segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Trono de Fogo - Carter

Capítulo 21 - Ganhamos algum tempo

DEPOIS DE DIZER ADEUS À ZIA na Grande Pirâmide, eu não pensava que poderia ficar mais deprimido. Eu estava errado.
Parado no cais do Lago de Fogo, eu senti que poderia muito bem fazer uma bala de canhão na lava. Não era justo. Nós tínhamos chegado até aqui e nos arriscamos demais só para sermos derrotados por um limite de tempo. Game over.
Como alguém teria sucesso em trazer Rá de volta? Era impossível.
Carter, isso não é um jogo, a voz de Hórus disse de dentro de minha cabeça. Não é suposto que seja possível. Você deve continuar.
Eu não vejo por que. Os portões da Oitava Casa já estavam fechados. Menshikov havia partido e nos deixado para trás. Talvez esse fosse seu plano o tempo todo. Ele nos tinha deixado acordar Rá apenas parcialmente, então o deus do sol permaneceria velho e fraco. Então Menshikov nos deixaria presos no Duat, enquanto usava qualquer magia maligna que tinha planejado para libertar Apófis.
Quando o amanhecer viesse, não haveria sol, nem retorno de Rá. Ao invés disso, Apófis subiria e destruiria a civilização.
Nossos amigos teriam lutado durante a noite toda por nada. Vinte e quatro horas a partir de agora, quando finalmente conseguíssemos sair do Duat, encontraríamos o mundo nas trevas, um deserto gelado, governado por Apófis. Tudo que importa para nós não existiria mais.
Apófis poderia engolir Rá e completar sua vitória. Porque deveríamos continuar indo em frente quando a batalha estava perdida?
Um general nunca mostra desespero, Hórus disse. Ele induz confiança em suas tropas. Ele os leva à frente, mesmo à boca da morte.
Você é o Senhor Animador, pensei. Quem o convidou de volta à minha cabeça?
Mas tão irritante como Hórus era, ele tinha um objetivo. Sadie tinha falado sobre a esperança – sobre acreditarmos que poderíamos tirar o Maat do Caos, mesmo que parecesse impossível.
Talvez fosse tudo o que poderíamos fazer: continuar tentando, continuar acreditando que poderíamos salvar alguma coisa do desastre. Amós, Zia, Walt, Jaz, Bastet, e nossos jovens iniciados... todos eles contaram conosco.
Se nossos amigos ainda estiverem vivos, eu não poderia desistir. Eu devia a eles mais do que isso.
Taueret nos acompanhou até a Barca Solar, enquanto um par de seus shabtitransportavam Rá a bordo.
― Bes, sinto muito ― disse ela. ― Eu gostaria que houvesse mais o que eu pudesse fazer.
― Não é sua culpa ― Bes estendeu a mão como se quisesse apertar a dela, mas quando seus dedos a tocaram, ele retirou sua mão. ― Taueret, nunca foi sua culpa.
Ela fungou.
― Oh, Bes...
― Wheee! ― Rá interrompeu, quando os shabti colocaram-no no barco. ― Veja as zebras! Wheee!
Bes pigarreou.
― Você... você deve ir. Talvez Aaru providencie uma resposta.
― Aaru? ― perguntei. ― Quem é esse?
Taueret não sorriu, exatamente, mas seus olhos suavizaram com bondade.
― Não quem, meu querido. Onde. É a Sétima Casa. Diga olá a seu pai.
Meu ânimo melhorou um pouco.
― Papai vai estar lá?
― Boa sorte, Carter e Sadie.
Taueret beijou a nós dois no rosto, o que pareceu como ser atingido lateralmente por um dirigível simpático, eriçado e ligeiramente úmido. A deusa olhou Bes, e eu tinha certeza de que ela iria chorar. Então ela se virou e correu até a escada, seus shabti atrás dela.
― As doninhas estão doentes ― disse Rá, pensativo.
Com essa frase de sabedoria divina, nós embarcamos na Barca. As luzes brilhantes da tripulação manejaram os remos, e a Barca Solar se afastou do cais.
― Comer ― Rá começou a mastigar um pedaço de corda.
― Não, você não pode comer isso, seu velho imbecil ― Sadie censurou.
― Hum, criança? ― Bes chamou. ― Talvez você não devesse chamar o rei dos deuses de velho imbecil.
― Bem, ele é ― disse Sadie. ― Vamos lá, Rá. Venha para dentro da tenda. Eu quero ver uma coisa.
― Sem tenda ― ele murmurou. ― Zebras.
Sadie tentou agarrar seu braço, mas ele se arrastou para longe dela e mostrou sua língua. Por fim, ela pegou o cajado do faraó do meu cinto (sem pedir, é claro) e o balançou como um osso de cachorro.
― Quer o cajado, Rá? Cajado gostoso?
Rá esticou o braço fracamente. Sadie se moveu para trás e finalmente conseguiu persuadir Rá a entrar no pavilhão. Logo que chegou ao palanque vazio, uma luz brilhante explodiu ao redor dele, me cegando completamente.
― Carter, olhe! ― Sadie exclamou.
― Gostaria que eu pudesse ― Pisquei meus olhos até poder ver novamente.
Sobre o estrado estava uma cadeira de ouro fundido, um trono flamejante esculpido com hieróglifos branco brilhantes. Era exatamente igual ao que Sadie havia descrito na sua visão, mas na vida real era a peça de mobília mais bonita e assustadora que já vira.
As luzes da tripulação zumbiam em torno dele em excitação, mais brilhantes do que nunca. Rá parecia não ter notado o trono, ou ele não se importava. Seu jaleco de hospital tinha se transformado em vestes reais com um colar de ouro, mas ele ainda parecia o mesmo homem velho sem vida.
― Sente-se ― Sadie disse a ele.
― Não quero cadeira ― murmurou.
― Isso foi quase uma sentença completa ― animei. ― Talvez seja um bom sinal?
― Zebras! ― Rá agarrou o cajado de Sadie e mancou pelo convés, gritando: ― Wheee! Wheee!
― Lorde Rá! ― Bes chamou. ― Cuidado!
Considerei a ideia de amarrar o deus-sol antes que ele pudesse cair do barco, mas eu não sei como a tripulação reagiria a isso.
Então Rá resolveu nosso problema por nós. Ele se chocou contra o mastro e caiu no convés. Todos correram até ele, mas o velho deus parecia apenas atordoado. Ele babava e murmurava enquanto nós o arrastamos de volta para o pavilhão e o colocamos em seu trono. Foi complicado, pois o trono emitia calor de cerca de mil graus, e eu não queria pegar fogo (de novo); mas o calor parecia não incomodar Rá.
Nós recuamos e olhamos para o rei dos deuses, caído em sua cadeira roncando, e segurando seu cajado como um ursinho de pelúcia. Coloquei o mangual em seu colo, esperando que ele pudesse fazer a diferença – talvez complete seus poderes ou algo assim. Não tive essa sorte.
― Doninhas doentes ― Rá murmurou.
― Olhe ― Sadie disse amargamente. ― O glorioso Rá.
Bes lançou um olhar irritado.
― Isso mesmo, criança. Divirta-se. Nós deuses adoramos ter mortais rindo de nós.
A expressão de Sadie se suavizou.
― Sinto muito, Bes. Eu não quis dizer...
― Tanto faz.
Ele saiu com raiva para a proa do barco. Sadie me deu um olhar suplicante.
― Sinceramente, eu...
― Ele só está estressado ― tranquilizei-a ― como todos nós. Vai ficar tudo bem.
Sadie limpou uma lágrima de seu rosto.
― O mundo está prestes a terminar, nós estamos presos no Duat, e acha que vai ficar tudo bem?
― Nós estamos indo ver o papai. ― Eu tentei soar confiante, apesar de eu não sentir isso. Um general nunca mostra desespero. ― Ele vai nos ajudar.
Navegamos pelo Lago de Fogo até as margens estreitas e o curso das chamas voltou para a água. O brilho do lago desapareceu atrás de nós. O rio ficou mais rápido, e eu sabia que tínhamos entrado na Quinta Casa.
Pensei em meu pai, e se ele iria ou não ser realmente capaz de nos ajudar. Nos últimos meses, ele tinha estado estranhamente silencioso. Acho que não deveria ter me surpreendido, pois agora ele era o Senhor do Submundo. Provavelmente ele não conseguiu um bom sinal de celular aqui em baixo.
Ainda assim, a ideia de vê-lo no momento de minha maior falha me deixou nervoso.
Apesar de o rio estar escuro, o Trono de Fogo era quase brilhante demais para se olhar. Nosso barco projetava luz e calor ao longo das margens. Em ambas as margens do rio, aldeias fantasmas surgiram na escuridão. Almas perdidas correram para a beira do rio para nos ver passar.
Depois de tantos milênios na escuridão, eles olharam surpresos ao ver o deus-sol. Muitos tentaram gritar de alegria, mas suas bocas não faziam nenhum som. Outros estendiam seus braços em direção a Rá. Eles sorriram quando se aqueceram com a sua luz quente. Suas formas pareciam se solidificar. A cor voltou a seus rostos e suas roupas.
Quando eles desapareceram atrás de nós na escuridão, fiquei com a imagem de seus rostos agradecidos e mãos estendidas. De alguma forma, isso me fez sentir melhor. Pelo menos tínhamos mostrado a eles o sol uma última vez antes que o Caos destruísse o mundo.
Eu me perguntei se Amós e nossos amigos ainda estavam vivos, defendendo a Casa do Brooklyn contra o esquadrão de ataque de Vlad Menshikov e esperando por nós para se mostrarem. Queria poder ver Zia novamente, só para me desculpar por ter falhado com ela.
A Quinta e a Sexta Casa passaram rapidamente, embora eu não pudesse ter certeza de quanto tempo realmente passou. Nós vimos mais aldeias fantasmas, praias feitas de ossos, cavernas inteiras onde ba alados voavam ao redor em confusão, batendo nas paredes e voando ao redor da Barca Solar como mariposas em torno da luz da varanda.
Navegamos em algumas corredeiras assustadoras, embora as luzes da tripulação fizessem parecer fácil. Algumas vezes monstros como dragões emergiram do rio, mas Bes gritou “Boo!” e os monstros choramingaram e afundaram sob as águas.
Rá dormiu o tempo todo, roncando irregularmente em seu trono flamejante.
Finalmente, as águas desaceleraram e o rio se alargou. A água ficou tão calma quanto chocolate derretido.
A Barca Solar entrou em uma nova caverna, e o teto resplandecia acima com cristais azuis, refletindo a luz de Rá de modo que parecia que o sol comum estava atravessando um céu azul brilhante. Grama e palmeiras cobriam a costa. Mais longe, colinas verdes onduladas estavam pontilhadas de casas de tijolos brancos de aparência aconchegante. Um bando de gansos voava acima. O ar cheirava a jasmim e pão assado fresco.
Meu corpo todo relaxou – do jeito que você pode se sentir depois de uma longa viagem, quando você caminha para sua casa e, finalmente, desmorona em sua cama.
― Aaru ― Bes anunciou.
Ele não soava tão mal-humorado agora. As linhas de preocupação em seu rosto desapareceram.
― A vida após a morte do Egito. A Sétima Casa. Acho que você chamaria isso de Paraíso.
― Não que eu esteja me queixando ― Sadie disse. ― É muito mais agradável que os Acres Ensolarados, e sinto cheiro de comida decente, finalmente. Mas isso significa que estamos mortos?
Bes balançou a cabeça.
― Esta era uma parte da rota noturna de Rá, seu pit stop, acho que você poderia chamar assim. Ele iria sair por um tempo com seu anfitrião, comer, beber e descansar antes do último trecho da viagem, que era o mais perigoso.
― Seu anfitrião? ― perguntei, mesmo tendo certeza de quem Bes queria dizer.
Nosso barco se virou para um cais, onde um homem e uma mulher estavam esperando por nós.
Papai usava seu habitual traje marrom. Sua pele brilhava com um tom azulado. Mamãe brilhava em um branco fantasmagórico, seus pés não tocavam completamente as tábuas.
― É claro ― Bes disse. ― Esta é a Casa de Osíris.
― Sadie, Carter.
Papai nos puxou para um abraço como se nós ainda fôssemos crianças, mas nenhum de nós protestou. Ele aparentava ser sólido e humano, tão parecido com sua natureza antiga que tomou toda a minha força de vontade para não cair em lágrimas. Seu cavanhaque estava bem aparado. Sua cabeça careca cintilava. Até mesmo seu perfume cheirava igual: o cheiro fraco de âmbar.
Ele nos colocou a distância dos braços para nos examinar, seus olhos brilhando. Eu quase podia acreditar que ele ainda era um mortal comum, mas se eu olhasse de perto, podia ver uma outra camada de sua aparência, como uma imagem difusa, sobreposta: uma homem de pele azul em vestes brancas e uma coroa de faraó. Em volta de seu pescoço tinha um amuleto djed, o símbolo de Osíris.
― Papai ― falei. ― Nós falhamos.
― Shh ― ele respondeu. ― Nada disso. Este é um tempo para descansar e renovar.
Mamãe sorriu.
― Nós estivemos assistindo seu progresso. Vocês dois foram tão corajosos.
Vê-la era ainda mais difícil do que ver papai. Eu não podia abraçá-la, porque ela não tinha nenhuma substância física, e quando tocou o meu rosto, parecia nada mais que uma brisa morna.
Ela aparentava exatamente como eu me lembrava – cabelos loiros soltos na altura dos ombros, olhos azuis cheios de vida – mas ela era apenas um espírito agora. Seu vestido branco parecia ser tecido a partir de neblina. Se eu olhasse diretamente para ela, ela parecia se dissolver à luz da Barca Solar.
― Estou tão orgulhosa de vocês dois ― ela falou. ― Venha, nós preparamos um banquete.
Eu estava em um torpor quando eles nos levaram para terra firme. Bes encarregou-se de levar o deus-sol, que parecia de bom humor depois de bater a cabeça no mastro e tirar um cochilo. Rá deu a todos um sorriso desdentado e disse:
― Oh, excelente. Banquete? Zebras?
Criados fantasmas em roupas do Antigo Egito nos conduziram em direção a um pavilhão ao ar livre revestido com estátuas dos deuses em tamanho natural.
Atravessamos uma ponte sobre um fosso cheio de crocodilos albinos, o que me fez pensar em Filipe da Macedônica, e o que poderia estar acontecendo na Casa do Brooklyn. Então entrei no interior do pavilhão, e meu queixo caiu.
O banquete se espalhava em uma longa mesa de mogno – nossa antiga mesa de jantar da casa em Los Angeles. Eu até podia ver o entalhe que eu tinha esculpido na madeira com meu primeiro canivete suíço – a única vez que eu me lembro de papai realmente ter ficado bravo comigo. As cadeiras eram de aço inox com bancos de couro, assim como eu me lembrava; e quando olhei pra fora, a vista brilhou de novo, antes, as colinas verdejantes e céu da vida após a morte, agora, as paredes brancas e janelas de vidro de nossa antiga casa.
― Oh... ― Sadie disse em voz baixa.
Seus olhos estavam fixos no centro da mesa. Entre os pratos de pizza, tigelas de morangos açucarados, e qualquer outro tipo de alimento que você poderia imaginar, estava um bolo de sorvete branco e azul, o mesmo bolo que nós tínhamos explodido em seu sexto aniversário.
― Espero que você não se importe ― disse mamãe. ― Eu pensei que era uma pena você nunca ter provado. Feliz Aniversário, Sadie.
― Por favor, sentem-se ― papai abriu os braços. ― Bes, velho amigo, poderia colocar Lorde Rá na cabeceira da mesa?
Comecei a sentar na cadeira mais distante de Rá, já que eu não o queria babando em cima de mim enquanto ele mastigava sua comida, mas minha mãe disse:
― Oh, não aí, querido. Sente perto de mim. Aquela cadeira é para... outro convidado.
Ela disse as últimas duas palavras como se elas deixassem um gosto amargo na boca. Olhei em volta da mesa. Havia sete cadeiras e apenas seis de nós.
― Quem mais está por vir?
― Anúbis? ― Sadie perguntou, esperançosa.
Papai riu.
― Não é Anúbis, mas tenho certeza que ele estaria aqui, se pudesse.
O ânimo de Sadie caiu como se alguém tivesse tirado o ar dela. [Sim, Sadie, estavaóbvio.]
―Onde está ele, então? ― Ela perguntou.
Papai hesitou apenas o tempo suficiente para eu sentir seu desconforto.
― Longe. Vamos comer, sim?
Sentei-me e aceitei uma fatia de bolo de aniversário de um criado fantasmagórico. Você não pensaria que eu tivesse fome, com o fim do mundo e nossa missão fracassada, sentando na Terra dos Mortos em uma mesa de jantar do meu passado com o fantasma da minha mãe ao meu lado e meu pai com a cor de um mirtilo. Mas meu estômago não se preocupava com isso. Ele me deixou saber que eu estava vivo e precisava de comida.
O bolo era de chocolate com sorvete de baunilha. Tinha um gosto perfeito. Antes que eu percebesse, eu tinha acabado minha fatia e estava carregando meu prato com pizza de pepperoni.
As estátuas dos deuses estavam atrás de nós – Hórus, Ísis, Thot, Sobek – mantinham-se em silêncio enquanto nós comíamos.
Fora do pavilhão, as terras de Aaru se espalhavam como se a caverna fosse infinita, colinas verdejantes e campinas, rebanhos de gado gordo, campos de cereais, pomares cheios de tamareiras. Córregos cortavam os pântanos em uma colcha de retalhos de ilhas, como o Delta do Nilo, com as vilas de aparência perfeita para os mortos abençoados. Veleiros cruzavam o rio.
― Assim é como parece para os Antigos Egípcios ― papai disse, como se estivesse lendo meus pensamentos. ― Mas cada alma vê Aaru de uma maneira diferente.
― Como a nossa casa em Los Angeles? ― perguntei. ― Nossa família junta em torno de uma mesa de jantar? Isso é mesmo real?
Os olhos de papai ficaram tristes, do modo que costumavam ficar sempre que eu perguntava sobre a morte de mamãe.
― O bolo de aniversário é bom, né? ― perguntou. ― Minha pequena garota, com treze anos. Nem posso acreditar...
Sadie varreu com a mão o prato da mesa. Ele quebrou contra o chão.
― Que importa? ― ela gritou. ― O relógio de sol, os estúpidos portões, nós falhamos!
Ela escondeu seu rosto nos braços e começou a soluçar.
― Sadie ― mamãe pairou ao lado dela, como o Fantasminha Camarada. ― Está tudo bem.
― Torta de lua ― Rá falou proveitosamente, cobertura de bolo em torno de sua boca.
Ele começou a cair de sua cadeira, e Bes o empurrou de volta no lugar.
― Sadie está certa ― concordei. ― Rá está em pior forma do que imaginávamos. Mesmo se pudéssemos trazê-lo de volta ao mundo mortal, ele nunca conseguiria derrotar Apófis, a não ser que Apófis morresse de rir.
Papai franziu o cenho.
― Carter, ele ainda é Rá, faraó dos deuses. Mostre algum respeito.
― Não gosto de bolhas!
Rá deu uma pancada em um criado de luz brilhante que estava tentando limpar sua boca.
― Lorde Rá ― disse papai ― você se lembra de mim? Eu sou Osíris. Você jantava aqui na minha mesa, todas as noites, descansando antes de sua viagem em direção ao amanhecer. Você se lembra?
― Quero uma doninha ― Rá respondeu.
Sadie bateu na mesa.
― O que isso significa?
Bes pegou um punhado de coisas cobertas de chocolate – eu tinha medo de que pudessem ser gafanhotos – e jogou em sua boca.
― Nós não terminamos de ler o livro de Rá. Precisamos encontrar Khepri.
Papai acariciou seu cavanhaque.
― Sim, o deus escaravelho, a forma de Rá como o sol nascente. Talvez se vocês encontrassem Khepri, Rá possa ser inteiramente renascido. Mas vocês precisam passar pelos portões da Oitava Casa.
― Que estão fechados ― terminei ― nós teríamos que, tipo, voltar no tempo.
Bes parou de comer gafanhotos. Ele arregalou os olhos como se tivesse acabado de ter uma revelação. Ele olhou para o meu pai, incrédulo.
― Ele? Você convidou ele?
― Quem? ― perguntei. ― O que você quer dizer?
Encarei meu pai, mas ele não me olhou nos olhos.
― Papai, o que é? ― exigi. ― Há um caminho através das portas? Você pode nos teletransportar para o outro lado ou algo assim?
― Queria que eu pudesse, Carter. Mas a viagem deve ser seguida. Faz parte do renascimento de Rá. Não posso interferir nisso. No entanto, você está certo: você precisa de tempo extra. Pode haver um caminho, embora eu nunca sugeriria isso se as apostas não fossem tão altas...
― É perigoso ― alertou minha mãe. ― Eu acho que é muito perigoso.
― O que é muito perigoso? ― Sadie perguntou.
― Suponho que eu ― disse uma voz atrás de mim.
Me virei e encontrei um homem de pé com as mãos nas costas da minha cadeira. Ou ele tinha se aproximado silenciosamente e eu não o tinha ouvido, ou ele tinha se materializado a partir do ar.
A cabeça dele era raspada exceto por um rabo de cavalo preto brilhante em um lado da cabeça, como jovens do Antigo Egíto usavam. Seu terno prateado parecia ser italiano (só sei disso por que Amós e meu pai davam muita atenção para ternos). O tecido brilhava como uma mistura bizarra de seda com papel alumínio. Sua camisa era preta e sem colarinho, e vários quilos de correntes de platina estavam pendurados no pescoço. O maior pingente era um amuleto de prata em forma de lua crescente.
Quando os dedos bateram na parte de trás da minha cadeira, seus anéis e seu Rolex de platina brilharam. Se eu o tivesse visto no mundo mortal, poderia ter imaginado que ele era um jovem nativo-americano dono de um cassino bilionário. Mas aqui no Duat, com o amuleto em forma de crescente em torno do pescoço...
― Torta de lua! ― Rá gargalhou com prazer.
― Você é Khonsu ― adivinhei. ― O deus da lua.
Ele me deu um sorriso de lobo, olhando para mim como se eu fosse um aperitivo.
― Ao seu dispor ― disse ― deseja jogar uma partida?
― Você não ― Bes rosnou.
Khonsu abriu os braços num enorme abraço.
― Bes, velho amigo! Como tem passado?
― Sem “velho amigo” pra você, seu canalha.
― Estou magoado!
Khonsu sentou-se à minha direita e se inclinou para mim, conspirador.
― Pobre Bes, apostou comigo há séculos atrás, você vê. Ele queria mais tempo com Bastet. Ele apostou alguns centímetros de altura. Receio que ele tenha perdido.
― Não foi isso o que aconteceu! ― Bes rugiu.
― Cavalheiros ― papai falou em seu tom de pai severo. ― Vocês dois foram convidados à minha mesa. Eu não terei nenhuma luta.
― Absolutamente, Osíris ― Khonsu sorriu para ele. ― Estou honrado de estar aqui. E estes são seus famosos filhos? Maravilhoso! Vocês estão prontos para jogar, crianças?
― Julius, eles não entendem os riscos ― nossa mãe protestou. ― Nós não podemos deixá-los fazer isso.
― Pera aí ― Sadie disse. ― Fazer o quê, exatamente?
Khonsu estalou os dedos, e toda a comida na mesa desapareceu, substituída por um tabuleiro de prata brilhante de Senet.
― Você não ouviu sobre mim, Sadie? Ísis não te contou algumas histórias? Ou Nut? Aquela sim era uma jogadora. A deusa do céu não parou de jogar até que ela tivesse ganhado de mim cinco dias inteiros. Você sabe as chances de ganhar assim tanto tempo? Astronômica! É claro, ela está coberta de estrelas, então eu suponho que elaseja astronômica.
Khonsu riu de sua própria piada. Ele não pareceu se incomodar por ninguém ter se juntado a ele.
― Eu me lembro ― intervi ― você jogou com Nut, e ela ganhou luar suficiente para criar cinco dias extras, os Dias do Demônio. Isso permitiu que ela contornasse a ordem de Rá de que seus cinco filhos não poderiam nascer em nenhum dia do ano.
― Nozes ― Rá murmurou. ― Nozes ruins.
O deus da lua ergueu uma sobrancelha.
― Pobre de mim, Rá está com uma aparência ruim, não é? Mas sim, Carter Kane. Você está absolutamente certo. Eu sou o deus da lua, mas também tenho alguma influência sobre o tempo. Eu posso alongar ou encurtar a vida dos mortais. Até mesmo os deuses podem ser afetados pelos meus poderes. A lua é mutável, você vê. Sua luz aumenta e diminui. Você precisa de... o quê? Cerca de três horas extras? Eu posso fazer que isso saia do luar, se você e sua irmã estão dispostos a jogar por ele. Posso fazer com que as portas da Oitava Casa ainda não tenham fechado.
Eu não entendia como ele poderia fazer isso de voltar no tempo, inserir três horas extras na noite, mas pela primeira vez desde os Acres Ensolarados, senti uma pequena centelha de esperança.
― Se você pode ajudar, porque simplesmente não nos dá o tempo extra? O destino do mundo está em jogo.
Khonsu riu.
― Essa é boa! Te dar tempo! Não, sério. Se eu começasse a dar algo tão valioso, o Maat desabaria. Além disso, você não pode jogar Senet sem apostar. Bes pode te dizer isso.
Bes cuspiu uma perna de gafanhoto de chocolate de sua boca.
― Não faça isso, Carter. Você sabe o que eles diziam sobre Khonsu nos velhos tempos? Algumas das pirâmides tem um poema sobre ele esculpidas nas pedras. É chamado de “Hino Canibal”. Por um preço, Khonsu ajudaria o faraó a matar qualquer deus que o estivesse incomodando. Khonsu iria devorar sua alma e ganhar sua força.
O deus da lua revirou os olhos.
― História Antiga, Bes! Eu não tenho devorado uma alma desde... que mês é esse? Março? De qualquer forma, estou completamente adaptado a este mundo moderno. Eu sou muito civilizado agora. Você deveria ver minha cobertura no Luxor em Las Vegas. Quero dizer, Obrigado! A América tem uma excelente civilização!
Ele sorriu pra mim, piscando os olhos de prata como de um tubarão.
― Então, o que você me diz, Carter? Sadie? Joguem comigo no Senet. Três peças para mim, três para vocês. Vocês vão precisar de três horas de luar, então vão precisar de uma pessoa adicional para participar da aposta. Para cada peça que sua equipe conseguir mover para fora do tabuleiro, vou conceder-lhes uma hora extra. Se ganharem, são três horas extras... apenas o suficiente para passar os portões da Oitava Casa.
― E se nós perdermos? ― perguntei.
― Ah... você sabe ― Khonsu acenou com a mão como se isso fosse um detalhe técnico chato. ― Para cada peça que eu mover para fora do tabuleiro, vou pegar um ren de um de vocês.
Sadie sentou mais a frente.
― Você vai levar nossos nomes secretos... como, nós temos de compartilhá-los com você?
― Compartilhar... ― Khonsu acariciou seu rabo de cavalo, como se tentando lembrar o significado dessa palavra. ― Não, não compartilhar. Eu vou devorar seu ren, você vê.
― Apagar parte de nossas almas ― disse Sadie. ― As memórias, a nossa identidade.
O deus da lua encolheu os ombros.
― O lado bom, você não iria morrer. Você irá apenas...
― Se transformar em um vegetal ― Sadie adivinhou. ― Como Rá, ali.
― Não quero vegetais ― Rá resmungou, irritado.
Ele tentou mastigar a camisa de Bes, mas o deus anão se distanciou.
― Três horas ― ele disse. ― Apostadas contra três almas.
― Carter, Sadie, vocês não tem que fazer isso ― disse mamãe. ― Nós não esperamos que vocês assumam esse risco.
Eu a tinha visto tantas vezes em fotos e em minhas lembranças, mas pela primeira vez, realmente me surpreendeu o quanto ela se parecia com Sadie – ou o quanto Sadie estava começando a ficar parecida com ela. Ambas tinham a mesma determinação de fogo em seus olhos. Ambas inclinavam o queixo para cima quando estavam esperando por uma luta. E as duas não eram muito boas em esconder seus sentimentos.
Eu poderia dizer pela voz trêmula da mamãe que ela compreendeu o que tinha que acontecer. Ela estava nos dizendo que nós tínhamos opções, mas ela sabia muito bem que não tínhamos. Olhei Sadie, e chegamos a um acordo silencioso.
― Mãe, tudo bem ― falei. ― Você deu sua vida para fechar a prisão de Apófis. Como podemos desistir agora?
Khonsu esfregou as mãos.
― Ah, sim, a prisão de Apófis! Seu amigo Menshikov está lá agora, libertando as correntes da Serpente. Tenho tantas apostas sobre o que vai acontecer! Vocês vão chegar lá a tempo de detê-lo? Vocês vão trazer Rá de volta ao mundo? Vocês derrotarão Menshikov? Eu estou dando um contra cem sobre isso!
Mamãe se virou desesperadamente para meu pai.
― Julius, diga a eles! É muito perigoso.
Meu pai ainda estava segurando um prato com bolo de aniversário meio-comido. Ele olhou para o sorvete derretendo como se fosse a coisa mais triste do mundo.
― Carter e Sadie ― disse ele, finalmente ― eu trouxe Khonsu aqui para que vocês tivessem de escolher. Mas o que quer que vocês façam, eu ainda terei orgulho de vocês dois. Se o mundo acabar hoje à noite, isso não vai mudar.
Ele encontrou meus olhos, e eu pude ver o quanto o machucava pensar em nos perder. No último Natal, no British Museum, ele tinha sacrificado sua vida para libertar Osíris e restaurar a balança no Duat. Tinha deixado Sadie e eu sozinhos, e eu tinha ficado ressentido com ele por um longo tempo por isso. Agora percebi como era estar em sua posição. Ele estava disposto a desistir de tudo, até mesmo de sua vida, por um propósito maior.
― Eu entendo, pai. Somos Kanes. Nós não fugimos de escolhas difíceis.
Ele não respondeu, mas balançou a cabeça lentamente. Seus olhos ardiam com um orgulho feroz.
― Pela primeira vez ― Sadie falou ― Carter está certo. Khonsu, vamos jogar seu maldito jogo.
― Excelente! ― Khonsu exclamou. ― São duas almas. Duas horas pra ganhar. Ah, mas você vai precisar de três horas para atravessar as portas na hora certa, não vai? Humm. Receio que não possam usar Rá. Ele não está em seu juízo perfeito. Sua mãe já está morta. Seu pai é o juiz do mundo dos mortos, então ele está desclassificado de apostar a alma...
― Eu vou fazer isso ― Bes anunciou.
Seu rosto estava triste, mas determinado.
― Velho amigo! ― Khonsu se expressou. ― Estou encantado.
― Quer saber, deus da lua? ― Bes disse. ― Eu não gosto disso, mas vou fazê-lo.
― Bes ― chamei ― você já fez o bastante por nós. Bastet nunca esperaria que você...
― Eu não estou fazendo isso pela Bastet! ― ele rosnou. Então ele respirou fundo. ― Olhe, vocês, crianças, são o que importa. Nos últimos dois dias, pela primeira vez em anos, me senti querido de novo. Importante. Não como uma atração secundária. Se as coisas forem mal, apenas digam a Taueret... ― ele pigarreou e deu a Sadie um olhar significativo. ― Diga a ela que eu tentei voltar o relógio.
― Oh, Bes.
Sadie se levantou e correu em volta da mesa. Ela abraçou o deus anão e beijou sua bochecha.
― Tudo bem, tudo bem ― ele murmurou. ― Não vá ser sentimental comigo. Vamos jogar essa partida.
― Tempo é dinheiro ― Khonsu concordou.
Nossos pais se levantaram.
― Nós não podemos ficar pra isso ― papai disse ― mas, crianças...
Ele não parecia saber como concluir o pensamento. Boa sorte provavelmente era muito clichê. Eu podia ver a culpa e a preocupação em seus olhos, mas ele estava se esforçando para não mostrá-las. Um bom general, Hórus diria.
― Nós amamos vocês ― nossa mãe finalizou. ― Vocês vão prevalecer.
Com isso, nossos pais viraram névoa e desapareceram. O lado de fora do pavilhão escureceu, como um cenário. O jogo Senet começou a brilhar mais.
― Brilhante ― Rá disse.
― Três peças azuis para vocês ― Khonsu disse. ― Três peças prateadas para mim. Agora, quem está com sorte?

***

O jogo começou bem. Sadie tinha habilidade para jogar as varetas. Bes tinha milhares de anos de experiência no jogo. E eu tinha o trabalho de mover as peças e ter certeza de que Rá não iria comê-las. No começo não era óbvio quem estava ganhando. Nós apenas jogamos e movemos, e era difícil acreditar que estávamos jogando pelas nossas almas, ou nomes verdadeiros, ou o que quer que seja que você queira chamá-los.
Fizemos uma das peças de Khonsu voltar ao começo, mas ele não parecia chateado. Ele parecia encantado com quase tudo.
― Não te incomoda? ― perguntei em certo momento. ― Devorar almas inocentes?
― Na verdade não ― ele poliu seu amuleto de crescente. ― Porque deveria?
― Mas nós estamos tentando salvar o mundo ― Sadie disse ― Maat, os deuses... tudo. Você não se importa se o mundo se desfizer em Caos?
― Oh, isso não seria tão ruim ― Khonsu respondeu. ― A mudança vem em fases, Maat e Caos, Caos e Maat. Sendo o deus da lua, eu aprecio a variação. Agora, Rá, coitado, ele está sempre preso a uma rotina. Mesmo caminho todas as noites. Tão previsível e chato. Se aposentar foi a coisa mais interessante que ele já fez. Se Apófis assumir e engolir o sol, bem... suponho que a lua ainda estará lá.
― Você é louco ― Sadie replicou.
― Há! Aposto cinco minutos extras de luar que sou perfeitamente são.
― Esqueça. Só jogue.
Khonsu jogou as varetas. A má notícia: ele fez um progresso alarmante. Ele tirou um cinco e tinha uma de suas peças quase no fim do tabuleiro. A boa notícia: a peça ficou presa na Casa das Três Verdades, o que significava que só tirando um três para movê-la de lá.
Bes estudou o tabuleiro atentamente. Ele não pareceu gostar do que viu. Tivemos uma peça de volta ao início e duas peças na última fileira do tabuleiro.
― Cuidado agora ― advertiu Khonsu. ― Aqui é onde fica interessante.
Sadie tirou um quatro, o que nos deu duas opções. A nossa peça poderia sair do tabuleiro. Ou nossa segunda peça poderia bater na peça de Khonsu na Casa das Três Verdades e enviá-la de volta ao começo.
― Bata nele ― eu disse. ― É mais seguro.
Bes balançou a cabeça.
― E então nós ficamos presos na Casa das Três Verdades. As chances de ele tirar um três são mínimas. Tire sua primeira peça. Dessa forma, pelo menos uma hora extra estará segura.
― Mas uma hora extra não vai mudar nada ― Sadie respondeu.
Khonsu parecia estar gostando de nossa indecisão. Ele tomou um gole de vinho de uma taça prateada e sorriu. Enquanto isso, Rá se entretia tentando pegar as pontas de seu mangual.
― Ai, ai, ai.
Minha testa formava gotas de suor. Como eu estava suando em um jogo de tabuleiro?
― Bes, você tem certeza?
― É sua melhor aposta ― ele disse.
― Melhor, Bes? ― Khonsu riu. ― Legal!
Eu queria bater no deus da lua, mas mantive minha boca fechada. Movi nossa primeira peça para fora do jogo.
― Parabéns! ― Khonsu felicitou. ― Devo-lhes uma hora de luar. Agora é minha vez.
Ele jogou as varetas. Elas bateram na mesa de jantar, e eu me senti como se alguém tivesse cortado um cabo de elevador em meu peito, mergulhando meu coração para baixo em um eixo.
Khonsu tinha tirado um três.
― Oops!
Rá largou seu mangual. Khonsu moveu sua peça para fora do jogo.
― Oh, que pena. Agora, o ren de quem eu coleto primeiro?
― Não, por favor! ― Sadie exclamou. ― Volte atrás. Pegue a hora que nos deve ao invés disso.
― Essas não são as regras ― criticou Khonsu.
Olhei para o entalhe que eu tinha feito na mesa quando tinha oito anos. Eu sabia que essa memória estava prestes a desaparecer, como todas as minhas outras. Se eu desse meu ren para Khonsu, pelo menos Sadie ainda poderia lançar a parte final da magia. Ela iria precisar de Bes para protegê-la e aconselhá-la. Eu era o único dispensável. Eu comecei a dizer:
― Eu...
― Eu ― disse Bes. ― O movimento foi ideia minha.
― Bes, não! ― Sadie exclamou.
O anão se levantou. Ele plantou os pés e enrolou os punhos, como se estivesse se preparando para soltar um BOO. Eu queria que ele fizesse isso e assustasse Khonsu, mas ele olhou para nós com resignação.
― Era parte da estratégia, crianças.
― O quê? ― perguntei. ― Você planejou isso?
Ele tirou sua camisa havaiana e dobrou-a cuidadosamente, colocando-a sobre a mesa.
― O mais importante é colocar todas as três peças para fora do tabuleiro, e não perder mais nenhuma. Essa era a única forma de fazer. Vocês vão vencer facilmente agora. Às vezes você tem que perder uma peça para ganhar um jogo.
― Tão verdadeiro ― Khonsu disse. ― Que encantador! O ren de um deus. Está pronto, Bes?
― Bes, não ― implorei. ― Isso não está certo.
Ele fez uma careta pra mim.
― Ei, garoto, você estava disposto a se sacrificar. Está dizendo que eu não sou tão corajoso quanto um mágico qualquer? Além disso, eu sou um deus. Quem sabe? Às vezes a gente volta. Agora, ganhe o jogo e saia daqui. Chute Menshikov no joelho por mim.
Eu tentei pensar em algo para dizer, algo que poderia parar isso, mas Bes se manifestou antes:
― Eu estou pronto.
Khonsu fechou seus olhos e inspirou profundamente, como se estivesse desfrutando de um pouco de ar fresco da montanha. A forma de Bes tremeluziu. Ele se dissolveu em uma montagem de imagens ultrarrápidas – uma trupe de anões dançando em um templo à luz da fogueira; uma multidão de egípcios festejando, levando Bes e Bastet sobre seus ombros; Bes e Taueret em togas em alguma villa Romana, comendo uvas e rindo juntos em um sofá; Bes vestido como George Washington em uma peruca empoada e terno de seda, fazendo piruetas em frente de alguns casacas-vermelhas britânicos; Bes no uniforme verde-oliva da U.S Marine, assustando um demônio em um uniforme nazista na Segunda Guerra Mundial.
Quando sua silhueta se dissipou, imagens mais recentes tremeluziram: Bes em um uniforme de chofer com uma placa que dizia Kane; Bes nos puxando para fora de nossa limusine afundando no Mediterrâneo; Bes lançando magias em mim em Alexandria quando fui envenenado, tentando desesperadamente me curar; Bes e eu na traseira da caminhonete dos Beduínos, compartilhando carne de cabra e água com gosto de vaselina quando nós viajamos ao longo da margem do Nilo. Sua última lembrança: duas crianças, Sadie e eu, olhando para ele com amor e preocupação. Então a imagem desvaneceu e Bes se foi. Até sua camisa Havaiana tinha desaparecido.
― Você tirou tudo dele! ― gritei. ― Seu corpo, tudo. Esse não era o acordo!
Khonsu abriu seus olhos e suspirou profundamente.
― Isso foi amável. ― Ele sorriu para nós como se nada tivesse acontecido. ― Acredito que seja a sua vez.
Seus olhos de prata estavam frios e luminosos, e eu tive a sensação de que pelo resto da minha vida, eu odiaria olhar para a lua. Talvez fosse raiva, ou a estratégia de Bes, ou talvez nós apenas tivéssemos sorte, mas o resto do jogo Sadie e eu acabamos com Khonsu facilmente. Nós batemos em suas peças em cada oportunidade. Dentro de cinco minutos, a nossa última peça estava fora do tabuleiro.
Khonsu estendeu suas mãos.
― Bem jogado! As três horas são suas. Se vocês se apressarem, poderão passar pelos portões da Oitava Casa.
― Eu te odeio ― Sadie disse. Foi a primeira vez que ela tinha falado desde que Bes desapareceu. ― Você é frio, calculista, horrível...
― E sou tudo o que você precisava ― Khonsu tirou seu Rolex de platina e voltou o tempo: uma, duas, três horas. Tudo ao nosso redor, as estátuas dos deuses tremeluziram e saltaram como se o mundo estivesse sendo girado ao contrário.
― Agora ― Khonsu disse ― vocês gostariam de gastar seu tempo ganho arduamente reclamando? Ou você quer salvar esse pobre, velho e tolo rei?
― Zebras? ― Rá murmurou, esperançoso.
― Onde estão nossos pais? ― perguntei. ― Pelo menos nos deixe dizer adeus.
Khonsu balançou a cabeça.
― O tempo é precioso, Carter Kane. Você já deveria ter aprendido essa lição. É melhor eu te mandar para o seu caminho; mas se vocês quiserem jogar comigo novamente, por segundos, horas, até dias, é só me avisar. Seu crédito é bom.
Eu não pude aguentar. Esbofeteei Khonsu, mas o deus da lua desapareceu. O pavilhão inteiro desapareceu, e Sadie e eu estávamos de pé no convés da Barca Solar novamente, descendo o rio escuro.

***

As luzes da tripulação zumbiam em torno de nós, manejando os remos e aparando a vela. Rá sentou em seu trono de fogo, brincando com seu cajado e mangual como se fossem marionetes numa conversa imaginária.
Diante de nós, um par de enormes portas de pedra surgiu da escuridão. Oito cobras enormes foram esculpidas na rocha, quatro de cada lado. Os portões estavam fechando lentamente, mas a Barca Solar deslizou para dentro na hora, e nós passamos para dentro da Oitava Casa.
Eu tenho que dizer, a Casa dos Desafios não pareceu muito desafiadora. Lutamos contra monstros, sim. Serpentes elevaram-se do rio. Demônios surgiram. Navios cheios de fantasmas tentaram embarcar na Barca Solar. Destruímos todos. Eu estava tão irritado, tão devastado com a perda de Bes, que imaginei que cada ameaça era o deus da lua Khonsu. Nossos inimigos não tiveram chance.
Sadie lançou magias que eu nunca a tinha visto usar. Ela invocou folhas de gelo que provavelmente acompanharam suas emoções, deixando vários demônios icebergs em nosso rastro. Ela transformou um navio inteiro cheio de fantasmas de piratas em bolhas com o formato da cabeça de Khonsu, então os vaporizou em uma explosão nuclear em miniatura.
Enquanto isso, Rá brincava alegremente com seus brinquedos, enquanto os criados de luz se agitavam pelo convés, aparentemente sentindo que nossa viagem estava atingindo uma fase crítica. A Nona, Décima e Décima Primeira Casa passaram em um borrão.
De vez em quando eu ouvia um espirro de água atrás de nós, como o remo de outro barco. Olhei pra trás, me perguntando se Menshikov de algum modo tinha pegado nosso rastro de novo, mas nada vi. Se alguma coisa estivesse nos seguindo, sabia avançar sem se mostrar.
Da última vez, ouvi um barulho à frente, como outra cachoeira ou um trecho de corredeiras. As órbitas de luz trabalharam arduamente para descer a vela, empurrando os remos, mas continuamos ganhando velocidade. Passamos sob uma arcada baixa esculpida com a forma da deusa Nut, seus membros estrelados se estendiam protetoramente e seu rosto sorrindo em acolhimento. Tive a sensação de que estávamos entrando na Décima Segunda Casa, a última parte do Duat antes de sairmos para um novo amanhecer.
Eu esperava ver uma luz no fim do túnel, literalmente, mas ao invés disso, nosso caminho tinha sido sabotado. Eu podia ver aonde o rio supostamente iria. O túnel continuava em frente, lentamente em curvas saindo do Duat. Eu podia até mesmo sentir cheiro de ar fresco – o cheiro do mundo mortal. Mas o fim do túnel tinha sido drenado em um campo de lama. Diante de nós, o rio mergulhava em um buraco enorme, como se um asteroide tivesse feito um buraco na terra e desviado a água para baixo. Nós estávamos correndo em direção à queda.
― Podemos pular ― Sadie falou. ― Abandonar o navio...
Mas acho que chegamos à mesma conclusão. Precisávamos da Barca Solar. Precisávamos de Rá. Teríamos que seguir o curso do rio, onde quer que ele levasse.
― É uma armadilha ― Sadie disse. ― Trabalho de Apófis.
― Eu sei ― disse. ― Vamos dizer a ele que não gostamos de seu trabalho.
Nós nos agarramos ao mastro enquanto o navio afundava no redemoinho. Pareceu como se tivéssemos caído para sempre. Sabe a sensação quando você mergulha fundo em um poço profundo, como se seu nariz e ouvidos fossem explodir, e seus olhos fossem saltar da cabeça? Imagine essa sensação uma centena de vezes pior.
Nós estávamos afundando no Duat mais profundo do que já tínhamos ido – mais profundo que qualquer mortal era suposto a ir. As moléculas do meu corpo pareciam estar aquecendo, zumbindo tão rápido que elas poderiam se separar.
Nós não nos espatifamos. Não batemos no fundo. A Barca simplesmente mudou de direção, como em vez de para baixo virasse para o lado, e navegamos por uma caverna que brilhava com uma luz vermelha desagradável.
A pressão mágica era tão intensa que meus ouvidos soaram. Eu estava enjoado e mal conseguia pensar direito, mas reconheci o litoral à frente: uma praia feita de milhões de cascas de escaravelhos mortos, mudando e surgindo como se uma força embaixo – uma maciça forma de serpente lutando para se libertar.
Dezenas de demônios estavam vasculhando as cascas de escaravelhos com pás. E de pé na praia, esperando pacientemente por nós, estava Vlad Menshikov, suas roupas queimadas e enfumaçadas, seu bastão brilhando com fogo verde.
― Bem-vindas, crianças ― ele gritou através da água. ― Venham. Juntem-se a mim para o fim do mundo.

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