domingo, 18 de janeiro de 2015

A Pirâmide Vermelha - Carter

Capítulo 25 - Ganhamos uma viagem com tudo pago para a morte

SER TRANSFORMADO EM LAGARTO pode estragar seu dia. Quando passamos pelo portal, tentei disfarçar, mas não estava me sentindo nada bem.
Você deve estar pensando: Ei, você já se transformou em um falcão. Qual é o problema? Mas outra pessoa obrigá-lo a assumir outra forma – isso é totalmente diferente. Imagine-se dentro de um compactador de lixo, seu corpo todo encolhido em uma forma muito menor que sua mão. É doloroso e humilhante. Seus inimigos o imaginam como um estúpido e inofensivo lagarto, depois impõem a você essa visão e essa vontade, dominando seus pensamentos até que se torne aquilo que eles querem. Acho que podia ter sido pior. Eles podiam ter me imaginado como um morcego de frutas, mas...
É claro que me sentia grato por Sadie ter me salvado, só que também me sentia um completo fracasso. Como se não bastasse eu ter me exposto ao ridículo na quadra de basquete com um bando de babuínos. E também ter fracassado completamente na luta. Talvez tivesse me saído bem com Leroy, o monstro do aeroporto, mas diante de uma dupla de magos (mesmo que fossem de argila), eu tinha sido transformado em réptil nos primeiros dois segundos. Que chances teria contra Set?
Abandonei esses pensamentos quando emergimos do portal, porque percebi que não estávamos no escritório de Tot. À nossa frente havia uma pirâmide de vidro e metal quase tão grande quanto as de Gizé. O horizonte da cidade de Memphis podia ser visto ao longe. Atrás de nós estavam as margens do rio Mississippi.
O sol estava se pondo, tingindo de dourado o rio e a pirâmide. Na escada diante da pirâmide, ao lado de uma estátua de faraó de uns seis metros de altura identificada como RAMSÉS, O GRANDE, Tot havia montado um piquenique com costelas e carne na brasa, pão, picles, serviço completo. Ele tocava sua guitarra com um amplificador portátil. Khufu estava ali perto, tampando os ouvidos.
— Ah, que bom. — Tot tocou uma nota que lembrava o grito de morte de um jumento doente. — Vocês sobreviveram.
Olhei a pirâmide com espanto.
— De onde veio isso? Você não... a construiu, não é?
Lembrei a viagem de meu ba à pirâmide vermelha de Set, e de repente comecei a imaginar deuses construindo monumentos por todo o território norte-americano.
Tot riu.
— Não precisei construí-la. O povo de Memphis fez isso. Os humanos nunca esquecem o Egito, sabe? Cada vez que constroem uma cidade à margem de um rio, relembram o passado, recuperam informações enterradas no fundo do inconsciente. Essa é a Pirâmide
Arena, a sexta maior no mundo. É usada como uma arena esportiva para... Como é mesmo o nome daquele jogo de que você gosta, Khufu?
— Agh! — Khufu respondeu indignado, e juro que me olhou feio.
— Isso, basquete — disse Tot. — Mas a arena passou por dificuldades. Está largada há anos. Ou estava. Estou me mudando para cá. Trouxeram o ankh?
Por um momento, pensei se tinha sido boa ideia ajudar Tot, mas precisávamos dele. Entreguei o colar.
— Excelente — aprovou ele. — Um ankh do túmulo de Elvis. Magia poderosa!
Sadie cerrou os punhos.
— Quase morremos para pegar o colar. Você nos enganou.
— Não enganei. Foi um teste.
— Aquelas coisas — insistiu Sadie. — Os shabti...
— Sim, meu melhor trabalho nos últimos séculos. Uma pena quebrá-los, mas não podia permitir que vocês derrotassem magos de verdade, podia? Os shabti são excelentes dublês.
— Então você viu tudo — deduzi.
— Ah, sim. — Tot estendeu a mão.
Duas pequenas bolas de fogo dançavam no centro da palma: as essências de magia que vimos sair da boca dos shabti.
— São... gravadores, como vocês chamariam. Tenho um relatório completo. Você derrotou o shabti sem mata-lo. Devo admitir que fiquei impressionado, Sadie. Controlou sua magia e controlou Ísis. E você, Carter, saiu-se bem ao se transformar em lagarto.
Achei que estivesse debochando de mim. Depois, percebi que havia uma sincera solidariedade em seus olhos, como se meu fracasso tivesse sido um tipo de teste.
— Vai encontrar inimigos piores, Carter — ele me preveniu. — Agora mesmo, a Casa da Vida está enviando o que tem de melhor atrás de você. Mas também encontrará amigos onde menos espera.
Não sei por que, mas tive a sensação de que ele falava sobre Zia... ou talvez isso fosse apenas o que eu queria.
Tot se levantou e entregou a guitarra a Khufu. Ele jogou o ankh na direção da estátua de Ramsés e o colar ficou pendurado no pescoço do faraó.
— Aí está, Ramsés — Tot falou para a estátua. — À nossa nova vida.
A estátua brilhou levemente, como se o pôr do sol tivesse se tornado dez vezes mais radiante. O brilho se espalhou por toda a pirâmide antes de desaparecer.
— Ah, sim — Tot falava sozinho. — Acho que serei feliz aqui. Na próxima visita de vocês, terei um laboratório muito maior.
A ideia era assustadora, mas tentei me manter focado.
— Não foi só isso que encontramos — revelei. — Precisa nos explicar isto. — Mostrei a pintura do gato e da cobra.
— São um gato e uma cobra — disse Tot.
— Muito obrigado, deus da sabedoria. Você deixou isso lá para ser encontrado por nós, não foi? Está tentando nos dar algum tipo de pista.
— Quem, eu?
Acabe com ele de uma vez, disse Hórus.
Cale a boca, respondi.
Pelo menos acabe com a guitarra.
— O gato é Bastet — afirmei, tentando ignorar minha psique falcão. — Isso tem alguma coisa a ver com o motivo pelo qual os nossos pais libertaram os deuses?
Tot apontou para os pratos do piquenique.
— Já disse que estamos fazendo churrasco?
Sadie bateu o pé.
— Fizemos um acordo, Ja-hooty!
— Sabe... eu gosto desse nome — comentou Tot — mas não gosto tanto quando você o pronuncia. Creio que nosso acordo era que eu explicaria como usar o livro de encantamentos. Posso?
Ele estendeu a mão. Relutante, tirei o livro da bolsa e o entreguei a ele.
Tot folheou o livro.
— Ah, isso me confunde. Tantas fórmulas! Nos velhos tempos, acreditávamos no ritual. Um bom encantamento podia levar semanas para ser preparado, com ingredientes exóticos do mundo todo.
— Não temos semanas — retruquei.
— Pressa, pressa, pressa — suspirou Tot.
— Agh! — concordou Khufu, cheirando a guitarra.
Tot fechou o livro e o devolveu a mim.
— Bem, isso é um encantamento para destruir Set.
— Sim, sabemos disso — manifestou-se Sadie. — Vai destruí-lo para sempre?
— Não, não. Mas vai destruir sua forma no mundo, bani-lo para o fundo do Duat e reduzir seu poder, de maneira que ele não possa aparecer de novo por muito, muito tempo. Séculos, provavelmente.
— Parece bom — aprovei. — E como lemos o livro?
Tot me olhou como se a resposta fosse óbvia.
— Não vão fazer isso agora, porque as palavras só podem ser ditas na presença de Set. Uma vez diante dele, Sadie deve abrir o livro e recitar o encantamento. Ela saberá o que fazer quando chegar a hora.
— Certo — disse Sadie. — E Set vai ficar ali parado enquanto eu leio as palavras que serão seu fim.
Tot deu de ombros.
— Eu não disse que seria fácil. Ah, e vocês vão precisar de dois ingredientes para o encantamento funcionar: um ingrediente verbal, o nome secreto de Set...
— O quê? — protestei. — E como vamos descobri-lo?
— Com dificuldade, imagino. Não podem simplesmente ler um nome secreto em um livro. O nome precisa sair dos lábios daquele que o tem, pronunciado por ele próprio, para dar poder àquele que o escuta.
— Ótimo — ironizei. — Então vamos obrigar Set a nos dizer seu nome secreto.
— Ou enganá-lo — sugeriu Tot. — Ou convencê-lo.
— Não há outro jeito? — perguntou Sadie.
Tot limpou uma mancha de tinta de seu jaleco. Um hieróglifo transformou-se em mosca e voou para longe.
— Suponho que... sim. Vocês podem perguntar à pessoa mais próxima a Set, à pessoa que mais o ama. Ela também é capaz de pronunciar o nome.
— Mas ninguém ama Set! — exclamou Sadie.
— A mulher dele — deduzi. — Aquela outra deusa, Néftis.
Tot assentiu.
— Ela é uma deusa dos rios. Talvez possam encontrá-la em algum.
— Isso está ficando cada vez melhor — resmunguei.
Sadie franziu as sobrancelhas para Tot.
— Você disse que havia outro ingrediente.
— Um ingrediente físico — confirmou ele. — Uma pena da verdade.
— Uma o quê? — Sadie estranhou.
Mas eu sabia do que ele estava falando, e meu coração ficou apertado.
— Do Mundo dos Mortos, você quer dizer.
Tot se animou.
— Exatamente.
— Espere — interrompeu Sadie. — Do que ele está falando?
Tentei disfarçar o medo.
— No Egito Antigo, quando alguém morria, tinha de fazer a viagem para o Mundo dos Mortos — expliquei. — Uma jornada realmente perigosa. Finalmente, você chegava ao Salão do Julgamento, onde sua vida era pesada na Balança de Anúbis: o coração de um lado, a pena da verdade do outro. Quem passava nesse teste era abençoado com a felicidade eterna. Quem era reprovado tinha o coração devorado por um monstro e deixava de existir.
— Ammit, o Devorador — comentou Tot com um tom distante. — Uma gracinha.
Sadie piscou.
— Então, precisamos pegar uma pena nesse Salão do Julgamento. Como, exatamente?
— Talvez Anúbis esteja de bom humor — sugeriu Tot. — Acontece de vez em quando, a cada mil anos, aproximadamente.
— Mas como podemos chegar ao Mundo dos Mortos? — perguntei. — Quer dizer... sem estarmos mortos.
Tot olhou para o horizonte a oeste, onde o sol se punha tingindo o céu de vermelho-sangue.
— Descendo o rio à noite, acho. É assim que a maioria das pessoas chega lá. Eu usaria um barco. Vocês vão encontrar Anúbis no final do rio... — Ele apontou para o norte, mas mudou de ideia e apontou para o sul. — Esqueçam, os rios correm para o sul aqui. Tudo é ao contrário.
— Agh!
Khufu deslizou os dedos pela corda da guitarra e soltou um acorde bem rock’n’roll. Depois, abaixou-se como se nada tivesse acontecido e colocou a guitarra no chão. Sadie e eu apenas olhamos para ele, mas Tot assentiu como se o babuíno tivesse dito algo muito profundo.
— Tem certeza, Khufu? — perguntou Tot.
O babuíno grunhiu.
— Muito bem. — Tot suspirou. — Khufu diz que gostaria de ir com vocês. Já sugeri que ficasse para digitar minha tese de doutorado em física quântica, mas ele não aceitou a proposta.
— Não sei por quê — comentou Sadie. — É bom saber que teremos a companhia de Khufu, mas onde vamos encontrar um barco?
— Vocês têm o sangue dos faraós — lembrou Tot. — Faraós sempre têm acesso a um barco. Certifiquem-se apenas de usá-lo com sabedoria.
Ele olhou para o rio. Aproximando-se da margem vinha um antigo vapor com rodas de pás soltando fumaça pelas chaminés.
— Desejo a vocês uma boa viagem — disse Tot. — Até a próxima.
— Quer que embarquemos naquilo? — perguntei.
Mas, quando me virei para Tot, ele tinha desaparecido. E tinha levado o churrasco.
— Maravilha — resmungou Sadie.
— Agh! — Khufu concordou.
Ele nos segurou pela mão e nos levou para a margem do rio.

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