quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A Sombra da Serpente - Sadie

Capítulo 2 - Tenho uma conversinha com o Caos

Você se surpreenderia ao saber que as coisas correram mal lá?
Eu não pensei assim.
Nossas primeiras vítimas foram os pinguins de Felix. As criosfinges sopraram fogo nas aves infelizes, e elas derreteram em poças de água.
— Não! — Felix chorou.
O quarto retumbou, muito mais forte desta vez.
Khufu gritava e pulava na cabeça de Carter, derrubando-o para o chão. Em circunstâncias diferentes, teria sido engraçado, mas percebi que Khufu tinha acabado de salvar a vida do meu irmão.
Onde Carter estava em pé, o chão se dissolveu, telhas de mármore desmoronavam como se tivessem sido despedaçadas por uma britadeira invisível. A área de ruptura serpenteava por toda a sala, destruindo tudo em seu caminho, sugando artefatos no chão e mastigando-os em pedaços.
Sim... Serpenteava era a palavra certa. A destruição deslizou exatamente como uma serpente, indo direto para a parede de trás e para o O livro da derrota de Apófis.
— Pergaminho! — gritei.
Ninguém parecia ouvir. Carter ainda estava no chão, tentando arrancar Khufu de sua cabeça. Felix ajoelhou-se em choque junto as poças de seus pinguins, enquanto Walt e Alyssa tentavam puxá-lo para longe das criosfinges de fogo.
Puxei a varinha do meu cinto e gritei a primeira palavra do poder que me veio à mente:“Drowah!”
Hieróglifos dourados – o comando para Limite – brilhou no ar. Uma parede de luz brilhou entre a vitrine a linha de avanço da destruição:


Eu usava frequentemente esta magia para separar brigas de iniciantes ou proteger o armário do lanche da tarde de ataques noturnos, mas nunca tentei fazer isso para algo tão importante.
Logo que a britadeira invisível atingiu meu escudo, o feitiço começou a se desfazer. O distúrbio se espalhou até a parede de luz, sacudindo-a em pedaços. Eu tentei me concentrar, mas uma força muito mais poderosa – Caos em pessoa – estava trabalhando contra mim, invadindo minha mente e dispersando minha magia.
Em pânico, eu percebi que não poderia continuar. Eu estava bloqueada em uma batalha que não poderia ganhar. Apófis estava triturando meus pensamentos tão facilmente quanto ele triturou o chão.
Walt derrubou a varinha de minhas mãos.
A escuridão tomou conta de mim. Eu caí nos braços de Walt. Quando minha visão clareou, minhas mãos estavam queimadas e fumegantes. Eu estava chocada demais para sentir a dor. O livro da derrota de Apófis tinha ido embora. Não restou nada, exceto uma pilha de escombros e um enorme buraco na parede, como se um tanque tivesse esmagado tudo.
Desespero ameaçou fechar a minha garganta, mas meus amigos se reuniram em volta de mim. Walt me segurou firme. Carter desembainhou sua espada. Khufu mostrou seus dentes e latiu para as criosfinges. Alyssa abraçou Felix, que estava soluçando em sua manga. Ele rapidamente perdeu sua coragem quando os pinguins se foram.
— Então é isso? — Eu gritei para as criosfinges. — Queimar o livro e fugir como de costume? Você tem tanto medo de se mostrar em pessoa?
Mais risadas rolaram pela sala. As criosfinges ficaram imóveis na porta, mas estatuetas e joias sacudiam nas vitrines. Com um som de rangido doloroso, a estátua de babuíno dourada que Khufu tinha conversado de repente virou a cabeça.
— Mas eu estou em todos os lugares. — A serpente falou pela boca da estátua. — Eu posso destruir qualquer coisa que você dá valor... e qualquer um que você dá valor.
Khufu lamentou em indignação. Ele lançou-se contra o babuíno e derrubou-o. a estátua derreteu em uma piscina fumegante de ouro.
Uma estátua diferente ganhou vida – um faraó de madeira dourada com uma lança de caça. Seus olhos cor de sangue se voltaram. Sua boca esculpida se contorceu em um sorriso.
— A sua magia é fraca, Sadie Kane. A civilização humana tem crescido tão velha e podre. Eu vou engolir o deus do sol e mergulhar o mundo em trevas. O Mar do Caos vai consumir todos vocês.
Como se a energia fosse demais para a estátua de faraó conter, ela estourou. Seu pedestal se desintegrou, e outra linha de britadeira mágica do mal serpenteou por toda a sala, agitando os ladrilhos do piso. Dirigindo-se para uma exibição na parede leste – um pequeno gabinete dourado.
Salve isso, disse uma voz dentro de mim – possivelmente meu subconsciente, ou, possivelmente, a voz de Ísis, a minha deusa patrona. Nós compartilhamos pensamentos muitas vezes, era difícil ter certeza.
Lembrei-me do que o rosto na parede havia me dito... Vá para a caixa dourada. Isso vai lhe dar uma pista sobre o que você precisa.
— A caixa — eu gritei. — Parem-no!
Meus amigos me encararam. De algum lugar lá fora, outra explosão sacudiu o prédio. Pedaços de gesso choviam do teto.
— São estas crianças o melhor que você poderia enviar contra mim? — Apófis falou de um shabti marfim da vitrine mais próxima – um marinheiro em miniatura em um barco de brinquedo. — Walt Stone... você é o sortudo. Mesmo que você sobreviva a hoje à noite, sua doença irá matá-lo antes de minha grande vitória. Você não terá que observar o seu mundo destruído.
Walt cambaleou. De repente, eu estava apoiando ele. Minhas mãos queimadas doíam tanto que eu tive que lutar com uma onda de náusea.
A linha de destruição deslizava pelo chão, continuava caminhando para o gabinete de ouro.
Alyssa estendeu sua varinha e gritou um comando.
Por um momento, o piso se estabilizou, se alisando em uma folha sólida de pedra cinzenta. Em seguida, novas rachaduras apareceram, e a força do Caos continuou seu caminho.
— Muito bom, Alyssa — a Serpente falou — a terra que você ama vai se dissolver no caos. Você não terá lugar para ficar!
A varinha de Alyssa explodiu em chamas. Ela gritou e jogou-a de lado.
— Pare com isso! — Felix gritou.
Ele quebrou a caixa de vidro com a sua varinha e demoliu o marinheiro em miniatura, juntamente com uma dúzia de outros shabti.
A voz de Apófis simplesmente mudou-se para um amuleto de jade de Ísis em um manequim nas proximidades.
— Ah, pequeno Felix, acho você engraçado. Talvez eu vá mantê-lo como um animal de estimação, como as aves ridículas que você ama. Pergunto-me quanto tempo você vai durar antes de sua sanidade se desintegrar.
Felix jogou sua varinha e derrubou o manequim.
A trilha do Caos estava agora na metade do caminho para o gabinete dourado.
— Ele está depois daquela caixa! —consegui dizer. — Salve a caixa!
Certo, não foi a chamada mais inspiradora para a batalha, mas Carter pareceu entender. Ele pulou na frente do avanço do Caos, fincou sua espada no chão. Sua lâmina cortou o mármore como sorvete. Uma linha azul de magia se estendeu para ambos os lados – a própria versão de Carter de um campo de força. A linha de ruptura bateu contra a barreira e parou.
— Pobre Carter Kane. — A voz da serpente estava em tudo a nossa volta agora, pulando de artefato em artefato, cada um estourando por causa do poder do Caos. —Sua liderança está condenada. Tudo o que você tentou construir vai desmoronar. Você vai perder aqueles que mais ama.
A linha defensiva azul de Carter começou a tremer. Se eu não o ajudasse rapidamente...
— Apófis — gritei. — Por que esperar para me destruir? Faça isso agora, seu rato-cobra!
Um assobio ecoou pela sala. Talvez eu deva mencionar que um dos meus muitos talentos é fazer as pessoas ficarem com raiva. Aparentemente, isso funciona em cobras, também.
O piso se estabilizou. Carter liberou seu feitiço de proteção e quase caiu. Khufu, abençoada seja a inteligência dos babuínos, pulou para a caixa dourada, pegou-a e fugiu com ele.
Quando Apófis falou novamente, sua voz endureceu com raiva.
— Muito bem, Sadie Kane. É hora de morrer.
As duas esfinges com cabeça de carneiro se mexeram, as bocas brilhando com chamas. Em seguida, elas se lançaram direto para mim.
Felizmente, uma delas escorregou em uma poça de água de pinguim e derrapou para a esquerda. A outra teria rasgado a minha garganta se não tivesse sido abordada por um camelo oportuno.
Sim, um camelo em tamanho real. Se você achar isso confuso, imagine como a criosfinge deve ter se sentido.
De onde é que o camelo veio? Você pergunta.
Talvez eu tenha mencionado a coleção de amuletos de Walt. Dois deles invocam camelos repugnantes. Eu os conheci antes, assim não estava tão animada quando uma tonelada de carne de camelo voou em minha linha de visão, se chocou com a esfinge e caiu em cima dela. A esfinge rosnou em indignação enquanto tentava libertar-se. O camelo grunhiu e peidou.
— Hindenburg — chamei. Só um camelo pode peidar tanto. — Walt, porque diabos...?
— Desculpe — ele gritou. — Amuleto errado!
A técnica funcionou, de qualquer forma. O camelo não era muito um lutador, mas era muito pesado e desajeitado. A criosfinge rosnou e arranhou o chão, tentando, sem sucesso, se livrar do camelo, mas Hindenburg apenas espalmou suas pernas, fazendo sons como uma buzina de alarme, e soltando o gás.
Eu me mudei para o lado de Walt e tentei me orientar.
A sala estava literalmente um caos. Gavinhas de luz vermelha se espalhavam entre as exposições. O chão estava ruindo. As paredes rachadas. Os artefatos estavam ganhando vida e atacando os meus amigos.
Carter rechaçava a outra criosfinge, apunhalando-a com sua khopesh, mas o monstro defendeu seus ataques com seus chifres e soprou fogo. Felix foi cercado por um tornado de vasos canopos que golpeava-o de todas as direções enquanto ele golpeava-o com sua varinha. Um exército de pequenos shabtis tinha cercado Alyssa, que estava cantando desesperadamente, usando sua magia da terra para manter a sala inteira. A estátua de Anúbis perseguiu Khufu pela sala, esmagando coisas com os seus punhos conforme nosso valente babuíno embalava a caixa de ouro.
Em toda nossa volta, o poder do Caos crescia. Eu o sentia em meus ouvidos como uma tempestade que se aproxima. A presença de Apófis estava tremendo para além do museu.
Como eu poderia ajudar todos os meus amigos ao mesmo tempo, proteger a caixa de ouro evitar que o museu entrasse em colapso em cima de nós?
— Sadie — Walt pediu. — Qual é o plano?
A primeira criosfinge finalmente empurrou Hindenburg para longe. Ela virou-se e tacou fogo no camelo, que deixou um peido final e encolheu-se em um amuleto de ouro inofensivo. Em seguida, a criosfinge se virou para mim. Ela não parecia satisfeita.
— Walt — eu disse — me dê cobertura.
— Claro. — Ele olhou para a criosfinge, incerto. — Enquanto você faz o quê?
Boa pergunta, eu pensei.
— Temos que proteger esse baú. É uma espécie de pista. Temos que restaurar o Maat, ou este edifício vai implodir e vamos todos morrer.
— Como podemos restaurar Maat?
Em vez de responder, eu me concentrei. Abaixei minha visão para o Duat.
É difícil descrever o que é experimentar o mundo em vários níveis de uma só vez, é um pouco como olhar através de óculos 3D e ver nebulosas auras coloridas ao redor das coisas, exceto que as auras nem sempre correspondem aos objetos e as imagens estarem constantemente mudando.
Magos tem que ter cuidado quando olham para o Duat. Na melhor das hipóteses, você se sentirá levemente nauseado. Na pior, seu cérebro vai explodir.
No Duat, a sala estava cheia com os aros se contorcendo de uma gigante cobra vermelha – a magia de Apófis em lenta expansão e cercando os meus amigos. Eu quase perdi a concentração junto com meu jantar.
Ísis, eu chamei. Uma pequena ajuda?
A força da deusa surgiu através de mim. Eu estendi meus sentidos e vi meu irmão lutando contra a criosfinge. Em pé no lugar de Carter estava o deus guerreiro Hórus, com sua espada resplandecente de luz.
Rodando em torno de Felix, os vasos canopos eram os corações dos espíritos do mal – sombras que agarravam e arranhavam o nosso jovem amigo, embora Felix tivesse uma aura surpreendentemente poderosa no Duat. Seu brilho vívido roxo parecia manter os espíritos longe.
Alyssa estava rodeada por uma tempestade de pó na forma de um homem gigante. Enquanto ela cantava, Geb, o deus da terra, levantou os braços e segurou o teto. O exército shabti em torno dela ardia como fogo.
Khufu não parecia diferente no Duat, mas enquanto ele saltava ao redor da sala fugindo da estátua de Anúbis, a caixa de ouro que ele levava se abriu. Dentro era pura escuridão – como se estivesse cheia de tinta de polvo.
Eu não tinha certeza do que aquilo significava, mas então olhei para Walt e engasguei.
No Duat, ele estava envolto em linho cinza bruxuleante – pano de múmia. Sua carne era transparente. Seus ossos estavam iluminados, como se fosse um raio-X vivo.
Sua maldição, pensei. Ele está marcado para morrer.
Ainda pior: a criosfinge de frente para ele era o centro da tempestade de Caos. Gavinhas de luz vermelha se espalhavam a partir do seu corpo. Seu rosto de carneiro mudou para a cabeça de Apófis, com olhos amarelos serpenteantes e presas gotejantes.
Ele se lançou para Walt, mas antes que pudesse atacar, Walt jogou um amuleto. Correntes de ouro explodiram na cara do monstro, se envolvendo em torno de seu focinho. A criosfinge tropeçou e se debateu como um cão em uma focinheira.
— Sadie, está tudo bem. — A voz de Walt soou mais profunda e mais confiante, como se ele fosse mais velho no Duat. — Lance a sua magia. Depressa.
A criosfinge flexionou suas mandíbulas. As correntes de ouro gemeram. A outra criosfinge havia apoiado Carter contra a parede. Felix estava de joelhos, sua aura roxa falhando em um redemoinho de espíritos das trevas. Alyssa estava perdendo sua batalha contra a sala desmoronando conforme pedaços do teto caiam em torno dela. A estátua de Anúbis pegou a cauda de Khufu, segurou-o de cabeça para baixo enquanto o babuíno uivava e passava os braços em torno do baú de ouro.
Era agora ou nunca: eu tive que restaurar a ordem.
Eu canalizei o poder de Ísis, extraindo tão profundamente de minhas próprias reservas de magia que pude sentir a minha alma começar a queimar. Obriguei-me a me concentrar, e falei a mais poderosa de todas as palavras divinas: “Maat.”
O hieróglifo queimava na minha frente, pequeno e brilhante como um sol miniatura:
— Bom! — Walt disse. — Mantenha!
De alguma forma, ele havia conseguido puxar as correntes e pegar focinho da esfinge. Enquanto a criatura o batia com toda a sua força, a estranha aura cinza de Walt estava se espalhando por todo o corpo do monstro como uma infecção. A criosfinge assobiava e se contorcia. Eu peguei uma baforada de decomposição como o ar de um túmulo – tão forte que quase perdi minha concentração.
— Sadie — Walt pediu — mantenha a mágica!
Eu me concentrei no hieróglifo. Canalizei toda a minha energia para o símbolo da ordem e da criação. A palavra brilhou mais forte. Os aros da serpente queimaram como nevoeiro no sol. As duas criosfinges desmoronaram em pó. Os vasos canopos caíram e quebraram. A estátua de Anúbis deixou Khufu cair. O exército de shabti congelou em torno de Alyssa, e sua magia da terra se espalhou pela sala, vedando frestas e escorando as paredes.
Senti Apófis se retirando mais fundo no Duat, sibilando de raiva.
Então eu prontamente desabei.

***

— Eu disse que ela poderia fazer isso — disse uma voz gentil.
A voz de minha mãe... mas é claro que era impossível. Ela estava morta, o que significava que eu falaria com ela apenas ocasionalmente, e apenas no submundo.
Minha visão voltou, confusa e obscura. Duas mulheres pairavam sobre mim. Uma era minha mãe, os cabelos loiros amarrados para trás, seus profundos olhos azuis brilhantes com orgulho. Ela era transparente, como fantasmas tendem a ser, mas a voz dela estava quente e muito viva.
— Não é o fim ainda, Sadie. Você deve seguir em frente.
Próximo a ela estava Ísis em seu vestido branco de seda, suas asas de arco-íris de luz piscando atrás dela. Seu cabelo era preto brilhante, tecido com fios de diamantes. O rosto era tão bonito como o da minha mãe, mas mais rainha, menos apaixonado.
Não me entenda mal. Eu sabia por compartilhar os pensamentos de Ísis que ela cuidava de mim de seu próprio jeito, mas os deuses não são humanos. Eles têm dificuldade de pensar em nós como mais do que ferramentas úteis ou animais de estimação bonitos. Para os deuses, uma vida humana não parece durar muito mais tempo do que a de um esquilo-da-mongólia.
— Eu não teria acreditado — disse Ísis. — O último mágico a invocar o Maat foi a própria Hatshepsut, e mesmo ela só pôde fazer isso enquanto usava uma barba falsa.
Eu não tinha ideia do que isso significava. Decidi que não queria saber.
Tentei me mover, mas não consegui. Eu senti como se estivesse flutuando na parte inferior de uma banheira, suspensa em água quente, as duas mulheres me encaravam com rostos ondulando pouco acima da superfície.
— Sadie, ouça com atenção — disse minha mãe. — Não se culpe pelas mortes. Quando você fizer o seu plano, seu pai vai contestar. Você deve convencê-lo. Diga-lhe que é a única maneira de salvar as almas dos mortos. Diga-lhe... — A sua expressão ficou sombria. — Diga-lhe que é a única maneira de me ver novamente. Você precisa ter sucesso, meu doce.
Eu queria perguntar o que ela queria dizer, mas não conseguia falar.
Ísis tocou na minha testa. Seus dedos eram tão frios como a neve.
— Nós não devemos forçá-la mais. Adeus por agora, Sadie. O momento em que nós precisaremos nos unir novamente se aproxima rapidamente. Você está forte. Ainda mais forte do que a sua mãe. Juntas, vamos governar o mundo.
— Você quer dizer, juntas vamos derrotar Apófis — minha mãe corrigiu.
— É claro — disse Isis. — Isso é o que eu quis dizer.
Seus rostos borrados se juntaram. Elas falaram em uma só voz:
— Eu te amo.
Uma nevasca varreu meus olhos. O ambiente ao meu redor mudou, e eu estava em um cemitério escuro com Anúbis. Não o mofado e velho deus com cabeça de chacal como ele aparece em tumbas egípcias de arte, mas Anúbis como eu costumo vê-lo – um adolescente com olhos marrons quentes, cabelo preto desgrenhado e um rosto que é ridiculamente, irritantemente lindo.
Quero dizer, por favor – sendo um deus, ele tinha uma vantagem injusta. Ele poderia ter a aparência que quisesse. Por que ele sempre tem que aparecer nessa forma que torcia minhas entranhas?
— Maravilhoso — consegui dizer. — Se você está aqui, eu devo estar morta.
Anúbis sorriu.
— Não está morta, mas você chegou perto. Aquela foi uma jogada arriscada.
Uma sensação de queimação começou no meu rosto e percorreu seu caminho para o meu pescoço. Eu não tinha certeza se era vergonha, raiva, ou prazer em vê-lo.
— Onde você esteve? — exigi. — Seis meses e nenhuma palavra.
Seu sorriso derreteu.
— Eles não me deixaram vê-la.
— Quem não iria deixar?
— Existem regras — disse ele. — Mesmo agora eles estão assistindo, mas você está perto o suficiente da morte para que eu possa gerenciar alguns momentos. Eu preciso te dizer: você tem a ideia certa. Olhe o que não está lá. É a única maneira de sobreviver.
— Certo — resmunguei. — Obrigada por não falar em enigmas.
A sensação de calor atingiu o meu coração. Ele começou a bater, e de repente percebi que tinha ficado um piscar de olhos parado durante o meu desmaio. Isso provavelmente não era bom.
— Sadie, há algo mais. — A voz de Anúbis tornou-se aguada. Sua imagem começou a desaparecer. — Eu preciso te dizer...
— Diga-me em pessoa — retruquei. — Nada disso de ‘visão da morte’, um absurdo.
— Eu não posso. Eles não vão me deixar.
— Você ainda soa como um menino. Você é um deus, não é? Pode bem fazer o que quiser.
A raiva ardia em seus olhos. Então, para minha surpresa, ele riu.
— Eu tinha esquecido de como você é irritante. Vou tentar visitá-la... brevemente. Nós temos algo para discutir. — Ele estendeu a mão e limpou a lateral do meu rosto. — Você está acordando agora. Adeus, Sadie.
— Não vá.
Eu segurei sua mão e pressionei contra a minha bochecha.
O calor se espalhou por todo meu corpo. Anúbis desapareceu.

***

Meus olhos se abriram.
— Não vá!
Minhas mãos queimadas estavam enfaixadas, e eu estava segurando uma cabeluda pata de babuíno. Khufu olhou para mim, um pouco confuso.
— Agh?
Oh, fabuloso. Eu estava flertando com um macaco.
Sentei-me meio grogue. Carter e os nossos amigos se reuniram em volta de mim. A sala não tinha desmoronado, mas a exposição do rei Tut toda estava em ruínas. Eu tinha a sensação de que não seria convidada a juntar-me aos Amigos do Museu de Dallas em breve.
— O-o que aconteceu? — gaguejei. — Quanto tempo?
— Você ficou morta por dois minutos — disse Carter, sua voz instável. — Quero dizer, sem batimentos cardíacos, Sadie. Eu pensei... eu temia...
Ele engasgou-se. Pobre garoto. Ele realmente teria ficado perdido sem mim.
[Ai, Carter! Não me belisque.]
— Você convocou o Maat — Alyssa disse com espanto. — Isso é tipo... impossível.
Acho que foi bastante impressionante. Usar palavras divinas para criar um objeto como um animal, uma cadeira ou uma espada é difícil o suficiente. Evocar um elemento como o fogo ou a água é ainda mais complicado. Mas a convocação de um conceito, como Ordem, somente não é feito.
No momento, porém, eu estava com muita dor para apreciar minha própria extraordinariedade. Eu me sentia como se tivesse apenas convocado uma bigorna e jogado na minha própria cabeça.
— Jogada de sorte — respondi. — E a caixa de ouro?
— Agh!
Khufu apontou orgulhosamente para a caixa dourada, que estava próxima, sã e salva.
— Bom babuíno — eu disse. — Cheerios extra para você esta noite.
Walt franziu a testa.
— Mas O Livro da Derrota de Apófis foi destruído. Como é que um baú vai nos ajudar? Você disse que era algum tipo de pista...?
Achei difícil olhar para Walt sem me sentir culpada. Meu coração tinha estado dividido entre ele e Anúbis por meses, e não era justo que Anúbis aparecesse em meus sonhos, fazendo tudo parecer quente e imortal, enquanto o pobre Walt estava arriscando sua vida para me proteger e ficando mais fraco a cada dia. Lembrei-me de como o tinha visto no Duat, na sua roupa de múmia fantasmagórica cinzenta...
Não. Eu não podia pensar nisso. Obriguei-me a me concentrar no baú de ouro.
Olhe para o que não está lá, Anúbis tinha dito. Deuses sanguinários e seus enigmas sangrentos.
O rosto do Tio Vinnie na parede dissera-me que a caixa nos daria uma dica sobre como derrotar Apófis, se eu fosse inteligente o suficiente para entendê-la.
— Eu não sei o que isso significa, no entanto — admiti. — Se os texanos nos deixarem levá-la de volta para a Casa do Brooklyn...
A compreensão horrível caiu sobre mim. Não havia mais sons de explosões lá fora. Apenas um silêncio sinistro.
— Os texanos! — gritei. — O que aconteceu com eles?
Felix e Alyssa correram para a saída. Carter e Walt ajudaram-me a ficar de pé, e nós corremos atrás deles.
Os guardas tinham desaparecido de seus postos. Nós alcançamos o hall de entrada do museu e eu vi a coluna de fumaça branca saindo das paredes de vidro, subindo do jardim de esculturas.
— Não — murmurei. — Não, não.
Nós corremos para o outro lado da rua. O gramado bem cuidado era agora uma cratera do tamanho de uma piscina olímpica. O fundo estava coberto com esculturas de metal derretido e pedaços de pedra. Túneis, que uma vez levaram para a sede do Quinquagésimo-primeiro Nomo, ruíram como um formigueiro gigante em que alguns valentões haviam pisado. Em torno da borda da cratera estavam pratos  e taças de champanhe quebradas e as equipes destroçadas de magos.
Não se culpe pelas mortes, mamãe tinha dito.
Metade da laje de concreto havia rachado e deslizado para dentro da cratera. Um violino carbonizado estava na lama ao lado de um pouco de prata reluzente.
Carter estava ao meu lado.
— Nós devemos procurar... — disse ele. — Pode haver sobreviventes.
Eu engoli um soluço. Eu não sabia como, mas sentia a verdade com uma certeza absoluta.
— Não há qualquer sobrevivente.
Os magos do Texas tinham nos acolhido e nos apoiado. JD Grissom havia sacudido a minha mão e me desejou sorte antes de correr para fora para salvar sua esposa. Mas nós vimos o trabalho de Apófis em outro nomos. Carter tinha avisado JD: Os lacaios da Serpente não deixam qualquer sobrevivente.
Ajoelhei-me e peguei o pedaço brilhante de prata – uma fivela de cinto Lone Star meio derretida.
— Eles estão mortos — disse. — Todos eles.

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