segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Trono de Fogo - Carter

Capítulo 17 - Menshikov contrata um esquadrão da morte alegre

EU ACHO QUE ESTAMOS QUITES, SADIE. Primeiro Walt e eu saímos em disparada para te salvar em Londres. Então, você e Walt saíram em disparada para me salvar.
O único em desvantagem em ambos os casos foi Walt. O pobre sujeito foi arrastado pelo mundo todo nos tirando de problemas. Mas admito que eu precisava de ajuda.
Bes estava preso em uma jaula com brilho fluorescente. Zia estava convencida de que nós éramos inimigos. Minha espada e cajado se foram. Eu estava segurando um cetro e um mangual que eram, aparentemente, propriedade roubada, e dois dos mais poderosos magos do mundo, Michel Desjardins e Vlad, o Inalador, estavam prontos para me prender, julgar e me executar – não necessariamente nessa ordem.
Eu voltei para a tumba de Zia, porém não havia para onde ir. Lama vermelha se espalhava em todas as direções pontilhadas com destroços e peixes mortos. Eu não podia correr ou me esconder, sobrando-me duas opções: render-me ou lutar. Os olhos marcados de Menshikov brilharam.
― Sinta-se à vontade para resistir, Kane. O uso da força letal tornaria o meu trabalho muito mais fácil.
― Vladimir, pare ― Desjardins disse cansado, apoiado em seu cajado. ― Carter, não seja tolo. Renda-se agora.
Há três meses, Desjardins teria ficado entusiasmado em me explodir em pedacinhos. Agora ele parecia triste e cansado, como se a minha execução fosse uma necessidade desagradável.
Zia estava ao lado dele. Ela olhava cautelosamente para Menshikov, como se ela pudesse sentir algo de mal sobre ele. Se eu pudesse usar isso, possivelmente compraria algum tempo...
― Qual é o seu plano, Vlad? ― perguntei. ― Você nos deixou fugir de São Petersburgo com muita facilidade. Quase como se você quisesse que despertássemos Rá.
O russo riu.
― É por isso que eu os segui até o outro lado do mundo para impedi-los?
Ele tentou dar um olhar de desprezo, mas um sorriso puxou-lhe os cantos dos lábios, como se estivéssemos partilhando uma piada particular.
― Você não veio para me impedir ― eu imaginei. ― Você está contando conosco para encontrar os pergaminhos para você e juntá-los. Você precisa que Rá acorde a fim de libertar Apófis?
― Chega, Carter ― Desjardins falou em um tom monótono, como um paciente em cirurgia fazendo contagem regressiva à espera da anestesia fazer efeito.
Eu não entendia o motivo de ele parecer tão apático, mas Menshikov parecia bastante irritado pelos dois. Pelo ódio nos olhos do russo, eu pude dizer que eu atingi um nervo.
― É isso, não é? ― eu disse. ― Maat e Caos estão conectados. Para libertar Apófis você tem que acordar Rá, mas você quer controlar a invocação, ter certeza de que Rá voltará velho e fraco.
O novo cajado de carvalho de Menshikov irrompeu em chamas verdes.
― Rapaz, você não tem ideia do que está dizendo.
― Set provocou você sobre um erro do passado ― eu me lembrei. ― Você tentou despertar Rá uma vez antes, não foi? Usando o quê... somente um pergaminho que você possuía? Foi assim que você queimou o seu rosto?
― Carter! ― Desjardins interrompeu. ― Vlad Menshikov é um herói da Casa da Vida. Ele tentou destruir aquele pergaminho para impedir que qualquer um o utilizasse. Foi assim que ele foi ferido.
Por um momento eu fiquei muito chocado para falar.
― Isso... não pode ser verdade.
― Você deveria fazer sua lição de casa, rapaz ― Menshikov fixou seus olhos arruinados em mim. ― Os Menshikovs são descendentes dos sacerdotes de Amon-Rá. Você já ouviu falar daquele templo?
Tentei me lembrar das histórias que meu pai tinha me dito. Eu sabia que Amon-Rá era um outro nome para Rá, o Deus Sol. E seu templo...
― Eles praticamente controlaram o Egito por séculos ― eu me lembrei. ― Se opuseram Akhenaton quando ele baniu os deuses antigos, talvez até mesmo o assassinaram.
― De fato ― Menshikov concordou. ― Meus antepassados foram campeões dos deuses! Foram eles que criaram o Livro de Rá e esconderam seus três pergaminhos, esperando que um dia um mágico valoroso despertasse seu deus sol.
Eu tentei me concentrar nisso. Eu podia ver totalmente Vlad Menshikov como um antigo sacerdote sanguinário.
― Mas se você é descendente dos sacerdotes de Rá...
― Por que eu me oponho aos deuses? ― Menshikov olhou para o Sacerdote-leitor Chefe como se eu estivesse perguntado algo obviamente estúpido. ― Porque os deuses destruíram a nossa civilização! No momento em que o Egito caiu e Senhor Iskandar proibiu o caminho dos deuses, mesmo a minha família percebeu a verdade. Os antigos caminhos devem ser proibidos. Sim, eu tentei destruir o pergaminho para compensar os pecados dos meus ancestrais. Aqueles que invocarem os deuses devem ser eliminados.
Eu balancei minha cabeça.
― Eu vi você invocar Set. Eu ouvi você falar sobre libertar Apófis. Desjardins, Zia... esse cara está mentindo. Ele vai matar vocês dois.
Desjardins olhou para mim numa espécie de torpor. Amós insistiu que o Sacerdote-leitor Chefe era inteligente, então como ele não percebia a ameaça?
― Chega ― disse Desjardins. ― Venha pacificamente, Carter Kane, ou será destruído.
Eu dei a Zia mais um olhar suplicante. Eu podia ver a dúvida nos olhos dela, mas ela não estava em qualquer condição de me ajudar. Ela tinha acabado de acordar de um pesadelo de três meses de duração. Ela queria acreditar que a Casa da Vida ainda era sua casa e Desjardins e Menshikov eram os mocinhos. Ela não quer ouvir mais nada sobre Apófis.
Eu levantei o cajado e o mangual.
― Eu não vou pacificamente.
Menshikov assentiu.
― Então, será a destruição.
Ele apontou seu cajado para mim, e meus instintos assumiram. Eu ataquei com o cajado. Estava muito longe para alcançá-lo, mas uma força invisível arrancou o cajado da mão de Menshikov e o mandou voando para o Nilo. Ele estendeu sua varinha, mas eu cortei o ar novamente, e Menshikov saiu voando. Ele aterrissou de costas com tanta força que fez um anjo na lama.
― Carter!
Desjardins empurrou Zia para trás dele. Seu próprio cajado aceso com chamas púrpuras.
― Você se atreve a usar as armas de Rá?
Eu olhei para minhas mãos com espanto. Eu nunca senti tanto poder vir a mim tão facilmente, como se eu estivesse destinado a ser um rei. No fundo da minha mente, eu ouvi a voz de Hórus incitando-me: Este é o seu caminho. Este é o seu direito de nascença.
― Você vai me matar de qualquer jeito ― falei a Desjardins.
Meu corpo começou a brilhar. Eu me levantei do chão. Pela primeira vez desde o Ano Novo, eu estava envolto no avatar do deus-falcão – um guerreiro com cabeça de falcão três vezes o meu tamanho normal. Em suas mãos estavam enormes réplicas holográficas do cajado e do mangual. Eu não havia prestado muita atenção ao mangual, mas ele era um malvado punidor – um cabo de madeira com três correntes farpadas, cada uma com uma bola de metal espinhosa na ponta – como uma combinação entre chicote e amaciante de carne.
Dei uma forte pancada no chão, e o guerreiro falcão espelhou minha ação. O flagelo brilhante pulverizou os degraus de pedra do túmulo de Zia, mandou blocos de calcário voando pelo ar. Desjardins levantou um escudo para desviar os cacos. Os olhos de Zia se arregalaram. Eu sabia que provavelmente estava aterrorizando-a e convencendo-a de que eu era o cara mau, mas eu tinha que protegê-la. Eu não poderia deixar Menshikov levá-la para longe.
― Combate mágico ― Desjardins disse com desdém. ― Assim era a Casa da Vida quando nós seguíamos o caminho dos deuses, Carter Kane: mago combatendo mago, traição e duelos entre diferentes templos. Você quer que esses tempos retornem?
― Não tem que ser assim ― respondi. ― Eu não quero brigar com você, Desjardins, mas Menshikov é um traidor. Saia daqui. Deixe-me lidar com ele.
Menshikov se levantou da lama, sorrindo como se tivesse gostado de ser jogado lá.
― Lidar comigo? Quão confiante! De qualquer maneira, Sacerdote-leitor Chefe, deixe o rapaz tentar. Eu vou ter a certeza de pegar os pedaços quando terminar.
Desjardins começou a dizer:
― Vladimir, não. Não é sua a decisão...
Mas Menshikov não esperou. Ele pisoteou o chão com seu pé, e a lama ficou seca e branca em volta dele. Linhas gêmeas de terra endurecida serpenteavam em minha direção, cruzando-se como uma hélice de DNA.
Eu não tinha certeza do que elas fariam, mas sabia que não queria que elas me tocassem. Bati com o meu mangual, arrancando uma porção de lama grande o suficiente para uma banheira de água quente. As linhas brancas continuaram avançando, deixando branco seu caminho abaixo da cratera e subindo do outro lado, correndo em minha direção. Eu tentei sair do seu caminho, mas o guerreiro avatar não era exatamente rápido.
As linhas de magia atingiram meus pés. Elas teciam como vinhas nas pernas do avatar até eu estar enrolado até a cintura. Elas se apertavam contra meu escudo, drenando minha magia, e eu ouvi a voz de Menshikov forçando sua entrada em minha mente.Cobra, a voz sussurrava. Você é um réptil deslizando.
Eu lutei contra o meu terror. Tinha sido transformado em um animal contra a minha vontade uma vez antes e foi uma das piores experiências da minha vida. Desta vez estava acontecendo em câmera lenta. O avatar de combate lutou para manter sua forma, mas a magia de Menshikov era forte. As vinhas de incandescência branca continuavam subindo, circundando meu peito.
Eu abati Menshikov com meu cajado. A força invisível agarrou-o pelo pescoço e o levantou do chão.
― Faça isto! ― ele arfou. ― Mostre-me... o seu poder... deus menor!
Eu levantei meu mangual. Uma boa batida, e eu poderia destruir Vlad Menshikov como um inseto.
― Não vai importar! ― ele engasgou, arranhando seu pescoço. ― O feitiço vai te derrotar de qualquer maneira. Mostre-nos que você é um assassino, Kane!
Olhei para o rosto aterrorizado de Zia, e hesitei por muito tempo. As vinhas brancas cercaram meus braços. O avatar de combate dobrou os joelhos, e eu deixei Menshikov cair.
Dor assolou o meu corpo. Meu sangue gelou. Os membros do avatar se encolheram, a cabeça do falcão lentamente se transformou em uma cabeça de uma serpente. Eu podia sentir meu coração desacelerando, minha visão escurecendo. O gosto do veneno encheu minha boca.
Zia gritou.
― Pare! Isso é demais!
― Pelo contrário ― Menshikov respondeu, esfregando o pescoço irritado. ― Ele merece coisa pior. Sacerdote-leitor Chefe, você viu como esse garoto te ameaçou. Ele quer o trono do faraó. Ele deve ser destruído.
Zia tentou correr para mim, mas Desjardins a deteve.
― Interrompa o feitiço, Vladimir ― ordenou. ― O rapaz pode ser contido de formas mais humanas.
― Humanas, meu senhor? Ele mal é humano!
Os dois magos travaram os olhos. Eu não sei o que teria acontecido, mas então um portal se abriu sob a jaula de Bes. Já vi muitos portais, mas nenhum como este. O vórtice abriu-se ao nível do solo, sugando uma área de tamanho de um trampolim de areia vermelha, peixes mortos, madeiras velhas, cacos de cerâmica e a brilhante jaula fluorescente contendo um deus anão. Enquanto a jaula entrava no vórtice, as barras quebravam-se em estilhaços de luz. Bes descongelou, encontrou-se meio submerso na areia, e proferiu alguns xingamentos criativos.
Então minha irmã e Walt foram atirados por cima do portal, suspensos horizontalmente, como se estivessem correndo na direção do céu. Quando a gravidade assumiu, eles balançaram os braços e caíram na areia.
Eles poderiam ter sido sugados, no entanto, Bes agarrou os dois e conseguiu transportá-los para fora do vórtice. Bes depositou-os em terra firme. Então se virou para Vlad Menshikov, plantou os pés, e arrancou sua camisa havaiana e bermuda como se eles fossem feitos de tecido. Seus olhos brilhavam de raiva. Sua sunga estava bordada com as palavras Orgulho Anão, que era algo que eu realmente não precisava ver.
Menshikov só teve tempo de dizer:
― Como...
― BOO! ― gritou Bes.
O som foi como a explosão de uma bomba-H – ou uma bomba-F, de Feio. O chão tremeu. O rio ondulou. Meu avatar colapsou, e o feitiço de Menshikov se dissolveu com ele, o gosto do veneno na minha boca foi cedendo, a pressão diminuindo então eu pude respirar novamente.
Sadie e Walt já estavam no chão. Zia tinha rapidamente se afastado. Mas Menshikov e Desjardins levaram uma plena explosão de feio direto em seus rostos. Suas expressões se tornaram de espanto, e eles se desintegraram no local. Após um momento de choque, Zia, ofegou.
― Você os matou!
― Nah ― Bes espanou suas mãos. ― Apenas os assustei de volta para casa. Eles podem ficar inconscientes por algumas horas, enquanto seus cérebros tentam processar o meu físico magnífico, mas eles viverão. O mais importante...
Ele franziu a testa para Sadie e Walt.
― Vocês dois tiveram coragem de ancorar de um portal em mim? Pareço uma relíquia?
Sadie e Walt sabiamente não responderam. Eles levantaram, sacudindo a areia.
― Não foi ideia nossa! ― Sadie protestou. ― Ptá nos enviou aqui para te ajudar.
― Ptá ― eu disse. ― Ptá, o deus?
― Não, Ptá o plantador de tâmaras. Eu te conto mais tarde.
― O que há de errado com seu cabelo? ― perguntei. ― Parece que um camelo lambeu.
― Cale a boca. ― Então ela notou Zia. ― Meu Deus, é ela? A verdadeira Zia?
Zia cambaleou para trás, tentando levantar seu cajado.
― Vão embora! ― O fogo crepitou fraco.
― Nós não vamos te machucar ― Sadie prometeu.
As pernas de Zia tremiam. Suas mãos tremiam. Então ela fez a única coisa lógica para alguém que passou pelo o que ela passou ao longo do dia depois de um coma de três meses. Seus olhos viraram e ela desmaiou.
Bes resmungou.
― Menina forte. Ela se aguentou sob um BOO frontal completo! Ainda assim... é melhor a pegarmos e sairmos daqui. Desjardins não se foi para sempre.
― Sadie ― chamei ― você conseguiu o pergaminho?
Ela puxou os três pergaminhos de sua bolsa. Parte de mim estava aliviado. Parte de mim estava assustado.
― Precisamos chegar à Grande Pirâmide ― ela falou. ― Por favor, me diga que você tem um carro.

***

Não somente tínhamos um carro, tínhamos também um grupo inteiro de beduínos. Devolvemos o carro deles logo após escurecer, mas os beduínos pareciam felizes em nos ver, apesar de trazermos mais três pessoas, uma das quais inconsciente.
De alguma forma Bes fez um acordo com eles para nos levarem ao Cairo. Depois de alguns minutos conversando na tenda, ele saiu usando vestes novas. Os beduínos saíram rasgando os restos de sua camisa havaiana em tiras, que eles cuidadosamente amararam em torno de seus braços, antena e retrovisor como talismãs de boa sorte.
Subimos na parte traseira do caminhão. Estava muito lotado e barulhento de tanta conversa enquanto nos dirigíamos para Cairo. Bes nos disse para dormir um pouco enquanto ele vigiava. Ele prometeu que seria gentil com Zia se ela acordasse.
Sadie e Walt caíram direto no sono, mas eu olhei para as estrelas por um tempo. Eu estava dolorosamente ciente de que Zia – a verdadeira Zia – dormia irrequieta bem ao meu lado, e as armas mágicas de Rá, o cajado e o mangual, estavam agora escondidos na minha bolsa.
Meu corpo ainda estava zunindo da batalha. O feitiço de Menshikov havia sido quebrado, mas eu ainda podia ouvir sua voz em minha cabeça, tentando me transformar em um réptil de sangue frio – algo como ele.
Finalmente consegui fechar os olhos. Sem proteção mágica, meu ba flutuou à deriva logo que adormeci. Eu me encontrei no Salão das Eras, em frente ao trono do faraó. Entre as colunas de ambos os lados, imagens holográficas brilhavam.
Assim como Sadie havia descrito, a borda da cortina mágica estava se transformando de vermelho para roxo profundo – indicando uma nova era. As imagens em púrpura eram difíceis de decifrar, mas eu pensei ter visto duas figuras lutando em frente a uma cadeira em chamas.
― Sim ― disse a voz de Hórus. ― A batalha se aproxima.
Ele apareceu em uma onda de luz, de pé sobre os degraus do tablado onde o Sacerdote-leitor Chefe costumava sentar. Ele estava na forma humana, um jovem homem musculoso, pele bronzeada e cabeça raspada. Joias brilhavam em sua armadura de batalha de couro, sua khopesh pendurada ao seu lado. Seus olhos brilharam – um ouro, um prata.
― Como você chegou até aqui? ― perguntei. ― Este local não é protegido contra os deuses?
― Eu não estou aqui, Carter. Você está. Mas nós estivemos juntos uma vez. Eu sou um eco em sua mente, uma parte de Hórus que nunca te deixou.
― Eu não entendo.
― Basta ouvir. Sua situação mudou. Você está no limiar da grandeza.
Ele apontou para meu peito. Olhei para baixo e percebi que não estava na minha forma de ba habitual. Ao invés de um pássaro, eu era um humano, vestido como Hórus numa armadura egípcia. Em minhas mãos estavam o cajado e o mangual.
― Não são meus ― falei. ― Eles estavam enterrados com Zia.
― Eles poderiam ser seus ― Hórus replicou. ― Eles são os símbolos do faraó, como o cajado e a varinha, só que cem vezes mais poderosos. Mesmo sem prática, você foi capaz de canalizar seus poderes. Imagine o que poderíamos fazer juntos.
Ele apontou para o trono vazio.
― Você poderia unir a Casa da Vida como seu líder. Poderíamos esmagar nossos inimigos.
Eu não vou negar: parte de mim sentiu um arrepio. Meses atrás, a ideia de ser um líder me aterrorizava até a morte. Agora as coisas mudaram. Minha própria compreensão da magia tinha crescido. Eu passei três meses ensinando e transformando nossos iniciados em uma equipe. Entendi a ameaça que estávamos enfrentando de forma mais clara, e eu estava começando a compreender como canalizar o poder de Hórus sem ser oprimido.
E se Hórus estivesse certo, e eu pudesse liderar os deuses e os magos contra Apófis? Eu gostei da ideia de esmagar nossos inimigos, voltar-me contra as forças do Caos que virou as nossas vidas de cabeça para baixo.
Então me lembrei do modo que Zia olhou para mim quando eu estava prestes a matar Vlad Menshikov, como se eu fosse o monstro. Lembrei o que Desjardins havia dito sobre os maus velhos tempos, quando magos lutavam contra magos. Se Hórus era um eco em minha mente, talvez eu estivesse sendo afetado por seu desejo de governar.
Eu conhecia Hórus muito bem agora. Ele era um bom sujeito de muitas maneiras – corajoso, honrado, justo. Mas também era ambicioso, ganancioso, invejoso e determinado no que dizia respeito a seus objetivos. E seu maior desejo era governar os deuses.
― O cajado e o mangual pertencem a Rá ― eu disse. ― Nós temos que acordá-lo.
Hórus inclinou a cabeça.
― Mesmo que Apófis deseje que isso aconteça? Mesmo que Rá esteja fraco e velho? Eu o adverti sobre as divisões entre os deuses. Você viu como Nekhbet e Babi tentaram eles próprios resolverem o assunto. O conflito só vai piorar. O Caos se alimenta de líderes fracos, lealdades divididas. É disto que Vladimir Menshikov está atrás.
O Salão das Eras tremeu. Ao longo de duas paredes, a cortina de luz púrpura expandiu. À medida que a cena holográfica se alargava, eu pude dizer que a cadeira era um trono de fogo, como a que Sadie tinha descrito em sua visão do barco de Rá. Duas figuras sombrias estavam atracadas em combate, agarradas corpo a corpo como lutadores, mas eu não poderia dizer se eles estavam tentando empurrar o adversário na cadeira ou tentando manter o outro longe dela.
― Menshikov realmente tentou destruir o livro de Rá? ― perguntei.
O olho prata de Hórus cintilou. Ele sempre pareceu um pouco mais brilhante do que o dourado, o que fazia eu me sentir desorientado, como se o mundo inteiro tivesse escolhido um lado.
― Como a maioria das coisas Menshikov diz, é uma verdade parcial. Certa vez ele pensava como você. Ele pensou que poderia trazer de volta Rá e restaurar o Maat. Ele se imaginou como o sumo sacerdote de um novo e glorioso templo, muito mais poderoso do que seus antepassados. Em seu orgulho, pensou que poderia reconstruir o Livro de Rá do pergaminho em sua posse. Ele estava errado. Rá fez um enorme esforço para não ser despertado. As maldições no pergaminho queimaram os olhos de Menshikov. Fogo solar cauterizou sua garganta porque ele se atreveu a ler as palavras do feitiço. Depois disso, Menshikov se tornou amargo. Inicialmente, ele conspirou para destruir o Livro de Rá, mas ele não tinha o poder. Em seguida, criou um novo plano. Ele iria despertar Rá, mas por vingança. É pelo o que ele espera por todos estes anos. É por isso que ele quer que você reúna os pergaminhos e reconstrua o Livro de Rá. Menshikov quer ver o velho deus engolido por Apófis. Ele quer ver o mundo mergulhado na escuridão e no caos. Ele está completamente louco.
― Oh.
[Grande resposta, eu sei. Mas o que você diz depois de uma história como essa?]
No tablado, ao lado de Hórus, o trono vazio do faraó parecia ondular na luz púrpura. Aquela cadeira sempre me intimidou. Há muito tempo atrás, o faraó tinha sido o governante mais poderoso do mundo. Ele havia controlado um império que durou vinte vezes mais do que meu próprio país, os EUA, tinha de existência. Como eu poderia ser digno de estar lá?
― Você pode fazer isso, Carter ― Hórus insistiu. ― Você pode tomar o controle. Por que correr o risco de invocar Rá? Sua irmã terá que ler o livro, você sabe. Você viu o que aconteceu com Menshikov quando apenas um pergaminho saiu pela culatra. Você consegue imaginar se três vezes mais desse poder for desencadeado sobre sua irmã?
Minha boca ficou seca. Já era ruim o bastante eu ter deixado Sadie sair para encontrar o último pergaminho sem mim. Como eu poderia deixá-la se arriscar que aquilo a deformasse como Vlad, o Inalador, ou pior?
― Você vê a verdade agora ― disse Hórus. ― Reivindique o cajado e o mangual para si mesmo. Assuma o trono. Juntos, podemos vencer Apófis. Podemos voltar para o Brooklyn e proteger seus amigos e sua casa.
Casa. Isso soou tão tentador. E os nossos amigos estavam em terrível perigo. Eu tinha visto em primeira mão o que Vlad Menshikov poderia fazer. Imaginei o pequeno Felix ou a tímida Cleo tentando lutar contra esse tipo de magia. Imaginei Menshikov transformando os nossos jovens iniciados em cobras desamparadas. Eu nem sequer tinha certeza se Amós poderia prevalecer contra ele. Com as armas de Rá, eu poderia proteger a Casa do Brooklyn.
Então olhei para as imagens púrpuras piscando contra a parede – duas figuras lutando perante o trono em chamas. Esse era o nosso futuro. A chave para o sucesso não era eu, ou mesmo Hórus – era Rá, o verdadeiro rei dos deuses egípcios.
Perto do trono ardente de Rá, o assento do faraó parecia tão importante como uma poltrona reclinável.
― Nós não somos o suficiente ― revelei a Hórus. ― Precisamos de Rá.
O deus me encarou com seus olhos de ouro e prata como se eu fosse uma pequena presa, quilômetros abaixo dele, e ele estivesse considerando se eu valia ou não o mergulho.
― Você não entende a ameaça ― ele decidiu. ― Fique, Carter. E ouça seus inimigos planejando sua morte.
Hórus desapareceu.
Ouvi passos nas sombras atrás do trono, seguidos de uma familiar respiração rouca. Esperava que meu ba estivesse invisível. Vladimir Menshikov caminhou para a luz, meio que carregando seu chefe, Desjardins.
― Quase lá, meu senhor ― disse Menshikov.
O russo parecia bem descansado em um novo terno branco. O único sinal de nossa luta recente era uma atadura no pescoço, onde eu o dominei com o cajado.
Desjardins, no entanto, parecia ter envelhecido uma década em algumas poucas horas. Ele tropeçou, inclinando-se sobre Menshikov. Seu rosto estava magro. Seu cabelo tinha se tornado branco opaco, e eu não acho que foi tudo devido a ele ter visto a sunga de Bes. Menshikov tentou colocá-lo com calma sobre o trono do faraó, mas Desjardins protestou.
― Nunca, Vladimir. O degrau. O degrau.
― Mas, com certeza, senhor, na sua condição...
― Nunca!
Desjardins sentou-se nos degraus ao pé do trono. Eu não pude acreditar o quão pior ele parecia.
― O Maat está enfraquecendo.
Desjardins estendeu a mão. Uma nuvem fraca de hieróglifos flutuou das pontas de seus dedos no ar.
― O poder do Maat uma vez me sustentou, Vladimir. Agora parece estar absorvendo a minha força vital. É tudo que posso fazer...
Sua voz foi enfraquecendo.
― Não tema, meu senhor ― disse Menshikov. ― Assim que lidarmos com os Kanes, tudo ficará bem.
― Será mesmo? ― Desjardins olhou para cima, e por um momento seus olhos flamejaram com raiva, como costumavam fazer. ― Você nunca tem dúvidas, Vladimir?
― Não, meu senhor ― respondeu o russo. ― Eu dei minha vida para lutar contra os deuses. E continuarei a fazê-lo. Se me permite a ousadia, Sacerdote-leitor Chefe, você não deveria ter permitido Amós Kane em sua presença. Suas palavras são como veneno.
Desjardins pegou um hieróglifo do ar e estudou enquanto girava em sua palma. Eu não reconheci o símbolo, mas ele me lembrava um semáforo com uma figura reta parecendo um sujeito em pé ao seu lado.
― Menhed ― Desjardins disse. ― A paleta do escriba.
Eu olhei para o símbolo vagamente tremulo, e podia ver a semelhança com as ferramentas de escrita em minha bolsa de magia. O retângulo era a paleta, com lugares para a tinta preta e vermelha. A figura reta, ao lado era uma caneta de escrita presa a uma corda.
― Sim, meu senhor ― disse Menshikov. ― Que... interessante.
― Era o símbolo favorito do meu avô ― ponderou Desjardins. ― Jean-François Champollion, você sabe. Ele decifrou o código dos hieróglifos usando a Pedra de Roseta... o primeiro homem fora da Casa da Vida a fazer isso.
― De fato, meu senhor. Eu ouvi a história.
Umas mil vezes, sua expressão parecia dizer.
― Ele ascendeu do nada para se tornar um grande cientista ― Desjardins continuou ―um grande mago, respeitado pelos mortais e também pelos magos.
Menshikov sorriu como se ele estivesse achando graça uma criança que estava se tornando irritante.
― E agora você é o Sacerdote-leitor Chefe. Ele ficaria orgulhoso.
― Ele ficaria? ― Desjardins perguntou. ― Quando Iskandar aceitou a minha família na Casa da Vida, ele disse dar boas vindas ao novo sangue e novas ideias. Ele tinha esperanças de revigorar a Casa. Contudo, com o que nós contribuímos? Nós não mudamos nada. Não questionamos nada. A Casa enfraqueceu. Temos menos iniciantes a cada ano.
― Ah, meu senhor ― Menshikov arreganhou os dentes. ― Deixe-me mostrar que não somos fracos. Sua força de ataque está reunida.
Ele bateu palmas. No final do salão, as portas enormes de bronze se abriram. No começo, eu não pude acreditar nos meus olhos, mas enquanto o pequeno exército marchava em nossa direção, eu ficava cada vez mais alarmado.
A dúzia de magos era a parte menos assustadora do grupo. Eles eram na sua maioria velhos homens e mulheres em vestes de linho tradicional. Muitos tinham em torno de seus olhos uma pintura preta e tatuagens de hieróglifos nas mãos e rostos. Alguns usavam mais amuletos que Walt. Os homens tinham a cabeça rapada, as mulheres usavam cabelo curto ou preso em rabo de cavalo.
Todos tinham expressões sombrias, como uma turba enfurecida de camponeses indo queimar o monstro Frankenstein, exceto que em vez de forquilhas eles estavam armados com cajados e varinhas. Vários tinham espadas também.
De ambos os lados deles havia demônios marchando – cerca de vinte no total. Eu lutei com demônios antes, mas havia algo de diferente nesses. Eles se moviam com mais confiança, como se compartilhassem um senso de propósito. Eles irradiavam maldade tão fortemente que senti que meu ba estava ficando bronzeado.
A pele deles era de todas as cores, do verde ao preto e ao violeta. Alguns estavam vestidos com armaduras, alguns com peles de animais, alguns com pijamas de flanela. Um deles tinha uma motosserra no lugar da cabeça. Outro tinha uma guilhotina. Um terceiro tinha um pé brotando entre seus ombros. Ainda mais assustador que os demônios eram as serpentes aladas.
Sim, eu sei, você está pensando: “Chega de cobras!” Acredite em mim, depois de ser picado pelo tjesu heru em São Petersburgo, eu também não estava feliz em vê-las. Estas não eram de três cabeças, e não eram nem um pouco maiores do que as serpentes normais, mas me causavam arrepios só de olhar.
Imagine uma cobra com asas de uma águia. Agora imagine ela silvando pelo ar, exalando longos jatos de fogo como um lança-chamas. Meia dúzia desses monstros circulava em formação de ataque, saindo e voltando para a formação e cuspindo fogo. Foi um milagre nenhum dos magos ter sido incendiado.
Enquanto o grupo se aproximava, Desjardins lutava para ficar em pé. Os magos e demônios ajoelharam-se diante dele. Uma das serpentes aladas voou na frente do Sacerdote-leitor Chefe e Desjardins a agarrou no ar com uma velocidade surpreendente. A cobra se contorceu em seu punho, mas não tentou atacar.
― Uma uraeus? ― Desjardins perguntou. ― Isso é perigoso, Vladimir. Estas são criaturas de Rá.
Menshikov inclinou sua cabeça.
― No passado já serviram o templo de Amon-Rá, Sacerdote-leitor Chefe, mas não se preocupe. Por causa da minha ascendência, eu posso controlá-las. Eu pensei que fosse apropriado, usar as criaturas do deus do sol para destruir aqueles que o acordariam.
Desjardins liberou a serpente, que jorrou fogo e fugiu.
― E os demônios? ― Desjardins perguntou. ― Desde quando usamos criaturas do Caos?
― Eles estão bem controlados, meu senhor.
A voz de Menshikov soou tensa, como se ele estivesse ficando cansado de agradar seu chefe.
― Esses magos conhecem os encantos apropriados de restrição. Escolhi-os a dedo dos Nomos ao redor do mundo. Eles têm grandes habilidades.
O Sacerdote-leitor Chefe focou em um homem asiático com vestes azuis.
― Kwai, não é?
O homem acenou com a cabeça.
― Pelo que me lembro ― Desjardins disse ― você foi exilado para o Trecentésimo Nomo na Coréia do Norte por assassinar um companheiro mago. E você, Sarah Jacobi — ele apontou para uma mulher com vestes brancas e cabelos pretos repicados ― você foi enviada para a Antártida por causar o tsunami no Oceano Índico.
Menshikov pigarreou.
― Meu senhor, muitos desses magos tiveram problemas no passado, mas...
― Eles são assassinos e ladrões cruéis ― disse Desjardins. ― O que há de pior na nossa casa.
― Mas eles estão ansiosos para provar suas lealdades ― Menshikov assegurou. ― Estão felizes por fazer isto!
Ele sorriu para seus lacaios, como se os incentivassem a parecerem felizes. Nenhum deles o acompanhou.
― Além disso, meu senhor ― continuou Menshikov rapidamente ― se você quiser a Casa do Brooklyn destruída, devemos ser implacáveis. É para o bem do Maat.
Desjardins franziu o cenho.
― E você, Vladimir? Você vai liderá-los?
― Não, meu senhor. Tenho plena confiança de que este, ah, ótimo grupo pode lidar com Brooklyn por conta própria. Eles vão atacar ao entardecer. Quanto a mim, vou seguir os Kanes no Duat e lidar com eles pessoalmente. Você, meu senhor, deveria ficar aqui e descansar. Vou enviar um vidente para seus aposentos para que você possa observar o nosso progresso.
― Ficar aqui ― Desjardins repetiu amargamente. ― E observar.
Menshikov se curvou.
― Nós vamos salvar a Casa da Vida. Eu juro. Os Kanes serão destruídos, os deuses serão colocados de volta ao exílio. O Maat será restaurado.
Eu tinha esperanças que Desjardins recobrasse o juízo e cancelasse o ataque. Em vez disso, seus ombros caíram. Ele virou as costas para Menshikov e olhou para o trono vazio do faraó.
― Vá ― disse ele, cansado. ― Tire essas criaturas fora da minha vista.
Menshikov sorriu.
― Meu senhor.
Virou-se e marchou pelo Salão das Eras, com seu exército pessoal a reboque. Depois que eles foram embora, Desjardins levantou a mão. Uma esfera de luz flutuou do teto e repousou em sua palma.
― Traga-me o Livro de Superação de Apófis ― Desjardins disse à luz. ― Eu devo consultá-lo.
A esfera mágica se dobrou como se curvando, então partiu. Desjardins virou em direção à cortina púrpura de luz – a imagem de duas figuras brigando por um trono de fogo.
― Vou “observar” Vladimir ― ele murmurou para si mesmo. ― Mas não vou “ficar e descansar”.
A cena se desvaneceu e meu ba voltou para o meu corpo.

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