segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

A Pirâmide Vermelha - Sadie

Capítulo 31 - Eu entrego um bilhete de amor

FICO FELIZ POR CARTER TER CONTADO ESSE ÚLTIMO TRECHO – em parte porque eu estava inconsciente quando aconteceu, em parte porque não consigo falar sobre o que Bastet fez sem me desmanchar. Bem, mais tarde falo sobre isso de novo.
Acordei com a sensação de que alguém tinha inflado minha cabeça. Meus olhos não viam a mesma coisa. À esquerda, vi um traseiro de babuíno, à direita, meu tio Amós, que estava sumido havia muito tempo. Naturalmente, decidi me concentrar no lado direito.
— Amós?
Ele pôs uma compressa fria em minha testa.
— Descanse, criança. Você sofreu uma concussão.
Pelo menos nisso eu podia acreditar.
Quando meus olhos começaram a recuperar o foco, vi que estávamos ao ar livre, sob uma noite estrelada. Eu estava deitada em um cobertor sobre o que parecia ser areia fofa. Khufu estava em pé próximo a mim, seu lado rosado um pouco perto demais de meu rosto. Ele mexia o conteúdo de uma panela em uma fogueira, e o que estava cozinhando tinha cheiro de piche queimado. Carter estava sentado ali perto, em uma duna, e parecia triste e cansado segurando...
Era Muffin que eu via em seu colo?
Amós parecia o mesmo desde a última vez que o tínhamos visto, havia muito tempo. Ele vestia seu terno azul, com o casaco e o chapéu combinando. Os cabelos longos estavam trançados e os óculos redondos brilhavam à luz do fogo. Parecia descansado e cheio de energia – não como alguém que estivera aprisionado por Set.
— Como você...
— Como escapei de Set? — A expressão dele ficou sombria. — Fui tolo quando decidi ir atrás dele, Sadie. Não tinha ideia de quanto ele se tornaria poderoso. Seu espírito está ligado à pirâmide vermelha.
— Então... ele não tem um hospedeiro humano?
Amós balançou a cabeça.
— Ele não precisa de hospedeiro, não enquanto tiver a pirâmide. E quanto mais se aproxima o término da construção, mais forte ele fica. Estive no covil de Set sob a montanha e caí numa armadilha. Envergonho-me por reconhecer que ele me capturou sem luta.
Ele apontou para o terno, mostrando como estava em perfeitas condições.
— Nem um arranhão. Só... bam. Congelei como uma estátua. Set me expôs do lado de fora de sua pirâmide, como um troféu, e deixou seus demônios rirem de mim quando passavam por ali.
— Você viu papai? — perguntei.
Os ombros dele caíram.
— Ouvi os demônios conversando. O caixão está dentro da pirâmide. Eles planejam usar o poder de Osíris para aumentar a tempestade. Quando Set a desencadear ao nascer do sol, e vai ser uma explosão fabulosa, Osíris e seu pai serão destruídos. Osíris será exilado para as profundezas do Duat, tão fundo que não poderá voltar.
Minha cabeça começou a latejar. Eu não podia acreditar que tínhamos tão pouco tempo, e se Amós não conseguira salvar meu pai, como Carter e eu faríamos isso?
— Mas você escapou — observei, tentando me agarrar a pequenas esperanças. — Então, deve haver algum ponto fraco na defesa de Set ou...
— A magia que me congelou começou a perder força com o tempo. Concentrei minha energia e trabalhei duro para me libertar. Levei horas, mas, finalmente, consegui. Saí de lá por volta do meio-dia, quando os demônios dormiam. Foi muito fácil.
— Não parece fácil.
Amós balançou a cabeça, visivelmente perturbado.
— Set me deixou fugir. Não sei por que, mas eu não devia estar vivo. É algum truque. Temo... — Ele mudou de ideia e desistiu do que ia dizer. — De qualquer maneira, meu primeiro pensamento foi achar vocês, por isso invoquei meu barco.
Ele apontou para trás. Consegui levantar a cabeça e vi que estávamos em um deserto estranho, de dunas brancas que se estendiam até onde minha visão podia alcançar. A areia sob meus dedos era tão fina e branca que poderia ser açúcar. O barco de Amós, o mesmo que tinha nos transportado do Tâmisa ao Brooklyn, estava atracado no alto de uma duna próxima, inclinado de qualquer jeito, como se tivesse sido jogado ali.
— Há um armário de suprimentos a bordo — informou. — Se quiserem roupas limpas.
— Mas onde estamos?
— Areias Brancas — Carter falou. — Novo México. É um território do governo para testes com mísseis. Amós disse que ninguém viria nos procurar aqui, e viemos para que você tivesse algum tempo para se recuperar. São sete da noite, mais ou menos, ainda dia 28. Doze horas até Set... você sabe.
— Mas...
Minha cabeça estava cheia de perguntas. Minha última lembrança era estar na margem de um rio, conversando com Néftis. A voz dela parecia vir do outro lado do mundo. Ela tinha falado em voz baixa através da correnteza – muito difícil de entender, mas insistente. Disse que estava abrigada muito longe, em um hospedeiro adormecido, o que eu não conseguia entender. Não podia aparecer pessoalmente, mas prometeu que me mandaria uma mensagem. Depois disso, a água começou a ferver.
— Fomos atacados. — Carter afagava a cabeça de Muffin e, finalmente, notei que o amuleto, o amuleto de Bastet, tinha desaparecido. — Sadie, tenho más notícias.
Ele me contou o que havia acontecido e eu fechei os olhos. Comecei a chorar. Constrangedor, eu sei, mas não podia me conter. Nos últimos dias, eu tinha perdido tudo: minha casa, minha vida comum, meu pai. Quase fora morta uma dúzia de vezes. A morte de minha mãe, que eu nunca tinha conseguido superar, doía agora como uma ferida aberta. E de repente Bastet também havia partido?
Quando Anúbis me interrogou no mundo inferior, ele perguntou o que eu sacrificaria para salvar o mundo. O que eu ainda não tinha sacrificado?, senti vontade de gritar. O que ainda me resta?
Carter se aproximou e me entregou Muffin, que ronronou em meus braços. Mas não era a mesma coisa. Não era Bastet.
— Ela vai voltar, não vai? — Olhei para Amós, como se suplicasse. — Quer dizer, ela é imortal, certo?
Amós ajeitou o chapéu na cabeça.
— Sadie... não sei. Tudo indica que ela se sacrificou para derrotar Sobek. Bastet o mandou de volta ao Duat usando a própria força vital. Poupou Muffin, o hospedeiro, provavelmente utilizando a pouca energia que ainda lhe restava. Se isso for verdade, vai ser muito difícil que volte. Talvez um dia, em alguns séculos...
— Não, não em alguns séculos! Não posso... — Minha voz se desfez num soluço.
Carter tocou meu ombro e vi que ele entendia. Não podíamos perder mais nada. Simplesmente não podíamos.
— Descanse agora — disse Amós. — Podemos dispor de mais uma hora, mas depois teremos de partir.
Khufu me ofereceu uma tigela de seu preparado. O líquido com pedaços desconhecidos parecia uma sopa muito suspeita. Olhei para Amós, esperando que me dissesse o que fazer, e ele assentiu, encorajando-me a aceitar a tigela.
Como não bastasse tudo o que já havia acontecido, agora eu tinha de tomar remédio de babuíno.
Bebi o caldo, que tinha um sabor tão ruim quanto o cheiro, e minhas pálpebras começaram imediatamente a pesar. Fechei os olhos e dormi.
E quando eu já pensava que tinha entendido aquele negócio de alma que deixa o corpo, a minha decidiu contrariar as regras. Bem, é minha alma, afinal, então acho que isso faz sentido.
Quando meu ba deixou o corpo, manteve a forma humana – que é melhor que a aparência galinácea – mas continuou crescendo e crescendo, até eu me tornar um gigante sobre Areias Brancas. Muita gente já havia falado que eu tinha muito espírito (e, normalmente, não era um elogio), mas aquilo era absurdo. Meu ba era alto como o Monumento a Washington.
Ao sul, muitos quilômetros de deserto adiante, o vapor se erguia do rio Grande – o local da batalha na qual Bastet e Sobek tinham perecido. Mesmo alta como estava, eu não deveria ser capaz de ver toda a paisagem até o Texas, especialmente à noite, mas eu via. Ao norte, ainda mais longe, enxerguei um brilho vermelho distante e soube que era a aura de Set. Seu poder aumentava com a pirâmide prestes a ficar pronta.
Olhei para baixo. Ao lado de meu pé havia uma coleção de pontinhos: nosso acampamento. Miniaturas de Carter, Amós e Khufu estavam sentadas em torno de uma fogueira e pareciam conversar. O barco de Amós não era maior que meu dedinho do pé. Meu corpo adormecido continuava no cobertor, tão pequeno que eu poderia ter me esmagado com um passo em falso.
Eu era enorme, e o mundo era pequeno.
— É assim que os deuses enxergam as coisas — disse uma voz.
Olhei em volta, mas nada vi além da vasta extensão de dunas brancas. Depois, à minha frente, as dunas se moveram. Pensei que fosse o vento, até que uma duna inteira rolou para o lado como uma onda. Outra se moveu, e mais uma. Percebi que estava olhando para uma forma humana: um homem enorme deitado em posição fetal. Ele se levantou, espalhando areia branca em todas as direções. Eu me ajoelhei e uni as mãos em concha sobre meus companheiros, evitando que fossem soterrados. Era estranho, mas eles nem pareciam notar, quase como se a agitação não fosse mais que uma garoa.
O homem se levantou, e era pelo menos uma cabeça mais alto do que minha forma gigantesca. Seu corpo era de areia, que caía como uma cortina. Os braços e o peito pareciam cataratas de açúcar. A areia se moveu em seu rosto até formar um sorriso vago.
— Sadie Kane — disse ele. — Estava esperando por você.
— Geb. — Não me pergunte como, mas eu soube imediatamente que aquele era o deus da terra. Talvez o corpo de areia fosse uma dica. — Trouxe algo para você.
Não fazia sentido que meu ba estivesse com o envelope, mas levei a mão ao bolso de minha forma fantasmagórica e tirei o bilhete de Nut.
— Sua esposa sente sua falta — eu disse.
Geb pegou o bilhete com cautela. Aproximou-o do rosto e torceu o nariz. Depois, abriu o envelope. Em vez de uma carta, o que surgiu foram fogos de artifício. Uma nova constelação brilhava no céu acima de nós: o rosto de Nut, formado por milhares de estrelas. O vento ganhou força e desfez a imagem, mas Geb suspirou satisfeito.
Ele fechou o envelope e o guardou dentro do peito de areia, como se existisse um bolso onde deveria estar seu coração.
— Sou muito grato a você, Sadie Kane — disse Geb. — Há muitos milênios não via o rosto de minha adorada. Faça qualquer pedido que a terra possa oferecer, e seu desejo será atendido.
— Salve meu pai — eu disse imediatamente.
O rosto de Geb expressou surpresa.
— Ah, que filha leal! Ísis poderia aprender um pouco com você. Mas não posso atendê-la. O caminho de seu pai está ligado ao de Osíris, e problemas entre os deuses não podem ser resolvidos pela terra.
— Então talvez você possa fazer desmoronar a montanha de Set e destruir a pirâmide?
A gargalhada de Geb parecia um terremoto.
— Não posso interferir tão diretamente no que há entre meus filhos. Set também é um deles.
Quase bati o pé numa reação frustrada. Depois, lembrei que eu era um gigante e poderia esmagar todo o acampamento. Um ba seria capaz disso? Melhor nem tentar.
— Bem, seus favores não são muito úteis, então.
Geb deu de ombros. Soltando do corpo algumas toneladas de areia.
— Talvez eu possa dar conselhos que a ajudem a conseguir o que almeja. Vá para o lugar das cruzes.
— E onde fica isso?
— Perto. E você tem razão, Sadie Kane. Já sofreu perdas demais. Sua família padeceu. Sei como é isso. Mas, lembre-se, um pai é capaz de tudo para salvar um filho. Abri mão de minha felicidade, de minha esposa, e fui amaldiçoado por Rá para que meus filhos pudessem nascer. — Ele olhou para o céu com evidente tristeza. — E embora sinta mais e mais falta de minha amada a cada milênio, sei que nenhum de nós teria mudado sua escolha. Tenho cinco filhos que amo.
— Até Set? — perguntei, incrédula. — Ele vai destruir milhões de pessoas.
— Set é mais do que aparenta ser. Ele é nossa carne e nosso sangue.
— Não o meu.
— Não? — Geb mudou de posição, abaixando-se. Pensei que estivesse se encolhendo, mas logo percebi que ele se desfazia em dunas. — Pense bem, Sadie Kane, e aja com cuidado. O perigo a espera no lugar das cruzes, mas você também vai encontrar lá aquilo de que mais precisa.
— Será que poderia ser um pouco mais vago? — resmunguei.
Mas Geb tinha desaparecido, deixando para trás apenas uma duna mais alta que todas as outras. E meu ba afundou em meu corpo.

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