segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Trono de Fogo - Sadie

Capítulo 19 - A vingança de Alceu, o deu Alce

Devo mencionar que Carter estava usando uma saia.
[Há! Você não está segurando o microfone. É a minha vez.]
Ele se esqueceu de dizer isso, mas assim que entramos no Duat, a nossa aparência mudou, e nós nos vimos usando antigos trajes egípcios. Eles pareciam muito bons em mim. Meu vestido de seda branco brilhava. Meus braços estavam enfeitados com anéis e pulseiras de ouro. É verdade, o colar de joias era um pouco pesado, como um daqueles aventais de chumbo que você pode usar para fazer uma radiografia no dentista, e meu cabelo estava trançado com spray de cabelo suficiente para petrificar um deus principal. Mas por outro lado, eu tenho certeza que eu parecia bastante atraente.
Carter, por outro lado, estava vestido com uma saia masculina, uma simples capa de linho, com seu cajado e mangual pendurados em uma espécie de cinto de utilidades de coisas em volta de sua cintura. O peito dele estava vazio exceto por um colar de ouro no pescoço, como o meu. Seus olhos estavam delineados com kohl, e ele não usava sapatos. Para os antigos egípcios, tenho certeza que ele teria parecido nobre e guerreiro, um belo exemplar da masculinidade. [Você viu? Eu consegui dizer isso sem rir.]
E acho que Carter não estava o pior – parecia um cara sem camisa, mas isso não significa que eu queria uma aventura pelo submundo com um irmão que estava vestindo nada além de joias e uma toalha de praia.
À medida que subiu no barco do deus sol, Carter ganhou imediatamente uma lasca em seu pé.
― Por que você está descalço? ― perguntei.
― Não foi minha ideia!
Ele estremeceu quando arrancou um pedaço do tamanho de um palito de dente entre seus dedos.
― Acho que é porque antigos guerreiros lutavam descalços. Sandálias ficavam muito escorregadias de suor e sangue, e tudo mais.
― E a saia?
― Vamos embora, tudo bem?
Isso provou ser mais fácil falar do que fazer.
O barco se afastava do cais, em seguida, ficou preso em um remanso de alguns metros rio abaixo. Nós começamos a girar em círculos.
― Uma pequena pergunta. Você sabe alguma coisa sobre barcos?
― Nada ― admitiu Carter.
Nossas velas rasgadas eram tão úteis quanto uma canoa furada. Os remos estavam quebrados ou arrastando inutilmente na água, e eles pareciam bastante pesados. Eu não via como nós dois poderíamos remar um barco feito para uma tripulação de vinte mesmo se o rio estivesse calmo. Em nossa última viagem através do Duat, o passeio tinha sido mais parecido com uma montanha russa.
― E quanto àquelas bolas de luz ― perguntei. ― Gostaria de ter a tripulação que tínhamos no Rainha Egípcia.
― Você pode chamar algumas?
― Certo ― eu resmunguei. ―Atira as questões difíceis pra mim.
Olhei ao redor do barco, na esperança de detectar um botão que dizia: “pressione aqui para marinheiros brilhantes!” Não vi nada tão útil. Eu sabia que o barco do deus Sol uma vez teve uma tripulação de luzes. Eu os tinha visto na minha visão. Mas como chamá-los?
O pavilhão da barraca estava vazio. O trono de fogo havia desaparecido. O barco estava em silêncio, exceto pela água borbulhando através das rachaduras no casco. O giro do navio estava começando a me fazer mal. Em seguida, uma sensação horrível se apoderou de mim. Uma dúzia de vozes minúsculas sussurrou na base da minha cabeça:Ísis. Calculista. Envenenadora. Traidora.
Percebi que a minha náusea não era apenas da corrente em espiral. O navio inteiro estava enviando pensamentos maliciosos para minha cabeça. As placas debaixo dos meus pés, os trilhos, os remos e equipamento, cada parte do barco do deus Sol odiava a minha presença.
― Carter, o barco não gosta de mim ― eu anunciei.
― Você está dizendo que o barco tem bom gosto?
― Há-há. Quero dizer, ele sente Ísis. Ela envenenou Rá e o forçou ao exílio, depois de tudo. Este barco se lembra.
― Bem... peça desculpas, ou algo assim.
― Olá, barco ― eu disse, sentindo-me tola. ― Sinto muito sobre o negócio do envenenamento. Mas você viu... eu não sou Ísis. Eu sou Sadie Kane.
Traidora, as vozes sussurraram.
― Eu posso ver porque você pensa assim ― admiti. ― Eu provavelmente tenho este “cheiro da magia de Ísis” em mim, não é? Mas, honestamente, eu mandei Ìsis empacotada. Ela não mora mais aqui. Meu irmão e eu vamos trazer Rá de volta.
O barco estremeceu. A dúzia de pequenas vozes se calou, como se pela primeira vez em suas vidas imortais estivessem verdadeira e devidamente chocadas. (Bem, eles não tinham me conhecido ainda, tinham?)
― Isso seria bom, não? ― arrisquei. ― Rá voltar, como nos velhos tempos, navegando no rio, e assim por diante? Estamos aqui para tornar as coisas certas, mas para isso precisamos da viagem através das Casas da Noite. Se vocês pudessem cooperar...
Uma dúzia de brilhantes orbes brilhou para a vida. Eles me rodearam como um enxame furioso de bolas de fogo, seu calor tão intenso que pensei que eles iriam queimar o meu vestido novo.
― Sadie ― avisou Carter. ― Eles não parecem felizes.
E ele se pergunta por que eu o chamava do Capitão Óbvio. Eu tentei manter a calma.
― Comportem-se ― falei severamente para as luzes. ― Isso não é por mim. É por Rá. Se quiserem que o seu faraó volte, vão para as suas posições.
Eu pensei que ia ser assada como um frango à Tandoori, mas mantive minha posição. Desde que fui cercada, eu realmente não tive escolha. Exerci minha magia e tentei dobrar as luzes à minha vontade – do jeito que eu poderia ter feito para transformar alguém em um rato ou um lagarto.
Vocês vão ser úteis, ordenei. Vão fazer os seus trabalhos obedientemente.
Houve um chiado coletivo dentro da minha cabeça, que ou significava que eu tinha fundido uma junta do cérebro, ou as luzes estavam cedendo. A tripulação dispersou. Eles assumiram seus postos, transportando cordas, consertando as velas, lotando os remos continuamente, e guiando o leme. O casco furado gemeu quando o barco virou seu nariz rio abaixo.
Carter exalou.
― Bom trabalho. Você está bem?
Concordei, mas minha cabeça parecia que ainda estava girando em círculos. Eu não tinha certeza se tinha convencido as esferas, ou se estavam simplesmente passando o tempo, esperando pela vingança. De qualquer maneira, não estava feliz por ter colocado o nosso destino em suas mãos.
Nós navegamos no escuro. A paisagem de Londres se dissolveu. Meu estômago teve aquela sensação de queda livre familiar à medida que passamos mais fundo no Duat.
― Estamos entrando na Segunda Casa ― adivinhei.
Carter agarrou no mastro para se firmar.
― Você quer dizer as Casas da Noite, como mencionou Bes? Quais são elas, afinal?
Senti-me estranha explicando mitos egípcios para Carter. Eu pensei que ele poderia estar brincando comigo, mas ele parecia genuinamente perplexo.
― Algo que eu li no livro de Rá. Cada hora da noite é uma casa. Temos que passar através dos doze estágios do rio, o que representa 12 horas da noite.
Carter olhou para a escuridão à nossa frente.
― Então, se estamos na Segunda Casa, você quer dizer que uma hora já passou? Não senti tanto tempo.
Ele estava certo. Isso não aconteceu. Então, novamente, eu não tinha ideia de como o tempo corria no Duat. Uma Casa da Noite pode não corresponder exatamente à uma hora mortal do mundo acima. Anúbis uma vez me disse que tinha estado na Terra dos Mortos por cinco mil anos, mas ainda se sentia como um adolescente, como se o tempo não tivesse passado.
Eu estremeci. E se nós saltássemos do outro lado do rio da noite e constatássemos que várias eras haviam passado? Eu tinha acabado de completar treze anos. Eu não estava pronta para ter mil e trezentos anos.
Também desejei que não estivesse pensado em Anúbis. Toquei o amuleto Shen no meu colar. Depois de tudo o que tinha acontecido com Walt, a ideia de ver Anúbis me fez sentir estranhamente culpada, mas também um pouco animada. Talvez Anúbis nos ajudasse em nossa jornada. Talvez ele levasse-me embora para algum lugar privado para um bate-papo como ele havia feito da última vez que tinha visitado o Duat – um pequeno cemitério romântico, jantar para dois no Café Coffin...
Saia dessa, Sadie, pensei. Concentre-se.
Puxei o livro de Rá da minha bolsa e verifiquei novamente as instruções. Eu já tinha lido várias vezes, mas elas eram enigmáticas e confusas, como um livro de matemática.
O pergaminho estava repleto de termos como “primeiro do Caos”, “sopro na argila”, “rebanho da noite”, “renascer no fogo”, “os acres do sol”, “o beijo da faca”, “o jogador de luz” e “o último escaravelho” – a maioria das quais não faziam sentido para mim.
Deduzi que enquanto passávamos através das doze etapas do rio, eu teria que ler as três seções do Livro de Rá em três locais distintos, provavelmente, para reviver os diferentes aspectos do deus do sol, e cada um dos três aspectos iria nos apresentar algum tipo de desafio. Eu sabia que se eu falhasse – se eu sequer tropeçasse em uma palavra enquanto lesse os feitiços – eu acabaria pior do que Vlad Menshikov. A ideia me aterrorizava, mas eu não podia me debruçar sobre a possibilidade de falha. Simplesmente tinha a esperança de que quando chegasse a hora, os rabiscos do pergaminho fariam sentido.
A corrente acelerou. Assim fez o vazamento do barco. Carter demonstrou sua habilidade em mágica de combate e convocou um balde e começou a tirar a água, enquanto eu me concentrava em manter a equipe na linha.
Quanto mais fundo nós navegávamos pelo Duat, mais rebeldes as esferas brilhantes ficavam. Elas se irritaram contra a minha vontade, lembrando o quanto eles queriam me queimar.
É irritante flutuar em um rio de magia com vozes sussurrando em sua cabeça: morra traidora, morra. De vez em quando, eu tinha a sensação de que estávamos sendo seguidos. Eu virava e achava que eu podia ver uma mancha esbranquiçada contra o negro, como a pós-imagem de um flash, mas decidi que devia ser a minha imaginação.
Ainda mais irritante era a escuridão à frente – sem litoral, sem marcos, sem visibilidade alguma. A tripulação poderia ter nos conduzido direto para uma pedra ou boca de um monstro, e nós não havíamos tido absolutamente nenhum aviso. Nós apenas continuamos a navegar pelo escuro vazio.
― Por que é tão... nada? ― Murmurei.
Carter esvaziou seu balde. Ele fazia uma imagem estranha – um rapaz vestido como um faraó com o cajado real e mangual, tirando a água de um barco furado.
― Talvez as Casas da Noite sigam padrões do sono humano ― sugeriu ele.
― Padrões o quê?
― Os padrões de sono. Mamãe costumava nos contar sobre eles antes de dormir. Lembra-se?
Não. Então, novamente, eu só tinha seis anos quando nossa mãe morreu. Ela tinha sido uma cientista, assim como uma maga, e lia as leis de Newton ou a tabela periódica como histórias para dormir.
A maior parte dela tinha sumido na minha cabeça, mas eu queria lembrar. Sempre me senti irritada que Carter se lembrasse de minha mãe muito mais que eu.
― O sono tem diferentes etapas ― Carter explicou. ― Assim como, nas primeiras horas, o cérebro está quase em um coma, um sono muito profundo com quase todos os sonhos. Talvez por isso esta parte do rio seja tão escura e sem forma. Então, mais tarde na noite, o cérebro passa pelo, M.R.O – movimento rápido dos olhos. Que é quando os sonhos acontecem. Os sonhos mais loucos e vívidos. Talvez as Casas da Noite sigam um padrão parecido.
Parecia um pouco forçado para mim. Então, novamente, minha mãe sempre nos disse que a ciência e a magia não eram mutuamente exclusivas. Ela os chamou de dois dialetos da mesma língua. Bastet uma vez nos disse que havia milhões de diferentes canais e afluentes do rio do Duat. A geografia pode mudar a cada viagem, respondendo aos pensamentos do viajante. Se o rio era moldado por todas as mentes adormecidas no mundo, se o seu curso ficava mais louco e vívido à medida que a noite seguia, então seria um passeio difícil.
O rio, eventualmente, se estreitou. A costa apareceu em ambos os lados – areia vulcânica preta espumando nas luzes da nossa equipe mágica. O ar ficou mais frio. A parte inferior do barco raspou contra as pedras e bancos de areia, o que fez o vazamento piorar. Carter desistiu do balde e puxou a cera de sua bolsa de suprimento. Juntos, nós tentamos consertar o vazamento, recitando feitiços de ligação para manter o barco em conjunto. Se eu tivesse qualquer goma de mascar, eu teria usado também.
Não notamos qualquer indicação, agora entrando na terceira casa, de mudança de Casa, mas nós claramente entramos em uma seção diferente do rio. O Tempo foi fugindo a um ritmo alarmante, e ainda não tínhamos feito nada.
― Talvez o primeiro desafio seja o tédio ― eu disse. ― Quando é que algo vai acontecer?
Eu deveria saber melhor o que dizer que em voz alta. A nossa frentes, uma forma surgia da escuridão. Um pé de sandálias do tamanho de uma cama de água plantou-se na proa do nosso navio e nos parou inoperantes na água. Infelizmente, o pé estava ligado a uma perna, que estava ligada a um corpo. O gigante se inclinou para olhar para nós.
― Você está entediada?
A voz trovejou, de uma forma não hostil.
― Eu poderia matá-la, se isso ajudar.
Ele usava uma saia como a de Carter, exceto que a saia do gigante poderia ter fornecido tecido suficiente para fazer dez velas do navio. Seu corpo era humanoide e musculoso, coberto com pelos de homem – o tipo de pelo que me faz querer começar uma fundação de caridade de depilação para homens excessivamente peludos.
Ele tinha a cabeça de um carneiro: um focinho branco com um anel de latão no nariz e chifres longos e encaracolados com dezenas de sinos de bronze pendurados. Seus olhos eram bem separados, com luminosas íris vermelhas e fendas verticais.
Suponho que tudo soa bem assustador, mas o homem carneiro não me parecia diabólico. Na verdade, ele parecia bastante familiar, por algum motivo. Ele parecia mais melancólico do que ameaçador, como se tivesse estado em pé em sua pequena ilha de pedra no meio do rio por tanto tempo que tinha esquecido por que ele estava lá.
[Carter perguntou quando me tornei um carneiro sussurrante. Cale a boca, Carter.]
Eu honestamente senti pena do homem carneiro. Seus olhos estavam cheios de solidão. Eu não podia acreditar que ele iria nos prejudicar, até que ele tirou da cintura duas facas com lâminas muito grandes curvas como os seus chifres.
― Você está calada ― ele observou. ― Isso é um sim para a morte?
― Não, obrigada! ― respondi, tentando soar grata pela oferta. ― Uma palavra e uma pergunta, por favor. A palavra é pedicure. A pergunta é: Quem é você?
― Ahhh-ha-ha-há ― disse ele, berrando como uma ovelha. ― Se você soubesse meu nome, não precisaríamos de apresentações, e eu poderia deixar você passar. Infelizmente, ninguém sabe o meu nome. Uma vergonha, também. Vejo que você encontrou o Livro de Rá. Você reviveu sua equipe e conseguiu velejar seu barco para as portas da quarta casa. Ninguém nunca chegou até aqui antes. Lamento muito que tenho de cortar você em pedaços.
Ele ergueu suas facas, uma em cada mão. Nossas esferas brilhantes enxameavam em um frenesi, sussurrando, Sim! Fatiá-la! Sim!
― Só um segundo ― barrei para o gigante. ― Se nós nomearmos você, podemos passar?
― Naturalmente ― suspirou. ― Mas ninguém pode.
Olhei para Carter. Esta não foi a primeira vez que tínhamos sido interrompidos no rio da Noite e desafiados a nomear um guardião sob pena de morte. Aparentemente, era uma experiência bastante comum para as almas egípcias e magos passando pelo Duat. Mas eu não podia acreditar que ia ter um teste tão fácil. Eu tinha certeza agora que reconheci o homem carneiro. Nós tínhamos visto a sua estátua no Museu de Brooklyn.
― É ele, não é? ― perguntei para Carter. ― O cara que se parece com Alceu?
― Não o chame de Alceu! ― Carter assobiou. Ele olhou para o homem carneiro gigante e disse: ― Você é Khnum, não é?
O homem carneiro fez um som surdo no fundo de sua garganta. Ele raspou uma de suas facas contra a amurada do navio.
― Isso é uma pergunta? Ou isso é sua resposta final?
Carter piscou.
― Hum...
― Não é nossa resposta final! ― Eu gritei, percebendo que quase tínhamos entrado em uma armadilha. ― Nem de perto. Khnum é o seu nome comum, não é? Você quer nos dizer seu nome verdadeiro, seu ren.
Khnum inclinou a cabeça, os sinos em seus chifres tilintando.
― Isso seria bom. Mas, infelizmente, ninguém sabe. Mesmo eu esqueci.
― Como você pode esquecer seu próprio nome? ― Carter perguntou. ― E, sim, essa é uma pergunta.
― Eu sou parte de Rá ― o deus carneiro esclareceu. ― Sou o seu aspecto no submundo, um terço de sua personalidade. Mas quando Rá parou de fazer sua jornada noturna, ele já não precisava de mim. Me deixou aqui às portas da quarta casa, descartado como um casaco velho. Agora eu guardo os portões... não tenho nenhuma outra finalidade. Se eu pudesse recuperar o meu nome, eu poderia render o meu espírito a quem me libertasse. Eles poderiam reunir-me com Rá, mas até então, não posso deixar este lugar.
Ele parecia terrivelmente deprimido, como uma ovelha um pouco perdida, ou melhor, uma ovelha de dez metros de altura perdida com facas muito grandes. Eu queria ajudá-lo. Ainda mais do que isso, eu queria encontrar uma maneira para não ficar cortada aos pedaços.
― Se você não se lembra do seu nome ― falei ― por que não podemos apenas dizer-lhe qualquer nome antigo? Como você saberia se era a resposta certa ou não?
Khnum deixou seu rastro de facas na água.
― Eu não tinha pensado nisso.
Carter olhou para mim como se dissesse Por que você disse a ele?
O deus carneiro baliu.
― Acho que vou reconhecer meu ren quando ouvi-lo ― ele decidiu ― embora eu não possa ter certeza. Sendo apenas parte de Rá, eu não tenho certeza de muita coisa. Perdi a maioria de minhas memórias, a maioria do meu poder e identidade. Eu não sou mais do que uma casca de meu antigo eu.
― Seu antigo eu deve ter sido enorme ― murmurei.
O deus poderia ter sorrido, embora fosse difícil dizer com a cara de carneiro.
― Lamento que você não tenha o meu ren. Você é uma menina brilhante. Você é a primeira a fazê-lo tão longe. A primeira e melhor.
O carneiro gigante suspirou tristemente.
― Ah, bem. Acho que devemos começar a matança.
A primeira e melhor. Minha mente começou a correr.
― Espere ― eu disse. ― Eu sei o seu nome.
Carter ganiu.
― Você sabe? Diga a ele!
Pensei em uma linha do livro de Rá – primeiro do Caos. Baseei-me nas memórias de Ísis, a única deusa que já tinha conhecido o nome secreto de Rá, e eu comecei a entender a natureza do deus sol.
― Rá foi o primeiro deus a sair do Caos ― falei.
Khnum franziu o cenho.
― Esse é o meu nome?
― Não, apenas ouça. ― Você disse que não está completo sem Rá, apenas uma casca de seu antigo eu. Mas isso é verdade para todos os outros deuses egípcios também. Rá é mais velho, mais poderoso. Ele é a fonte original do Maat, como...
― Como a raiz principal dos deuses ― Carter ofereceu.
― Certo ― eu disse. ― Não tenho ideia do que é uma raiz principal, mas, certo. Todas essas eras, os outros deuses foram enfraquecendo lentamente, perdendo poder, porque Rá está faltando. Eles podem não admitir, mas Rá é seu coração. Eles são dependentes dele. Todo esse tempo, fomos perguntando se vale a pena trazer Rá de volta. Nós não sabíamos por que era tão importante, mas agora eu entendo.
Carter concordou com a cabeça, lentamente aquecendo com a ideia.
― Rá é o centro do Maat. Ele tem que voltar, se os deuses quiserem vencer.
― E é por isso que Apófis quer trazer Rá de volta ― adivinhei. ― Maat e Caos estão ligados. Se Apófis puder engolir Rá, enquanto o deus-sol está velho e fraco...
― Todos os deuses morrem ― Carter completou. ― O mundo se desintegra no Caos.
Khnum virou a cabeça para que ele pudesse me estudar com um olho vermelho brilhante.
― Isso é tudo bastante interessante ― disse ele. ― Mas não estou ouvindo o meu nome secreto. Para acordar Rá, você deve primeiro nomear-me.
Abri o livro de Rá e respirei fundo. Comecei a ler a primeira parte do feitiço. Agora, você pode estar pensando: Meu Deus, Sadie. O seu grande teste foi ler algumas palavras fora de um pergaminho? O que é tão difícil sobre isso?
Se você acha isso, claramente nunca leu um feitiço. Imagine ler em voz alta no palco na frente de milhares de professores hostis que estão esperando para lhe dar más notas. Imagine que você só pode ler, olhando para trás do reflexo em um espelho. Imagine que todas as palavras se misturam ao redor, e você tem que colocar as sentenças em conjunto na ordem certa que você lê. Imagine que se cometer um erro, um tropeço, uma pronúncia errada, você vai morrer.
Imagine fazer tudo isso de uma vez, e terá alguma ideia de como é lançar um feitiço de um pergaminho. Apesar disso, eu me senti estranhamente confiante. O feitiço de repente fez sentido.
― Eu nomeio você Primeiro do Caos ― recitei. ― Khnum, que é Rá, o sol da tarde. Chamo o seu ba para despertar o Grande, porque eu sou...
Meu erro quase fatal em primeiro lugar: o pergaminho disse algo como insira o seu nome aqui. E eu quase li em voz alta: “Porque eu sou insira o seu nome aqui!” Bem? Teria sido um erro honesto. Em vez disso, eu consegui dizer:
― Eu sou Sadie Kane, restauradora do trono de fogo. Eu nomeio você Sopro em Argila, o Carneiro do Rebanho da Noite, o...
Quase perdi novamente. Eu tinha certeza de que o título egípcio dizia o Ceramista Divino. Mas isso não fazia sentido, a menos que Khnum tivesse poderes mágicos que eu não queria conhecer. Felizmente, me lembrei de algo do Museu do Brooklyn. Khnum tinha sido descrito como um ceramista esculpindo um humano de argila.
— O Oleiro Divino. Eu nomeio você Khnum, protetor do Quarto portão. Eu devolvo seu nome. Retorno a sua essência para Rá.
Os enormes olhos do deus dilataram. As narinas inflaram.
― Sim ― ele embainhou sua faca. ― Muito bem, minha dama. Você pode passar para a Quarta Casa. Mas cuidado com as fogueiras, e esteja preparada para a segunda forma de Rá. Ele não vai estar muito grato por sua ajuda.
― O que você quer dizer? ― perguntei.
Mas o corpo do deus carneiro se dissolveu em névoa. O Livro de Rá sugou os tufos de fumaça e fechou. Khnum e sua ilha tinham ido embora. O barco derivava em um túnel estreito.
― Sadie ― disse Carter ― isso foi incrível.
Normalmente, eu teria ficado feliz de surpreender-lhe com o meu brilho. Mas meu coração estava disparado. Minhas mãos suavam, e pensei que eu poderia vomitar. Além disso, eu podia sentir a tripulação de esferas brilhantes saindo do seu choque, começando a lutar comigo de novo.
Nenhum corte, eles se queixaram. Nenhum corte!
Pensem em nossos próprios negócios, repeti. E mantenham o barco no curso.
― Hum, Sadie? ― Carter perguntou. ― Por que seu rosto ficou vermelho?
Pensei que ele estava me acusando de corar. Então eu percebi que ele também estava vermelho. O barco inteiro estava inundado de luz rubi. Eu me virei para olhar para frente, e fiz um som na minha garganta não muito diferente do balido de Khnum.
― Oh, não ― eu disse. ― Não este lugar de novo.
Cerca de uma centena de metros a frente de nós, o túnel abria em uma caverna enorme. Eu reconheci o enorme fervente Lago de Fogo, mas da última vez, eu não tinha visto por esse ângulo. Estávamos ganhando velocidade, descendo uma série de corredeiras como uma lâmina de água. No final das corredeiras, a água se transformou em uma cachoeira de fogo e caia em linha reta para dentro do lago, aproximadamente um quilômetro abaixo. Nós estávamos caminhando para o precipício, com absolutamente nenhuma maneira de parar.
Manter o barco no curso, a tripulação sussurrou com alegria. Manter o barco no curso!
Nós provavelmente tínhamos menos de um minuto, mas parecia mais. Suponho que se o tempo voa quando você está se divertindo, ele realmente se arrasta quando você está caminhando para sua morte.
― Temos que virar! ― Carter disse. ― Mesmo que não fosse o fogo, nós nunca sobreviveríamos à queda!
Ele começou a gritar com as esferas de luz:
― Vire! Já! Socorro!
Elas alegremente o ignoram. Olhei da queda de fogo ao esquecimento e ao lago de fogo abaixo. Apesar das ondas de calor rolare sobre nós como a respiração de um dragão, eu me senti fria. Percebi que precisava acontecer.
― “Renascer no fogo” ― falei.
― O quê? ― Carter perguntou.
― É uma linha estabelecida pelo Livro de Rá. Não podemos virar. Temos de ir adiante, direto para o lago.
― Você está louca? Vamos queimar!
Eu abri minha bolsa mágica e vasculhei meus pertences.
― Temos de levar o barco através do fogo. Essa era parte do renascimento noturno do sol, certo? Rá teria feito isso.
― Rá não era inflamável!
A cachoeira estava a apenas vinte metros de distância agora. Minhas mãos tremiam enquanto eu derramava tinta em minha paleta de escrever. Se você nunca tentou usar um conjunto de caligrafia em pé em um barco, não é fácil.
― O que você está fazendo? ― Carter perguntou. ― Escrevendo seus últimos desejos?
Eu respirei fundo e mergulhei minha pena na tinta preta. Visualizei os hieróglifos que eu precisava. Queria que Zia estivesse conosco. Não apenas por que tínhamos nos dado muito bem no Cairo [Oh, pare de fazer beicinho, Carter. Não é minha culpa que ela percebeu que eu sou a única brilhante da família], mas porque Zia era uma especialista com símbolos de fogo, e isso era o que precisávamos.
― Levante seu cabelo ― falei para Carter. ― Eu preciso pintar a sua testa.
― Eu não estou mergulhando na minha morte com perdedor pintado na minha cabeça!
― Eu estou tentando salvá-lo. Depressa!
Ele tirou os cabelos para fora do caminho. Eu pintei os hieróglifos de fogo e escudo na testa, e imediatamente meu irmão explodiu em chamas. Eu sei, era como um sonho realizado e um pesadelo de uma só vez.
Ele dançou, vomitando alguns palavrões muito criativos antes de perceber que o fogo não estava machucando-o. Ele estava simplesmente envolto em uma folha de proteção de chamas.
― O que, exatamente... ― seus olhos se arregalaram. ― Segure-se em alguma coisa!
O barco inclinou enjoativamente sobre a borda das cataratas. Desenhei os hieróglifos sobre a palma da minha mão, mas não era uma boa cópia. As chamas balbuciaram fracamente ao meu redor. Infelizmente, eu não tinha tempo para nada melhor. Passei meus braços em torno da grade, e nós despencamos direto para o lago.

***

Estranho como muitas coisas podem passar por sua mente enquanto você cai para determinada desgraça. De cima, o lago de fogo parecia muito bonito, como a superfície do sol. Eu me perguntava se eu sentiria qualquer dor no momento do impacto, ou se simplesmente evaporaria.
Era difícil ver qualquer coisa à medida que despencamos através das cinzas e fumaça, mas achei que vi uma ilha familiar cerca de uma milha de distância – o templo negro, onde conheci Anúbis. Me perguntei se ele podia me ver de lá, e se ele correria em meu socorro.
Gostaria de saber se minhas chances de sobrevivência seriam melhores se fosse para longe do barco e caísse como um mergulhador de penhasco, mas eu não podia me forçar a fazê-lo. Agarrei-me à grade com todas as minhas forças.
Eu não tinha certeza se o escudo de fogo mágico estava me protegendo, mas eu estava suando intensamente, e estava bastante segura de que tinha deixado minha garganta e a maioria dos meus órgãos internos no topo da cachoeira.
Finalmente, atingimos o fundo com um discreto whoooooooom.
Como descrever a sensação de mergulhar em um lago de fogo líquido? Bem... isso queimava. E ainda era de alguma forma molhado, também. Eu não ousava respirar. Após um momento de hesitação, abri meus olhos. Tudo que eu podia ver eram chamas vermelhas e amarelas girando. Ainda estávamos debaixo d'água... ou debaixo de fogo?
Percebi duas coisas: eu não estava queimando até a morte, e o barco estava em movimento.
Eu não podia acreditar que meus hieróglifos de proteção loucos tinham realmente funcionado. Enquanto o barco deslizava pelas correntes de turbilhão de calor, as vozes da tripulação sussurraram em minha mente – mais alegres do que com raiva agora.
Renovar, eles disseram. Nova vida. Nova luz.
Isso parecia promissor, até que eu compreendi alguns fatos menos agradáveis. Eu ainda não conseguia respirar. Meu corpo gostava de respirar. Além disso, ele estava ficando muito mais quente. Eu podia sentir meu hieróglifo de proteção falhando, a tinta queimando contra minha mão.
Estendi a mão cegamente e peguei um braço – Carter, assumi. Ficamos de mãos dadas, e mesmo que eu não pudesse vê-lo, foi reconfortante saber que ele estava lá. Talvez tenha sido minha imaginação, mas o calor pareceu diminuir.
Há muito tempo, Amós tinha-nos dito que éramos mais poderosos juntos. Nós aumentamos a magia do outro apenas por estarmos próximos. Eu esperava que fosse verdade agora. Tentei enviar meus pensamentos para Carter, pedindo-lhe para me ajudar a manter o escudo de fogo.
O navio navegou através das chamas. Pensei que estávamos começando a subir, mas poderia ter sido ilusão. Minha visão começou a escurecer. Meus pulmões estavam gritando. Se eu inalasse fogo, eu me perguntava se eu iria acabar como Vlad Menshikov.
Justamente quando eu sabia que ia desmaiar, o barco subiu, e nós quebramos a superfície. Eu engasguei – e não apenas porque eu precisava do ar. Nós tínhamos ancorado na costa do lago fervente, na frente de um portal de calcário de grande porte, como a entrada do templo antigo que eu tinha visto em Luxor. Eu ainda estava segurando a mão de Carter.
Tanto quanto eu poderia dizer, estávamos bem. O barco sol estava melhor do que bem. Ele havia sido renovado. Sua vela brilhava branca, o símbolo do sol brilhava dourado em seu centro. Os remos foram reparados e polidos. A pintura estava lustrada, preto, dourado e verde. O casco já não tinha buracos e a barraca era mais uma vez um pavilhão bonito.
Não havia trono, e nem Rá, mas a tripulação brilhava intensa e alegremente à medida que amarravam as cordas no cais. Eu não poderia culpá-lo. Joguei meus braços ao redor de Carter e ele deixou escapar um soluço.
― Você está bem?
Ele se afastou e balançou a cabeça sem jeito. O hieróglifo na testa tinha queimado.
― Graças a você ― disse ele. ―Onde...
― Acres ensolarados ― disse uma voz familiar.
Bes desceu os degraus para a doca. Ele vestia uma nova, ainda maior, camisa havaiana e somente sua sunga na parte de baixo, por isso não posso dizer que ele era um colírio para os olhos. Agora que ele estava no Duat, brilhava com bastante energia. Seu cabelo tinha virado mais escuro e crespo, e seu rosto parecia décadas mais jovens.
― Bes! ― exclamei. ― Por que você demorou tanto? Como estão Walt e Zia?
― Eles estão bem. E eu lhe disse que ia encontrá-los na quarta casa.
Ele apontou o dedo polegar em um sinal esculpido no arco de pedra calcária.
― Costumava ser chamada de Casa de Repouso. Aparentemente, eles mudaram o nome.
O sinal estava em hieróglifos, mas eu não tinha problemas de lê-lo.
― Acres Ensolarados - Assistência- da Vida Comunitária ― eu li. ― “Antigamente a Casa de Repouso. Sob nova direção”. O que exatamente...
― Devemos começar ― disse Bes. ― Antes do seu perseguidor chegar.
― Perseguidor? ― Carter perguntou.
Bes apontou para o alto da cachoeira de fogo, boas centenas de quilômetros distante. No começo, não vi nada. Depois, houve uma sequência de branco contra as chamas vermelhas – como se um homem em um terno de sorvete tivesse mergulhado no lago.
Aparentemente eu não tinha imaginado a mancha branca na escuridão. Estávamos sendo seguidos.
― Menshikov? ― chutei. ― Isso é... Isso é...
― Má notícia ― disse Bes. ― Agora, vamos lá. Temos de encontrar o deus-sol.

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