quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A Sombra da Serpente - Carter

Capítulo 8 - Minha irmã, o vaso de flor

A viagem de volta não foi divertida.
Walt e eu nos seguramos no barco enquanto nossos dentes batiam e nossos olhos sacudiam. A névoa mágica se tornou cor de sangue. Vozes fantasmagóricas sussurravam raivosas, como se tivessem decidido se rebelar e saquear o mundo etéreo.
Mais cedo do que eu esperava, Freak abriu caminho para fora do Duat. Nós estávamos acima das docas de Nova Jersey, nosso barco soltando vapor enquanto Freak balançava cansado pelo ar. À distância, o horizonte de Manhattan tinha um brilho dourado do amanhecer.
Walt e eu não tínhamos conversado durante a viagem. O Duat tende a abafar conversas. Agora, ele me olhava timidamente.
— Eu te devo algumas explicações.
Eu não podia fingir que não estava curioso. Quanto mais a doença progredia, mais Walt se tornava cheio de segredos. Eu imaginava o que ele havia falado com Tot. Mas não era da minha conta. Desde que Sadie aprendera meu nome secreto na primavera passada e conseguiu um tour grátis pelos meus pensamentos mais íntimos, me tornei mais sensível quanto a respeitar a privacidade dos outros.
— Olha, Walt, é a sua vida pessoal. Se você não quiser falar...
— Mas não é algo pessoal. Você precisa saber o que está acontecendo. Eu... eu não estarei por perto por muito mais tempo.
Eu baixei os olhos para o porto, a Estátua da Liberdade passando abaixo de nós. Por meses eu soube que Walt estava morrendo. E isso não ficou nem um pouco mais fácil de aceitar. Lembrei-me do que Apófis disse no museu de Dalas: Walt não viveria tempo suficiente para ver o fim do mundo.
— Você tem certeza? — perguntei — Não há nenhum jeito de...
— Anúbis tem certeza — ele disse. — Eu tenho até o pôr do sol de amanhã, no máximo.
Eu não queria ouvir outro limite de tempo impossível. Ao pôr do sol desta noite teríamos que libertar um mago maligno. Ao pôr do sol de amanhã Walt iria morrer. E ao nascer do sol depois disso, se tivéssemos muita sorte, poderíamos esperar pelo Apocalipse.
Nunca gostei de ser contrariado. Sempre que eu sentia que algo era impossível, eu tentava ainda mais por pura teimosia. Mas nesse ponto eu achava que Apófis estava dando boas risadas às minhas custas.
Oh, você não é de desistir? Ele parecia estar perguntando. Que tal agora? E se eu te der mais algumas tarefas impossíveis? Vai desistir agora?
A raiva deu um nó nas minhas entranhas. Eu chutei a borda do barco e quase quebrei o pé.
Walt piscou.
— Carter, está...
— Não diga que está tudo bem — eu o cortei — não está tudo bem.
Eu não estava com raiva dele. Eu estava com raiva da injustiça de sua estúpida maldição e do fato de que eu continuava falhando com aqueles que dependiam de mim. Meus pais haviam morrido para dar a Sadie e eu a chance de salvar o mundo, que nós estávamos quase estragando. Em Dallas, dúzias de bons magos morreram porque haviam tentado me ajudar. Agora iríamos perder Walt.
Certamente ele era importante para Sadie, mas eu dependia dele tanto quanto ela. Walt era meu tenente não oficial na Casa do Brooklyn. As outras crianças o escutavam. Ele era uma presença calmante em cada crise, o voto decisivo em cada debate. Eu podia confiar-lhe qualquer segredo, mesmo a confecção da estátua de execração de Apófis, a qual eu não podia contar ao meu tio. Se Walt morresse...
— Eu não vou deixar acontecer. Eu me recuso.
Vários pensamentos passaram por minha mente: talvez Anúbis estivesse mentindo para Walt sobre sua morte iminente, tentando afasta-lo de Sadie. (Ok, pouco provável, Sadie não era um prêmio tão bom).
[Sim Sadie, eu disse isso. Só checando pra saber se você ainda estava prestando atenção.]
Talvez Walt pudesse vencer as probabilidades. Pessoas se recuperam milagrosamente de câncer, porque não de maldições antigas? Talvez pudéssemos mantê-lo em animação suspensa, como Iskandar fez com Zia, até que encontrássemos um antídoto. Claro, a família dele havia procurado por uma cura sem sucesso por séculos. Jaz, nossa melhor curandeira, havia tentado de tudo, sem sorte. Talvez tivéssemos esquecido alguma coisa.
— Carter, você vai me deixar terminar? — Walt disse — Temos que planejar...
— Como você pode estar tão calmo?
Walt passou os dedos pelo seu colar Shen, o gêmeo do que ele deu a Sadie.
— Eu sei da minha maldição há anos. Isso não vai me impedir de fazer o que tem que ser feito. De um jeito ou de outro eu vou te ajudar a derrotar Apófis.
— Como? Você acabou de me dizer...
— Anúbis tem uma ideia — Walt disse — ele tem me ajudado a entender meus próprios poderes.
— Você quer dizer... — eu olhei pras mãos de Walt.
Várias vezes ele havia transformado objetos em cinzas simplesmente por tocá-los, como havia feito com a crioesfinge em Dallas. Esse poder não vinha de nenhum item mágico. Nenhum de nós o entendia e, ao passo que sua doença progredia, ele parecia cada vez menos capaz de controlá-lo, o que me fazia pensar duas vezes antes de encostar nele.
Walt flexionou os dedos.
— Anúbis acha que entende por que eu tenho essa habilidade. E tem mais. Ele acha que talvez haja um jeito de estender meu tempo de vida.
Essas notícias eram tão boas que eu dei uma trêmula gargalhada.
— Por que você não disse isso antes? Ele pode te curar?
— Não. Não é uma cura, e é arriscado, nunca foi feito antes.
— Era sobre isso que você estava conversando com Tot.
Walt assentiu.
— Mesmo que o plano de Anúbis funcione, pode haver... efeitos colaterais. Você pode não gostar — ele baixou seu tom de voz. — Sadie pode não gostar.
Infelizmente, eu tinha uma imaginação fértil. Imaginei Walt como algum tipo de criatura morto-vivo – uma múmia seca, um fantasmagórico ba ou um demônio desfigurado. Na magia egípcia, efeitos colaterais podiam ser bem extremos.
Tentei não transparecer minhas emoções.
— Nós queremos que você viva. Não se preocupe com Sadie.
Eu podia ver nos olhos dele que ele se preocupava muito com ela. Falando sério, o que ele viu na minha irmã?
[Pare de me bater Sadie, eu só estou sendo honesto.]
Walt flexionou os dedos. Talvez fosse só minha imaginação, mas pensei ter visto nuvens de vapor cinza saírem das mãos dele, como se apenas falar sobre seu estranho poder o tivesse ativado.
— Eu não vou tomar minha decisão ainda — Walt disse. — Não até meu ultimo suspiro. Quero falar com Sadie primeiro. Explicar para ela...
Ele pousou a mão na lateral do barco, o que foi um erro. A madeira se acinzentou ao seu toque.
— Walt, pare! — gritei.
Ele tirou a mão do barco, mas era tarde demais. O barco se desfez em cinzas.
Nós pulamos para as cordas. Felizmente elas não se desfizeram, talvez porque Walt estivesse prestando mais atenção agora. Freak guinchava enquanto o barco desaparecia e de repente Walt e eu estávamos sob o ventre do grifo, segurando naquelas cordas por nossas vidas enquanto esbarrávamos um no outro acima dos arranha-céus de Manhattan.
— Walt! — gritei para me fazer ouvir sobre o vento. — Você realmente precisa aprender a controlar isso!
— Desculpe! — ele gritou de volta.
Meus braços estavam doloridos, mas nós chegamos a Casa do Brooklyn sem despencar para a morte. Freak nos deixou no telhado onde Bastet nos esperava de boca aberta.
— Por que vocês estavam balançando em cordas? — ela exigiu.
— Porque é muito divertido — resmunguei — Novidades?
De trás das chaminés uma voz frágil gorjeava:
— Oláaaa!
O ancião deus do sol Rá apareceu. Ele nos deu um sorriso desdentado e saiu mancando pelo telhado, murmurando:
— Doninhas, doninhas. Biscoito, biscoito, biscoito.
Ele pegou de sua cueca migalhas de biscoito e as jogou no ar como se fosse confete, e sim, foi tão nojento quanto parece.
Bastet tensionou os braços e suas facas pularam para suas mãos. Provavelmente só um reflexo involuntário, mas ela parecia tentada a usar aquelas facas em alguém – qualquer um. Relutantemente, ela colocou as facas de volta nas mangas.
— Novidades? — ela disse — Eu estou servindo de babá graças ao seu tio Amós, que me pediu um favor. E o shabti da Sadie está esperando por nós lá embaixo. Podemos?
Explicações mais detalhadas sobre minha irmã Sadie e seu shabti iriam requerer uma gravação a parte. Minha irmã não tinha nenhum talento para a confecção de itens mágicos, mas isso não a impedia de tentar. Ela teve a brilhante ideia de que ela podia criar um shabti perfeito para ser seu avatar, falar com a sua voz e fazer todas as suas tarefas como um robô de controle remoto.
Todas as suas tentativas anteriores haviam explodido ou entrado em pane, aterrorizando Khufu e os iniciados. Na semana passada, ela criara uma garrafa térmica mágica que levitava pela sala gritando "Exterminar! Exterminar!" até que me bateu na cabeça.
O ultimo shabti era a Sadie Júnior – o pesadelo de um jardineiro.
Não sendo uma artista muito boa, ela tinha criado uma figura vagamente humanoide a partir de vasos de plantas, mantidos juntos por magia, cola e fita adesiva. O rosto era um vaso de cabeça para baixo com uma carinha desenhada com marcador preto.
— Até que enfim!
A criatura de vaso estava esperando no meu quarto quando Walt e eu entramos. Sua boca não se mexia, mas a voz da minha irmã saia do vaso/cabeça como se Sadie estivesse presa dentro do shabti. Esse pensamento me deixou feliz.
— Pare de sorrir! — ela ordenou — Eu posso te ver, Carter. E... é... oi Walt.
O monstro vaso fez barulhos de trituração enquanto ficava em pé. Um braço inexistente levantou-se e tentou consertar seu inexistente cabelo. Sadie sempre fica sem jeito perto de garotos, mesmo quando ela é feita de vasos e fita adesiva.
Nós trocamos relatos. Sadie nos contou sobre o ataque iminente ao Primeiro Nomo, que deveria acontecer no nascer do sol do equinócio e a aliança entre as forças de Sarah Jacobi e Apófis. Noticias maravilhosas. Justamente o que precisávamos.
Em troca, contei a ela sobre nossa visita a Tot. Compartilhei as visões que Apófis tinha me mostrado sobre a situação precária da nossa mãe no Duat (o que fez o monstro de vasos estremecer) e sobre o fim do mundo (o que não pareceu surpreendê-la nem um pouco).
Não contei a ela sobre a proposta de Apófis de me poupar se eu entregasse Rá. Eu não me senti confortável para mencionar isso com Rá do outro lado da porta, cantando músicas sobre biscoitos. Mas contei sobre o maligno fantasma Setne, cujo julgamento ocorreria ao pôr do sol no Salão do Julgamento.
— Tio Vinnie — Sadie disse.
— Como? — perguntei.
— O rosto que falou comigo no Museu de Dallas. Era obviamente o próprio Setne. Ele me avisou que precisaríamos de sua ajuda para entender o feitiço de execração da sombra. Disse que precisaríamos “mexer uns pauzinhos” para libertá-lo até o pôr do sol de hoje. Ele estava falando do julgamento. Temos que convencer o papai a libertá-lo.
— Eu mencionei que Tot disse que ele é um assassino psicopata, certo?
O monstro de vaso fez um som de cacarejo.
— Carter, tudo vai ficar bem. Fazer amizade com psicopatas é uma das nossas especialidades.
Ela virou sua cabeça de vaso de plantas para Walt.
— Você virá conosco, espero?
Seu tom tinha um vestígio de reprovação, como se ela ainda estivesse chateada por ele não ter ido ao baile escolar.
— Eu estarei lá — ele prometeu. — Eu estou bem.
Ele me lançou um olhar de aviso, mas eu não iria contradizê-lo. O que quer que ele e Anúbis estivessem planejando, eu poderia esperar até que ele contasse a Sadie. Pular no drama Sadie-Walt-Anúbis me parecia tão divertido quanto pular num triturador de lixo.
— Certo — Sadie disse. — Nós encontramos vocês no Salão do Julgamento antes do pôr do sol hoje a noite. Isso deve nos dar tempo de terminar.
— Terminar? — perguntei — E nós quem?
É difícil ler as expressões de um vaso, mas a hesitação de Sadie me disse o suficiente.
— Você não está mais no Primeiro Nomo — supus — o que você está fazendo?
— Entregando um recado — Sadie falou. — Estou indo ver Bes.
Eu franzi a testa. Sadie ia ver Bes na sua casa de repouso quase toda semana, o que estava bem, mas por que agora?
— Você entende que estamos com pressa.
— É necessário — ela insistiu. — Eu tenho uma ideia que pode nos ajudar com o projeto da sombra. Não se agite. Zia está comigo.
— Zia? — Agora era minha vez de ficar sem jeito. Se eu fosse um vaso de plantas eu teria mexido no cabelo. — Por isso que Bastet está tomando conta de Rá hoje? Por que exatamente você e Zia estão...?
— Pare de se preocupar — Sadie repreendeu. — Eu irei tomar conta dela. E não Carter, ela não falou de você. Não tenho ideia sobre como ela se sente sobre você.
— O quê? — Eu queria socar a Sadie Júnior na cara. — Eu não disse nada disso!
— Bem, bem — ela censurou. — Acho que Zia não liga para o que você irá vestir. Não é um encontro. Mas por favor, escove seus dentes uma vez na vida.
— Eu vou te matar!
— Também te amo, querido irmão. Tchau!
A criatura de vasos se despedaçou deixando um monte de cacos e um rosto vermelho de cerâmica olhando pra mim.

***

Walt e eu nos juntamos a Bastet do lado de fora da sala. Nós nos debruçamos sobre o parapeito olhando para o Grande Salão, enquanto Rá pulava para frente e para trás cantando canções de ninar em egípcio antigo.
Lá em baixo, nossos iniciados se aprontavam para outro dia de aula. Julian tinha uma salsicha do café da manhã na boca enquanto remexia na sua mochila. Felix e Sean estavam discutindo sobre quem roubou o livro de matemática de quem. Shelby estava correndo atrás das outras criancinhas com a mão cheia de giz de cera que soltavam faíscas coloridas.
Nunca tive uma família muito grande, mas morando na Casa do Brooklyn eu me sentia como se tivesse uma dúzia de irmãos e irmãs. Apesar da loucura, eu gostava disso... o que tornou minha decisão seguinte ainda mais difícil.
Contei a Bastet sobre os nossos planos de visitar o Salão do Julgamento.
— Eu não gosto disso.
Walt chegou a rir.
— E você tem um plano do qual goste mais?
Ela inclinou a cabeça.
— Agora que você mencionou, não. Não gosto de planos, eu sou uma gata. Ainda assim, se metade do que ouvi sobre Setne for verdade...
— Eu sei. Mas é nossa única chance.
Ela enrugou o nariz.
— Tem certeza de que não quer que eu vá? Certeza mesmo? Talvez eu possa pedir a Nut ou Shu para vigiar Rá...
— Não — respondi. — Amós vai precisar da sua ajuda no Primeiro Nomo. Ele não tem números para rechaçar um ataque de ambos, Apófis e os magos rebeldes ao mesmo tempo.
Bastet assentiu.
— Eu não posso entrar no Primeiro Nomo, mas posso patrulhar do lado de fora. Se Apófis aparecer, eu irei enfrentá-lo.
— Ele estará com força total — Walt avisou. — Está cada vez mais forte.
Ela levantou o queixo em desafio.
— Eu o enfrentei antes, Walt Stone. Eu o conheço melhor do que qualquer um. Além do mais, devo isso à família Kane. E ao lorde Rá.
— Gatinho! — Rá apareceu por trás de nós, deu um tapinha na cabeça de Bastet e saiu. — Miau, Miau, Miau!
Vendo-o saltar por aí, eu tinha vontade de gritar e arremessar coisas. Nós arriscamos tudo para reviver o antigo deus do Sol Rá, esperando conseguir um faraó divino que pudesse lutar de igual pra igual com Apófis. Ao invés disso, conseguimos um velho enrugado e careca numa tanga.
Me dê Rá, Apófis havia exortado. Eu sei que você o odeia.
Tentei tirar isso da mente, mas eu não podia eliminar completamente a imagem da minha cabeça: uma ilha no Mar do Caos – um paraíso pessoal onde eu e aqueles que amo estariam seguros. Eu sabia que era uma mentira. Apófis nunca pagaria esta promessa. Mas eu podia entender como Sarah Jacobi e Kwai foram tentados.
Além disso, Apófis sabia como mexer com os nervos dos outros. Eu realmente me ressentia de Rá por ser tão fraco. Hórus concordava comigo.
Nós não precisamos desse velho tolo. A voz do deus da guerra falava em minha cabeça.Eu não estou dizendo que você deveria entregá-lo para Apófis, mas ele é inútil. Nós devíamos colocá-lo de lado e tomar o trono dos deuses para nós mesmos.
Ele fez isso soar tão tentador – como se fosse uma solução tão óbvia.
Mas, não. Se Apófis queria que eu entregasse Rá, então Rá devia ser valioso de alguma forma. O deus do sol ainda tinha seu papel a cumprir, eu só tinha que descobrir que papel era esse.
— Carter — Bastet franziu o cenho — eu sei que você está preocupado comigo, mas seus pais me tiraram do Abismo por uma razão. Sua mãe previu que eu faria a diferença na batalha final. Eu irei lutar contra Apófis. Até a morte, se necessário. Ele não irá passar por mim.
Eu hesitei. Bastet já havia nos ajudado tanto. Ela quase havia sido destruída lutando com o deus crocodilo Sobek. Havia mandado seu amigo Bes para nos ajudar, e então o viu se transformar em uma casca vazia. Nos ajudou a restaurar seu antigo mestre, Rá, ao mundo e agora estava presa como babá dele.
Eu não queria pedir a ela que enfrentasse Apófis de novo, mas ela estava certa. Ela conhecia o inimigo melhor que ninguém – exceto talvez Rá, quando ele estava com a cabeça no lugar.
— Certo. Mas Amós vai precisar de mais ajuda do que você pode oferecer, Bastet. Ele precisará de magos!
Walt franziu a testa.
— Quem? Depois do desastre de Dallas, nós não temos muitos amigos sobrando. Poderíamos contatar São Paulo e Vancouver, eles ainda estão conosco, mas não poderão mandar muitas pessoas. Estarão preocupados em proteger seus próprios nomos.
Eu sacudi a cabeça.
— Amós precisa de magos que conheçam o Caminho dos Deuses. Ele precisa de nós. Todos nós!
Walt digeriu isso silenciosamente.
— Você quer dizer... abandonar a Casa do Brooklyn?
Abaixo de nós, as criancinhas gritavam com alegria enquanto Shelby tentava marcá-las com seu giz de cera faiscante. Khufu estava sentado na cornija da lareira comendo Cheerios e assistindo Tucker, um garotinho de 10 anos, arremessar uma bola de basquete na estátua de Tot. Jaz estava pondo um curativo na testa de Alyssa (provavelmente ela havia sido atacada pela garrafa térmica selvagem da Sadie, que ainda estava à solta). E no meio de tudo isso, Cléo estava sentada no sofá, absorta em um livro.
A Casa do Brooklyn foi o primeiro verdadeiro lar para muitos deles. Nós prometemos que os manteríamos seguros e ensinaríamos a usar seus poderes. Agora, eu estava prestes a enviá-los, despreparados, para a maior batalha de todos os tempos.
— Carter — Bastet disse — eles não estão prontos.
— Eles têm que estar. Se o Primeiro Nomo cair, estará tudo acabado. Apófis irá atacar o Egito, a raiz de nossos poderes. Nós temos que resistir em conjunto com o Sacerdote-leitor Chefe.
— Uma última batalha — Walt olhou tristemente para o Grande Salão abaixo, provavelmente imaginando se ele estaria ou não vivo para participar da batalha. — Devemos contar para eles?
— Agora não — respondi — o ataque dos magos rebeldes ao Primeiro Nomo não irá acontecer até amanhã. Deixe as crianças terem um último dia de aula. Bastet, quando eles voltarem pra casa essa tarde, quero que você os leve para o Egito. Use Freak, qualquer magia que você tiver que usar. Se tudo der certo no Mundo Inferior, Sadie e eu iremos nos juntar a vocês antes do ataque.
— Se tudo der certo — Bastet disse secamente — Sim, isso acontece muito.
Ela olhou de relance para o deus do sol, que estava tentando comer a maçaneta do quarto da Sadie.
— E quanto a Rá? — Ela perguntou — Se Apófis vai atacar em dois dias...
— Rá tem que continuar fazendo sua jornada diária. É parte do Maat. Não podemos mudar isso. Mas na manhã do equinócio, ele tem que estar no Egito. Tem que enfrentar Apófis.
— Desse jeito? — Bastet gesticulou em direção ao velho deus — De tanga?
— Eu sei — admiti — Isso parece loucura. Mas Apófis ainda pensa em Rá como uma ameaça. Talvez enfrentar Apófis lembre Rá de quem ele é. Ele pode aceitar o desafio e se tornar... o que ele costumava ser.
Walt e Bastet não responderam. Eu podia dizer pelas suas expressões que eu não os convencera. Eu nem me convencera. Rá estava mastigando a maçaneta do quarto de Sadie com instintos assassinos, mas isso não iria ajudar muito contra o Senhor do Caos. Ainda assim, eu me sentia bem por ter um plano de ação. Era muito melhor do que ficar parado, mortificando-nos do desespero de nossa situação.
— Use o dia para se organizar — aconselhei Bastet. — Junte os mais valiosos pergaminhos, amuletos, armas, qualquer coisa que possa ajudar a defender o Primeiro Nomo. Deixe Amós saber que nós estamos indo. Walt e eu iremos para o Mundo Inferior para encontrar Sadie. Nos vemos no Cairo.
Bastet cerrou os lábios.
— Certo, Carter. Mas tome cuidado com Setne. Não importa o quão mal você pense que ele é, ele é dez vezes pior.
— Ei, nós derrotamos o Deus do Mal — lembrei a ela
Bastet balançou a cabeça.
— Set é um deus, ele não muda. Mesmo sendo o deus do Caos, você pode facilmente predizer como ele irá agir. Setne por outro lado... ele tem ambos, poder e a imprevisibilidade humana. Não confie nele. Me prometa isso.
— Isso é fácil. Eu prometo.
Walt cruzou os braços.
— Então, como iremos chegar ao Mundo Inferior? Portais são pouco confiáveis, estamos deixando Freak aqui e o barco foi destruído.
— Eu tenho outro barco em mente — falei, tentando me convencer de que aquilo era uma boa ideia. — Vou invocar um velho amigo.

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