bes fechou a porta de Carter e correu de volta.
― Nós temos um acordo ― Set concordou. ― Você vai encontrar o pergaminho na Bahariya. Bes conhece o lugar que estou falando.
Bes não pareceu feliz.
― Esse lugar é fortemente protegido. Vamos ter que usar o portal de Alexandria.
― Sim ― Set sorriu. ― Isso pode ser interessante! Por quanto tempo você consegue segurar seu fôlego, Sadie Kane?
― O que você quer dizer?
― Não se preocupe, não se preocupe. Agora, acredito que você me deve um nome secreto.
― Eu devolvo seu nome ― falei.
No mesmo instante, senti a magia me deixar. Eu ainda sabia o nome de Set: Dia do Mal. Mas de algum jeito, eu não conseguia lembrar como costumava dizer isso, ou como isso funcionava em um encantamento. A memória foi apagada.
Para a minha surpresa, Set não me matou instantaneamente. Ele só sorriu e me jogou os óculos de Vlad Menshikov.
― Espero que sobreviva, apesar de tudo, Sadie Kane. Você é muito divertida. Mas se eles te matarem, pelo menos aproveite a experiência!
― Puxa, obrigada.
― E só porque eu gosto muito de você, vou te dar uma peça gratuita de informação para seu irmão. Diga a ele que a vila de Zia Rashid era chamada de Al-Hamrah Makan.
― Por que é que...
― Boa viagem!
Set desapareceu em uma nuvem de névoa cor de sangue. Há um quarteirão de distância, os dois carros esportivos embarrilavam em nossa direção. Um mago enfiou a cabeça para fora do teto solar do carro líder e apontou seu cajado na nossa direção.
― Hora de ir ― Bes afirmou. ― Entre!
Eu vou dizer isso de Bes: ele dirigiu como um maluco. E quero dizer isso do melhor jeito possível. As ruas congeladas não o incomodavam. Nem os sinais de trânsito, calçadas de pedestres ou canais, que ele pulou duas vezes sem se importar de encontrar uma ponte.
Felizmente, a cidade estava mais vazia na hora da manhã, ou tenho certeza que teríamos atropelado um bom número de russos. Nós traçamos o centro de São Petersburgo enquanto os dois carros esportivos cerravam atrás de nós. Eu tentava segurar Carter firme perto de mim no banco de trás.
Seus olhos estavam meio abertos, a parte branca de seus olhos se tornando um verde terrível. Apesar do frio, ele estava queimando de febre. Eu tirei seu casaco de inverno e encontrei sua camisa encharcada de suor. Em seu ombro, as feridas estavam escorrendo como... Bem, acho que é melhor eu não descrever essa parte.
Olhei para trás. O mago no teto solar apontou seu cajado – não é uma tarefa fácil em uma perseguição de carro em alta velocidade – e uma lança brilhante branca disparou da ponta, zunindo na nossa direção como um míssil teleguiado.
― Abaixe! ― gritei, e empurrei Carter contra o assento.
A lança quebrou na janela traseira e voou direto pelo para-brisa. Se Bes tivesse uma altura normal, ele teria conseguido um furo na cabeça. Como era assim, o projétil o errou completamente.
― Eu sou um anão ― ele grunhiu. ― Eu não abaixo!
Ele guinou para a direita. Atrás de nós, uma loja explodiu. Olhando para trás, vi a parede toda dissolver em uma pilha de cobras vivas. Nossos perseguidos ainda estavam atrás de nós.
― Bes, tira a gente daqui! ― gritei.
― Estou tentando, criança. A Ponte Egípcia está vindo. Ela foi originalmente construída nos oitocentos, mas...
― Não estou nem aí! Só dirija!
Realmente, era incrível quantas entradas e saídas egípcias haviam em São Petersburgo, e o pouco que eu ligava para elas. Ser perseguida por magos demoníacos atirando lanças e bombas de cobra tende a esclarecer as prioridades.
É o bastante dizer: Sim, realmente havia uma Ponte Egípcia sobre o Rio Fontanka, ao sul do centro de São Petersburgo. Por quê? Não tenho ideia. Não ligo.
Enquanto corríamos na direção dela, eu vi esfinges escuras de pedra – senhoras esfinges com coroas douradas de faraó – mas a única coisa que importava para mim era se elas podiam invocar um portal.
Bes ladrou alguma coisa em egípcio. No topo da ponte, uma luz azul brilhou. Um turbilhão de areia apareceu.
― O que Set quis dizer ― perguntei ― sobre prender minha respiração?
― Esperemos que não seja por muito tempo ― Bes disse. ― Só vamos estar a 10 metros debaixo.
― Dez metros debaixo d‘água?
BANG!
A Mercedes adernou para o lado. Só depois eu percebi que outra lança deveria ter acertado nosso pneu de trás. Nós giramos pelo gelo e capotamos, deslizando para baixo do turbilhão. Minha cabeça bateu contra alguma coisa. Eu abri meus olhos, lutando contra a inconsciência, mas ou eu fiquei cega ou estávamos na escuridão completa.
Ouvi a água entrando pelo vidro quebrado pelo dardo, e o teto da Mercedes se amassou como um cano de alumínio. Eu tive tempo de pensar: Uma adolescente por menos de um dia, e vou me afogar. Então eu apaguei.

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