segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Trono de Fogo - Sadie

Capítulo 12 - Domino a fina arte de dizer nomes

É PERTURBADOR ACORDAR como uma galinha. Meu ba flutuava pelas águas escuras.Minhas asas brilhantes batiam enquanto tentava descobrir como estava subindo. Achei que meu corpo estava em algum lugar próximo, possivelmente já afogado na parte traseira do Mercedes, mas não consegui descobrir como voltar para ele.
Por que diabos Bes tinha nos levado através de um portal debaixo d‘água? Eu esperava que o pobre Carter tivesse de algum jeito sobrevivido, talvez Bes fosse capaz de libertá-lo. Mas morrer envenenado, em vez de se afogar não parecia uma grande melhora.
Uma corrente me pegou e levou para o Duat. A água mudou para névoa fria. Lamentações e rosnados encheram a escuridão. Minha aceleração diminuiu, e quando a névoa se dissipou, eu estava do lado de fora da enfermaria.
Em um banco encostado na parede, sentados juntos, como velhos amigos, estavam Anúbis e Walt Stone. Parecia que estavam esperando más noticias. As mãos de Walt estavam entrelaçadas sob seu colo. Seus ombros caídos. Ele tinha mudado de roupa, estava com uma nova camiseta sem mangas e um novo par de shorts de corrida, mas parecia que ele não tinha dormido desde que voltou de Londres.
Anúbis falava com ele em tons suaves, como se tentando aliviar seu sofrimento. Eu nunca havia visto Anúbis em trajes tradicionais do Egito antes: sem camisa, com um colar de ouro e rubi em volta do pescoço, um saiote preto simples amarrado em sua cintura. Não era um visual que eu recomendo para a maioria dos caras, mas Anúbis era exceção.
Sempre imaginei que ele ficaria um pouco magro sem camisa (não que eu imaginasse muito isso, você sabe), mas ele estava em ótima forma. Deviam ter uma boa academia no submundo, banco de prensagem de lápides e tudo mais. De qualquer forma, após o choque de vê-los juntos, meu primeiro pensamento foi de que algo terrível tivesse acontecido a Jaz.
― O que é isso? ― perguntei, não tinha certeza se eles podiam me ouvir. ― O que aconteceu?
Walt não reagiu, mas Anúbis olhou para cima. Como de costume, o meu coração fez uma dancinha feliz completamente sem a minha permissão. Seus olhos eram tão fascinantes, esqueci completamente como usar meu cérebro.
Eu disse:
― Hum.
Eu sei, Liz teria ficado orgulhosa.
― Sadie ― disse Anúbis. ― Você não deveria estar aqui. Carter está morrendo.
Aquilo trouxe de volta meus sentidos.
― Eu sei disso, garoto chacal! Eu não pedi para estar... Espere, por que estou aqui?
Anúbis apontou para a porta da enfermaria.
― Acredito que o espírito de Jaz chamou por você.
― Ela está morta? Eu estou morta?
― Nenhuma das duas ― Anúbis disse. ― Mas vocês duas estão à beira da morte, o que significa que suas almas podem falar uma com a outra com bastante facilidade. Apenas não fique muito tempo.
Walt ainda não havia me reconhecido. Ele murmurou:
― Não podia dizer a ela. Por que eu não podia dizer a ela?
Ele abriu suas mãos. Encaixado em suas palmas estava um amuleto dourado shenexatamente igual ao que ele me deu.
― Anúbis, o que há de errado com ele? ― perguntei. ― Não consegue me ouvir?
Anúbis colocou a mão no ombro de Walt.
― Ele não pode ver qualquer um de nós, embora eu ache que ele consiga sentir a minha presença. Ele me chamou para orientá-lo. É por isso que estou aqui.
― Orientação de você? Por quê?
Acho que pareceu mais grosseiro do que pretendia, mas de todos os deuses que Walt poderia ter chamado, Anúbis parecia ser a opção menos possível. Anúbis olhou para mim, seus olhos até mais melancólicos que o normal.
― Você deve passar agora, Sadie. Tem muito pouco tempo. Prometo que farei o meu melhor para aliviar a dor de Walt.
― Sua dor? ― perguntei. ― Espere...
Mas a porta da enfermaria se abriu, e as correntes do Duat me puxaram para dentro.
A enfermaria era o melhor centro médico que já estive, mas isso não era dizer muito. Eu odiava hospitais. Meu pai costumava brincar que nasci gritando e que não parei até eles me tirarem da maternidade. Ficava morrendo de medo de agulhas, comprimidos, e acima de tudo, o cheiro de pessoas doentes.
Os mortos e os cemitérios? Esses não me incomodam. Mas a doença... bem, me desculpe, mas ela tem que cheirar tão sanguinária?
Minha primeira visita a Jaz na enfermaria tinha tomado toda a minha coragem. Esta segunda vez, mesmo na forma de ba, não estava nada fácil.
A sala era do tamanho do meu quarto. As paredes eram grossas de pedra calcárea. Grandes janelas deixavam entrar o brilho noturno de Nova York. Armários de cedro foram cuidadosamente etiquetados com medicamentos, provisões de primeiros socorros, encantos e poções mágicas. E num canto havia uma fonte com uma estátua em tamanho natural da deusa leão Sekhmet, patrona dos curandeiros.
Eu tinha ouvido falar que a água que verte através das mãos de Sekhmet poderia curar uma gripe ou resfriado instantaneamente, e fornecem a maioria das nossas vitaminas diárias e ferro, mas nunca tive a coragem de tomar um gole.
O borbulhar da fonte era pacífico o suficiente. Em vez de antisséptico, o ar cheirava a velas encantadas com aroma de baunilha que flutuavam ao redor da sala. Mas, ainda assim, o lugar me deixou nervosa.
Eu sabia que as velas monitoravam as condições dos pacientes. Suas chamas mudavam de cor para indicar problemas. No momento, todas elas pairavam em torno da cama ocupada por Jaz. Suas chamas estavam laranja escura. As mãos de Jaz estavam cruzadas sobre seu peito. Seu cabelo loiro estava penteado sobre seu travesseiro.
Ela sorriu vagamente, como se estivesse tendo um sonho agradável. E, sentada aos pés da cama de Jaz estava... Jaz, ou pelo menos uma imagem verde cintilante da minha amiga. Não era um ba. A forma era completamente humana. Eu perguntei se ela tinha morrido depois de tudo, e este era o seu fantasma.
― Jaz...
Uma onda de culpa nova tomou conta de mim. Tudo o que tinha ido mal nos últimos dois dias havia começado com o sacrifício de Jaz, que foi por minha culpa.
― Você...
― Morreu? Não, Sadie. Este é o meu ren.
Seu corpo transparente tremeluziu. Quando olhei mais de perto, vi que era composto de imagens, como um vídeo 3D da vida de Jaz. Jaz bebê sentada em uma cadeira alta, pintando seu rosto com comida de bebê. Jaz adolescente saltando sobre o piso de um ginásio, ensaiando para sua primeira animação de torcida. A Jaz dos dias atuais abrindo seu armário da escola e encontrando um amuleto brilhante djed – nosso cartão de visitas mágico que a levou para o Brooklyn.
― Seu ren  eu disse. ― Outra parte da sua alma?
A imagem verde brilhante confirmou com a cabeça.
― Os egípcios acreditavam que havia cinco partes diferentes da alma. O ba é a personalidade. O ren é...
― Seu nome ― lembrei. ― Mas como isso pode ser seu nome?
― Meu nome é minha identidade ― disse ela. ― A soma de minhas experiências. Enquanto meu nome for lembrado, eu ainda existo, mesmo se eu morrer. Você entendeu?
Eu não entendi, nada mesmo. Mas entendi que ela poderia morrer e que a culpa era minha.
― Eu sinto muito.
Tentei não chorar.
― Se eu não tivesse pegado aquele pergaminho estúpido...
― Sadie, não se desculpe. Fico feliz que você veio.
― Mas...
― Tudo acontece por uma razão, Sadie, até mesmo coisas ruins.
― Isso não é verdade! ― eu disse. ― É uma injustiça!
Como Jaz podia estar tão calma e agradável, mesmo quando estava em coma? Eu não queria ouvir que coisas ruins aconteciam como parte de um grande plano. Eu odiavaquando as pessoas diziam isso.
Perdi minha mãe. Perdi meu pai. Minha vida foi virada de cabeça para baixo, e eu quase morri inúmeras vezes. Agora, até onde eu sabia, estava morta ou morrendo. Meu irmão foi envenenado e afogado, e eu não podia ajudá-lo.
― Nada vale a pena tudo isso ― falei. ― A vida é imprevisível. É cruel. É... é...
Jaz ainda estava sorrindo, olhando um pouco distraída.
― Oh ― eu disse. ― Você quer me deixar louca, não é?
― Essa é a Sadie que todos nós amamos. Sofrimento não é realmente produtivo. Você faz melhor quando está com raiva.
― Uma ova.
Supus que ela estivesse certa, mas eu não tinha que gostar disso.
― Então por que você me trouxe aqui?
― Duas coisas ― começou ela. ― Primeiro, você não está morta. Quando acordar, só terá alguns minutos para curar Carter. Você terá que agir rapidamente.
― Usando a estátua de cera ― falei. ― Sim, imaginei isso. Mas eu não sei como. Eu não sou boa em cura.
― Há apenas mais um ingrediente necessário. Você sabe o que é.
― Mas eu não sei!
Jaz levantou uma sobrancelha como se eu estivesse apenas sendo teimosa.
― Você está tão perto de compreender, Sadie. Pense sobre Ísis. Pense em como você canalizou sua energia em São Petersburgo. A resposta virá até você.
― Mas...
― Temos de nos apressar. A segunda coisa: você vai precisar da ajuda de Walt. Eu sei que é arriscado. Sei que Bes advertiu sobre isso. Mas use o amuleto para chamar Walt de volta para você. É o que ele quer. Alguns riscos valem a pena correr, mesmo que isso signifique perder uma vida.
― Perder a vida de quem? Sua?
A imagem da enfermaria começou a se dissolver, se transformando em uma aquarela borrada.
― Pense sobre Ísis ― Jaz repetiu. ― E Sadie... há um propósito. Você nos ensinou isso. Escolhemos acreditar no Maat. Criamos ordem do caos, beleza e significado a partir feiura. Isso é o que tem a ver com o Egito. É por isso que o seu nome, o ren, tem sofrido por milênios. Não se desespere. Caso contrário, o caos ganha.
Lembrei-me de dizer algo como isso em uma de nossas aulas, mas mesmo assim, eu não tinha acreditado.
― Vou te contar um segredo ― falei. ― Sou uma péssima professora.
A forma de Jaz, todas as suas memórias, transformou-se lentamente em névoa.
― Vou te contar um segredo ― disse ela, sua voz desaparecendo. ― Você foi uma excelente professora. Agora, visite Ísis, e veja como isso começou.
A enfermaria desapareceu. De repente eu estava em um barco real, navegando no rio Nilo. O sol brilhava alto. Um exuberantes gramado verde e palmeiras cobriam as margens do rio. Além, o deserto se espalhava pelo horizonte – áridas colinas vermelhas tão secas e ameaçadoras que poderiam muito bem estar em Marte.
O barco era como o que Carter havia descrito de sua visão com Hórus, embora em melhor condição. Sua vela branca estava estampada com uma imagem do disco solar, brilhando em vermelho e dourado. Esferas de luz multicolorida flutuavam ao redor do convés, tripulando os remos e puxando as cordas. Como faziam isso sem as mãos, eu não sei, mas não foi a primeira vez que vi uma tripulação tão mágica.
O casco estava incrustado com metais preciosos – cobre, prata, ouro com desenhos mostrando imagens da viagem do barco através do Duat e hieróglifos invocando o poder do sol.
No meio do barco, um abrigo azul e dourado sombreava o trono do deus sol, que era sem dúvida a mais impressionante e desconfortável cadeira que eu já tinha visto. No começo eu achei que era de ouro derretido. Então percebi que era formado a partir do fogo aceso – chamas amarelas, que de alguma forma tinham sido esculpidas na forma de um trono. Gravado em suas pernas e braços, hieróglifos branco-ardentes brilhavam tão intensamente que queimavam meus olhos.
O ocupante do trono não era tão impressionante. Rá era um homem velho curvado como um ponto de interrogação, sua cabeça calva com manchas hepáticas e seu rosto tão flácido e enrugado que parecia uma máscara. Somente seus olhos delineados comkohl davam alguma indicação de que ele estava vivo, porque estavam cheios de dor e cansaço.
Ele vestia um saiote e colar, que não combinavam com ele tão bem como em Anúbis. Até agora, a pessoa mais velha que eu já vi era Iskandar, o ex-chefe Sacerdote-Leitor chefe, que havia sido por dois mil anos. Mas Iskandar jamais teria parecido tão mal, mesmo quando estava prestes a morrer.
Para piorar, a perna esquerda de Rá estava envolvida em ataduras e inchada com o dobro do tamanho adequado. Ele gemeu e apoiou o pé sobre uma pilha de almofadas. Duas feridas de picada escorriam através das ataduras em sua canela, muito parecido com o sinal das presas no ombro de Carter.
Enquanto Rá movia a perna, o veneno verde espalhou-se pelas veias da coxa. Só olhar fez meu ba arrepiar as penas com repulsa. Rá olhou para os céus. Seus olhos ficaram amarelo derretido como seu trono.
― Ísis ― ele exclamou. ― Muito bem! Me acalmei!
Uma sombra ondulava sob o abrigo. Uma mulher apareceu e ajoelhou-se diante do trono. Eu a reconheci, claro. Ela tinha cabelos longos e escuros, cortado ao estilo Cleópatra e usava um vestido de linho branco que completava sua figura graciosa. Suas asas luminosas de arco-íris brilhavam como as luzes do norte. Com a cabeça baixa e as palmas das mãos levantadas em súplica, ela olhou com humildade, mas eu conhecia Ísis muito bem. Podia ver o sorriso que ela estava tentando esconder. Eu podia sentir a sua alegria.
― Lorde Rá ― disse ela. ― Vivo para servi-lo.
― Há! ― Rá disse. ― Você vive pelo poder, Ísis. Não tente me enganar. Eu sei que você criou a cobra que me mordeu! É por isso que ninguém mais pode encontrar uma cura. Você deseja meu trono para seu marido, o arrogante Osíris.
Ísis começou a protestar.
― Meu senhor...
― Chega! Se eu fosse um deus jovem...
Rá cometeu o erro de mexer a perna. Ele gritou de dor. O veneno verde espalhou-se mais subindo pelas suas veias.
― Não se preocupe ― suspirou miseravelmente. ― Estou cansado deste mundo. Chega de conspiração e armações. Apenas cure o veneno.
― Com prazer, meu rei. Mas vou precisar de...
― Meu nome secreto ― terminou Rá. ― Sim, eu sei. Prometa me curar, e terá tudo o que deseja... e muito mais.
Ouvi a advertência na voz de Rá, mas ou Ísis não percebeu, ou ela não se importou.
― Juro curá-lo ― disse ela.
― Então se aproxime, deusa.
Ísis se inclinou para frente. Eu pensei que Rá iria sussurrar seu nome no ouvido dela, mas ele agarrou a sua mão e colocou-a na testa enrugada. Seus dedos estavam ardendo. Ela tentou se afastar, mas Rá prendeu-a pela mão. Toda a forma do deus sol brilhava com imagens de fogo de sua longa vida: a primeira aurora; seu barco de sol brilhando sobre as terras recém-nascidas do Egito, a criação dos outros deuses e dos homens; batalhas intermináveis de Rá contra Apófis quando este atravessava o Duat a cada noite, mantendo o Caos à distância.
Era demais, séculos se passavam com cada batimento cardíaco. Seu nome secreto era a soma de suas experiências e, mesmo assim, naqueles tempos antigos, Rá era inimaginavelmente velho.
A aura impetuosa espalhou-se para a mão de Ísis, viajando pelo seu braço até que todo o seu corpo foi envolto em chamas. Ela gritou uma vez. Em seguida, o fogo morreu. Ísis desabou, fumaça saindo de seu vestido.
― Então ― disse Rá. ― Você sobreviveu.
Eu não podia dizer se ele sentiu decepção ou relutante respeito.
Ísis levantou-se cambaleante. Ela parecia em estado de choque, como se tivesse andado através de uma zona de guerra, mas levantou a mão. Um hieróglifo ardente gravado na palma da mão – o nome secreto de Rá, resumido em uma única palavra incrivelmente poderosa.
Ela colocou a mão na perna envenenada de Rá e falou um feitiço. O veneno verde sumiu de suas veias. O inchaço diminuiu. Os curativos caíram, e as duas marcas de presas fecharam.
Rá reclinou sobre seu trono e suspirou de alívio.
― Até que enfim. Não há dor.
― Meu senhor precisa descansar ― Ísis sugeriu. ― Um longo, longo descanso.
O deus sol abriu seus olhos. Não havia fogo neles agora. Pareciam os olhos leitosos de um homem velho.
― Bastet! ― ele chamou.
A deusa gato se materializou ao seu lado. Ela estava vestida com armadura egípcia de couro e ferro e parecia mais jovem, embora talvez fosse apenas porque ela ainda não tinha sobrevivido a séculos de prisão em um abismo, lutando contra Apófis.
Fiquei tentada a gritar para ela e avisá-la sobre o que estava por vir, mas minha voz não iria funcionar. Bastet fez Ísis olhar para os lados.
― Meu senhor, esta mulher está... o incomodando?
Rá balançou a cabeça.
― Nada mais me incomodará, minha gata fiel. Venha comigo agora. Temos assuntos importantes para discutir antes de eu partir.
― Meu senhor? Onde o senhor está indo?
― Para uma aposentadoria forçada. ― Rá olhou para Ísis. ― É isso que você quer, deusa da magia?
Ísis fez uma reverência.
― Nunca, meu senhor!
Bastet puxou suas facas e foi em direção a Ísis, mas Rá estendeu o braço.
― Chega, Bastet ― disse ele. ― Tenho outra luta em mente para você, uma última, uma luta crucial. Quanto a você, Ísis, pode pensar que ganhou porque domina o meu nome secreto. Percebe o que você começou? Osíris pode tornar-se faraó, mas o seu reinado será curto e amargo. Sua sede real será um reflexo pálido do meu trono de fogo. Este barco não mais voltará ao Duat. O equilíbrio entre o Maat e o caos desaparecerá lentamente. O próprio Egito vai cair. Os nomes de seus deuses desaparecerão para uma memória distante. Então um dia, o mundo inteiro vai ficar à beira da destruição. Você vai clamar por Rá, e eu não estarei lá. Quando esse dia chegar, lembre-se como sua ganância e ambição fizeram isso acontecer.
― Meu senhor.
Ísis inclinou-se respeitosamente, mas eu sabia que ela não estava pensando em um futuro distante. Ela estava embriagada com sua vitória. Ela pensou que Osíris iria governar o Egito para sempre, e que Rá era apenas um velho tolo. Não sabia que em pouco tempo, sua vitória se voltaria para a tragédia. Osíris seria assassinado pelo seu irmão, Set. E um dia, outras previsões de Rá se tornariam verdade.
― Vamos, Bastet ― Rá chamou. ― Não somos mais queridos.
O trono irrompeu em uma coluna de chamas, queimando o abrigo azul e dourado. Uma bola de fogo subiu aos céus, até que foi perdido no brilho do sol. Quando a fumaça se dissipou, Ísis ficou sozinha e riu com prazer.
― Consegui! ― exclamou. ― Osíris, você será rei! Dominei o nome secreto de Rá!
Queria lhe dizer que ela não havia dominado nada, mas só pude ver como Ísis dançou por todo o barco. Ela ficou tão satisfeita com seu próprio sucesso que não prestou atenção nos servos mágicos luminosos desaparecendo.
As cordas caíram. A vela foi folgada. Remos arrastaram na água, e o barco Sol caiu no rio, não tripulado.
Minha visão falhou, e mergulhei na escuridão.
Acordei em uma cama macia. Por um momento feliz, pensei que eu estava de volta ao meu quarto na Casa do Brooklyn. Eu poderia me levantar e ter um café da manhã com meus amigos, Amós, Filipe da Macedônia, e Khufu, em seguida, passar o dia ensinando nossos iniciantes como transformar os outros em répteis. Isso soou brilhante. Mas é claro que eu não estava em casa.
Sentei-me, e minha cabeça começou a girar. Eu estava em uma cama enorme com lençóis de algodão macio e uma pilha de travesseiros de plumas. O quarto era muito elegante, decorado em branco deslumbrante, que não ajudou a minha tontura.
Me senti como se estivesse de volta à casa da deusa do céu Nut. A qualquer momento, a sala poderia dissolver-se em nuvens. Minhas pernas estavam rígidas, mas consegui sair da cama. Eu estava usando um daqueles roupões de hotel grande e luxuoso, parecia uma idiota albina.
Cambaleei até a porta e encontrei uma linda sala de estar, também branca. As portas de correr de vidro levavam a uma varanda com vista para o mar, muito alta – possivelmente quinze ou vinte andares. O céu e o mar eram de um azul deslumbrante.
Meus olhos demoraram um pouco para se adaptarem à luz. Em uma mesa próxima, os poucos pertences meus e de Carter foram cuidadosamente colocados – nossas velhas roupas amarrotadas, nossas bolsas de magia e os dois pergaminhos do Livro de Rá, juntamente com o saco de Bes do Museu do Chocolate.
Carter estava envolvido em um roupão branco como o meu. Ele estava deitado no sofá com os olhos fechados. Seu corpo inteiro tremia. Bes estava sentado próximo a ele, enxugando a testa de Carter com um pano frio.
― Como... como ele está? ― consegui dizer.
Bes olhou para cima. Ele parecia um turista em miniatura em uma camisa havaiana grande, bermudas cáqui e chinelos. Era um americano feioso em tamanho extra-pequeno.
― Já era tempo ― disse ele. ― Estava começando a achar que você nunca mais iria acordar.
Eu dei um passo pra frente, mas o quarto se inclinou para trás e para frente.
― Cuidado ― Bes correu e segurou meu braço. ― Você tem um galo horrível na cabeça.
― Não se preocupe ― murmurei. ― Tenho que ajudar Carter.
― Ele está mal, Sadie. Eu não sei se...
― Eu posso ajudar. Minha varinha, e a estatueta de cera.
― Sim. Sim, está bem. Vou buscá-los.
Com a ajuda de Bes, sentei ao lado de Carter.
Bes buscou minhas coisas enquanto eu checava a testa de Carter. Sua febre estava pior do que antes. As veias do seu pescoço tinham ficado verdes por causa veneno, assim como Rá ficou na minha visão. Olhei para Bes.
― Quanto tempo estive fora?
― É quase meio-dia de terça-feira.
Ele espalhou meus objetos mágicos nos pés de Carter.
― Então, cerca de 12 horas.
― Doze horas? Bes, este é o tempo máximo que Set disse que Carter poderia permanecer vivo antes do veneno o matar! Por que você não me acordou mais cedo?
Seu rosto ficou vermelho como sua camisa havaiana.
― Eu tentei! Puxei vocês dois para fora do Mediterrâneo e trouxe vocês para o hotel, não é? Usei todos os feitiços de acordar que conheço! Você só ficava sussurrando em seu sono sobre Walt, Anúbis, nomes secretos...
― Ótimo! ― falei. ― Basta me ajudar.
A campainha tocou. Bes fez um gesto para eu ficar calma. Ele gritou em outro idioma, possivelmente árabe, e um garçom do hotel abriu a porta. Ele se curvou para Bes, como se o anão fosse um sultão, então trouxe um carrinho de serviço-de-quarto carregado com frutas tropicais, pães fresquinhos e garrafas de refrigerante.
― Excelente ― Bes me disse. ― Volto já.
― Você está perdendo tempo! ― Respondi.
Naturalmente, Bes me ignorou. Ele pegou sua mochila da mesa de jantar e trouxe a cabeça de chocolate de Vladimir Lênin. Os olhos do garçom se arregalaram. Bes colocou a cabeça no meio do carrinho e assentiu como se fosse colocada no centro perfeito.
Bes deu ao garçom mais algumas ordens em árabe, em seguida, entregou-lhe algumas moedas de ouro. O garçom obedeceu, no geral parecia aterrorizado. Ele saiu de costas, continuando curvado.
― Onde estamos exatamente? ― eu perguntei. ― E por que você é um rei aqui?
― Alexandria, no Egito ― disse Bes. ― Desculpe a chegada rude. É um lugar complicado para se teleportar. Antiga capital de Cleópatra, você sabe, onde o Império Egípcio se desfez, assim a magia costuma ficar ao redor. Os portais estão apenas funcionando na cidade antiga, que está fora da costa, debaixo de dez metros de água.
― E esse lugar? Obviamente, um hotel de luxo, mas como você...
― Suíte, Hotel Quatro Estações de Alexandria ― ele parecia um pouco envergonhado. ― As pessoas no Egito ainda se lembram dos antigos deuses, mesmo que não admitam isso. Eu era popular antigamente, então posso normalmente pedir favores quando preciso deles. Desculpe-me não ter mais tempo. Eu poderia ter nos conseguido uma vila privada.
― Como você ousa ― eu disse. ― Fazendo nos contentar com um hotel cinco estrelas. Agora, porque você não se certifica de que não seremos interrompidos enquanto eu curo Carter?
Eu agarrei a estatueta de cera que Jaz tinha me dado e ajoelhei ao lado do meu irmão. A estátua foi deformada ficando amassada perto da minha bolsa. Então novamente, Carter parecia pior por causa do desgaste, também. Esperançosamente a conexão mágica ainda funcionaria.
― Carter ― chamei. ― Eu vou te curar. Mas eu preciso de sua ajuda.
Eu coloquei minha mão sobre a sua testa febril. Agora eu sabia por que Jaz tinha aparecido a mim como um ren, a parte da alma que representava seu nome. Eu sabia por que ela havia me mostrado a visão de Ísis e Rá. Você está tão perto de compreender, Sadie, ela disse.
Eu nunca havia pensado nisso antes, mas um ren era o mesmo que um nome secreto. Era mais do que apenas uma palavra especial. O nome secreto é seus pensamentos mais obscuros, seus momentos mais embaraçosos, os seus maiores sonhos, seus piores temores, tudo embrulhado junto. É a soma de suas experiências, mesmo aquelas que você nunca iria querer compartilhar. Seu nome secreto faz você ser quem é. É por isso que um nome secreto tem poder. E também porque você não pode simplesmente ouvir alguém repetir um nome secreto e saber como usá-lo. Você tinha que conhecer essa pessoa e entender sua vida. Quanto mais você entendesse uma pessoa, mais poder o seu nome poderia render. Você só poderá aprender um nome secreto da própria pessoa ou da pessoa mais próxima ao seu coração.
E que o céu me ajude, para mim Carter era essa pessoa.
Carter, pensei. Qual é seu nome secreto?
Mesmo doente, sua mente resistia a mim. Você não cede apenas seu nome secreto. Todo ser humano tinha um, assim como Deus fez cada um, mas a maioria das pessoas passava toda a sua vida não sabendo que jamais se deve pôr em palavras sua identidade mais particular. É compreensível, na verdade. Tentar resumir toda sua existência em cinco palavras ou menos. Não é exatamente fácil, não é?
― Você consegue fazer isso ― murmurei. ― Você é meu irmão. Eu te amo. Todas as partes embaraçosas, todas as partes irritantes que imagino que seja a maior parte você... mil Zias poderiam fugir de você, se soubessem a verdade. Mas eu não vou. Eu ainda estarei aqui. Agora, me diga o seu nome, seu grande idiota, para que eu possa salvar sua vida.
Minha mão formigava em sua testa. Sua vida passou por entre meus dedos – lembranças fantasmagóricas de quando éramos crianças, vivendo com nossos pais, em Los Angeles. Vi minha festa de aniversário de quando eu fiz seis anos e o bolo explodiu. Vi a nossa mãe lendo histórias de ninar para nós a partir de um livro de ciências da faculdade; nosso pai tocando jazz e dançando comigo em volta da sala, enquanto Carter tapava os ouvidos e gritava: “Papai!”
Vi momentos que eu não tinha compartilhado com meu irmão também: Carter e meu pai presos em um tumulto em Paris; Carter e Zia conversando à luz de velas no Primeiro Nomo; Carter sozinho na biblioteca da Casa do Brooklyn, olhando para seu amuleto Olho de Hórus e lutando contra a tentação de reivindicar o poder de um deus. Ele nunca me falou sobre isso, mas me fez sentir aliviada. Achei que eu era a única que tinha estado tão tentada.
Lentamente, Carter relaxou. Seus piores temores passaram por mim, seus segredos mais embaraçosos. Sua força estava falhando quando o veneno tomou conta de seu coração. Com o seu último bocado de força de vontade, ele me disse seu nome.
[Naturalmente eu não vou te dizer o que é. Você não pode usá-lo de qualquer maneira, ouvindo-o de uma gravação, mas não vou correr riscos.]
Levantei a estatueta de cera e falei o nome secreto de Carter. Imediatamente, o veneno recuou de suas veias. A estátua de cera ficou verde e derretida em minhas mãos. A febre de Carter sumiu. Ele estremeceu, respirou fundo e abriu os olhos.
― Certo ― falei com firmeza. ― Nunca monte em outro monstro-cobra sanguinário novamente!
― Desculpe... ― ele resmungou ― Você acabou de...
― Sim.
― Com o meu nome secreto...
― Sim.
― E todos os meus segredos...
― Sim.
Ele gemeu e cobriu o rosto como se quisesse voltar a cair em coma, mas honestamente, eu não tinha intenção de provocá-lo. Há uma diferença entre manter seu irmão em seu lugar e ser cruel. Eu não era cruel. Além disso, depois de ver os mais profundos cantos da mente de Carter, eu estava um pouco envergonhada, possivelmente até mesmo com medo. Não havia realmente muita coisa lá. Comparado com os meus medos e segredos embaraçosos... ah, cara.
Ele estava calmo. Eu esperava que nossa situação nunca se revertesse e ele tivesse que me curar.
Bes veio com a cabeça de Lênin escondida na curva do braço. Ele obviamente tinha dado uma mordida, a testa de Lênin estava faltando – vítima de uma choco-lobotomia frontal.
― Bom trabalho, Sadie! ― Ele quebrou o nariz de Lênin e ofereceu a Carter. ― Aqui, rapaz. Você merece isso.
Carter fez uma careta.
― O chocolate tem propriedades curativas mágicas?
Bes bufou.
― Se isso fosse verdade, eu seria o mais saudável anão no mundo. Não. Ele só tem um gosto bom.
― E você vai precisar de sua força ― acrescentei. ― Temos muito que conversar.
Apesar de nosso curto prazo – a partir de amanhã, somente mais dois dias até o equinócio e o fim do mundo – Bes insistiu que nós descansássemos até a manhã seguinte. Ele avisou que, se Carter se excedesse física ou magicamente tão cedo depois de ser envenenado, isto poderia muito bem matá-lo.
Perder tempo me deixou bastante agitada, mas depois de ter tantas dificuldades para reanimar o meu irmão, eu queria muito mantê-lo vivo. E admito que não estava em condições muito melhores. Estava esgotada magicamente. Não acho que poderia ter me movido mais longe do que até a varanda.
Bes ligou para a recepção e pediu uma personal shopper para nos comprar algumas roupas e mantimentos na cidade. Eu não tenho certeza de qual é a palavra árabe para coturnos, mas a senhora das compras conseguiu encontrar um novo par.
Quando entregou nossas coisas, ela tentou dar as botas para Carter, em seguida, olhou horrorizada quando Bes apontou para mim. Eu também consegui um pouco de tintura para cabelo, um confortável par de jeans, um top de algodão em cores de camuflagem do deserto e um lenço na cabeça que era, provavelmente, a última moda para as mulheres egípcias, mas que eu decidi não usar, porque ele provavelmente iria esconder com o novo roxo realçado que eu queria para o meu cabelo.
Carter ficou com jeans, botas e uma camiseta que dizia Propriedade da Universidade de Alexandria, em inglês e árabe. Claramente, até mesmo a personal shopper tinha tachado ele de nerd completo.
A compradora também conseguiu encontrar alguns materiais para a nossa bolsa de magia – blocos de cera, barbante, até mesmo alguns papiros e tinta – embora eu duvidasse que Bes explicou-lhe para que fossem.
Depois que ela saiu, Bes, Carter e eu pedimos mais comida do serviço de quarto. Sentamos na varanda e vimos a tarde passar.
A brisa do Mediterrâneo estava fresca e agradável. A Moderna Alexandria estendia-se à nossa esquerda – uma estranha mistura de reluzentes arranha-céus, sujeira, desmoronamento de edifícios e ruínas antigas. A autoestrada costeira estava lotada com palmeiras e com todo tipo de veículos desde BMWs até burros.
De nossa suíte, tudo parecia um pouco irreal – a energia bruta da cidade, a agitação e os congestionamentos abaixo – enquanto nós nos sentávamos na nossa varanda na cobertura comendo frutas frescas e os últimos pedaços da cabeça de Lênin. Eu me perguntava se era assim como os deuses se sentiam, vendo o mundo mortal de sua sala do trono no Duat.
Enquanto conversávamos, joguei os dois pergaminhos do Livro de Rá em cima da mesa do pátio. Eles pareciam tão simples e inofensivos, mas nós quase morremos recuperando-os. Ainda mais que encontrar, então, a verdadeira diversão iria começar, descobrindo como usá-los para despertar Rá.
Parecia impossível que pudéssemos fazer muito em 48 horas, mas ali nós sentamos, isolados e exaustos, em repouso forçado até amanhã.
Carter e seu heroísmo sangrento, sendo mordido por essa cobra Doutor Dolittle... e eleme chama de impulsiva.
Enquanto isso, Amós e os nossos novos iniciados foram deixados sozinhos na Casa do Brooklyn, preparando-se para se defender contra Vlad Menshikov, um mago muito cruel que estava em uma base de reputação secreta do deus do mal. Eu contei a Carter o que havia acontecido em São Petersburgo, depois que ele foi envenenado – como eu tinha desistido do nome de Set em troca da localização do último pergaminho: um lugar chamado Bahariya.
Descrevi a minha visão de Anúbis e Walt, meu papo com o espírito de Jaz, e minha viagem de volta ao tempo do barco de Rá. A única coisa que eu detive: O que Set tinha dito sobre a vila de Zia ter se chamado de al-Hamrah Makan. E sim, eu sei que foi errado, mas eu tinha acabado de estar dentro da cabeça de Carter. Agora eu entendia quão importante Zia era para ele. Eu sabia o quanto qualquer informação sobre ela o abalava.
Carter estava sentado em sua poltrona e ouvia atentamente. Sua cor tinha voltado ao normal. Seus olhos estavam claros e alertas. Era difícil acreditar que ele tinha estado à beira da morte poucas horas antes. Eu queria crédito pelos meus poderes de cura, mas tive uma sensação de que sua recuperação tinha muito a ver com descansarmos, várias cervejas de gengibre, um cheeseburger e serviço de quarto com batata-frita.
― Bahariya... ― Ele olhou para Bes. ― Eu conheço este nome. Por que conheço este nome?
Bes coçou sua barba. Ele havia ficado sombrio e silencioso desde que contei minha conversa com Set. O nome Bahariya pareceu especialmente incomodá-lo.
― É um oásis ― disse ele ― saindo do deserto. As múmias estavam enterradas ali em segredo até 1996. Então, algum burro bobo colocou a perna em um buraco no chão e quebrou o topo de uma tumba.
― Certo!
Carter sorriu para mim, tipo Caramba, a história é legal! Tinha luz em seus olhos, então eu sabia que ele devia estar se sentindo melhor.
― É o chamado Vale das Múmias Douradas.
― Eu gosto de ouro ― falei. ― Múmias, nem tanto.
― Oh, você só não encontrou múmias o suficiente ― disse Bes.
Eu não podia dizer se ele estava brincando, e decidi não perguntar.
― Então o último pergaminho está escondido lá?
Bes encolheu os ombros.
― Não faria sentido. O oásis está fora do caminho. Não foi encontrado até recentemente. Há também as maldições poderosas no local para evitar viagens do portal. Os arqueólogos mortais escavaram alguns dos túmulos, mas ainda há uma imensa rede de túneis e câmaras que ninguém andou em milhares de anos. Muitasmúmias.
Imaginei múmias de filmes de terror com os braços para cima e suas roupas se desfazendo, gemendo quando perseguiam atrizes gritando e arqueólogos estrangulados.
― Quando você diz muitas múmias ― arrisquei ― quantas são?
― Eles descobriram algumas centenas ― Bes disse ― talvez umas dez mil.
― Dez mil?
Olhei para Carter, que não parecia incomodado com tudo isso.
― Sadie ― disse ele ― não é como se eles fossem voltar a vida e te matar.
― Não ― Bes concordou. ― Provavelmente não. Quase certeza que não.
― Obrigada ― murmurei. ― Me sinto muito melhor.
[Sim, eu sei o que eu disse antes sobre pessoas mortas e cemitérios não me incomodarem. Mas dez mil múmias? Isso era forçar.]
― De qualquer forma ― Bes continuou ― a maioria das múmias é da época romana. Elas não são propriamente egípcias. Bando de latinos presunçosos tentando entrar em nossa vida após a morte, porque é mais legal. Mas alguns dos túmulos mais antigos... bem, teremos que ver. Com duas partes do Livro de Rá, você deve ser capaz de rastrear a terceira parte uma vez que você chegar perto o suficiente.
― Como, exatamente? ― perguntei.
Bes encolheu os ombros.
― Quando os itens mágicos se rompem, as peças são como ímãs. Quanto mais próximos elas ficam, mais atraem umas as outras.
Isso não necessariamente me fez sentir melhor. Imaginei-me correndo em um túnel em chamas com pergaminhos presos às duas mãos.
― Certo. Então tudo o que teremos que fazer é rastejar através de uma rede de tumbas de dez mil múmias douradas, que provavelmente, quase ao certo, não virão à vida nos matar.
― Sim ― disse Bes. ― Bem, elas não são realmente de ouro maciço. A maioria delas são apenas pintadas de dourado. Mas, sim.
― Isso faz um diferença enorme.
― Então está decidido ― Carter soou positivamente entusiasmado. ― Podemos sair de manhã. Qual é a distância?
― Um pouco mais de 320 quilômetros ― Bes respondeu ― mas as estradas são duvidosas. E portais... bem, como eu disse, o oásis é amaldiçoado contra eles. E mesmo se não fosse, estamos de volta ao Primeiro Nomo. Seria sábio usar tão pouca mágica quanto possível. Se vocês forem descobertos no próprio território de Desjardins...
Ele não precisou terminar a frase. Olhei para o horizonte de Alexandria sumindo ao longo da costa do Mediterrâneo brilhante. Eu tentei imaginá-la como pode ter sido em tempos remotos, antes de Cleópatra, ultima faraó do Egito, que escolheu o lado errado em uma guerra civil romana e perdeu sua vida e seu reino.
Esta foi a cidade onde o Antigo Egito tinha morrido. Não parecia um lugar muito auspicioso para começar uma busca. Infelizmente, eu não tinha escolha. Teria que viajar 320 quilômetros através do deserto para algum oásis isolado e encontrar uma agulha de um pergaminho em um palheiro de múmias. Eu não vejo como poderíamos fazer isso no tempo que restava.
Pior, eu ainda não havia dito a Carter minha última gota de informações sobre a vila de Zia. Poderia apenas manter minha boca fechada. Isso seria uma coisa egoísta. Podia até ser a coisa certa, como eu precisava de sua ajuda, e eu não podia dar ao luxo de tê-lo distraído. Mas eu não podia esconder dele. Invadi sua mente e aprendi seu nome secreto. O mínimo. O mínimo que eu podia fazer era ser sincera com ele.
― Carter... há outra coisa. Set queria que você soubesse. A vila de Zia era chamada de al-Hamrah Makan.
Carter ficou um pouco verde de novo.
― Você simplesmente esqueceu de mencionar isso?
― Lembre-se, Set é um mentiroso ― falei. ― Ele não estava sendo útil. Ele ofereceu a informação porque queria causar o caos entre nós.
Eu poderia dizer que já estava perdendo ele. Sua mente estava presa em uma corrente forte que estava puxando-o junto desde janeiro – a ideia de que ele poderia salvar Zia. Agora que eu havia estado em sua mente, eu sabia que ele não iria descansar – ele nãopodia descansar – até que a tivesse encontrado. Ele foi além de gostar da garota. Se convenceu de que ela era parte de seu destino.
Um de seus segredos sombrios? No fundo, Carter continua ressentido por nosso pai não salvar nossa mãe, embora ela tivesse morrido por uma causa nobre, e mesmo que tenha sido escolha dela se sacrificar. Carter simplesmente não podia falhar com Zia da mesma forma, não importa qual o perigo. Ele precisava de alguém para acreditar nele, alguém para salvar – e estava convencido de que Zia era essa pessoa.
Desculpe, uma irmã mais nova simplesmente não faria. Me machucou, especialmente porque eu não concordei com ele, mas eu sabia que não adiantava discutir. Iria apenas empurrá-lo para mais longe.
― Al-Hamrah Makan... ― ele disse. ― Meu árabe não é muito bom. Mas Makan é vermelho.
― Sim ― concordou Bes. ― Al-Hamrah significa as areias.
Carter arregalou os olhos.
― O lugar das areias vermelhas! A voz no Museu do Brooklyn, disse que Zia estava dormindo no Lugar de Areias Vermelhas.
Ele me olhou suplicante.
― Sadie, são as ruínas da aldeia natal dela. Foi onde Iskandar a escondeu. Temos que encontrá-la.
Assim: o destino do mundo sai pela janela. Temos que encontrar Zia. Eu poderia ter apontado várias coisas: Ele acreditava na palavra de um espírito mau que estava, provavelmente, falando diretamente por Apófis. Se Apófis sabia onde Zia estava escondida, por que ele nos disse, exceto para nos atrasar e distrair? E se ele queria Zia morta, por que ele não a havia matado antes?
Além disso, Set tinha nos dado o nome de al-Hamrah Makan. Set nunca foi bom. Ele estava claramente esperando para nos dividir. Finalmente, mesmo se tivéssemos o nome da aldeia, que não quer dizer que poderíamos encontrá-la. O lugar tinha sido dizimado há quase uma década. Mas olhando para Carter, eu percebi que não havia nenhuma argumentação com ele. Esta não era uma escolha razoável. Ele viu uma chance de salvar Zia, e ia usá-la. Eu simplesmente disse:
― É uma má ideia.
E sim, me senti muito estranha sendo forçada a bancar a irmã responsável. Carter voltou-se para Bes.
― Você pode encontrar essa vila?
O deus anão puxou sua camisa havaiana.
― Talvez, mas isso levaria tempo. Você tem um pouco mais de dois dias restando. O equinócio começa depois de amanhã ao pôr do sol. Chegar ao oásis de Bahariya é um dia inteiro de viagem. Encontrar estas ruínas da vila... facilmente outro dia... e se for pelo Rio Nilo, está na direção oposta. Assim que tiver o Livro de Rá, você precisará de outro dia, pelo menos para descobrir como usá-lo. Garanto que despertar Rá vai significar uma viagem ao Duat, onde o tempo é sempre imprevisível. Você terá que estar de volta com Rá ao amanhecer do equinócio...
― Não temos tempo suficiente ― resumi ― ou é o Livro de Rá, ou Zia.
Por que eu pressionei Carter, quando eu sabia o que ele ia dizer?
― Não posso deixá-la. ― Ele olhou para o sol, agora, mergulhando na direção do horizonte. ― Ela tem um papel a desempenhar, Sadie. Eu não sei qual é, mas ela é importante. Não podemos perdê-la.
Esperei. Era óbvio o que tinha que acontecer, mas Carter não ia dizer. Eu respirei profundamente.
― Vamos ter que nos separar. Você e Bes vão atrás de Zia. Eu vou achar o pergaminho.
Bes tossiu.
― Falando em ideias ruins...
Carter não podia me olhar nos olhos. Eu sabia que ele se importava comigo. Ele não queria se livrar de mim, mas podia sentir o seu alívio. Ele queria ser liberado de suas responsabilidades para que ele pudesse procurar Zia.
― Você salvou minha vida ― disse ele. ― Eu não posso deixar você ir sozinha ao deserto.
Eu soltei meu colar shen.
― Não vou sozinha. Walt se ofereceu para ajudar.
― Ele não pode ― Bes interrompeu.
― Mas você não vai me dizer o porquê ― falei.
― Eu... ― Bes vacilou. ― Olha, eu prometi a Bastet cuidar de vocês, mantê-los a salvo.
― E espero que você cuide de Carter muito bem. Ele vai precisar de você para encontrar essa vila. Quanto a mim, Walt e eu podemos conseguir.
― Mas...
― Seja qual for o segredo obscuro de Walt, o que você está tentando proteger, está fazendo-o infeliz. Ele quer ajudar. E eu vou deixar.
O anão olhou para mim, talvez se perguntando se ele poderia gritar BOO! E vencer a discussão. Acho que ele percebeu que eu era muito teimosa. Ele suspirou, resignado.
― Dois jovens viajando sozinhos pelo Egito... um menino e uma menina. Vai parecer estranho.
― Eu só vou dizer que Walt é meu irmão.
Carter fez uma careta. Eu não tinha a intenção de ser dura, mas acho que o comentário foi um pouco doloroso. Olhando para trás, sinto muito por isso, mas na época eu estava apavorada e com raiva. Carter estava me colocando em uma posição impossível.
― Vão ― disse com firmeza. ― Salvem Zia.
Carter tentou ler a minha expressão, mas evitei olhar para ele. Este não era o momento para que tivéssemos uma de nossas conversas em silêncio. Ele realmente não ia querer saber o que eu estava pensando.
― Como vamos nos encontrar? ― ele perguntou.
― Vamos nos encontrar novamente aqui ― sugeri. ― Vamos sair ao amanhecer. Nos dê 24 horas, nada mais, para eu achar o livro, você achar a vila de Zia, e nós dois voltamos para Alexandria.
Bes resmungou.
― Não há tempo suficiente. Mesmo se tudo correr perfeitamente, isso vai deixar você com cerca de 12 horas para montar o livro de Rá e usá-lo antes da véspera do equinócio.
Ele estava certo. Era impossível. No entanto, Carter concordou.
― É nossa única chance. Temos que tentar.
Ele olhou para mim esperançoso, mas acho que eu sabia ainda assim que não nos encontraríamos em Alexandria. Éramos os Kanes, o que significava que tudo ia dar errado.
― Tudo bem ― murmurei. ― Agora, se vocês me dão licença, devo ir arrumar as malas.
Caminhei para dentro antes que eu pudesse começar a chorar.

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