segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Trono de Fogo - Sadie

Capítulo 7 - Um presente do garoto com cabeça de cachorro

BEM, VOCÊ JÁ FALOU O SUFICIENTE, querido irmão. Enquanto você estava tagarelando, todo mundo me imaginou congelada no vão da porta do apartamento do vovô e da vovó, gritando “AAHHHHH!” E o fato de você e Walt saírem para Londres, assumindo que eu precisava ser resgatada, cara! É, bem justo. Eu precisava de ajuda. Mas aquele não era o momento.
Voltando a história: eu só ouvi uma voz sibilando de cima:
― Bem vinda ao lar, Sadie Kane.
Claro, eu sabia que era má notícia. Minhas mãos formigavam como se eu tivesse enfiado meus dedos em uma tomada elétrica. Tentei convocar meu cajado e minha varinha, mas como já mencionei, sou um lixo em recuperar coisas do Duat em um pequeno espaço de tempo.
Xinguei por não vir preparada, mas sério, eu não podia esperar estar vestida de pijama de linho e arrastar por toda a parte uma bolsa mágica para uma noite na cidade com minhas colegas. Pensei em fugir, mas vovô e vovó poderiam estar em perigo. Eu não podia sair sem saber que eles estavam a salvo.
A escada rangia. No topo, a bainha de um vestido preto apareceu, junto com pés calçados que não eram bem humanos Os sapatos eram deformados e de couro, com unhas grandes como garras de uma ave.
Quando a mulher desceu o suficiente para mostrar seu corpo inteiro, soltei um gemido indigno. Ela parecia ter cem anos, encurvada e magra. Seu rosto, orelhas e pescoço vergavam com pele rosada enrugada e dobrada, como se ela tivesse se fundido com uma lâmpada ultravioleta. Seu nariz era um bico inclinado. Seus olhos brilhavam em órbitas cavernosas, e ela estava quase careca – só alguns tufos pretos oleosos como ervas daninhas nasciam por seu couro cabeludo.
Seu vestido, no entanto, era absolutamente feito de pelos. Era meio escuro, peludo, e enorme como um casaco de pele seis vezes maior que ela. Quando ela deu um passo em minha direção, o material mudou, e eu percebi que não era pelo. O vestido era feito de penas pretas.
Suas mãos apareciam sob suas mangas – dedos parecidos com garras me chamando para perto. Seu sorriso revelou dentes como pedaços de vidro. Eu mencionei o cheiro? Não só cheiro de pessoa velha – era cheiro de pessoa velha morta.
― Estive esperando por você ― disse a bruxa. ― Felizmente, sou muito paciente.
Agarrei o ar à procura de minha varinha. Claro, eu não tive sorte. Sem Ísis na minha cabeça, eu não podia mais simplesmente falar palavras de poder. Eu teria que ter meus truques. Minha única chance era ganhar tempo e esperar poder reunir meus pensamentos o bastante pra acessar o Duat.
― Quem é você? ― perguntei. ― Cadê meus avós?
A bruxa alcançou o pé da escada. A dois metros de distância, seu vestido emplumado parecia estar coberto com pedaços de... ah, meu Deus, aquilo era carne?
― Não me reconhece, querida?
Sua imagem tremulou. Seu vestido se transformou em um roupão florido. Suas sandálias viraram chinelos verdes distorcidos. Ela tinha cabelo curto grisalho, olhos azuis lacrimosos, e uma expressão de um coelho assustado. Era o rosto da minha avó.
― Sadie? ― Sua voz soava frágil e confusa.
― Vovó!
Sua imagem voltou para a bruxa emplumada de preto, seu terrível rosto derretido sorrindo maliciosamente.
― Sim, querida. Sua família é sangue dos faraós, afinal de contas, perfeitos anfitriões para os deuses. Não me cause esforço, no entanto. O coração de sua avó não é o que costumava ser.
Meu corpo inteiro começou a tremer. Eu fui possuída antes, e sempre foi medonho. Mas isso – a ideia de alguma bruxa egípcia tomar posse da minha pobre e velha vovó – era horripilante. Se eu tivesse mesmo sangue dos faraós, estava virando gelo.
“Deixe-a em paz!”, eu queria gritar, mas tinha medo que minha voz saísse mais como um grito apavorado.
― Saia dela!
A bruxa gargalhou.
― Oh, eu não posso fazer isso. Você vê, Sadie Kane, alguns de nós duvidamos de sua força.
― Alguns de quem, dos deuses?
Seu rosto enrugou, momentaneamente mudando em uma cabeça de pássaro horrível, careca, escamosa e rosa com um bico afiado longo. Então ela se transformou de volta na bruxa gargalhando. Eu realmente desejava que ela ajustasse sua mente.
― Não me preocupo com a força, Sadie Kane. Nos dias antigos, eu mesma protegia o faraó se ele se provasse digno. Mas os fracos... Ah, uma vez que eles caíam sob as sombras de minhas asas, eu nunca deixei-os sair. Esperei eles morrerem. Esperei para me alimentar. E acho, minha querida, que você vai ser minha próxima refeição.
Pressionei minha costa na porta.
― Eu te conheço ― menti.
Desesperadamente, corri minha lista mental de deuses egípcios, tentando identificar a bruxa velha. Eu ainda não era tão boa quanto Carter em lembrar todos aqueles nomes estranhos. [E não, Carter. Isso não é um elogio. Simplesmente significa que você é o maior nerd.]
Mas depois de semanas ensinando nossos recrutas, eu tinha ficado melhor. Nomes tinham poder. Se eu pudesse descobrir o nome da minha inimiga, era um bom primeiro passo para derrotá-la. Um pássaro preto horrível... Um pássaro que se alimenta de morte... Para o meu espanto, eu na verdade lembrei de alguma coisa.
― Você é a deusa abutre ― eu disse triunfante. ― Neckbutt, não é?
A bruxa velha rosnou.
― Nekhbet!
Tudo bem, então eu cheguei perto.
― Mas é pra você ser supostamente uma deusa boa! ― protestei.
A deusa abriu os braços. Eles viraram asas pretas, de plumagem emaranhada, zumbindo com moscas e cheirando a morte.
― Abutres são muito bons, Sadie Kane. Nós removemos os fracos e frágeis. Nós os rodeamos até morrerem, então nos alimentamos de suas carcaças, limpando o mundo de seu cheiro podre. Você poderia trazer Rá de volta, uma carcaça velha de um deus do sol. Ele seria um faraó fraco no trono dos deuses. Vai contra a natureza! Só a força pode viver. A fraqueza tem que ser devorada.
Seu hálito cheirava a carniça. Criaturas desprezíveis, abutres: sem dúvida as aves mais nojentas. Supus que serviam a seu propósito, mas eles tinham que ser tão sujos e feios? Não podíamos ser coelhos fofos ao invés de abutres?
― Certo ― falei ― Primeiro, saia da minha avó. Então, se você for um bom abutre, vou te comprar algumas balas de hortelã.
Deveria ser um assunto delicado para Nekhbet. Ela se jogou em cima de mim. Eu mergulhei de lado, subindo no sofá e derrubando-a no processo. Nekhbet varreu a coleção chinesa da vovó para fora da estante.
― Você vai morrer, Sadie Kane! ― ela disse. ― Vou me limpar com seus ossos. Então os outros deuses vão ver que você não era digna!
Esperei por outro ataque, mas ela só olhou para mim do outro lado do sofá. Me ocorreu que os abutres geralmente não matavam. Eles esperavam a sua presa morrer.
As asas de Nekhbet cobriram a sala. Sua sombra caiu sobre mim, me envolvendo na escuridão. Comecei a me sentir encurralada, perdida como um pequeno animal fraco.
Não tinha testado minha força de vontade contra os deuses antes, não deveria reconhecer isso como magia – insistia incomodando no fundo da minha mente, me incentivando a desistir em desespero. Mas eu tinha ficado contra qualquer número de deuses horríveis no submundo. Eu podia aguentar um pássaro velho sujo.
― Boa tentativa ― eu disse. ― Mas eu não vou deitar e morrer.
Os olhos de Nekhbet brilharam.
― Talvez isso leve algum tempo, minha querida, mas como eu te disse, sou paciente. Se você não vai sucumbir, suas amigas mortais estarão aqui em breve. Quais eram seus nomes... Liz e Emma?
― Deixe-as fora disso!
― Ah, elas fariam adoráveis aperitivos. E você nem mesmo disse olá para seu querido e velho vovô ainda.
Sangue rugia em minhas orelhas.
― Onde ele está? ― pedi.
Nekhbet olhou para o teto.
― Oh, ele estará junto em breve. Nós, abutres, gostamos de seguir um grande e bom predador, você sabe, e esperamos por ele para fazer a matança.
Do andar de cima veio um som abafado – como se uma peça grande da mobília fosse arremessada pela janela. Vovô gritou, “Não! Nã-ã-ã-ão!” Então sua voz mudou para um rugido de um animal furioso. “NOOOOOOAHHH!”
O fim da minha coragem derreteu em meus coturnos.
― O que... o que...
― Sim ― Nekhbet disse. ― Babi está acordando.
― B-bobby? Vocês têm um deus chamado Bobby?
― B-A-B-I ― a deusa abutre rosnou. ― Você é realmente muito estúpida, não é querida?
O teto de gesso rachou sob o peso dos passos. Alguma coisa estava pisando fundo na escada.
― Babi vai cuidar bem de você ― Nekhbet prometeu. ― E haverá muita sobra para mim.
― Adeus ― eu disse, e disparei pela porta.
Nekhbet não tentou me parar. Ela gritou atrás de mim:
― Uma caçada! Excelente!
Fui para o outro lado da rua quando nossa porta da frente explodiu. Olhando para trás, vi alguma coisa emergir das ruínas e poeira – uma forma escura peluda grande demais para ser meu avô. Eu não esperei para ter uma visão melhor. Corri ao virar a esquina da South Colonnade e dei de cara com Liz e Emma.
― Sadie! ― Liz gritou, derrubando um presente de aniversário. ― O que há de errado?
A criatura atrás de mim berrou, muito próxima agora.
― Explico depois ― respondi. ― A não ser que vocês queiram ser rasgadas por um deus chamado Bobby, me sigam!
Olhando para trás, pude apreciar apenas o miserável aniversário que eu estava tendo, mas naquela hora estava muito em pânico para sentir pena de mim mesma devidamente. Nós corremos South Colonnade abaixo, o rugido atrás de nós quase abafado pelas reclamações de Liz e Emma.
― Sadie! ― Emma disse. ― Essa é uma das suas pegadinhas?
Ela tinha ficado um pouco mais alta, mas ainda parecia a mesma, com seu tamanho desproporcional, óculos reluzentes e cabelo curto espetado. Ela vestia uma minissaia de couro preta, uma blusa rosa e ridículas sandálias de plataforma em que ela mal conseguia andar, muito menos correr.
Quem é aquele cara do rock’n’roll extravagante dos anos 70... Elton John? Se ele tivesse uma filha indiana, deveria ser parecida com Emma.
― Não é uma pegadinha ― jurei. ― E pelo amor de Deus, joga esses sapatos fora!
Emma parecia assustada.
― Você sabe quanto isso custou?
― Honestamente, Sadie ― Liz interveio. ― Para onde você está nos arrastando?
Ela estava vestida mais sensatamente com jeans e tênis de corrida, um top branco e jaqueta de brim, mas parecia tão sem fôlego quanto Emma. Escondido debaixo de seu braço, meu presente de aniversário estava ficando um pouco achatado.
Liz era ruiva com muitas sardas, e quando ficava com vergonha ou cansada, seu rosto pálido ficava tão vermelho, que suas sardas desapareciam. Sob circunstâncias normais, Emma e eu teríamos provocado ela por isso, mas não hoje.
Atrás de nós, a criatura rugiu novamente. Eu olhei para trás, o que foi um erro. Vacilei até parar, e minhas amigas correram até mim. Por um breve momento, pensei “meu Deus, é Khufu”. Mas Khufu não era do tamanho de um urso-pardo. Ele não tinha pelo prateado brilhante, garras como cimitarras ou um olhar sedento de sangue.
O babuíno devastava o Canary Wharf parecendo que comeria qualquer coisa, não só comidas terminadas com um O, e não teria dificuldade em me rasgar membro a membro. A única boa notícia: a atividade na rua havia distraído-o. Carros desviavam para evitar a besta. Pedestres gritavam e corriam. O babuíno começou a derrubar táxis, esmagar vitrines, e causar um tumulto geral. Assim que se aproximou de nós, vi um pedaço de pano vermelho em seu braço esquerdo – as sobras do casaco de lã favorito do vovô. Preso em sua testa estavam os óculos do vovô.
Até aquele momento, o choque não havia me atingido em cheio. Aquela coisa era meu avô, que nunca tinha usado magia, nunca fez nada para irritar os deuses egípcios. Tinha vezes que eu não gostava dos meus avós, especialmente quando eles diziam coisas ruins sobre meu pai, ou ignoravam Carter, ou quando deixaram Amós me levar embora no Natal sem uma luta. Mas ainda assim, eles me criaram por seis anos.
Vovô tinha me colocado em seu colo e lido para mim suas histórias velhas e empoeiradas de criança. Tinha me vigiado no parque e me levou ao zoológico inúmeras vezes. Tinha me comprado doces, embora vovó desaprovasse. Ele pode ter tido um temperamento ruim, mas era razoavelmente um velho aposentado inofensivo. Ele certamente não merecia ter seu corpo possuído desse jeito.
O babuíno arrancou a porta de um bar e cheirou lá dentro. Fregueses bêbados em pânico quebraram uma janela e saíram correndo pela rua, ainda segurando suas bebidas. Um policial correu em direção ao tumulto, viu o babuíno, então se virou e correu para o outro lado, gritando em seu rádio por reforços.
Quando enfrentavam eventos mágicos, os olhos mortais tendiam a entrar em curto circuito, mandando para o cérebro só imagens que podiam entender. Eu não tinha ideia do que aquelas pessoas pensavam que estavam vendo – possivelmente um animal de zoológico solto ou um pistoleiro enfurecido – mas eles sabiam o suficiente para fugir.
Eu imaginei o que as câmeras de segurança de Londres fariam depois da cena.
― Sadie ― Liz perguntou em uma voz muito baixa ― o que é isso?
― Babi ― eu disse. ― O deus sangrento dos babuínos. Ele é meu avô possuído. E quer nos matar.
― Dá licença ― Emma interviu. ― Você acabou de dizer que um deus babuíno quer nos matar?
O babuíno rugiu piscando e apertando os olhos como se tivesse esquecido do que estava fazendo. Talvez ele tenha herdado a distração do vovô e a vista ruim. Talvez ele não tenha percebido que seus óculos estavam em sua cabeça. Ele cheirou o chão, então berrou de frustração e esmagou a janela de uma padaria. Eu quase acreditei que ganhamos um pouco de sorte. Talvez pudéssemos fugir. Então uma forma escura deslizou por cima, abrindo suas asas negras e gritando:
― Aqui! Aqui!
Que maravilha. O babuíno tinha suporte aéreo.
― Dois deuses, na verdade ― falei para as minhas amigas. ― Agora, a não ser que tenham mais perguntas, corram!
Dessa vez, Liz e Emma não precisaram de incentivo. Emma tirou seus sapatos, Liz deixou meu presente de lado – que pena – e descemos outra rua. Nós ziguezagueamos pelos becos, abraçando paredes para nos cobrir sempre que o vulto da deusa mergulhava do alto. Ouvi Babi rugindo atrás de nós, arruinando as noites das pessoas e esmagando a vizinhança; mas ele parecia ter perdido nosso cheiro no momento.
Nós paramos em um T na rua enquanto decidíamos que caminho tomar. Na nossa frente estava uma pequena igreja, um tipo de prédio antigo que você as vezes encontra em Londres – sombrio de pedra medieval firmada entre um Café Nero e uma farmácia com sinais de neon oferecendo produtos capilares de um por três. A igreja tinha um pequeno cemitério fechado com uma cerca enferrujada, mas eu não teria prestado muita atenção se uma voz de dentro do cemitério não tivesse sussurrado.
― Sadie.
Foi um milagre meu coração não ter pulado para fora da minha garganta. Virei-me e me encontrei cara-a-cara com Anúbis. Ele estava em sua forma mortal, como um garoto adolescente com cabelo preto soprado pelo vento e olhos castanhos calorosos. Vestia uma camiseta Morte ao Tempo e jeans escuros que serviram extremamente bem nele.
Liz e Emma não eram conhecidas por serem boas ao redor de rapazes com boa aparência. Na verdade, seus cérebros mais ou menos param de funcionar. Liz gaguejou palavras de uma sílaba.
― Oh... ah... oi... quem... o quê...?
Emma perdeu o controle de suas pernas e tropeçou em mim. Mandei um olhar severo para as duas, então me virei para Anúbis.
― Era a vez de alguém amigável se apresentar ― reclamei. ― Tem um babuíno e um abutre tentando nos matar. Você poderia, por favor, nos ajudar?
Anúbis mordeu os lábios, e eu senti que ele não me trouxe boas notícias.
― Venha ao meu território ― ele disse, abrindo o portão do cemitério. ― Precisamos conversar, e não há muito tempo.
Emma tropeçou em mim de novo.
― Seu, hum, território?
Liz gaguejou.
― Quem... ah...?
― Shhh ― disse a elas, tentando ficar calma, como se conhecesse caras quentes em cemitérios todo dia.
Olhei para a rua e não vi sinais de Babi ou Nekhbet, mas ainda podia ouvi-los – um deus babuíno rugindo, a deusa abutre gritando com a voz da minha avó (se vovó tivesse comido pedregulhos e tomado esteróides).
― Por aqui! Por aqui!
― Esperem aqui ― falei para minhas amigas, e entrei no portão.
Imediatamente, o ar ficou mais frio. Névoa subia do solo encharcado. As lápides brilhavam, e tudo do lado de fora da cerca ficou levemente fora de foco. Anúbis me faz sentir desequilibrada de várias maneiras, claro, mas eu reconheci esse efeito. Estávamos deslizando para o Duat, passando o cemitério em dois níveis de uma vez: o mundo de Anúbis e o meu. Ele me levou a um sarcófago de pedra em ruínas e curvou-se respeitosamente.
― Beatrice, você liga se nós nos sentarmos?
Nada aconteceu. A inscrição no sarcófago foi desgastada séculos atrás, mas eu supus que era o lugar do repouso final de Beatrice.
― Obrigado.
Anúbis gesticulou para eu me sentar.
― Ela não liga.
― O que acontece se ela ligar? ― me sentei um pouco apreensiva.
― O Décimo Oitavo Nomo ― Anúbis disse. ― É onde você deve ir. Vlad Menshikov tem a segunda parte do Livro de Rá na gaveta no topo de sua mesa, em seu quartel-general em São Petersburgo. É uma armadilha, é claro. Ele está esperando te atrair. Mas se você quer o pergaminho, não tem escolha. Você pode ir essa noite, antes que ele tenha tempo de reforçar suas defesas ainda mais. E Sadie, se os outros deuses descobrirem que estou te falando isso, vou estar em um grande problema.
Eu olhei para ele. Às vezes ele agia tanto como um adolescente, que era difícil acreditar que ele tinha milhares de anos. Acho que vinha de viver uma vida protegido no País da Morte, não afetado pela passagem do tempo. O garoto realmente precisava sair mais.
― Você está preocupado em arrumar problemas? ― perguntei. ― Anúbis, não que eu seja ingrata, mas nós temos problemas maiores no momento. Dois deuses possuíram meus avós. Se você quiser dar uma mão...
― Sadie, não posso intervir. ― Ele virou as palmas das mãos de frustração. ― Eu te disse isso quando nos conhecemos, isso não é um corpo físico real.
― Que desperdício ― murmurei.
― O quê?
― Nada. Continue.
― Posso me manifestar em lugares de morte, como esse cemitério, mas há muito pouco que eu possa fazer fora do meu território. Agora, se você já estiver morta e quiser um bom funeral, posso te ajudar, mas...
― Oh, obrigada!
Em algum lugar próximo, o deus babuíno rugiu. Vidros quebraram e tijolos desmoronaram. Minhas amigas gritaram para mim, mas os sons eram distorcidos e abafados, como se estivesse ouvindo debaixo d‘água.
― Se eu for sem minhas amigas ― perguntei para Anúbis ― os deuses vão deixá-las em paz?
Anúbis sacudiu a cabeça.
― Nekhbet ataca os fracos. Ela sabe que machucar seus amigos vai te enfraquecer. Quanto a Babi, ele representa as qualidades escuras de vocês primatas: fúria assassina, força incontrolável,,,
― Nós primatas? ― eu disse. ― Desculpa, você me chamou de uma babuína?
Anúbis me estudou com uma espécie de admiração confusa.
― Eu esqueci do quão irritante você é. Meu ponto é que ele vai te matar só por matar.
― E você não pode me ajudar.
Ele me deu um olhar choroso com aqueles magníficos olhos castanhos.
― Eu te disse sobre São Petersburgo.
Deus, ele tinha uma boa aparência, e isso era tão irritante.
― Bem, então, deus de praticamente nada de útil ― eu disse ― qualquer outra coisa antes de eu me matar?
Ele levantou sua mão. Um estranho tipo de faca se materializou em seu punho. Tinha a forma de uma navalha: longa, curvada e perversamente afiada ao longo da extremidade, feita de metal escuro.
― Pegue isso ― Anúbis falou. ― Vai ajudar.
― Você viu o tamanho do babuíno? Eu tenho que fazer a barba dele?
― Não é para a luta com Babi ou Nekhbet. Mas você vai precisar disso em breve para alguma coisa ainda mais importante. É uma lâmina netjeri, feito de ferro de meteoro. É usado para uma cerimônia que eu te disse uma vez, a abertura da boca.
― Sim, bem, se eu sobreviver à essa noite, vou garantir de aproveitar essa navalha para abrir a boca de alguém. Muito obrigada.
Liz gritou:
― Sadie!
Através da neblina do cemitério, eu vi Babi a alguns quarteirões de distância, estorvando em direção da igreja. Ele nos viu.
― Vá para o subterrâneo ― Anúbis sugeriu, me pondo em pé. ― Há uma estação na metade do quarteirão ao sul. Eles não vão ser capazes de te seguir estando bem debaixo da terra. Água corrente também é boa. As criaturas do Duat são enfraquecidas ao atravessar um rio. Se você lutar contra elas, encontre uma ponte pelo Tâmisa. Oh, e eu disse ao seu motorista para vir te buscar.
― Meu motorista?
― Sim. Ele não estava planejando te conhecer até amanhã, mas...
Uma caixa vermelha do Correio Real foi arremessada no ar e colidiu com o prédio ao lado. Minhas amigas gritavam para eu me apressar.
― Vá ― Anúbis disse. ― Me desculpe, não posso fazer mais nada. Mas feliz aniversário, Sadie.
Ele deu um passo para frente e me beijou. Então ele derreteu em névoa e desapareceu. O cemitério ficou normal de novo – uma parte do mundo normal não cintilante. Eu deveria ter ficado nervosa com Anúbis. Me beijar sem permissão, que nervos! Mas eu fiquei ali, paralisada, olhando para o sarcófago desintegrado de Beatrice, até Emma gritar:
― Sadie, vamos!
Minhas amigas agarraram meus braços, e eu lembrei como correr.
Nós disparamos para a estação de metrô Canary Wharf. O babuíno rugia e esmagava através do tráfego atrás de nós. Acima, Nekhbet guinchava:
― Lá vão elas! Mate-as!
― Quem era aquele garoto? ― Emma perguntou enquanto mergulhávamos na estação. ― Deus, ele era quente.
― Um deus ― murmurei. ― Sim.
Enfiei a navalha negra em minha bolsa e desci a escada rolante, meus lábios ainda formigando pelo meu primeiro beijo. E se eu estava cantarolando “Parabéns pra você” e sorrindo estupidamente enquanto fugia pela minha vida – bem, não era da conta de ninguém, não é?

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