domingo, 18 de janeiro de 2015

A Pirâmide Vermelha - Carter

Capítulo 18 - Quando morcegos de frutas ficam maus

FICAMOS ENCOLHIDOS SOB A MARQUISE de um grande edifício branco do governo, vendo a chuva cair na Place de la Concorde. Estava um dia horrível em Paris. O céu de inverno estava baixo e carregado, e o ar frio e úmido me encharcava até os ossos. Não havia turistas, nenhum movimento de pessoas a pé. Todos com um mínimo de bom senso estavam em algum lugar fechado, junto a uma lareira, saboreando uma bebida quente.
Do lado direito, o rio Sena deslizava pela cidade. Do outro lado da enorme praça, o Jardin des Tuileries estava recoberto por uma névoa úmida.
O obelisco egípcio se erguia solitário e escuro no meio da praça. Esperamos por mais inimigos, mas nenhum apareceu. Lembrei o que Zia tinha dito sobre artefatos necessitarem resfriar por doze horas antes de poderem ser utilizados novamente. Eu torcia para que ela estivesse certa.
— Fique quieto — Bastet me disse.
Eu me encolhi quando ela pressionou a mão contra meu peito. Bastet sussurrou alguma frase em egípcio e a dor cedeu lentamente.
— Costela fraturada — anunciou. — Melhor agora, mas você precisa descansar, pelo menos por alguns minutos.
— E os magos?
— Eu não me preocuparia com eles por enquanto. A Casa vai deduzir que vocês se teletransportaram para algum outro lugar.
— Por quê?
— Paris é o Décimo Quarto Nomo: o quartel-general de Desjardins. Seria loucura vocês tentarem se esconder no território dele.
— Que maravilha — murmurei.
— E seus amuletos os encobrem — continuou Bastet. — Eu poderia encontrar Sadie em qualquer lugar por causa da promessa de protegê-la. Mas os amuletos os manterão escondidos do olhar de Set e de outros magos.
Pensei na sala escura no Primeiro Nomocom todas as crianças olhando para tigelas com óleo. Elas estariam procurando por nós agora? A ideia era sinistra.
Tentei me sentar e gemi baixinho.
— Fique quieto — ordenou Bastet. — Francamente, Carter, você devia aprender a cair como um gato.
— Vou treinar — prometi. — Como você ainda está viva? É essa coisa de “sete vidas”?
— Isso é só uma lenda boba. Eu sou imortal.
— Mas os escorpiões! — Sadie se encolheu mais perto de nós, tremendo e puxando a capa de chuva de Bastet sobre seus ombros. — Nós vimos quando eles a dominaram!
Bastet ronronou como um gato.
— Querida Sadie, você se importa comigo! Devo admitir que já trabalhei com muitosfilhos de faraós, mas vocês dois... — Ela parecia realmente emocionada. — Bem, sinto muito se te preocupei. É verdade que os escorpiões reduziram meu poder a quase nada. Eu os mantive afastados pelo tempo que pude. Depois, só tive energia suficiente para voltar à forma de Muffin e fugir para o Duat.
— Pensei que não fosse boa com portais — observei.
— Bem, para começar, Carter, há muitas maneiras de entrar e sair do Duat. Ele tem muitas regiões e camadas: o Abismo, o Rio daNoite, o Mundo dos Mortos, a Terra dos Demônios...
— Parece encantador — resmungou Sadie.
— Enfim, portais são como portas. Eles se abrem para o Duat para conectar uma parte do mundo mortal à outra. E, sim, tem razão, não sou boa nisso. Mas sou uma criatura do Duat. Quando estou sozinha, fugir para a camada mais próxima quando preciso escapar rapidamente é até fácil.
— E se eles a tivessem matado? — perguntei. — Quer dizer, se tivessem matado Muffin?
— Isso teria me empurrado para áreas mais profundas do Duat. Teria sido como enfiar meus pés em concreto e me jogar no mar. Eu levaria anos, talvez séculos, para voltar a ter poder suficiente para retornar ao mundo mortal. Felizmente, isso não aconteceu. Voltei de imediato, mas quando cheguei ao museu os magos já tinham capturado vocês.
— Não fomos exatamente capturados — informei.
— Não mesmo, Carter? Quanto tempo passou no Primeiro Nomo antes de decidirem matar você?
— Ah, umas vinte e quatro horas.
Bastet assobiou.
— Eles estão amolecendo! Antes, explodiam deuses menores nos primeiros minutos.
— Não somos... do que foi que nos chamou?
Sadie mesmo respondeu, como se estivesse em transe.
— Deuses menores. É isso o que somos, não é? Por isso Zia teve tanto medo de nós, por isso Desjardins quer nos matar.
Bastet bateu no joelho de Sadie.
— Você sempre foi brilhante, minha querida.
— Espere aí — protestei. — Quer dizer que somos hospedeiros de deuses? Isso não é possível. Acho que eu saberia se...
Então, pensei na voz que ressoava dentro de minha cabeça, em como ela me prevenira para me esconder quando encontrei Iskandar. Pensei em todas as coisas que de repente podia fazer, como lutar com uma espada e invocar uma armadura mágica. Eu não tinha aprendido essas coisas nas aulas em casa.
— Carter — começou Sadie — quando a Pedra de Roseta explodiu, libertou cinco deuses, certo? Papai se uniu a Osíris. Amós nos disse isso. Set... não sei, ele escapou de algum jeito. Mas você e eu...
— Os amuletos nos protegeram. — Segurei o Olho de Hórus que levava pendurado no pescoço. — Papai disse que eles nos protegeriam.
— Se tivéssemos ficado longe daquela sala, como ele nos mandou fazer — lembrou Sadie. — Mas estávamos lá, olhando. Queríamos ajudá-lo. Nós praticamente pedimos o poder, Carter.
Bastet assentiu.
— Isso faz toda a diferença. Um pedido.
— E desde então... — Sadie me olhou, hesitante, quase me desafiando a debochar dela. — Tenho tido essa sensação. Como uma voz dentro de mim...
A chuva fria tinha ensopado minhas roupas. Se Sadie não tivesse falado nada, talvez eu pudesse negar o que estava acontecendo, pelo menos por mais algum tempo. Mas pensei no que Amós tinha dito sobre nossa família ter uma longa história com os deuses. Pensei no que Zia nos dissera sobre nossa linhagem: “Os deuses escolhem seus hospedeiros com cuidado. Eles sempre preferem o sangue dos faraós.”
— Tudo bem — admiti. — Também tenho ouvido uma voz. Então, ou estamos os dois ficando malucos...
— O amuleto. — Sadie o puxou para fora pela gola da roupa e o mostrou a Bastet. — É o símbolo da deusa, não é?
Eu não via aquele amuleto havia um bom tempo. Era diferente do meu. Lembrava umankh, ou uma gravata diferente, talvez.
— Isso é um tyet — respondeu Bastet. — Um nó mágico. E, sim, costuma ser chamado...
— O Nó de Ísis — concluiu Sadie.
Eu não imaginava como ela podia saber aquilo, mas minha irmã parecia estar absolutamente certa.
— No Salão das Eras, vi uma imagem de Ísis, depois eu era Ísis, tentando fugir de Set e... ah, Deus. É isso, não é? Eu sou ela.
Sadie agarrou a roupa, como se quisesse arrancar fisicamente a deusa dentro dela. Tudo o que eu podia fazer era olhar. Minha irmã, com seus cabelos de mechas vermelhas e seu pijama de linho, com aqueles coturnos... como ela podia se preocupar com a possibilidade de ser uma deusa? Que deusa ia querer se instalar nela, exceto, talvez, a deusa do chiclete?
Mas... eu também ouvia uma voz em minha cabeça. Uma que não era minha, definitivamente. Olhei para meu amuleto, o Olho de Hórus. Pensei nos mitos que eu conhecia, em como Hórus, filho de Osíris, teve de vingar o próprio pai derrotando Set. E em Luxor eu tinha invocado um avatar com a cabeça de um falcão.
Tinha medo de tentar, mas pensei: Hórus?
Bem, já era hora, disse a voz. Olá, Carter.
— Ah, não — falei, sentindo o pânico dominar meu peito. — Não, não, não. Alguém me traga um abridor de latas. Tem um deus preso na minha cabeça.
Os olhos de Bastet se iluminaram.
— Você se comunicou diretamente com Hórus? Que progresso excelente!
— Progresso? — Eu segurei a cabeça com as duas mãos. — Tire-o daqui!
Calma, disse Hórus.
— Não me diga para ficar calmo!
Bastet me olhou intrigada.
— Eu não disse.
— Estava falando com ele. — Apontei para minha testa.
— Isso é horrível — gemeu Sadie. — Como me livro dela?
Bastet farejou o ar.
— Primeiro, Sadie, você não a tem inteira. Nós, deuses, somos muito poderosos. Podemos existir em muitos lugares ao mesmo tempo. Mas, sim, parte do espírito de Ísis reside agora em você. Como Carter abriga agora o espírito de Hórus. E, francamente, vocês dois deveriam sentir-se honrados.
— É claro, muito honrados — ironizei. — Sempre quis ser possuído!
Bastet revirou os olhos.
— Por favor, Carter, isso não é possessão. Além do mais, você e Hórus desejam a mesma coisa: derrotar Set, como Hórus já fez há milênios, quando Set matou Osíris. Se você não conseguir, seu pai estará condenado e Set se tornará o rei da terra.
Olhei para Sadie, mas ela não me ajudou em nada. Minha irmã arrancou o amuleto do pescoço e o jogou no chão.
— Ísis entrou em mim pelo amuleto, não foi? Então, eu vou...
— Eu não faria isso — avisou Bastet.
Mas Sadie pegou sua varinha e bateu no amuleto. Fagulhas azuis se desprenderam do amuleto de marfim. Ela gritou e soltou a varinha, que agora fumegava. Sua mão estava coberta de marcas negras, como queimaduras. O amuleto estava inteiro.
— Ai! — gemeu ela.
Bastet suspirou. Ela tocou a mão de Sadie e as marcas de queimadura sumiram.
— Eu avisei. Ísis canalizou seu poder pelo amuleto, sim, mas ela não está nele agora. Está em você. E, de qualquer maneira, amuletos mágicos são praticamente indestrutíveis.
— Então, o que vamos fazer? — perguntou Sadie.
— Bem, para começar — disse Bastet — Carter deve usar o poder de Hórus para derrotar Set.
— Ah, só isso? — reagi. — Eu? Sozinho?
— Não. Sadie pode ajudar.
— Ah, ótimo.
— Eu os guiarei até onde puder — prometeu Bastet — mas, no final, vocês dois terão de lutar. Só Hórus e Ísis podem derrotar Set e vingar a morte de Osíris. Foi assim antes. E tem de ser assim agora.
— E assim teremos nosso pai de volta? — eu quis saber.
O sorriso de Bastet perdeu parte do brilho.
— Se tudo correr bem.
Ela não estava nos contando toda a história. Não me surpreendia. Mas meu cérebro estava confuso demais para deduzir o que faltava.
Olhei minhas mãos. Não pareciam nada diferentes. Nem mais fortes, nem mais... divinas.
— Se temos poderes de um deus, por que sou tão...
— Fraco? — Sadie sugeriu.
— Cale a boca — retruquei. — Por que não consigo usar melhor meus poderes?
— É preciso praticar — explicou Bastet. — A menos que queira ceder o controle a Hórus. Então ele usaria seu corpo, e você não teria com que se preocupar.
Eu poderia, uma voz disse dentro de mim. Deixe-me enfrentar Set. Pode confiar em mim.
Ah, é claro, respondi a ele. Como posso ter certeza de que não vai me matar e simplesmente se mudar para outro hospedeiro? Como posso ter certeza de que não está influenciando meus pensamentos neste exato momento?
Eu não faria isso, a voz respondeu. Escolhi você por causa de seu potencial, Carter, e porque temos o mesmo objetivo. Juro por minha honra, se me deixar assumir o comando...
— Não.
Percebi que havia falado em voz alta. Sadie e Bastet me olhavam.
— Estou dizendo que não vou ceder o controle — expliquei. — Essa luta é nossa. Nosso pai está trancado em um caixão. Nosso tio foi capturado.
— Capturado? — repetiu Sadie.
Percebi, surpreso, que não tinha contado a ela sobre a última viagem do meu ba. Não tivera tempo para isso. Quando dei a ela os detalhes, minha irmã ficou perplexa.
— Deus, não.
— Sim — afirmei. — E Set falou em francês: “Bonsoir.” Sadie, o que você disse sobre Set ter se afastado... Talvez ele não tenha ido. Se ele procurava por um hospedeiro poderoso...
— Desjardins — Sadie concluiu.
Bastet rosnou baixo.
— Desjardins estava em Londres na noite em que seu pai quebrou a Pedra de Roseta, não estava? Desjardins sempre foi um homem cheio de ira, de ambição. Em muitos aspectos, seria o hospedeiro perfeito para Set. Caso Set tenha conseguido se apoderar do corpo de Desjardins, isso significa que o Lorde Vermelho controla agora o Sacerdote-leitor Chefe da Casa... Pelo trono de Rá, Carter, espero que esteja enganado. Vocês dois vão ter de aprender a usar o poder dos deuses rapidamente. Não sei o que Set está planejando, mas sei que vai pôr o plano em prática no dia de seu aniversário, quando ele fica mais forte. No terceiro Dia do Demônio... daqui a três dias.
— Mas já usei o poder de Ísis, não usei? — perguntou Sadie. — Invoquei hieróglifos. Ativei o obelisco em Luxor. Foi ela ou fui eu?
— As duas, querida — respondeu Bastet. — Você e Carter têm grandes habilidades, mas o poder dos deuses acelerou esse desenvolvimento e deu aos dois um reservatório extra de onde extrair mais força. O que vocês levariam anos para aprender, realizaram em dias. Quanto mais canalizarem o poder dos deuses, mais poderosos se tornarão.
— E mais perigoso será — sugeri. — Os magos nos disseram que hospedar deuses pode esgotar o hospedeiro, matá-lo, levá-lo à loucura.
Bastet me encarou. Por um segundo, aqueles eram os olhos de um predador: antigos, poderosos, perigosos.
— Nem todo mundo pode hospedar um deus, Carter. Isso é verdade. Mas vocês dois têm o sangue dos faraós. Combinam duas linhagens muito antigas. Isso é muito raro, muito poderoso. Além do mais, se acha que pode sobreviver sem o poder dos deuses, é melhor pensar novamente. Não repita o que sua mãe... — Ela parou.
— O quê? — perguntou Sadie. — O que tem nossa mãe?
— Eu não devia ter dito isso.
— Fale, gata! — ordenou Sadie.
Tive medo de que Bastet sacasse suas lâminas. Em vez disso, ela se encostou à parede e olhou para a chuva.
— Quando seus pais me libertaram na Agulha de Cleópatra... houve muito mais energia do que eles esperavam. Seu pai recitou o encantamento habitual de invocação, e a explosão o teria matado imediatamente, não fosse pelo escudo que sua mãe criara. Naquela fração de segundo, ofereci a ela minha ajuda. Ofereci-me para fundir nossos espíritos e ajudar a protegê-los. Mas ela recusou. Preferiu recorrer ao próprio reservatório...
— À própria magia — murmurou Sadie.
Bastet assentiu triste.
— Quando um mago se compromete com um encantamento, não há como voltar atrás. Se esse mago abusa do próprio poder... bem, sua mãe usou as últimas reservas de energia que possuía protegendo seu pai. Para salvá-lo, ela se sacrificou. Ela literalmente...
— Esvaziou. Esgotou-se — concluí. — Foi isso que Zia nos disse.
A chuva continuava caindo. Percebi que eu estava tremendo.
Sadie limpou uma lágrima do rosto. Depois, recolheu o amuleto e olhou para ele, ressentida.
— Precisamos salvar papai. Se ele realmente abriga o espírito de Osíris...
Minha irmã não terminou a frase, mas eu sabia o que ela estava pensando. Pensei em mamãe quando eu era pequeno, em seu braço sobre meus ombros enquanto ficávamos em pé na varanda dos fundos, em Los Angeles. Ela apontava as estrelas e dizia: Polaris, Cinturão de Órion, Sírius. Depois, ela sorria para mim, e eu me sentia mais importante do que qualquer constelação no céu. Mamãe tinha se sacrificado para salvar a vida de papai. Tinha usado tanta magia que se esgotara, literalmente. Como eu poderia ser tão corajoso? Mas eu precisava tentar salvar meu pai. Caso contrário, teria a sensação de que o sacrifício dela tinha sido em vão. E se pudéssemos resgatá-lo, talvez ele fosse capaz de consertar todas as coisas, talvez até trouxesse de volta nossa mãe.
Isso é possível? Fiz a pergunta a Hórus, mas ele não respondeu.
— Tudo bem — decidi. — Então, como vamos deter Set?
Bastet pensou por um momento, depois sorriu. Tive a sensação de que não ia gostar do que ela ia sugerir.
— Pode ser que exista um jeito, sem você se entregar completamente aos deuses. Existe um livro de Tot: um dos raros livros de encantamentos escritos pelo próprio deus da sabedoria. Esse livro contém detalhes de como derrotar Set. Pertence a certo mago e é muito raro e valioso. Só precisamos entrar em sua fortaleza, roubá-lo e sair antes do pôr do sol, enquanto ainda pudermos criar um portal para os Estados Unidos.
— Perfeito — disse Sadie.
— Espere aí — alertei. — Que mago? E onde fica a fortaleza?
Bastet me olhou como se eu fosse um pouco lento.
— Bem, acho que já falamos sobre ele. Desjardins. A casa dele fica bem aqui em Paris.

***

Quando vi a casa de Desjardins, senti por ele um ódio ainda maior. Era uma mansão imensa do outro lado do Tuileries, na Rue des Pyramides.
— Rua das Pirâmides? — observou Sadie. — Não podia ser mais óbvio?
— Talvez ele não tenha encontrado nada para comprar na “rua do Estúpido Mago do Mal” — sugeri.
A casa era espetacular. As lanças sobre a cerca de ferro eram douradas. Mesmo sob a chuva de inverno, o jardim da frente estava repleto de flores. Cinco andares de paredes de mármore branco e janelas de venezianas pretas se erguiam diante de nós, tudo coberto por um jardim suspenso. Eu já tinha visto palácios reais menores que aquela casa.
Apontei para a porta da frente, que era pintada de vermelho-vivo.
— O vermelho não é uma cor ruim no Egito? A cor de Set?
Bastet coçou o queixo.
— Bem lembrado, sim. É a cor do caos e da destruição.
— Pensei que preto fosse a cor do mal — comentou Sadie.
— Não, querida. Como sempre, o mundo moderno inverteu tudo. Preto é a cor do solo bom, como o do Nilo. É possível plantar alimentos na terra preta. E comida é uma coisa boa. Portanto, preto é bom. Vermelho é a cor da areia do deserto. Nada cresce no deserto. Portanto, vermelho é ruim. — Ela franziu as sobrancelhas numa expressão intrigada. — É estranho que Desjardins tenha uma porta vermelha.
— Bem, eu estou animada — resmungou Sadie. — Vamos bater.
— Deve ter seguranças — avisou Bastet. — E armadilhas. E alarmes. Pode apostar que a casa está cercada de encantamentos para impedir a entrada de deuses.
— Magos são capazes disso? — perguntei.
Imaginei uma enorme lata de inseticida com o rótulo Espanta-deus.
— Ah, são — confirmou Bastet. — E eu não posso entrar sem ser convidada. Mas vocês...
— Pensei que também fôssemos deuses — disse Sadie.
— Essa é a beleza da coisa — anunciou Bastet. — Como hospedeiros, vocês são humanos. Eu me apoderei completamente de Muffin, por isso eu sou eu: uma deusa. Mas vocês ainda são... bem, são vocês mesmos. Fui clara?
— Não — respondi.
— Sugiro que se transformem em aves — disse Bastet. — Podem voar até o jardim, na cobertura, e entrar por lá. Além do mais, eu gosto de pássaros.
— Problema 1: não sabemos como nos transformar em aves — retruquei.
— Isso é fácil! E vai ser um bom teste de sua capacidade de canalizar o poder do deus. Ísis e Hórus têm forma de pássaros. Imaginem-se simplesmente como aves, e aves serão.
— Só isso? — indagou Sadie. — E você não vai dar um bote em nós?
Bastet parecia ofendida.
— Nem morta!
Eu preferia que ela não tivesse falado em morte.
— Tudo bem — decidi. — Aqui vamos nós.
E pensei: Você está aí, Hórus?
O que é? Ele parecia aborrecido.
Forma de pássaro, por favor.
Ah, entendo. Não confia em mim, mas agora precisa de minha ajuda.
Cara, vamos lá. Só quero que faça aquela coisa do falcão.
Não se contentaria com uma ema?
Decidi que conversar não ia ajudar em nada, por isso fechei os olhos e imaginei que era um falcão. Imediatamente, minha pele começou a queimar. Senti dificuldade de respirar. Abri os olhos e arfei.
Eu estava muito, muito baixinho. Meus olhos encaravam as canelas de Bastet. Estava coberto de penas e meus pés tinham se transformado em garras retorcidas, parecidos com os da minha forma ba, mas agora eram de verdade. Carne e osso. Minhas roupas e a bolsa desapareceram, como se tivessem sido assimiladas por minhas penas. E a minha visão também tinha mudado completamente. Eu conseguia enxergar num ângulo de cento e oitenta graus, e os detalhes eram incríveis. Todas as folhas de todas as árvores se destacavam. Vi uma barata a centenas de metros, correndo para um bueiro. Conseguia enxergar todos os poros no rosto de Bastet, que agora se debruçava sobre mim e sorria.
— Antes tarde do que nunca — comentou. — Levou quase dez minutos.
O quê? A transformação tinha me parecido instantânea. Olhei para o lado e vi uma linda ave de rapina cinzenta, um pouco menor que eu, com asas de pontas negras e olhos dourados. Não sei como, mas eu sabia que era um papagaio. A ave, não aquele que a gente empina com uma linha.
O papagaio emitiu um som agudo.
— Arrá, arrá, arrá.
Sadie ria de mim.
Abri o bico, mas não saiu nenhum som.
— Ah, vocês dois parecem deliciosos — comentou Bastet, lambendo os lábios. — Não, não... Quer dizer... maravilhosos. Agora vão!
Abri minhas asas majestosas. Eu tinha conseguido mesmo! Era um nobre falcão, senhor do céu. Decolei da calçada e aterrissei na cerca.
— Arrá... arrá... arrá... — Sadie gorjeou atrás de mim.
Bastet se abaixou e começou a fazer uns ruídos estranhos. Não! Ela estava imitando passarinhos. Eu já tinha visto gatos agindo assim quando estavam caçando. De repente, meu próprio obituário surgiu muito claro em minha cabeça: Carter Kane, quatorze anos, morto tragicamente em Paris ao ser comido pela gata da irmã, Muffin.
Abri as asas, bati os pés, e com três movimentos fortes e determinados, decolei para a chuva. Sadie veio atrás de mim. Juntos, fomos subindo pelo ar.
Tenho de admitir: eu me sentia incrível. Desde criança, sempre sonhei que voava, e sempre odiei acordar. Agora não era um sonho, nem mesmo uma viagem do ba. Era real. Cem por cento real. Eu viajava nas correntes de ar frio sobre os telhados de Paris. Podia ver o rio, o Museu do Louvre, os jardins e os palácios. E um rato... hum, delícia.
Segure a onda, Carter, pensei. Nada de caçar ratos. Foquei na mansão de Desjardins, recolhi as asas e mergulhei. Vi o jardim na cobertura e a porta dupla que levava ao interior, e ouvi a voz em minha cabeça: Não pare. É uma ilusão. Você precisa passar pelas barreiras mágicas.
Era um pensamento maluco. Eu mergulhava tão depressa, que poderia me espatifar contra o vidro da porta evirar panqueca de penas, mas não reduzi a velocidade.
Eu mergulhava na direção da porta, me aproximava... E passei voando através dela como se não existisse obstáculo algum. Abri as asas e aterrissei em uma mesa. Sadie chegou em seguida.
Estávamos sozinhos na biblioteca. Até ali, tudo bem.
Fechei os olhos e pensei em voltar à minha forma normal. Quando abri os olhos novamente, eu era o Carterde sempre, sentado em cima da mesa e vestindo minhas roupas, com a bolsa pendurada em um ombro.
Sadie ainda era um papagaio.
— Pode voltar ao normal — sugeri.
Ela inclinou a cabeça e me olhou como se não me entendesse. Depois, fez um barulho que sugeria frustração.
Eu sorri.
— Você não consegue, não é? Está presa.
Ela bicou minha mão com força.
— Ai! — reclamei. — A culpa não é minha. Continue tentando.
Ela fechou os olhos e sacudiu as penas, inflando-as até parecer perto de explodir, mas ainda era um papagaio.
— Não se preocupe. — Tentei ficar sério ao dizer isso. — Bastet vai ajudar você quando sairmos daqui.
— Arrá... arrá... arrá...
— Fique atenta. Vou dar uma olhada por aí.
A sala era grande: mais parecida com uma biblioteca tradicional que com o covil de um mago. A mobília era de mogno escuro. Todas as paredes eram cobertas de estantes de cima a baixo. Os livros transbordavam para o chão. Alguns estavam sobre mesas, empilhados ou espremidos em prateleiras menores. Uma grande poltrona ao lado da janela me lembrava um lugar onde Sherlock Holmes poderia se sentar para fumar seu cachimbo.
Cada passo que eu dava fazia ranger as tábuas do piso, o que me deixava apreensivo. Eu não ouvia barulhos na casa, mas não queria correr riscos.
Além da porta de vidro no teto, a única saída era uma sólida porta de madeira que podia ser trancada por dentro. Girei a tranca. E arrastei uma cadeira, que coloquei sob a maçaneta. Sabia que esse tipo de medida não manteria magos afastados por muito tempo, mas poderia me dar alguns segundos, caso a situação ficasse complicada.
Vasculhei as estantes pelo que pareceu eras e eras. Livros diferentes de todos os tipos estavam juntos – sem nenhuma ordem alfabética ou numérica. A maioria dos títulos não estava em inglês. Nenhum em hieróglifo. Eu esperava algo com grandes letras douradas anunciando O livro de Tot, mas não tive essa sorte.
— Como deve ser um livro de Tot? — eu me perguntei.
Sadie virou a cabeça e olhou para mim. Eu tinha certeza de que ela me incentivava a correr.
Queria que houvesse um shabti para pegar as coisas, como os da biblioteca de Amós, mas não via nenhum. Ou talvez...
Tirei do ombro a bolsa de meu pai. Pus a caixa mágica sobre a mesa e a abri. A pequena figura de cera ainda estava ali, exatamente onde eu a tinha deixado. Eu a peguei e disse:
— Doughboy, me ajude a encontrar o livro de Tot nesta biblioteca.
Os olhos de cera se abriram imediatamente.
— E por que eu o ajudaria?
— Porque não tem opção.
— Odeio esse argumento! Tudo bem, tire-me daqui. Não consigo ver as estantes.
Eu o carreguei pela sala, mostrando as prateleiras. E me sentia muito estúpido levando um boneco de cera para passear, mas, provavelmente, não tão estúpido quanto Sadie devia estar se sentindo. Ela continuava na forma de ave, andando de um lado para outro sobre a mesa e batendo o bico com clara frustração, tentando voltar a ser humana.
— Pare! — pediu Doughboy. — Aquele ali é antigo... ali, bem ali.
Peguei o volume fino envolto em linho. Era tão fino, que eu não o teria notado, mas, com certeza, o que eu via na capa eram hieróglifos. Eu o levei até a mesa e o abri. Era mais um mapa que um livro. Desdobrava-se em quatro partes, até eu estar olhando para um grande papiro com um texto tão antigo que eu mal conseguia enxergar as letras.
Olhei Sadie.
— Aposto que se não fosse um pássaro poderia ler isto para mim.
Ela tentou me bicar novamente, mas eu puxei a mão.
— Doughboy — chamei. — O que há neste papiro?
— Um encantamento perdido no tempo! — anunciou ele. — Palavras antigas de tremendo poder!
— E...? Elas dizem como derrotar Set?
— Melhor! O título diz: O livro para invocar morcegos de frutas!
Eu o encarei.
— Está falando sério?
— Você brincaria com esse tipo de coisa?
— Quem iria querer invocar morcegos de frutas?
— Arrá... arrá... arrá... — Sadie grasnou.
Guardei o manuscrito e continuei procurando. Após dez minutos, Doughboy gritou animado.
— Veja! Eu me lembro daquela pintura!
Era um pequeno retrato a óleo numa moldura dourada, pendurado na extremidade de uma prateleira. Devia ser importante, porque era ladeado por pequenas cortinas de seda. Uma luz iluminava o rosto do homem no retrato, e ele parecia pronto para contar uma história de fantasmas.
— Esse não é o ator que faz o Wolverine? — perguntei, porque ele tinha costeletas muito grossas.
— Você me aborrece! — comentou Doughboy. — Esse é Jean-François Champollion.
Levei um segundo para lembrar o nome.
— O homem que decifrou hieróglifos com a Pedra de Roseta?
— É claro. Tio-avô de Desjardins.
Olhei novamente para o retrato de Champollion e notei a semelhança. Os mesmos olhos pretos e penetrantes.
— Tio-avô? Mas isso não faria de Desjardins...
— Alguém de duzentos anos — confirmou Doughboy. — Um garoto, ainda. Sabia que Champollion ficou em coma por cinco dias depois de decifrar os hieróglifos? Ele foi o primeiro homem fora da Casa da Vida a liberar a magia da Casa, e isso quase o matou. Claro, tudo isso chamou a atenção do Primeiro Nomo. Champollion morreu antes de poder se juntar à Casa da Vida, mas o Sacerdote-leitor Chefe aceitou seus descendentes, a fim de treiná-los. Desjardins se orgulha muito de sua família... mas é um pouco melindroso, por ser um recém-chegado.
— Por isso ele não se deu bem com nossa família — supus. — Somos meio... antigos.
Doughboy grasnou.
— E seu pai ainda quebrou a Pedra de Roseta! Desjardins deve ter considerado tudo isso um insulto à honra da família dele! Ah, devia ter visto as discussões que Mestre Julius e Desjardins tiveram nesta sala.
— Já esteve aqui antes?
— Muitas vezes! Estive em todo lugar. Sou um sabe-tudo.
Tentei imaginar meu pai e Desjardins discutindo naquela biblioteca. Não era difícil. Se Desjardins odiava nossa família, e se os deuses costumam procurar hospedeiros que compartilhem de seus objetivos, faria sentido Set ter tentado se fundir a ele. Os dois queriam poder, os dois eram ressentidos e vingativos, os dois queriam nos transformar, a Sadie e a mim, em purê. E se agora Set controlava secretamente o Sacerdote-leitor Chefe... Uma gota de suor escorreu pela lateral de meu rosto. Eu queria sair daquela mansão.
De repente, houve um estrondo abaixo de nós, como alguém batendo uma porta.
— Mostre-me onde está o livro de Tot — ordenei a Doughboy. — Depressa!
Seguimos examinando as estantes e Doughboy ia ficando quente. Tive medo de que ele derretesse em minha mão. Ele ia fazendo comentários sobre os livros.
— Ah, Dominando os cinco elementos!
— É o que estamos procurando? — perguntei.
— Não, mas é bom. Como domar os cinco elementos do universo: terra, ar, água, fogo e queijo!
— Queijo?
Ele coçou a cabeça de cera.
— Tenho certeza de que esse é o quinto, sim. Mas vamos em frente!
Passamos à prateleira seguinte.
— Não — anunciou ele. — Não. Chato. Chato. Ah, Clive Cussler! Não. Não.
Eu estava quase perdendo as esperanças, quando ele disse:
— Ali.
Eu parei.
— Onde... aqui?
— O livro azul com acabamento dourado. Aquele que está...
Puxei o livro e a sala toda começou a tremer.
— ... preso — continuou Doughboy.
Sadie grasnou com urgência. Eu me virei e a vi alçando voo. Alguma coisa pequena e preta entrou pelo telhado. Sadie colidiu com ela no ar e a coisinha desapareceu, desceu por sua garganta.
Antes que eu pudesse sequer registrar o quanto aquilo era repugnante, alarmes soaram lá embaixo. Mais formas negras entraram pelo telhado e pareciam se multiplicar no ar, girando numa nuvem de pelos e formando um funil.
— Aí está sua resposta — declarou Doughboy. — Desjardins ia querer invocar morcegos de frutas. Se você mexe no livro errado, provoca uma praga de morcegos de frutas. Essa é a armadilha!
Aqueles bichos voaram sobre mim como se eu fosse uma manga madura, batendo em meu rosto, arranhando meus braços. Agarrei o livro e corri para a mesa, mas não conseguia enxergar nada.
— Sadie, saia daqui! — gritei.
— SÓU! — gritou ela, o que eu esperava que significasse “sim”.
Encontrei a bolsa de papai e joguei o livro e Doughboy dentro dela. A porta da biblioteca tremia. Vozes gritavam em francês.
Hórus, hora do pássaro!, pensei desesperado. E nada de emas, por favor!
Corri para a porta de vidro. No último segundo, estava voando – novamente um falcão, saindo para a chuva fria. Com os sentidos de um predador, soube que era seguido por aproximadamente quatro mil furiosos morcegos de frutas.
Mas falcões são muito rápidos. Uma vez do lado de fora, voei para o norte, esperando atrair os morcegos e afastá-los de Sadie e de Bastet. Distanciava-me deles com facilidade, mas os deixava chegar perto o suficiente para que não desistissem de mim. Então, com uma explosão de velocidade, descrevi um círculo no ar e voltei para onde Sadie e Bastet estavam, num mergulho a 150 km/h.
Bastet olhou para cima com grande surpresa quando eu me aproximava da calçada, e continuou olhando quando, rolando pelo chão, voltei à minha forma humana. Sadie segurou meu braço e só então percebi que ela também tinha voltado ao normal.
— Aquilo foi horrível! — disse ela.
— Saída estratégica, rápida! — Apontei para o céu, para a nuvem negra de furiosos morcegos de frutas que se aproximava de nós.
— O Louvre. — Bastet agarrou a minha mão e a de Sadie. — Lá está o portal mais próximo.
Três quarteirões de distância. Jamais conseguiríamos.
Então, a porta vermelha da mansão de Desjardins se abriu com violência, mas não esperamos para ver o que sairia por ela. Corremos pela Rue des Pyramides como se disso dependesse nossa vida.

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