segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Trono de Fogo - Sadie

Capítulo 4 - Um convite de aniversário para o Armagedom

DEPOIS DE EXPLICAR MINHA HORRÍVEL VISÃO, só uma coisa poderia ser feita: um café da manhã adequado.
Amós parecia abalado, mas insistiu em esperar para discutir assuntos até que tivéssemos reunido todo o Vigésimo Primeiro Nomo (como o nosso ramo da Casa da Vida era chamado). Ele prometeu atender-me na varanda em 20 minutos. Depois que ele se foi, tomei banho e considerei o que vestir. Normalmente, eu ensinaria Magia às segundas-feiras, o que exigiria o característico linho mágico. No entanto, o meu aniversário era suposto para ser um dia de folga.
Dadas as circunstâncias, eu duvidava que Amós, Carter e Bastet iriam me deixar ir para Londres, mas eu decidi pensar positivo. Coloquei um jeans rasgado, meus coturnos, uma camiseta regata e minha jaqueta de couro – nada bom para a magia, mas eu estava me sentindo rebelde.
Enfiei minha varinha e a imagem do mini-Carter na bolsa de magia. Eu estava prestes a lançá-los sobre o meu ombro quando eu pensei “Não, eu não vou ficar carregando isso para cá e para lá no meu aniversário”.
Eu respirei fundo e concentrei-me em abrir um espaço no Duat. Eu odeio admitir isso, mas sou uma droga neste truque. Simplesmente não é justo que Carter poder puxar coisas do ar a qualquer momento, mas eu normalmente preciso de cinco ou dez minutos de foco absoluto, e mesmo assim o esforço me dá náuseas. Na maioria das vezes, é mais simples apenas manter a minha bolsa sobre meu ombro. Se eu saísse com minhas amigas, no entanto, eu não queria estar carregando isso, e não queria deixar completamente para trás.
Por fim, o ar brilhava quando o Duat se inclinou à minha vontade. Eu joguei minha bolsa na minha frente, e ela desapareceu. Excelente, supondo que eu pudesse descobrir como obtê-la novamente mais tarde.
Eu peguei o pergaminho que tinha roubado do deus alce na noite anterior e desci as escadas.
Com todos no café da manhã, a mansão estava estranhamente silenciosa. Cinco níveis de piso encaravam o Grande Salão, então normalmente o lugar era tumultuado com barulho e atividade; mas me lembro de como era vazio quando Carter e eu chegamos no último natal.
O Grande Salão ainda tinha vários dos mesmos retoques: a sólida estátua de Tot no meio, a coleção de armas e instrumentos de jazz de Amós na parede, o tapete de pele de cobra na frente da lareira do tamanho de uma garagem. Mas você também podia dizer que vinte jovens magos viviam aqui agora. Uma abundância de controles remotos, varinhas, iPads, papéis de comida e estatuetas shabti se empilhavam na mesa de café. Alguém com pés grandes – provavelmente Julian – deixara os tênis enlameados nas escadas. E um de nossos aprendizes – acho que Felix – magicamente converteu a lareira num país das maravilhas antártico, completo com neve e um pinguim vivo. Felix adora pinguins.
Esfregões e vassouras mágicas corriam pela casa, tentando limpar tudo. Tive que me curvar para evitar ser varrida. Por algum motivo, as vassouras acham que meu cabelo é uma questão de limpeza.
[Sem comentários seus, Carter.]
Como era esperado, todos estavam reunidos na varanda, que servia como a nossa área de refeições e habitat do crocodilo albino. Filipe da Macedônia pulava alegremente na sua piscina, saltando por pedaços de bacon quando um recruta jogava um para ele. A manhã estava fria e chuvosa, mas o fogo nos braseiros da varanda nos mantinha aquecidos.
Peguei um pão ao chocolate e uma xícara de chá da mesa e me sentei. Então percebi que os outros não estavam comendo. Eles olhavam fixamente para mim. Na ponta da mesa, Amós e Bastet pareciam sérios. Na minha frente, Carter não tocara no prato de waffles, o que não era muito a cara dele. À minha direita, a cadeira de Jaz estava vazia. (Amós me disse que ela ainda estava na enfermaria, nenhuma alteração.) À minha esquerda Walt se sentava, parecendo bem como sempre, mas dei o melhor de mim para ignorá-lo.
Os outros recrutas pareciam estar em vários estados de choque. Era um grupo variado de todas as idades de todo o mundo. Uma parte era mais velha que Carter e eu – velhos a ponto de ir para a universidade, na verdade – o que era bom para acompanhar os mais jovens, mas isso também sempre me deixava um pouco desconfortável quando tentava agir como a professora deles. A maioria possuía entre dez e quinze anos. Felix tinha apenas nove. Havia Julian de Boston, Alyssa da Carolina, Sean de Dublin e Cleo do Rio de Janeiro (sim, eu sei, Cleo do Rio, mas eu não estou inventando!).
A única coisa que tínhamos em comum: o sangue dos faraós. Todos nós descendíamos das famílias reais do Egito, o que nos dava uma capacidade natural para magia e hospedar o poder dos deuses.
O único que não parecia afetado pelo clima sério era Khufu. Por motivos que nunca entendemos, nosso babuíno só come alimentos que terminam em O. Recentemente, ele descobriu o Jell-O, uma marca de gelatina, e o recebeu como uma substância milagrosa. Acho que o O maiúsculo deixa tudo mais gostoso. Agora ele comia quase tudo envolto em geleia ou gelatina – frutas, nozes, insetos, pequenos animais. No momento ele estava com a cara enfiada numa montanha vermelha tremendo de café da manhã e fazia barulhos rudes enquanto procurava por uvas. Todos os demais me observavam, como se esperassem uma explicação.
― Bom dia ― murmurei. ― Dia adorável. Pinguim na lareira, se alguém estiver interessado.
― Sadie ― disse Amós gentilmente ― conte a todos o que você me contou.
Bebi um pouco do chá para acalmar os nervos. Então tentei não parecer aterrorizada ao descrever minha visita ao Salão das Eras.
Quando terminei, o único barulho era o fogo crepitando nos braseiros e Filipe da Macedônia fazendo splash na piscina. Finalmente, Felix, de nove anos, perguntou o que estava na cabeça de todos:
― Então vamos todos morrer?
― Não ― Amós se sentou ereto na cadeira. ― Absolutamente não. Crianças, eu sei que acabei de chegar. Mal conheci a maioria de vocês, mas prometo que faremos tudo o que for possível para mantê-los em segurança. Essa casa é coberta por proteção mágica. Vocês têm uma deusa ao seu lado — ele gesticulou para Bastet, que abria uma lata de comida para gato com as unhas — e a família Kane para protegê-los. Carter e Sadie são mais poderosos do que vocês podem achar, e já lutei com Michel Desjardins antes, se chegarmos a esse ponto.
Dada toda a encrenca que tivemos no último natal, o discurso de Amós pareceu um tanto otimista, mas os recrutas pareceram aliviados.
― Se chegarmos a esse ponto? ― Perguntou Alyssa. ― Parece quase certo que eles vão nos atacar.
Amós franziu a testa.
― Talvez, mas me irrita que Desjardins vá concordar em realizar uma ação tão tola. Apófis é o verdadeiro inimigo e ele sabe disso. Desjardins deve perceber que precisa de toda a ajuda que conseguir. A menos que...
Ele não terminou a frase. O que quer que estivesse pensando, aparentemente o preocupou bastante.
― De qualquer forma, se Desjardins decidir vir atrás da gente, planejará cuidadosamente. Ele sabe que essa mansão não perecerá facilmente. Não pode se dar ao luxo de se envergonhar novamente frente à família Kane. Ele vai estudar o problema, considerar as opções e reunir as forças. Deve levar vários dias para ele se preparar; tempo que devia estar usando para impedir Apófis.
Walt levantou um dedo indicador. Não sei o que é, mas ele tem um tipo de gravidade que chama a atenção do grupo quando está para falar. Até Khufu tirou os olhos do Jell-O.
― Se Desjardins nos atacar ― disse Walt ― ele estará bem preparado, com magos que são muito mais experientes do que nós. Ele pode passar pelas nossas defesas?
Amós encarou as portas deslizantes de vidro, possivelmente lembrando-se da última vez que as nossas defesas foram violadas. O resultado não foi nada bom.
― Devemos nos certificar de não chegarmos a isso ― falou. ― Desjardins sabe o que estamos tentando, e que só temos cinco dias... bem, quatro dias a partir de agora. Segundo a visão de Sadie, Desjardins está ciente do nosso plano e tentará nos impedir por causa de uma crença enganosa que estamos trabalhando com as forças do Caos. Mas se conseguirmos o que queremos, teremos poder de barganhar para fazer Desjardins recuar.
Cleo levantou a mão.
―Hã... nós não conhecemos o plano. Quatro dias para fazer o quê?
Amós gesticulou para Carter, convidando-o a explicar.
Estava tudo bem para mim. Honestamente, eu achava o plano um pouco maluco. Meu irmão sentou-se torto. Preciso dar crédito a ele. Nos últimos meses, ele progredira em parecer um adolescente normal. Depois de seis anos de educação em casa e viagens com nosso pai, Carter estivera fora de contato. Ele se vestia como um executivo júnior, em camisas brancas e calças compridas. Agora pelo menos aprendera a vestir jeans, camisetas e o ocasional capuz. Ele deixou o cabelo crescer numa bagunça cacheada – o que parecia muito melhor. Se continuasse progredindo, o garoto até poderia namorar algum dia.
[O que foi? Não me empurre. Foi um elogio!]
― Vamos acordar o deus Rá ― disse Carter, como se fosse algo tão fácil quanto pegar comida da geladeira.
Os recrutas olharam um para o outro. Carter não era conhecido pelo seu senso de humor, mas eles deviam ter imaginado se ele estava brincando.
― Você quer dizer o deus do sol ― disse Felix. ― O velho rei dos deuses.
Carter assentiu.
― Vocês conhecem a história. Há milhares de anos atrás, Rá ficou velho e fugiu aos céus, deixando Osíris no seu lugar. Então Osíris foi pego por Set. Então Hórus derrotou Set e se tornou faraó. Então...
Tossi.
― A versão curta, por favor.
Carter me deu um olhar cruzado.
― A questão é, Rá foi o primeiro e mais poderoso rei dos deuses. Acreditamos que Rá ainda esteja vivo. Ele está apenas adormecido em algum lugar fundo no Duat. Se pudermos acordá-lo...
― Mas se ele se retirou porque estava velho ― disse Walt ― isso não significa que está muito mais velho agora?
Eu perguntei a mesma coisa quando Carter me contou pela primeira vez a ideia. A última coisa que precisávamos era um deus todo poderoso que não conseguia lembrar-se do próprio nome, tinha cheiro de gente velha e babava no sono. E como um ser imortal podia envelhecer, em primeiro lugar? Ninguém me deu uma resposta satisfatória.
Amós e Carter olharam para Bastet, o que fazia sentido, já que ela era o único deus egípcio presente. Ela franziu para a comida de gato desperdiçada.
― Rá é o deus do sol. Nos tempos antigos, ele envelhecia como o dia envelhecia, então passava pelo Duat no seu barco durante cada noite e renascia com o nascer do sol a cada manhã.
― Mas o sol não renasce ― interferi. ― É só a rotação da terra...
― Sadie ― alertou-me Bastet.
Certo, certo. Mito e ciência eram ambos verdade – apenas versões diferentes da mesma realidade, blá, blá, blá. Ouvi essa lição uma centena de vezes, e não queria ouvir de novo. Bastet apontou para o rolo de pergaminho, que ela colocara ao lado de minha xícara de chá.
― Quando Rá parou de fazer sua jornada noturna, o ciclo foi quebrado, e Rá enfraqueceu a um crepúsculo permanente... pelo menos, é assim que achamos. Ele queria dormir para sempre. Mas se você pudesse encontrá-lo no Duat, e esse é um grande se, é possível que ele possa ser trazido de volta e renascer com a magia certa. O Livro de Rá descreve como isso pode ser feito. Os sacerdotes de Rá criaram o livro nos tempos antigos e o mantiveram em segredo, dividindo-o em três partes, para ser usado só se o mundo estiver acabando.
― Se... o mundo estiver acabando? ― perguntou Cleo. ― Você quer dizer que Apófis vai mesmo... engolir o sol?
Walt olhou para mim.
― Isso é possível? Na sua história sobre a Pirâmide Vermelha, você contou que Apófis estava por trás do plano de Set para destruir a América do Norte. Ele estava tentando causar tanto caos que pudesse fugir da prisão.
Estremeci, lembrando da visão que aparecera no céu sobre Washington, D.C. – uma cobra gigante que se torcia.
― Apófis é o verdadeiro problema ― concordei. ― O impedimos uma vez, mas a prisão está enfraquecendo. Se ele conseguir escapar...
― Ele irá ― disse Carter. ― Em quatro dias. A menos que a gente o impeça. E então ele destruirá a civilização, tudo que os humanos construíram desde o amanhecer no Egito.
Aquilo colocou um calafrio sobre a mesa de café da manhã. Carter e eu tínhamos conversado em particular a respeito do prazo de quatro dias, é claro. Hórus e Ísis estiveram ambos discutindo conosco. Mas isso parecia como uma possibilidade horrível e não a certeza absoluta. Agora, Carter parecia certo. Estudei seu rosto e percebi que ele tinha visto algo durante a noite – possivelmente, uma visão ainda pior que a minha. Sua expressão dizia, Não aqui. Eu vou te dizer mais tarde.
Bastet estava cravando suas garras na mesa de jantar. Seja qual for o segredo, ela devia estar ciente sobre ele. Na outra extremidade da mesa, Felix contou com os dedos.
― Por quatro dias? O que há de tão especial em... hum, vinte e um de março?
― O equinócio de primavera ― explicou Bastet. ― Um tempo poderoso para a magia. As horas do dia e da noite são exatamente balanceadas, ou seja, as forças do Caos e Maat podem ser facilmente inclinadas de um jeito ou de outro. É o momento perfeito para despertar Rá. Na verdade, é a nossa única chance até o equinócio de outono, daqui a seis meses. Mas não podemos esperar tanto tempo.
― Porque, infelizmente ― acrescentou Amós ― o equinócio é também o momento perfeito para Apófis escapar de sua prisão e invadir o mundo dos mortais. Você pode ter certeza que ele tem servos trabalhando nisso agora. Segundo nossas fontes, entre os deuses, Apófis irá ter sucesso, e é por isso que temos que despertar Rá primeiramente.
Eu ouvi tudo isso antes, mas discuti-lo em campo aberto, na frente de todos os nossos recrutas, e vendo os olhares devastados em seus rostos, tudo parecia muito mais assustador e real. Limpei a garganta.
― Certo... então quando Apófis irromper, ele vai tentar destruir o Maat, a ordem do universo. Ele vai engolir o sol, mergulhar a Terra em trevas eternas, e de outra forma, nós teremos um dia muito ruim.
― É por isso que precisamos de Rá ― Amós ajustou seu tom de voz, tornando-o calmo e reconfortante para os nossos recrutas.
Ele projetou tanta compostura, que mesmo eu me senti um pouco menos apavorada. Eu me perguntei se isso era um tipo de mágica, ou se ele era melhor explicando o Apocalipse do que eu.
― Rá foi o arqui-inimigo de Apófis ― ele continuou. ― Rá é o Senhor da Ordem, enquanto Apófis é o Senhor do Caos. Desde o início dos tempos, estas duas forças tem feito uma batalha perpétua para destruir um ao outro. Se Apófis retornar, nós temos que ter certeza que temos Rá do nosso lado para neutralizá-lo. Então temos uma chance.
― Uma chance ― disse Walt. ― Assumindo que podemos encontrar Rá e acordá-lo, e que o resto da Casa da Vida não nos destruirá primeiro.
Amós assentiu.
― Mas se pudermos despertar Rá, que seria uma façanha mais difícil do que qualquer mago jamais realizou. Isso não faria Desjardins pensar duas vezes. Um Sacerdote-leitor Chefe... bem, parece que ele não está pensando claramente, mas ele não é bobo. Ele reconhece o perigo de Apófis subindo. Temos de convencê-lo de que estamos do mesmo lado, que o caminho dos deuses é a única forma de derrotar Apófis. Eu prefiro fazer isso a lutar com ele.
Pessoalmente, eu queria dar um soco na cara de Desjardins e colocar sua barba em chamas, mas eu admiti que Amós tinha um bom argumento.
Cleo, coitada, estava tão verde como um sapo. Ela veio toda a distância do Brasil para o Brooklyn para estudar o caminho de Tot, o deus do conhecimento, e nós já a identificamos como nossa futura bibliotecária, mas quando os perigos eram reais, e não apenas nas páginas dos livros... bem, ela tinha um estômago fraco. Eu esperava que ela pudesse chegar até a borda do terraço, se ela precisasse.
― O... pergaminho ― ela começou ― você disse que há duas outras partes?
Eu peguei o pergaminho. À luz do dia parecia mais frágil – quebradiço e amarelo e provavelmente desintegrando-se. Meus dedos tremeram. Eu podia sentir a magia zumbindo no papiro como uma corrente de baixa tensão. Senti uma imensa vontade de abri-lo. Comecei a desenrolar o cilindro. Carter ficou tenso. Amós disse:
― Sadie...
Não há dúvida que eles esperavam que o Brooklyn pegasse fogo de novo, mas nada aconteceu. Eu abri o pergaminho e descobri que estava escrito em rabiscos – não hieróglifos, nem qualquer língua que eu pudesse reconhecer. O fim do papiro era uma linha irregular, como se tivesse sido rasgado.
― Eu imagino que os pedaços devem trabalhar juntos. Vai ser legível apenas quando todas as três seções forem combinadas.
Carter parecia impressionado. Mas, honestamente, eu sei algumas coisas. Durante a nossa última aventura eu li um pergaminho para banir Set, e isso havia funcionado da mesma maneira. Khufu levantou os olhos do Jell-O.
― Agh!
Ele colocou três uvas viscosas sobre a mesa.
― Exatamente ― Bastet concordou. ― Como diz Khufu, as três seções do livro representam os três aspectos de Rá, manhã, tarde e noite. Esse livro não é a magia de Khnum. Vocês terão que encontrar os outros dois agora.
Como Khufu encaixou tudo isso em um único gemido, eu não sei, mas eu gostaria de ter todas as minhas aulas com professores babuíno. Eu teria concluído o ensino fundamental e o ensino médio em uma semana.
― Então as outras duas uvas ― eu disse ― quer dizer, pergaminhos... segundo a minha visão da noite passada, eles não serão fáceis de encontrar.
Amós assentiu.
― A primeira parte foi perdida há muito tempo. A seção do meio está na posse da Casa da Vida. Ele foi transferido várias vezes, e sempre é mantido sob forte esquema de segurança. A julgar pela sua visão, eu diria que o livro está agora nas mãos de Vladimir Menshikov.
― O sorveteiro ― eu imaginei. ― Quem é ele?
Amós traçou algo sobre a mesa – talvez um hieróglifo de proteção.
― O terceiro mágico mais poderoso do mundo. Ele é também um dos mais fortes defensores de Desjardins. Ele segue o Décimo Oitavo Nomo, na Rússia.
Bastet assobiou. Sendo um gato, ela era muito boa nisso.
― Vlad, o inalador. Ele tem uma má reputação.
Lembrei-me de seus olhos arruinados e da voz ofegante.
― O que aconteceu com seu rosto?
Bastet estava prestes a responder, mas Amós cortou.
― Basta compreender que ele é muito perigoso ― alertou. ― O talento principal de Vlad é silenciar mágicos desonestos.
― Você quer dizer que ele é um assassino? ― eu perguntei. ― Maravilhoso. E Desjardins apenas deu-lhe permissão para caçar Carter e eu se nós deixarmos o Brooklyn.
― O que vocês vão ter que fazer ― disse Bastet ― se quiserem procurar as outras partes do Livro de Rá. Vocês têm apenas quatro dias.
― Sim ― eu murmurei ― você deveria ter mencionado isso. Você estará indo conosco, não estará?
Bastet olhou para sua comida.
― Sadie... ― Ela parecia triste. ― Carter e eu estávamos conversando e... bem, alguém tem que verificar a prisão de Apófis. Temos que saber o que está acontecendo, o quão próximo está para quebrar, e se há uma maneira de pará-lo. Isso exige olhar na fonte original.
Eu não podia acreditar que estava ouvindo isso.
― Você vai voltar lá? Depois de tudo o que os meus pais fizeram para livrá-la?
― Eu só vou abordar a prisão de fora ― prometeu. ― E vou ter cuidado. Sou uma criatura de ações secretas, depois de tudo. Além disso, sou a única que sabe como encontrar a sua cela, e aquela parte do Duat seria letal para um mortal. Eu... eu devo fazer isso.
Sua voz tremeu. Ela me disse uma vez que os gatos não eram corajosos, mas voltar à sua antiga prisão parecia uma coisa muito corajosa para fazer.
― Eu não vou deixá-la indefesa ― prometeu. ― Eu tenho um... um amigo. Ele deve chegar do Duat amanhã. Pedi-lhe para encontrá-la e protegê-la.
― Um amigo? ― perguntei.
Bastet se contorceu.
― Bem... mais ou menos.
Isso não soou encorajador. Eu olhei para minhas roupas de rua. Um gosto azedo encheu minha boca. Carter e eu tínhamos uma missão a realizar, e era improvável que eu voltaria viva.
Outra responsabilidade sobre meus ombros, outra demanda razoável para eu sacrificar minha vida para o bem maior. Feliz aniversário para mim.
Khufu arrotou e afastou o prato vazio. Ele arreganhou os dentes manchados de Jell-O como se dissesse: Bem, isso está resolvido! Bom café da manhã!
― Vou fazer as malas ― anunciou Carter. ― Podemos sair em uma hora.
― Não ― eu disse.
Eu não sei quem ficou mais surpreso – eu ou meu irmão.
― Não? ― Carter perguntou.
― É meu aniversário ― eu disse, o que provavelmente me fez soar como uma criança de sete anos de idade, mas no momento eu não me importei.
Os recrutas olharam espantados. Vários resmungaram seus bons votos. Khufu me ofereceu sua taça vazia de Jell-O como um presente. Felix indiferentemente começou a cantar “Parabéns pra você”, mas ninguém se juntou a ele, então ele desistiu.
― Bastet disse que seu amigo não chegará até amanhã ― continuei. ― Amós disse que Desjardins levaria algum tempo para preparar qualquer tipo de ataque. Além disso, eu estou planejando minha viagem a Londres por eras. Acho que tenho tempo para um dia sangrento fora antes de o mundo acabar.
Os outros olharam para mim. Eu estava sendo egoísta? Tudo bem, sim. Irresponsável? Talvez. Então, por que me sinto tão forte sobre colocar meus pés no chão? Isto pode vir como um choque para você, mas eu não gosto me sentir controlada. Carter estava ditando o que faríamos, mas como de costume, ele não tinha me contado tudo. Ele obviamente consultou Amós e Bastet e fez um plano de jogo. Os três haviam decidido o que era melhor sem se preocupar em me perguntar.
Minha única constante companhia, Bastet, estava deixando-me para embarcar em uma missão terrivelmente perigosa. E eu estaria presa com meu irmão no meu aniversário, rastreando outro pergaminho mágico que poderá atear fogo em mim ou pior.
Sinto muito. Não, obrigada. Se eu ia morrer, então isso poderia esperar até amanhã de manhã. A expressão de Carter era parte de raiva, parte de descrença. Normalmente, tentamos manter as coisas civilizadas na frente de nossos recrutas. Agora eu estava envergonhando-o.
Ele sempre reclamava como eu corria para as coisas sem pensar. Ontem à noite ele estava irritado comigo por pegar o pergaminho, e eu suspeito que no fundo de sua mente, ele me culpava pelas coisas acontecendo de errado, como Jaz se machucando. Sem dúvida, ele viu isso como um exemplo da minha natureza temerária. Eu estava bem preparada para uma luta decisiva, mas Amós intercedeu.
― Sadie, uma visita a Londres é perigosa. ― Ele ergueu a mão antes que eu pudesse protestar. ― No entanto, se você precisa...
Ele tomou uma respiração profunda, como se ele não gostasse do que ele estava prestes a dizer.
― ...então, pelo menos, prometa que vai ser cuidadosa. Duvido que Vlad Menshikov estará pronto para se mover contra nós tão rapidamente. Deve ficar tudo certo contanto que você não use magia, nem faça nada para atrair a atenção.
― Amós! ― Carter protestou.
Amós o interrompeu com um olhar severo.
― Apesar de Sadie estar indo, nós podemos começar o planejamento. Amanhã de manhã, vocês dois podem começar sua busca. Eu vou assumir as suas funções de ensino com os nossos recrutas e supervisionar a defesa da Casa do Brooklyn.
Eu podia ver nos olhos de Amós que ele não queria que eu fosse. Era ridículo, perigoso e precipitado. Em outras palavras, mais típico de mim. Mas eu também podia sentir a sua simpatia para com minha situação. Lembrei-me de quão frágil Amós pareceu depois que Set assumiu seu corpo no último Natal. Quando ele foi para o Primeiro Nomo para a cura, eu sabia que ele se sentia culpado por ter nos deixado a sós. Ainda assim, tinha sido a escolha certa para sua sanidade.
Amós, de todas as pessoas, sabia como era a necessidade de fugir. Se eu ficasse aqui, se eu partisse em uma busca imediata, mesmo sem tempo para respirar, senti que ia explodir. Além disso, eu me sentia melhor sabendo que Amós estará cobrindo para nós a Casa do Brooklyn. Fiquei aliviada por dar as minhas funções de ensino por um tempo. Verdade seja dita, eu sou uma professora horrível. Eu simplesmente não tenho paciência para isso. [Oh, fique quieto, Carter. Você não deveria concordar comigo.]
― Obrigada, Amós.
Ele levantou, indicando claramente que a reunião havia terminado.
― Eu acho que é suficiente para uma manhã ― disse ele. ― O principal é que todos vocês continuem com seu treinamento, e não se desesperem. Nós precisamos de vocês na melhor forma para defender a Casa do Brooklyn. Nós prevaleceremos. Com os deuses do nosso lado, Maat superará o caos, como sempre fez antes.
Os recrutas ainda pareciam inquietos, mas se levantaram e começaram a limpar seus pratos. Carter me deu um olhar mais irritado, e depois entrou. Esse era seu problema. Eu estava determinada a não me sentir culpada. Eu não teria arruinado o meu aniversário.
Ainda assim, enquanto eu olhava para o meu chá frio e o não consumido pão de chocolate, tive uma sensação horrível que eu nunca poderia sentar nessa mesa novamente.
Uma hora depois, eu estava pronta para Londres. Tinha escolhido um novo cajado do arsenal e guardei-o no Duat junto com meus outros suprimentos. Deixei o pergaminho mágico do Alceu com Carter, que não iria falar comigo mesmo, então verifiquei Jaz na enfermaria e encontrei-a ainda em coma. Um pano encantado mantinha sua testa fria. Hieróglifos de cura flutuavam em torno de sua cama, mas ela ainda estava tão frágil. Sem o seu habitual sorriso, ela parecia uma pessoa diferente.
Eu me sentei ao lado dela e segurei sua mão. Meu coração se sentiu tão pesado como uma bola de boliche. Jaz tinha arriscado sua vida para nos proteger. Ela tinha ido contra uma multidão de bau com apenas algumas semanas de treinamento. Ela tirou energia de dentro de sua patrona, Sekhmet, assim como nós lhe ensinamos, e o esforço quase a destruiu.
O que eu tinha sacrificado ultimamente? Tinha feito uma birra porque eu poderia perder minha festa de aniversário.
― Sinto muito, Jaz.
Eu sabia que ela não podia me ouvir, mas minha voz tremeu.
― Eu só... eu vou enlouquecer se não fugir. Nós já tivemos que salvar o mundo uma vez, e agora eu tenho que fazer isso de novo...
Imaginei o que Jaz diria – algo reconfortante, sem dúvida: Não é culpa sua, Sadie. Você merece algumas horas. Isso me fez sentir pior. Eu nunca deveria ter permitido que Jaz se colocasse em perigo.
Seis anos atrás, minha mãe tinha morrido canalizando muita magia. Ela queimou selando a porta para a prisão de Apófis. Eu sabia disso, e ainda permiti que Jaz, que tinha muito menos experiência, arriscasse sua vida para salvar a nossa. Como eu disse... sou uma professora horrível.
Finalmente, eu não aguentava mais. Apertei a mão de Jaz, disse a ela para melhorar logo e deixei a enfermaria. Subi para o telhado, onde mantivemos nossa relíquia para a abertura de portais – uma esfinge de pedra das ruínas de Heliópolis.
Enrijeci quando notei Carter na outra extremidade do telhado, alimentando o grifo com uma pilha de perus assados. Desde a noite passada, ele havia construído um estábulo bastante estável para o monstro, então imaginei que fosse ficar conosco. Pelo menos, isso iria manter os pombos fora do telhado.
Eu quase esperava que Carter fosse me ignorar. Não estava com disposição para outro argumento. Mas quando ele me viu, ele franziu a testa, limpou a gordura de peru de suas mãos, e se aproximou. Eu me preparei para uma repreensão. Ao contrário, ele resmungou.
― Seja cuidadosa. Eu peguei para você um presente de aniversário, mas vou esperar até você voltar...
Ele não acrescentou a palavra viva, mas achei que a ouvi em seu tom.
― Olha, Carter...
― Apenas vá. Discutir não vai ajudar.
Eu não tinha certeza se me sentia culpada ou com raiva, mas eu deveria ter um motivo. Nós não tínhamos um histórico muito bom com aniversários. Uma das minhas primeiras lembranças era de brigar com Carter no meu sexto aniversário, e meu bolo explodindo com a energia mágica que despertou. Talvez, considerando que, eu deveria tê-lo deixado bem o suficiente sozinho. Mas eu não conseguia fazer isso.
― Sinto muito ― eu disparei. ― Sei que você me culpa por apanhar o pergaminho na noite passada, e por Jaz se machucar, mas sinto como se eu estivesse caindo aos pedaços...
― Você não é a única ― ele replicou.
Um caroço se formou na minha garganta. Eu estava tão preocupada com Carter estar ficando furioso comigo, que não tinha prestado atenção em seu tom. Ele parecia absolutamente miserável.
― O que é isso? ― eu perguntei. ― O que aconteceu?
Ele limpou as mãos engorduradas em sua calça.
― Ontem no museu... um daqueles espíritos... um deles falou comigo.
Ele me contou sobre seu encontro com o estranho bau em chamas, como o tempo pareceu abrandar e o bau advertiu Carter que nossa missão seria um fracasso.
― Ele disse... ― a voz de Carter quebrou. ― Ele disse que Zia estava dormindo no Local das Areias Vermelhas, o que quer que seja. Ele disse que se eu não desistir da busca e salvá-la, ela iria morrer.
― Carter ― falei cuidadosamente ― esse espírito mencionou Zia pelo nome?
― Bem, não...
― Será que ele quis dizer outra coisa?
― Não, eu tenho certeza. Ele quis dizer Zia.
Tentei morder minha língua. Honestamente, eu mordi. Mas o assunto de Zia Rashid tornou-se uma obsessão doentia por meu irmão.
― Carter, não quero ser indelicada, mas nos últimos meses você tem visto mensagens sobre Zia em toda parte. Duas semanas atrás, você achava que ela estava enviando uma chamada de socorro em seu purê de batatas.
― Era um Z! Esculpido direto nas batatas!
Eu levantei minhas mãos.
― Tudo bem. E o seu sonho na última noite?
Seus ombros ficaram tensos.
― O que você quer dizer?
― Ah, vamos lá. No café da manhã, você disse que Apófis poderia escapar de sua prisão no equinócio. Você parecia completamente certo, como se tivesse visto a prova. Você já conversou com Bastet e convenceu-a a verificar a prisão de Apófis. Tudo o que viu... deve ter sido ruim.
― Eu... eu não sei. Eu não tenho certeza.
― Posso perceber.
Minha irritação aumentou. Então, Carter não queria me dizer. Nós estávamos de volta a manter segredos um do outro? Excelente.
― Nós vamos continuar mais tarde, então. Vejo você à noite.
― Você não acredita em mim ― disse ele. ― Sobre Zia.
― E você não confia em mim. Então, estamos quites.
Nós olhamos um para o outro. Então, Carter voltou-se e foi em direção ao grifo. Quase o chamei de volta. Eu não tinha a intenção de estar tão irritada com ele. Por outro lado, desculpar-me não é meu forte, e ele era praticamente impossível.
Virei-me para a esfinge e convoquei uma passagem. Eu fiquei bastante boa nisso. Imediatamente um turbilhão de funil de areia apareceu na minha frente e eu pulei dentro dele.
Um batimento cardíaco depois, caí perto da Agulha da Cleópatra na margem do rio Tâmisa. Seis anos antes, minha mãe tinha morrido aqui. Não era o meu monumento egípcio favorito. Mas a agulha era o portal mágico mais próximo para o apartamento de vovó e vovô.
Felizmente, o tempo estava ruim e não havia ninguém por perto, então eu escovei a areia das minhas roupas e fui para a estação de metrô. Trinta minutos depois, eu estava na escadaria do apartamento dos meus avós. Parecia tão estranho estar em... casa?
Não tinha certeza se eu poderia chamá-la mais disso. Há meses que eu tinha saudades de Londres – as ruas familiares da cidade, minhas lojas favoritas, meus amigos, meu antigo quarto. Eu nunca tinha sido saudosa pelo tempo ruim. Mas agora tudo parecia tão diferente, tão estranho.
Nervosa, eu bati na porta. Nenhuma resposta. Eu tinha certeza de que eles estavam me esperando. Bati novamente. Talvez eles estivessem escondidos, me esperando chegar. Eu imaginei meus avós, Liz e Emma agachados atrás dos móveis, prontos para saltar e gritar “Surpresa!”
Hmm... vovó e vovô agachando e saltando. De jeito nenhum. Eu pesquei a minha chave e abri a porta. A sala estava escura e vazia. A luz da escadaria estava apagada, o que vovó jamais permitiria. Ela tinha um medo mortal de quedas em escadas. Até mesmo a televisão de vovô estava desligada, o que não estava certo. Vovô sempre deixava nas partidas de rugby, mesmo que ele não estivesse prestando atenção.
Cheirei o ar. Seis horas no entardecer de Londres, mas nenhum cheiro de biscoitos assando na cozinha. Vovó deveria ter assado pelo menos uma bandeja de biscoitos para a hora do chá. Era uma tradição. Eu peguei o meu telefone para ligar para Liz e Emma, mas o telefone sem bateria. Eu sabia que tinha carregado. Minha mente estava apenas começando a processar o pensamento – eu estou em perigo – quando a porta se fechou atrás de mim. Eu me virei, tentando agarrar a minha varinha, que eu não tinha.
Acima de mim, no topo da escadaria escura, uma voz que definitivamente não era o humana assobiou.
― Bem vinda ao lar, Sadie Kane.

Nenhum comentário:

Postar um comentário