segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Trono de Fogo - Carter

Capítulo 18 - Jogando na véspera do Juízo Final

PELA SEGUNDA VEZ NESSA SEMANA, eu acordei num sofá em um quarto de hotel sem ter a mínima ideia de como havia chegado lá.
O quarto não estava nem perto de ser tão agradável como o Four Seasons Alexandria. As paredes estavam com o gesso quebrado. Vigas expostas cediam ao longo do teto. Um ventilador portátil zumbia na mesa de café, mas o ar era tão quente como uma fornalha.
A luz da tarde passava através das janelas abertas. Lá de baixo vinham os sons de carros buzinando e comerciantes oferecendo suas mercadorias em árabe. A brisa cheirava a exaustor, estrume de animal e applesisha – fumo com cheiro de melaço frutado usado no cachimbo d‘água.
Em outras palavras, eu sabia que devíamos estar no Cairo. Na janela, Sadie, Bes, Walt e Zia estavam sentados ao redor de uma mesa, jogando um jogo de tabuleiro como velhos amigos. A cena era tão bizarra que pensei que eu ainda devia estar sonhando. Então Sadie percebeu que estava acordado.
― Bem, bem. Da próxima vez que você fizer uma viagem prolongada de ba, Carter, deixe-nos saber com antecedência. Não é divertido te carregar por três lances de escadas.
Eu esfreguei minha cabeça latejante.
― Quanto tempo estive fora?
― Mais tempo que eu ― afirmou Zia.
Ela parecia incrível – calma e descansada. Seu cabelo recém lavado estava ajeitado por trás de suas orelhas, e ela usava um vestido branco novo sem mangas que fazia sua pele bronzeada brilhar. Acho que eu a estava encarando demais, porque ela desviou o olhar. Seu pescoço ficou vermelho.
― São três da tarde ― disse ela. ― Eu estou acordada desde as dez da manhã.
― Você parece...
― Melhor? ― Ela levantou as sobrancelhas, como se estivesse me desafiando a negá-lo. ― Você perdeu toda a agitação. Eu tentei lutar. Tentei escapar. Este é o nosso terceiro quarto de hotel.
― O primeiro pegou fogo ― disse Bes.
― O segundo explodiu ― completou Walt.
― Eu já pedi desculpas ― Zia fechou a cara. ― De qualquer forma, sua irmã finalmente me acalmou.
― O que levou várias horas ― disse Sadie ― e toda minha habilidade diplomática.
― Você tem uma habilidade diplomática? ― perguntei.
Sadie revirou os olhos.
― Como se você fosse notar, Carter!
― Sua irmã é muito inteligente ― Zia afirmou. ― Ela me convenceu a aguardar meu julgamento para seus planos até que você acordasse e nós pudéssemos conversar. Ela é bastante persuasiva.
― Obrigada ― disse Sadie presunçosamente.
Olhei para ambas e um sentimento de terror despertou.
― Vocês estão se dando bem? Vocês não podem se dar bem! Você e Sadie não se suportam.
― Isto era com o shabti, Carter ― Zia disse, embora o pescoço dela ainda estivesse vermelho brilhante. ― Eu acho Sadie... admirável.
― Você vê? ― Sadie falou. ― Eu sou admirável!
― Isto é um pesadelo.
Sentei-me e os cobertores caíram. Olhei para baixo e vi que estava usando um pijama do Pokémon.
― Sadie. Eu vou te matar.
Ela piscou os olhos inocentemente.
― Mas o vendedor de rua nos deu um bom desconto nele. Walt disse que caberia em você.
Walt levantou as mãos.
― Não me culpe, cara. Eu tentei te defender.
Bes bufou e depois fez uma imitação muito boa da voz de Walt:
― “Pelo menos pegue os extragrandes com o Pikachu”. Carter, as suas coisas estão no banheiro. Agora, nós estamos jogando senet ou não?
Eu fui aos tropeços para o banheiro e fiquei aliviado de encontrar um conjunto de roupas normais esperando por mim – cuecas limpas, jeans e uma camiseta que não tinha o desenho do Pikachu.
O chuveiro fez o barulho de um elefante morrendo quando tentei ligá-lo, mas eu consegui um pouco de água com cheiro de ferrugem na pia e me lavei o melhor que pude.
Quando saí de novo, eu não me sentia exatamente como novo em folha, mas pelo menos eu não cheirava a peixe morto e carne de bode. Meus quatro companheiros ainda estavam jogando senet. Eu tinha ouvido falar do jogo – supostamente um dos mais antigos do mundo, mas nunca o vi jogarem.
O tabuleiro era um retângulo com quadrados azuis e brancos, três fileiras de dez espaços cada. As peças do jogo eram círculos azuis e brancos. Em vez de dados, você atirava quatro varetas de marfim, como palitos de sorvete, vazias de um lado e marcadas com hieróglifos no outro.
― Eu pensei que as regras do jogo tinham se perdido.
Bes levantou uma sobrancelha.
― Talvez para vocês, mortais. Os deuses nunca esqueceram.
― É muito fácil ― disse Sadie. ― Você faz um S em torno do tabuleiro. A primeira equipe que conseguir colocar todas as suas peças no final ganha.
― Há! ― Bes disse. ― Há muito mais do que isso. Levam-se anos para dominar.
― É mesmo, deus anão? ― Zia jogou as quatro varetas, e todas caíram com o lado marcado para cima. ― Domine isso!
Sadie e Zia deram um “toca aqui” uma na outra. Aparentemente, elas eram uma equipe. Sadie movimentou uma peça azul e bateu uma peça branca de volta ao começo.
― Walt ― Bes resmungou, ― eu te disse para não movimentar essa peça!
― Não é minha culpa!
Sadie sorriu para mim.
― São meninas versus meninos. Estamos jogando pelos óculos de sol de Vlad Menshikov.
Ela ergueu a armação branca quebrada que Set lhe dera em São Petersburgo.
― O mundo está prestes a acabar ― falei ― e vocês estão apostando óculos de sol?
― Ei, cara ― disse Walt. ― Nós somos totalmente versáteis. Conversamos em torno de seis horas, mas nós tivemos que esperar você acordar para tomar qualquer decisão, certo?
― Além disso ― disse Sadie ― Bes nos garantiu que não se pode jogar senet sem se apostar. Isso abalaria as estruturas do Maat.
― É verdade ― o anão concordou. ― Walt jogue, já.
Walt jogou as varetas e três saíram em branco. Bes amaldiçoou.
― Precisamos de dois para sair da Casa de Re-Atoum, garoto. Eu não te expliquei isso?
― Desculpe!
Eu não tinha certeza do que fazer, então puxei uma cadeira. A vista da janela era melhor do que eu imaginava. A cerca de um quilômetro de distância, as Pirâmides de Gizé brilhavam vermelhas na luz da tarde. Nós devíamos estar na periferia sudoeste da cidade, perto de El-Mansoria. Passei por esse bairro uma dúzia de vezes com meu pai em nossos caminhos para diversas escavações, mas ainda era confuso ver as pirâmides tão perto.
Eu tinha um milhão de perguntas. Eu precisava contar a meus amigos sobre a visão do meu ba. Mas antes que eu tomasse coragem, Sadie lançou em uma longa explicação do que eles fizeram enquanto eu estava inconsciente.
Ela se concentrou principalmente em como eu parecia engraçado enquanto dormia e como choraminguei várias vezes quando eles me tiraram dos dois primeiros quartos de hotel em chamas.
Descreveu o excelente pão sírio recém assado, falafel e carne temperada que tinham comido no almoço (“Oh, desculpe, nós não guardamos nada para você”) e as grandes barganhas que conseguiram ao fazer compras no souk, o mercado local ao ar livre.
― Vocês foram fazer compras?
― Bem, é claro ― respondeu ela. ― Nós não podemos fazer nada até o pôr do sol de qualquer maneira. Foi o que Bes disse.
― O que você quer dizer?
Bes jogou as varetas e moveu uma de suas peças para uma das bordas.
― O equinócio, garoto. Estamos perto o suficiente agora. Todos os portais do mundo fecharão, exceto em duas ocasiões: o pôr e o nascer do sol, quando dia e noite estão perfeitamente equilibrados.
― De qualquer forma ― Sadie disse ― se quisermos encontrar Rá, vamos ter que fazer sua jornada, o que significa entrar no Duat ao pôr do sol e voltar ao nascer do sol.
― Como você sabe disso? ― perguntei.
Ela puxou um pergaminho de sua sacola – um cilindro de papiro muito mais espesso do que aqueles que eu havia reunido. As bordas brilhavam como fogo.
― O Livro de Rá ― disse ela. ― Eu o juntei. Você pode me agradecer agora.
Minha cabeça começou a girar. Lembrei-me do que Hórus havia dito em minha visão sobre o pergaminho queimando o rosto de Menshikov.
― Você quer dizer que você o leu sem... sem nenhum problema?
Ela deu de ombros.
― Apenas a introdução: avisos, instruções, esse tipo de coisa. Eu não vou ler o verdadeiro feitiço até encontrarmos Rá, mas sei para onde vamos.
― Se decidirmos ir ― falei.
Aquilo chamou a atenção de todos.
― Se? ― Zia perguntou.
Ela estava tão perto que era doloroso, mas eu pude sentir a distância que ela estava colocando entre nós: se inclinando para longe de mim, de ombros tensos, advertindo-me a respeitar o seu espaço.
― Sadie me disse que você estava bastante determinado.
― Eu estava, até que saber o que Menshikov está planejando.
Contei a eles o que tinha visto – sobre a força de ataque de Menshikov se dirigindo para o Brooklyn ao pôr do sol e seus planos de nos seguir pessoalmente através do Duat. Eu expliquei o que Hórus disse sobre os perigos de acordar Rá, e como eu poderia usar o cajado e o mangual em vez de lutar contra Apófis.
― Mas esses são os símbolos sagrados de Rá ― Zia afirmou.
― Eles pertencem a qualquer faraó forte o suficiente para manejá-los ― repliquei. ― Se nós não ajudarmos Amós no Brooklyn...
― Seu tio e todos os seus amigos serão destruídos ― disse Bes. ― Pelo que você descreveu, Menshikov reuniu um pequeno e desagradável exército. Uraei, as serpentes com chamas, são notícias muito ruins. Mesmo se Bastet voltar a tempo de ajudar...
― Precisamos avisar Amós ― disse Walt. ― Pelo menos alertá-lo.
― Você tem uma bacia de vidência? ― perguntei.
― Melhor.
Walt retirou um telefone celular do bolso.
― O que eu digo a ele? Vamos voltar?
Hesitei. Como eu poderia deixar Amós e meus amigos sozinhos contra um exército do mal? Parte de mim estava se coçando para pegar as armas do faraó e esmagar nossos inimigos. A voz de Hórus ainda estava dentro de mim, incitando-me para que eu me encarregasse disso.
― Carter, você não pode ir para o Brooklyn.
Zia encontrou meus olhos e eu percebi que o medo e o pânico não a tinham abandonado. Ela estava controlando aqueles sentimentos, mas eles ainda estavam borbulhando sob a superfície.
― O que eu vi nas Areias Vermelhas... aquilo me perturbou muito.
Eu me senti como se ela tivesse acabado de pisotear o meu coração.
― Olha, eu sinto muito sobre essa coisa de avatar, cajado e mangual. Eu não queria te apavorar, mas...
― Carter, você não me perturbou. Vlad Menshikov o fez.
― Ah... Certo.
Ela tomou um fôlego incerto.
― Eu nunca confiei naquele homem. Quando me formei no treino de iniciante, Menshikov solicitou que eu fosse atribuída ao seu Nomo. Felizmente, Iskandar recusou.
― Então... por que eu não posso ir para o Brooklyn?
Zia examinou o tabuleiro de senet como se fosse um mapa de guerra.
― Eu acredito que você está dizendo a verdade. Menshikov é um traidor. O que você descreveu da sua visão... Eu acho que Desjardins está sendo afetado por magia maligna. Não é o enfraquecimento do Maat que está drenando a sua força vital.
― É Menshikov ― Sadie adivinhou.
― Eu acredito que sim... ― a voz de Zia ficou rouca. ― E acredito que o meu mentor, Iskandar, estava tentando me proteger quando ele me colocou naquele túmulo. Não foi um erro ele ter me deixado ouvir a voz de Apófis nos meus sonhos. Era uma espécie de aviso, uma última lição. Ele escondeu o cajado e o mangual comigo por uma razão. Talvez ele soubesse que você me encontraria. De qualquer forma, Menshikov deve ser detido.
― Mas você acabou de dizer que não posso ir pro Brooklyn ― protestei.
― Eu quis dizer que você não pode abandonar sua missão. Acho que Iskandar previu esse caminho. Ele acreditava que os deuses devem se unir à Casa da Vida e eu confio no julgamento dele. Você tem que acordar Rá.
Ao ouvir Zia dizer isto, senti pela primeira vez como se a nossa missão fosse real. E crucial. E muito, muito louca. Mas também senti uma pequena centelha de esperança. Talvez ela não me odiasse completamente.
Sadie pegou as varetas de senet.
― Bem, está acertado, então. Ao pôr do sol, nós vamos abrir um portal no topo da Grande Pirâmide. Seguiremos o velho curso do barco sol descendo o Rio da Noite, encontraremos Rá, o acordaremos, e o traremos novamente ao amanhecer. E, possivelmente, encontrar um lugar para jantar ao longo do caminho, porque eu estou com fome de novo.
― Vai ser perigoso ― disse Bes. ― Imprudente. Provavelmente fatal.
― Logo, um dia comum para nós ― resumi.
Walt franziu a testa, ainda segurando o telefone.
― Então o que devo dizer à Amós? Ele está por conta própria?
― Não é bem assim ― Zia afirmou. ― Eu vou para o Brooklyn.
Eu quase engasguei.
― Você?
Zia me deu um olhar de esguelha.
― Eu sou boa em magia, Carter.
― Não foi isso que eu quis dizer. É só...
― Quero falar com Amós eu mesma ― disse ela. ― Quando a Casa da Vida aparecer, talvez eu possa intervir, ganhar tempo. Eu tenho alguma influência com outros magos... pelo menos tinha quando Iskandar estava vivo. Alguns deles podem escutar a voz da razão, sobretudo se Menshikov não estiver lá instigando-os.
Pensei na multidão enfurecida que eu tinha visto em minha visão. Razoável, não foi a primeira palavra que me veio à mente. Aparentemente Walt estava pensando a mesma coisa.
― Se você se transportar ao pôr do sol ― disse ele ― vai chegar ao mesmo tempo que os atacantes. Será o caos, sem muito tempo para conversas. E se você tiver que lutar?
― Esperemos ― afirmou Zia ― que não chegue a esse ponto.
Não foi uma resposta muito reconfortante, mas Walt assentiu.
― Eu vou com você.
Sadie deixou cair suas varetas de senet no chão.
― O quê? Walt, não! Na sua condição... ― ela tampou a boca com a mão tarde demais.
― Que condição? ― perguntei.
Se Walt tivesse um feitiço Olho do Mal, acho que ele teria usado na minha irmã naquele momento.
― A história da minha família ― disse ele. ― Algo que eu contei a Sadie... em segredo.
Ele não parecia estar feliz com isso, mas explicou a maldição sobre sua família, a linhagem de Akhenaton e o que isto significava. Fiquei lá sentado, atordoado. O comportamento secreto de Walt, suas conversas com Jaz, seu mau humor, tudo isso fazia sentido agora. Meus próprios problemas de repente pareciam muito menos importantes.
― Oh, cara ― murmurei. ― Walt...
― Olha, Carter, seja lá o que você vá dizer, eu aprecio o sentimento. Mas estou cansado de comiseração. Eu tenho vivido com esta doença por anos. Não quero que as pessoas tenham pena de mim ou me tratem como se pensassem que sou especial. Quero ajudar vocês, pessoal. Vou levar Zia de volta ao Brooklyn. Assim, Amós vai saber que ela vem em paz. Vamos tentar parar o ataque, segurá-los até o amanhecer para que vocês possam voltar com Rá. Além disso... ― Ele encolheu os ombros. ― Se vocês falharem e não pararmos Apófis, todos nós vamos morrer amanhã de qualquer maneira.
― Isto é que é olhar pelo lado positivo ― eu disse.
Então algo me ocorreu: um pensamento tão chocante que era como uma pequena reação nuclear em minha cabeça.
― Espere. Menshikov disse que ele era descendente dos sacerdotes de Amon-Rá.
Bes bufou com desprezo.
― Eu odiava aqueles caras. Eles eram tão cheios de si. Mas o que isso tem a ver com qualquer coisa?
― Não foram os mesmos sacerdotes que lutaram contra Akhenaton e amaldiçoaram os antepassados de Walt? ― perguntei. ― E se Menshikov tiver o segredo da maldição? E se ele puder curar...
― Pare.
A raiva na voz de Walt me pegou de surpresa. Suas mãos tremiam.
― Carter, eu já aceitei o meu destino. Eu não vou criar esperanças por nada. Menshikov é o inimigo. Mesmo que ele pudesse ajudar, ele não iria. Se o seu caminho se cruzar com o dele, não tente fazer qualquer acordo. Não tente argumentar com ele. Faça o que precisa fazer. Acabe com ele.
Olhei para Sadie. Seus olhos estavam brilhando como se eu finalmente tivesse feito algo certo.
― Ok, Walt ― respondi. ― Eu não vou falar sobre isso novamente.
Mas Sadie e eu tivemos uma conversa muito diferente em silêncio. Pela primeira vez, estávamos de total acordo. Nós íamos visitar o Duat. E enquanto estivéssemos lá, nós viraríamos a mesa sobre Vlad Menshikov. Nós o encontraríamos, acabaríamos com ele e o forçaríamos a nos dizer como curar Walt. De repente, eu me senti muito melhor a respeito dessa missão.
― Então partiremos ao pôr do sol ― Zia afirmou. ― Walt e eu para o Brooklyn. Você e Sadie para o Duat. Está resolvido.
― Exceto por uma coisa ― Bes olhou para as varetas de senet que Sadie havia deixado cair no chão. ― Você não tirou isto. É impossível!
Sadie olhou para baixo. Um sorriso se espalhou pelo seu rosto. Ela acidentalmente tirou um três, exatamente o que precisava para vencer. Ela movimentou sua última peça para o fim do tabuleiro, em seguida pegou os óculos brancos de Menshikov e os experimentou. Eles pareciam assustadores nela. Não pude deixar de pensar na voz arruinada de Menshikov e nos seus olhos cicatrizados, e no que poderia acontecer com a minha irmã se ela tentasse ler o Livro de Rá.
― Impossível é a minha especialidade ― disse ela. ― Vamos, irmão querido. Vamos nos preparar para a Grande Pirâmide.

***

Se você alguma vez visitar as pirâmides, aqui vai uma dica: o melhor lugar para vê-las é de longe, como o horizonte. Quanto mais perto você chegar, mais decepcionado você vai ficar.
Isso pode soar duro, mas em primeiro lugar, de perto as pirâmides vão parecer menores do que você pensava. Todos que as veem dizem isso. Claro, elas foram as estruturas mais altas na terra por milhares de anos, mas em comparação com edifícios modernos, elas não parecem tão impressionantes.
Foram despojadas do revestimento de pedras brancas e do topo de ouro que as tornavam muito legais nos tempos antigos. Elas ainda são bonitas, especialmente quando reluzem ao pôr do sol, mas você pode apreciá-las melhor de bem longe sem ser pego no cenário turístico.
Essa é a segunda questão: a multidão de turistas e vendedores. Não importa onde você passe as férias: Times Square, Piccadilly Circus ou no Coliseu romano. É sempre a mesma coisa, com vendedores oferecendo camisetas e bugigangas baratas, e hordas de turistas suados reclamando e se amontoando tentando tirar fotos. As pirâmides não são diferentes, exceto que a multidão é maior e os vendedores são realmente, realmente insistentes. Eles conhecem um monte de palavras em inglês, mas “não” não é um delas.
Enquanto nos espremíamos entre multidão, os vendedores tentaram nos vender três passeios de camelo, uma dúzia de camisetas, mais amuletos do que Walt estava usando (Preço especial! Boa magia!), e onze dedos genuínos de múmia, os quais eu imaginei provavelmente serem feitos na China.
Eu perguntei a Bes se ele poderia afugentar a multidão, mas ele apenas riu.
― Não vale a pena, garoto. Os turistas têm estado por aqui há quase tanto tempo quanto as pirâmides. Vou me certificar de que eles não nos notem. Vamos apenas chegar ao topo.
Seguranças patrulhavam a base da Grande Pirâmide, mas ninguém tentou nos deter. Talvez Bes tenha nos tornado invisíveis de algum modo, ou talvez os guardas apenas preferissem ignorar, pois estávamos com o deus anão.
De qualquer maneira, eu logo descobri porque escalar as pirâmides não era permitido: é difícil e perigoso. A Grande Pirâmide tem por volta de 130 metros de altura. As laterais de pedra não eram feitas para se escalar.
Enquanto subíamos, eu quase caí duas vezes. Walt torceu o tornozelo. Alguns dos blocos estavam soltos e se despedaçavam. Alguns dos “degraus” tinham um metro e meio de altura, e tivemos de nos içar uns aos outros.
Finalmente, depois de vinte minutos de trabalho difícil e suado, chegamos ao topo. A nuvem de poeira sobre o Cairo fazia tudo ao leste parecer uma grande mancha difusa, mas a oeste tínhamos uma boa visão do sol se pondo no horizonte, tingindo o deserto de carmesim. Tentei imaginar como era a vista aqui há cerca de cinco mil anos, quando a pirâmide era recém-construída. Teria o faraó Khufu subido até aqui no topo de sua própria tumba e admirado o seu império? Provavelmente não. Ele provavelmente era inteligente demais para fazer essa escalada.
―Certo ― Sadie atirou sua bolsa no bloco de pedra calcárea mais próximo. ― Bes, fique de olho. Walt, ajude-me com o portal, certo?
Zia tocou no meu braço, o que me fez pular.
― Podemos conversar? ― ela perguntou.
Ela desceu um pouco na pirâmide. Meu pulso estava acelerado, mas consegui acompanhar sem dar nenhum tropeção e parecer um idiota.
Zia olhou para o deserto. Seu rosto ficou corado com luz do pôr do sol.
― Carter, não me entenda mal. Eu aprecio que você tenha me acordado. Eu sei que seu coração estava no lugar certo.
Meu coração não se sentia no lugar certo. Ele se sentia como se estivesse preso no meu esôfago.
 ―Mas...? ― perguntei.
Ela se abraçou.
―Eu preciso de tempo. Isto é muito estranho para mim. Talvez nós possamos ser... mais próximos algum dia, mas por ora...
― Você precisa de tempo ― eu disse, minha voz entrecortada. ― Supondo que todos nós não morramos esta noite.
Seus olhos estavam com um brilho dourado. Eu me perguntei se essa era a última cor que um inseto via quando ficava preso no âmbar, e se o inseto pensava, “Uau, isso é lindo”, um pouco antes de ser paralisado para sempre.
― Eu vou fazer o meu melhor para proteger a sua casa ― ela falou. ― Prometa-me, se você tiver que fazer uma escolha, que você ouvirá seu próprio coração e não a vontade dos deuses.
― Eu prometo ― falei, embora eu duvidasse de mim mesmo.
Eu ainda ouvia Hórus na minha cabeça, incitando-me a reivindicar as armas do faraó. Queria dizer mais, dizer-lhe como me sentia, mas tudo que consegui proferir foi:
― Hum... Sim.
Zia conseguiu dar um sorriso seco.
― Sadie estava certa. Você é... como foi que ela disse? Amavelmente grosseiro.
― Maravilha. Obrigado.
Uma luz brilhou sobre nós, e um portal se abriu na ponta da pirâmide. Diferentemente da maioria dos portais, este não era um turbilhão de areia. Ele brilhava com a luz púrpura – um portal diretamente para o Duat.
Sadie se virou para mim.
― Esse é para nós. Você vem?
― Tenha cuidado ― disse Zia.
― Sim. Eu não sou muito bom nisso, mas sim.
Enquanto eu marchava para o topo, Sadie puxou Walt para perto e sussurrou algo em seu ouvido. Ele concordou severamente.
― Eu vou.
Antes que eu pudesse perguntar do que se tratava, Sadie olhou para Bes.
― Pronto?
― Eu seguirei vocês ― Bes prometeu. ― Assim que eu passar Walt e Zia através do portal deles. Vou encontrá-los no Rio da Noite, na Quarta Casa.
― Quarta o quê? ― perguntei.
― Você verá ― ele prometeu. ― Agora, vão!
Dei mais uma olhada em Zia, perguntando-me se esta poderia ser a última vez que eu a veria. Então, Sadie e eu pulamos para o agitado portal roxo.
O Duat é um lugar estranho. [Sadie acabou de me chamar de Capitão Óbvio – mas, hey, vale a pena dizer.] As correntes do mundo dos espíritos interagem com seus pensamentos, puxando você para cá e para lá, moldando o que você vê para se ajustar ao que você conhece. Assim, ainda que tivéssemos pisado em outro nível de realidade, parecia o cais do rio Tâmisa abaixo do apartamento da vovó e do vovô.
― Isto é grosseiro ― disse Sadie.
Eu entendia o que ela queria dizer. Era difícil para ela estar de volta à Londres depois de sua desastrosa viagem de aniversário. Além disso, no último Natal, nós iniciamos nossa primeira viagem para o Brooklyn daqui. Descemos os degraus para as docas com Amós e embarcamos no seu barco mágico.
Na época, eu estava sofrendo com a perda do meu pai, em estado de choque que vovó e vovô nos dariam para um tio que eu nem me lembrava, e aterrorizado de navegar para o desconhecido. Agora, todos aqueles sentimentos brotavam dentro de mim, tão fortes e dolorosos como sempre.
O rio estava encoberto com névoa. Não havia as luzes da cidade, apenas um brilho estranho no céu. A linha do horizonte de Londres parecia fluida – edifícios se deslocando, subindo e derretendo como se eles não pudessem encontrar um lugar confortável para se estabelecer. Abaixo de nós, a névoa se afastou das docas.
― Sadie ― chamei ― olhe.
Na parte inferior da escada, um barco estava atracado, mas não era o de Amós. Era a barca do deus sol, exatamente como eu tinha visto na minha visão – outrora um navio régio com uma cabine e lugar para vinte remadores – mas agora mal conseguia se manter à tona. A vela estava em frangalhos, os remos quebrados, o cordame coberto com teias de aranha. No meio dos degraus, bloqueando nosso caminho, estavam vovó e vovô.
― Eles de novo ― Sadie resmungou. ― Vamos.
Ela marchou direto para os degraus até ficarmos cara a cara com as imagens brilhantes de nossos avós.
― Caíam fora ― disse-lhes Sadie.
― Minha querida ― os olhos da Vovó brilhavam. ― Esses são modos de se dirigir à sua avó?
― Oh, me perdoe ― disse Sadie. ― Esta deve ser a parte onde eu digo “Meu Deus, que dentes grandes você tem”. Você não é minha avó, Nekhbet! Agora, saia do nosso caminho!
A imagem da vovó brilhou. Seu roupão florido se transformou em um manto de penas pretas oleosas. Seu rosto murchou transformando-se em uma máscara flácida e enrugada, e a maioria de seus cabelos caíram, o que a colocou em um 9,5 na escala de feiura, bem no topo ao lado de Bes.
― Mostre-me mais respeito, querida ― a deusa cantarolou. ― Estamos aqui apenas para lhe dar um aviso amigável. Você está prestes a passar do Ponto Sem Retorno. Se pisar no barco, não haverá como voltar atrás – sem paradas até você ter passado por todas as Doze Casas da Noite, ou até você morrer.
Vovô concordou:
― Aghh!
Ele coçou a axila, o que poderia significar que ele estava possuído pelo deus babuíno Babi – ou não, já que esse comportamento não era tão estranho para o vovô.
― Ouça Babi ― Nekhbet insistiu. ― Vocês não têm ideia do que os espera no rio. Você mal pôde manter os dois de nós afastados em Londres, menina. Os exércitos do Caos são muito piores!
― Ela não está sozinha desta vez.
Dei um passo em frente com o cajado e o mangual.
― Agora, sumam.
Vovô rosnou e se afastou.
Os olhos de Nekhbet se estreitaram.
― Você poderia empunhar as armas do faraó? ― Seu tom tinha uma pitada de relutante admiração. ― Uma jogada ousada, criança, mas isso não vai te salvar.
― Você não entendeu ― eu disse. ― Também estamos te salvando. Estamos salvando a todos nós de Apófis. Quando voltarmos com Rá, você vai ajudar. Você vai seguir nossas ordens e vai convencer os outros deuses a fazer o mesmo.
― Ridículo ― Nekhbet silvou.
Eu levantei o cajado, e poder fluía por mim – o poder de um rei. O cajado era o instrumento de um pastor. Um rei conduz o seu povo como um pastor conduz seu rebanho. Eu impus minha vontade, e os dois deuses caíram de joelhos. As imagens de Nekhbet e de vovô evaporaram-se, revelando as formas verdadeiras dos deuses.
Nekhbet era um abutre enorme com uma coroa dourada na cabeça e um elaborado colar de joias em torno de seu pescoço. Suas asas ainda eram negras e oleosas, mas elas brilhavam como se tivessem sido envoltas de ouro em pó. Babi era um babuíno cinza gigante com olhos de fogo vermelhos, caninos em forma de cimitarra, e braços tão grossos como troncos de árvores.
Ambos me encararam com puro ódio. Eu sabia que se vacilasse por um único instante, se eu deixasse o poder do cajado esmorecer, eles iriam me fazer em pedaços.
― Jurem lealdade ― ordenei. ― Quando voltamos com Rá, vocês o obedecerão.
― Você nunca terá sucesso ― Nekhbet falou.
― Então não fará nenhum mal jurar a sua lealdade ― repliquei. ― Jure!
Eu brandi o mangual no ar, e os deuses se encolheram.
― Agh ― Babi murmurou.
― Nós juramos ― disse Nekhbet. ― Mas é uma promessa vazia. Você vai navegar para sua morte.
Eu cortei o ar com o meu cajado, e os deuses desapareceram na névoa.
Sadie tomou um longo fôlego.
― Muito bem. Você soou confiante.
― Uma completa atuação.
― Eu sei. Agora, a parte difícil: encontrar Rá e acordá-lo. E ter um bom jantar pelo caminho, de preferência sem morrer.
Olhei para o barco. Tot, o deus do conhecimento, uma vez nos disse que sempre teríamos o poder de invocar um barco quando precisássemos de um porque nós éramos o sangue dos faraós. Mas eu nunca pensei que seria este barco, e em estado tão ruim. Duas crianças em uma barcaça quebrada com vazamentos, sozinhas contra as forças do Caos.
― Todos a bordo ― anunciou Sadie.

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