quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A Sombra da Serpente - Sadie

Capítulo 1 - Destruímos e queimamos uma festa

Sadie Kane aqui.
Se está ouvindo isso, parabéns! Você sobreviveu aos Dias do Demônio.
Eu gostaria de me desculpar agora mesmo por qualquer inconveniência que o fim do mundo possa ter causado a você. Os terremotos, rebeliões, desordem, tornados, inundações, tsunamis, e é claro, a cobra gigante que engoliu o sol – receio que a maior parte disso foi nossa culpa.
Carter e eu decidimos que devíamos pelo menos explicar como isso aconteceu. Isso provavelmente estará em nossa última gravação. No momento em que você ouvir nossa história, a razão para isso será óbvia.
Nossos problemas começaram em Dallas, quando o carneiro cuspidor de fogo destruiu a exposição do rei Tut.  Naquela noite, os magos do Texas estavam dando uma festa no jardim escultural do outro lado do Museu de Arte de Dallas. Os homens vestiam smokings e botas de cowboy. As mulheres usavam vestidos para a noite e penteados que pareciam explosões de fio doce.
[Carter disse que se chama algodão doce na América. Eu não ligo. Cresci em Londres, então só espere e aprenda o jeito apropriado de dizer as coisas.]
Uma banda tocava música country antiga no palco. Cordas de luzinhas pisca-pisca brilhavam nas árvores. Magos ocasionalmente surgiam de portas secretas nas esculturas ou invocavam faíscas de fogo para afugentar os malditos mosquitos, mas tirando isso, se parecia muito com uma festa normal.
O líder do Quinquagésimo Primeiro Nomo, JD Grissom, estava conversando com seus convidados e degustando um prato de tacos de carne quando nós o puxamos para um encontro de emergência. Me senti mal por isso, mas não havia muita escolha, considerando o perigo que ele estava correndo.
— Um ataque? — ele franziu o cenho — A exposição Tut esteve aberta por um mês. Se Apófis fosse atacar, ele já não teria atacado?
JD era alto e robusto, com um rosto enrugado e sem expressão, cabelo ruivo emplumado e mãos tão grossas quanto casca de árvore. Parecia estar perto dos quarenta anos, mas é difícil de dizer com magos. Ele podia ter quatrocentos anos. Vestia um terno preto com uma gravata de laço e um cinto de fivela Lone Star grande e prata, como um marechal de Faroeste.
— Vamos conversar no caminho — Carter disse.
Ele começou a nos levar na direção oposta do jardim.
Tenho que admitir que meu irmão estava agindo extraordinariamente confiante. Ele ainda era um imbecil de marca maior, é claro. Seu cabelo castanho tinha uma falha do lado esquerdo onde seu grifo tinha lhe dado uma “mordida de amor,” e você podia dizer pelos cortes no rosto que ele não era muito bom na arte de se barbear. Mas desde o seu décimo quinto aniversário ele tinha disparado no peso e criado músculos nas horas de treino de combate. Parecia preparado e maduro em suas roupas pretas de linho, especialmente com a espada khopesh a seu lado. Eu quase conseguia imaginá-lo como um líder sem rir histericamente.
[Por que você está me encarando, Carter? Essa foi uma descrição bem generosa.]
Carter deu a volta na mesa de buffet, pegando um punhado de tortillas.
— Apófis tem um padrão — ele disse a JD. — Todos os outros ataques aconteceram na noite de lua nova, quando a escuridão é maior. Acredite em mim, ele vai atacar seu museu hoje à noite. E ele vai atacar com força.
JD Grissom se espremeu em torno de um grupo de magos bebendo champanhe.
— Esses outros ataques... — ele disse. — Você quer dizer os de Chicago e da Cidade do México?
— E Toronto — Carter disse. — E... mais alguns.
Eu sabia que ele não queria falar mais. Os ataques que tínhamos testemunhado no verão deram a nós pesadelos.
O verdadeiro Armagedom ainda não havia chegado. Já fazia seis meses desde que a cobra do caos, Apófis, havia escapado de sua prisão no submundo, mas ele ainda não tinha lançado uma invasão em grande escala no mundo mortal como havíamos esperado.
Por alguma razão, a serpente estava passando o tempo, fazendo ataques menores nos nomos que pareciam seguros e felizes.
Como esse, pensei.
Enquanto passávamos pelo pavilhão, a banda terminava a música. Uma moça bem loira com um violino ergueu seu arco para JD.
— Qual é, docinho! — ela gritou. — Precisamos de você na guitarra!
Ele forçou um sorriso.
— Já vou, querida. Já volto.
Continuamos a caminhar. JD se virou para nós.
— Minha esposa, Anne.
— Ela também é uma maga? — perguntei.
Ele assentiu, sua expressão ficando sombria.
— Esses ataques. Por que vocês têm tanta certeza de que Apófis atacará aqui?
A boca de Carter estava cheia de tortillas, então sua resposta foi “Mhm-hmm.”
— Ele está atrás de um certo artefato — traduzi — Ele já destruiu cinco cópias dele. O último que restou por acaso está na sua exposição de Tut.
— Qual artefato? — JD perguntou.
Eu hesitei. Antes de ir a Dallas, tínhamos projetado todos os tipos de feitiços de escudo e carregado amuletos de proteção para prevenir bisbilhoteiros mágicos, mas eu ainda fiquei nervosa de contar nossos planos em voz alta.
— Melhor nós te mostrarmos. — Eu dei a volta em uma fonte, onde dois jovens magos estavam desenhando mensagens de Eu te amo brilhantes nas pedras da calçada com suas varinhas. — Nós trouxemos nossa própria equipe de combate para ajudar. Eles estão esperando no museu. Se você nos deixar examinar o artefato, possivelmente levá-lo conosco para mantê-lo a salvo...
— Levá-lo com vocês?  — JD fez uma carranca. — A exposição é altamente protegida. Tenho meus melhores magos circundando dia e noite. Você acha que pode fazer melhor na casa no Brooklyn?
Paramos na beira do jardim. No outro lado da rua, um cartaz do rei Tut de dois andares de altura estava pendurado do lado do museu.
Carter tirou seu celular do bolso. Ele mostrou a JD Grissom uma imagem na tela – uma mansão queimada que uma vez fora o quartel general para o Centésimo Nomo em Toronto.
— Tenho certeza que seus guardas são bons — Carter disse. — Mas preferiríamos não fazer de seu nomo um alvo para Apófis. Nos outros ataques como esse... os servos da serpente não deixaram nenhum sobrevivente.
JD encarou a tela do celular, então olhou para sua esposa, Anne, que estava caminhando com um passo de dois.
— Ótimo — JD disse. — Espero que seu time seja melhor.
— Eles são incríveis — prometi. — Qual é, deixe-me apresentá-los a você.
Nosso esquadrão de combate estava ocupado invadindo a loja de presentes.
Felix tinha invocado três pinguins, cada qual estava vagueando ao redor vestindo máscaras do rei Tut de papel. Nosso amigo babuíno, Khufu, sentou no topo de uma estante lendo A História dos Faraós, o que teria sido bem impressionante se ele não estivesse segurando o livro de cabeça para baixo. Walt – ah, querido Walt, por quê? – tinha aberto o armário de joias e estava examinando braceletes e colares como se fossem mágicos. Alyssa levitava potes de argila com seu elemento mágico terra, fazendo malabarismo com vinte ou trinta de uma vez.
Carter pigarreou.
Walt congelou, suas mãos cheias de joias de ouro. Khufu caiu da prateleira, espalhando a maioria dos livros. A cerâmica de Alyssa caiu no chão. Felix tentou enxotar seus pinguins para trás da gaveta da caixa registradora. (Ele tem um sentimento bem forte sobre a utilidade de pinguins. Temo que não possa explicar isso.)
JD Grissom tamborilou seus dedos contra seu cinto Lone Star.
— Esse é seu time incrível?
— Sim! — Tentei dar um sorriso de vitória. — Desculpe pela bagunça. Eu só vou, hum...
Puxei minha varinha do meu cinto e recitei uma palavra de poder: “Hi-nehm!
Eu melhorei em alguns feitiços. Na maior parte do tempo, agora eu conseguia canalizar poder de minha deusa patrona Ísis sem desmaiar. E não explodi nenhuma vez.
O hieróglifo de Juntar brilhou brevemente no ar:




Pedaços quebrados de cerâmica voaram, uniram-se e se remendaram sozinhos. Livros voltaram à prateleira. As máscaras do rei Tut voaram dos pinguins, revelando serem –suspira – pinguins.
Nossos amigos pareceram bem embaraçados.
— Desculpe — Walt murmurou, devolvendo as joias na caixa. — Ficamos entediados.
Eu não conseguia ficar brava com Walt. Ele era alto e atlético como um jogador de basquete, em calças de exercícios e camiseta sem mangas que mostravam seus braços esculpidos. Sua pele era da cor de chocolate quente, seu rosto tão majestoso e incrível quanto as estátuas de seus ancestrais faraós.
Se eu gostava dele? Bem, é complicado. Vou falar mais sobre isso depois.
JD Grissom olhou nossa equipe.
— Prazer em conhecer todos — ele tentou conter seu entusiasmo. — Venham comigo.
O salão principal do museu era uma vasta sala branca com mesas de café vazias, um palco e um teto alto o bastante para uma girafa de estimação. De um lado, escadas levavam a um terraço com um grupo de funcionários. Do outro, paredes de vidro mostravam o horizonte noturno de Dallas.
JD apontou para o terraço, onde dois homens em vestes pretas estavam patrulhando.
— Viu só? Guardas estão em todo lugar.
Os homens tinham seus cajados e varinhas prontas. Eles olharam para nós, e notei que seus olhos estavam brilhando. Hieróglifos foram pintados em suas maçãs do rosto como pintura de guerra.
Alyssa sussurrou para mim:
— O que houve com os olhos deles?
— Mágica de sobrevivência — adivinhei — os símbolos permitem que os guardas vejam no Duat.
Alyssa beliscou seu lábio. Já que seu patrono era o deus da terra Geb, ela gostava de coisas sólidas, como pedra e barro. Não gostava de altura nem de água profunda. Eladefinitivamente não gostava da ideia do Duat – o domínio mágico que coexistia com o nosso.
Uma vez, quando descrevi o Duat como um oceano debaixo de nossos pés com várias camadas de dimensões descendo para sempre, acho que Alyssa estava quase ficando enjoada.
Felix, de dez anos, por outro lado, não tinha enjoo nenhum.
— Legal! — ele disse. — Quero ter olhos brilhantes.
Ele traçou seus dedos por suas bochechas, deixando gotas roxas brilhantes no formato da Antártica.
Alyssa riu.
— Pode ver o Duat agora?
— Não — ele admitiu. — Mas posso ver meus pinguins muito melhor.
— Precisamos nos apressar — Carter nos lembrou — Apófis geralmente ataca quando a lua está no auge de sua transição. — Que é...
— Agh! — Khufu ergueu dez dedos.
Deixe isso para um babuíno que tem um sentido astronômico perfeito.
— Em dez minutos — eu disse. — Simplesmente brilhante.
Nos aproximamos da entrada da exposição do rei Tut, que era bem difícil de não ver por causa do cartaz dourado gigante que lia-se EXPOSIÇÃO DO REI TUT. Dois magos estavam em guarda com leopardos adultos na coleira.
Carter olhou para JD de espanto.
— Como você conseguiu acesso completo ao museu?
O texano encolheu os ombros.
— Minha esposa, Anne, é presidente do conselho. Então, qual artefato você queria ver?
— Eu estudei os mapas da exposição — Carter disse. — Venha. Vou te mostrar.
Os leopardos pareciam estar bem interessados nos pinguins de Felix, mas os guardas os seguraram e nos deixaram passar.
Lá dentro, a exposição era extensa, mas duvido que você se importaria com os detalhes. Um labirinto de salas com sarcófagos, estátuas, mobília, joias de ouro... blábláblá. Eu teria passado por isso tudo. Já tinha visto coleções egípcias o bastante para várias vidas, muito obrigada.
Além disso, onde quer que eu olhasse, via lembranças de experiências ruins.
Passamos por caixões de shabti, sem dúvida encantados para ganhar vida quando chamados. Já passei da cota de destruí-los. Passamos por estátuas de monstros e deuses carrancudos com quem eu já havia lutado pessoalmente – a deusa urubu Nekhbet, que havia possuído minha avó (longa história); o crocodilo Sobek, que havia tentado matar minha gata (uma história mais longa); e a deusa leoa Sekhmet, a quem nós tínhamos vencido com molho de pimenta (nem pergunte).
O mais perturbador de todos: uma pequena estátua de gesso de nosso amigo Bes, o deus anão. A escultura tinha éons de idade, mas reconheci aquele nariz de argamassa, as costeletas grossas, o barrigão e o rosto adoravelmente feio que parecia ter sido atingido repetidamente por uma frigideira.
Nós só tínhamos conhecido Bes por alguns dias, mas ele tinha literalmente sacrificado sua alma por nós. Agora, a cada vez que eu o via, me lembrava de uma promessa que eu nunca poderia cumprir.
Devo ter encarado a estátua por muito mais tempo que imaginei. O resto do grupo tinha passado por mim e virado para a próxima sala, quase vinte metros à frente, quando uma voz perto de mim disse “Psst!”
Olhei ao redor. Achei que a estátua de Bes podia ter falado. Então a voz falou de novo:
— Ei, boneca. Escute. Não há muito tempo.
Do meio da parede, ao nível dos olhos, o rosto de um homem estava escavado na pintura branca, como se tentasse atravessá-la. Ele tinha um nariz pontudo, lábios muito finos e uma testa grande. Se fosse da mesma cor da parede, pareceria muito mais vivo. Seus olhos brancos e vazios tentavam fazer um olhar de impaciência.
— Você não vai salvar o pergaminho, boneca — ele avisou. — Mesmo se conseguir, nunca vai entendê-lo. Você precisa de minha ajuda.
Eu já havia experimentado muitas coisas estranhas desde que comecei a praticar magia, então não fiquei particularmente assustada. Mesmo assim, eu sabia que não devia confiar em uma aparição de massa corrida velha que falava comigo, especialmente uma que me chamava de boneca. Ele me lembrava um personagem daqueles filmes estúpidos de máfia que os garotos da casa no Brooklyn gostavam de assistir em seu tempo livre – alguém como tio Vinnie, talvez.
— Quem é você? — exigi.
O homem bufou.
— Como se não soubesse. Como se houvesse alguém que não saiba. Você tem dois dias antes de me derrotarem. Se quiser derrotar Apófis, é melhor pegar umas cordas e me tirar daqui.
— Não tenho ideia do que está falando — eu disse.
O homem não soou como Set, o deus demoníaco, ou a serpente Apófis, ou qualquer um dos outros vilões com quem eu havia lutado antes, mas não dava para ter certeza. Existia essa coisa chamada magia, afinal de contas.
O homem projetou seu queixo.
— Certo, entendi. Você quer uma demonstração de confiança. Você nunca vai salvar o pergaminho, mas vá para a caixa dourada. Ela vai te dar uma pista sobre o que precisa, se for esperta o suficiente para entendê-la. Depois de amanhã ao por do sol, boneca. Então minha oferta expira, porque é quando eu fico permanentemente...
Ele engasgou. Seus olhos se alargaram. Ele ficou tenso, como se uma armadilha estivesse apertando seu pescoço. Ele lentamente voltou à parede.
— Sadie? — Walt chamou do fim do corredor. — Está tudo bem?
Olhei para ele.
— Você viu isso?
— Vi o quê? — ele perguntou.
Claro que não, pensei. Que graça teria se outras pessoas enxergassem a minha visão do tio Vinnie? Então eu não poderia me perguntar se estava delirando ou ficando maluca.
A entrada para a próxima sala estava flanqueada por duas esfinges gigantes de obsidiana com os corpos de leões e as cabeças de carneiro. Carter disse que esse tipo particular de esfinge é chamada de criosfinge. [Obrigada, Carter. Todos nós estávamos morrendo de vontade de aprender coisas inúteis.]
— Agh! — Khufu avisou, erguendo cinco dedos.
— Cinco minutos restantes — Carter traduziu.
— Me dê um momento — JD disse. — Essa sala tem os feitiços protetores mais fortes. Vou precisar modificá-los para vocês passarem.
— Hã — eu disse nervosa — mas os feitiços ainda vão afastar os inimigos, como a cobra gigante do caos, certo?
JD me deu um olhar exasperado, do qual tentei entender bem.
— Eu sei uma ou outra coisa sobre magia de proteção — ele prometeu. — Confie em mim. — Ele ergueu sua varinha e começou o encantamento.
Carter me puxou para o seu lado.
— Você está bem?
Eu devia ter ficado muito abalada do meu encontro com tio Vinnie.
— Estou bem — eu disse. — Vi uma coisa lá atrás. Provavelmente só um dos truques de Apófis, mas...
Meus olhos desviaram para o outro fim do corredor. Walt estava olhando para um trono dourado em uma cápsula de vidro. Ele foi para frente com uma mão no vidro como se estivesse doente.
— Espera aí — eu disse a Carter.
Fui para o lado de Walt. A luz da exposição banhava seu rosto, tornando seus traços marrom avermelhados como os morros do Egito.
— O que foi? — perguntei.
— Tutancâmon morreu nessa cadeira — ele disse.
Li a placa. Não dizia nada sobre Tut ter morrido na cadeira, mas Walt pareceu ter certeza. Talvez ele pudesse sentir a maldição da família. O rei Tut era o tio-avô no bilionésimo grau de Walt, e o mesmo veneno genético que matou Tut aos dezenove anos agora corria pelo sangue de Walt, ficando mais forte quando mais ele praticava magia. Mesmo assim, Walt se recusava a desistir. Olhando para o trono de seu ancestral, ele devia se sentir como estivesse lendo seu próprio obituário.
— Vamos encontrar uma cura — prometi. — Assim que derrotarmos Apófis...
Ele olhou para mim, e minha voz fraquejou. Nós dois sabíamos que nossas chances de derrotar Apófis eram poucas. Mesmo se conseguíssemos, não havia garantia de que Walt viveria o bastante para comemorar a vitória. Hoje era um dos dias bons de Walt, e ainda assim eu podia ver a dor em seus olhos.
— Pessoal — Carter chamou. — Estamos prontos.
A sala além das criosfinges era uma coleção de “maiores sucessos” de vida após a morte egípcia. Um Anúbis de madeira em tamanho real olhava para baixo de seu pedestal. Em cima da réplica da balança da justiça sentava um babuíno dourado, com quem Khufu imediatamente começou a flertar. Havia máscaras de faraós, mapas do submundo, e vários jarros de vísceras que haviam sido preenchidos com órgãos mumificados.
Carter passou por tudo isso. Ele nos reuniu em torno de um longo rolo de pergaminho em um vidro na parede.
— É isso que você quer? — JD franziu o cenho. — O livro da derrota de Apófis? Você deve saber que mesmo os melhores feitiços contra Apófis não fazem muito efeito.
Carter alcançou o bolso e pegou um punhado de papiro queimado.
— Conseguimos salvar isso em Toronto. Era outra cópia desse mesmo rolo.
JD pegou o pergaminho. Não era maior que um cartão de visitas e estava tão queimado que não nos deixou decifrar mais que alguns hieróglifos.
— “Derrotar Apófis...” — ele leu. — Mas esse é um dos rolos de magia mais comuns. Centenas de cópias sobreviveram dos tempos antigos.
— Não. — Lutei contra a vontade de olhar sob o ombro, no caso de serpentes gigantes estarem escutando. — Apófis só está atrás de uma versão em particular, escrita por esse sujeito.
Toquei a plaqueta de informação próxima à exibição.
— “Atribuído a Prince Khaemwaset” — eu li — “mais conhecido como Setne”.
JD fez uma careta.
— Esse é um nome maligno... um dos magos mais malignos de todos os tempos.
— Foi isso que ouvimos falar — eu disse — e Apófis está destruindo só a versão deSetne do rolo. Só sabemos que apenas seis cópias existiram. Apófis já queimou cinco. Essa é a última.
JD estudou o papiro queimado em dúvida.
— Se Apófis realmente se ergueu do Duat com todo o seu poder, por que se importaria com alguns rolos? Nenhum feitiço possivelmente irá pará-lo. Por que ele já não destruiu o mundo?
Estivemos perguntando essa mesma questão para nós mesmos por meses.
— Apófis tem medo desse rolo — eu disse, esperando estar certa. — Algo dentro dele deve conter o segredo para derrotá-lo. Ele quer ter certeza de que todas as cópias sejam destruídas antes de invadir o mundo.
— Sadie, precisamos nos apressar — Carter disse. — O ataque pode vir a qualquer minuto.
Cheguei mais perto do rolo. Ele parecia ter cerca de dois metros de comprimento e meio metro de largura, com linhas densas de hieróglifos e ilustrações coloridas. Eu já tinha visto um monte de rolos como esse descrevendo meios de derrotar o caos, com encantamentos desenvolvidos para evitar que a serpente Apófis devore o deus do sol Rá em sua jornada noturna pelo Duat. Egípcios antigos eram bem obcecados com esse assunto. Galera animada, esses egípcios.
Eu conseguia ler os hieróglifos – um dos meus vários incríveis talentos – mas o rolo tinha muito a revelar. À primeira vista, nada me pareceu particularmente útil. Havia as usuais descrições do Rio da Noite, no qual o barco do sol de Rá navegava rio abaixo. Havia dicas de como lidar com vários demônios no Duat. Reconhecê-los. Matá-los. Conseguir a camiseta.
— Sadie? — Carter perguntou. — Alguma coisa?
— Não sei ainda — murmurei. — Só um momento.
Achei chato que meu irmão estudioso fosse o mago de combate, enquanto eu era a grande leitora de magia. Eu mal tinha paciência com revistas, muito menos com rolos bolorentos.
Você nunca vai entendê-lo, o rosto na parede havia avisado. Precisa de minha ajuda.
— Temos que levar isso conosco — decidi. — Tenho certeza que posso descobrir alguma coisa com um pouco mais...
O prédio sacudiu. Khufu gritou e pulou para os braços do babuíno dourado. Os pinguins de Felix pinguinaram ao redor freneticamente.
— Isso parece... — O rosto de JD Grissom ficou branco. — Uma explosão lá fora. A festa!
— É uma distração — Carter avisou. — Apófis está tentando atrair nossas defesas para longe do rolo.
— Eles estão atacando meus amigos — JD disse em uma voz estrangulada. — Minha esposa.
— Vai! — Eu disse. Olhei para meu irmão. — Podemos tomar conta do rolo. A esposade JD está em perigo!
JD apertou minhas mãos.
— Pegue o rolo. Boa sorte.
Ele correu da sala.
Me virei para a exibição.
— Walt, pode abrir o vidro? Precisamos tirar isso daqui o mais rápido...
Uma risada maléfica preencheu a sala. Uma voz áspera e forte, profunda como uma explosão nuclear, ecoou por todos os lados:
— Acho que não, Sadie Kane.
Minha pele pareceu ter virado papiro. Eu me lembrava daquela voz. Lembrava como parecia estar tão perto do caos, como se seu sangue estivesse pegando fogo, e as cadeias do meu DNA estivessem se desenrolando.
— Acho que vou destruir você junto dos guardiões do Maat — Apófis disse. — Sim, isso será divertido.
Na entrada da sala, as duas criosfinges de obsidiana se viraram. Elas bloquearam a saída, ficando ombro a ombro. Chamas ondulavam de suas narinas.
Na voz de Apófis, elas falaram em uníssono:
— Ninguém deixa esse lugar vivo. Adeus, Sadie Kane.

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