domingo, 18 de janeiro de 2015

A Pirâmide Vermelha - Carter

Capítulo 22 - Leroy é apresentado ao armário da desgraça

EU NUNCA TINHA PASSADO PELA SEGURANÇA carregando uma ave. Esperava causar confusão, mas, em vez disso, os guardas nos encaminharam a uma fila especial. Eles verificaram nossa documentação. Bastet sorria muito, flertava com os guardas e dizia que todos ali deviam se exercitar muito, e eles nos mandaram seguir adiante. As lâminas de Bastet não acionaram o alarme do detector de metais, por isso pensei que, talvez, ela as tivesse deixado guardadas no Duat. Os guardas nem tentaram passar Sadie pela máquina de raios X.
Eu estava recolocando meus sapatos quando ouvi um grito do outro lado da barreira da segurança.
Bastet praguejou em egípcio.
— Demoramos demais.
Olhei para trás e vi o animal Set correndo pelo terminal, derrubando passageiros. As estranhas orelhas de coelho giravam. Uma espuma branca escorria de seu focinho de dentes afiados, e a cauda bifurcada balançava freneticamente, procurando alguma coisa para picar.
— Alce! — gritou uma mulher. — Um alce raivoso!
Todos começaram a gritar, correndo em diferentes direções e bloqueando o caminho do animal Set.
— Alce? — murmurei.
Bastet deu de ombros.
— É impossível prever como os humanos vão ver as coisas. A ideia agora é espalhar o poder da sugestão.
Claro que mais passageiros começaram a gritar “alce!” e a correr pelo terminal, enquanto o animal Set se movimentava pelas filas e ia se enroscando nas malas e nos carrinhos. Os oficiais da segurança do terminal tentaram contê-lo, mas o animal os jogou longe como se fossem bonecas de pano.
— Vamos! — chamou Bastet.
— Não posso deixar que ele machuque essas pessoas.
— Não podemos detê-lo!
Eu não me movi. Eu queria acreditar que Hórus me dava coragem, ou que os últimos dias tinham despertado em mim algum gene adormecido da bravura, legado de meus pais. Mas a verdade era ainda mais assustadora. Desta vez, ninguém me induzia a tomar uma atitude. Eu queria fazer aquilo.
As pessoas estavam encrencadas por nossa causa. Eu precisava ajudá-las. Senti o mesmo instinto que tinha me orientado quando Sadie precisou de minha ajuda, como se fosse hora de interferir. E, sim, isso me apavorava. Contudo eu também sentia que era o certo.
— Vá para o portão — indiquei a Bastet. — Leve Sadie. Encontro vocês lá.
— O quê? Carter...
— Vá!
Imaginei que abria meu armário invisível: 13/32/33. Estendi a mão, mas não para pegar a caixa de magia do papai. Concentrei-me em algo que havia perdido em Luxor. Tinhade estar ali. Por um momento, não senti nada. Depois, minha mão se fechou em volta de
um cabo de couro, e então puxei minha espada.
Os olhos de Bastet se arregalaram.
— Impressionante.
— Vá logo. É minha vez de parar o monstro.
— Sabe que aquilo vai matar você.
— Obrigado pelo voto de confiança. Agora, vá!
Bastet partiu em velocidade máxima, com Sadie batendo as asas para se equilibrar em seu braço.
Ouvi um tiro. Eu me virei e vi o animal Set investir contra um policial que tinha acabado de disparar inutilmente contra sua cabeça. O pobre oficial voou para trás e caiu sobre o detector de metais.
— Ei, alce — gritei.
O animal Set me olhou com seus olhos brilhantes.
Muito bem!, Hórus manifestou-se. Vamos morrer com honra!
Cale a boca, pensei.
Olhei para trás para me certificar de que Bastet e Sadie tinham mesmo desaparecido. Só então me aproximei da criatura.
— E aí, você não tem nome? — perguntei. — Ninguém conseguiu pensar em alguma coisa suficientemente feia?
A criatura rosnou, passando por cima do policial inconsciente.
— Animal Set é muito difícil de dizer — decidi. — Vou chamar você de Leroy.
Aparentemente, Leroy não gostou do novo nome. Ele atacou.
Eu me esquivei de suas garras e consegui bater no focinho dele com a lateral da lâmina da espada, mas isso não o incomodou. Leroy recuou e atacou novamente, rosnando, mostrando as presas. Tentei acertá-lo no pescoço, mas Leroy era esperto. Ele se esquivou para a esquerda e cravou os dentes em meu braço livre. Não fosse pelo protetor improvisado com as alças da bolsa de papai, eu teria um braço a menos. Mas os dentes de Leroy cortaram o couro. Sentia uma dor terrível.
Gritei, e uma onda primitiva de poder percorreu meu corpo. Notei que deixava o chão e era cercado pela aura dourada de um falcão guerreiro. O animal Set teve as mandíbulas abertas com tanta força, que berrou e soltou meu braço. Cercado por uma barreira mágica duas vezes maior que eu, enchi o peito e, com um chute, lancei Leroy contra a parede.
Muito bom!, Hórus elogiou. Agora despache a criatura para o mundo inferior!
Fique quieto, cara. Estou fazendo todo o trabalho aqui.
Percebi vagamente os seguranças tentando se recuperar e se reagrupar, gritando em seus rádios comunicadores e pedindo ajuda. Passageiros ainda gritavam e corriam de um lado para outro. Ouvi uma garotinha berrar:
— Homem-galinha, acabe com o alce!
Tem ideia do quanto é difícil se sentir uma máquina de guerra com cabeça de falcão quando alguém chama você de “homem-galinha”?
Levantei a espada, que agora era rodeada por uma lâmina de energia de três metros de comprimento. Leroy sacudiu a poeira das orelhas de cone e investiu contra mim novamente. Minha forma protegida podia ser poderosa, mas também era desajeitada e lenta, movendo-se como se andasse em um lago de gelatina. Leroy se esquivou do golpe da espada e aterrissou em meu peito, derrubando-me. Ele era muito mais pesado do que
parecia. A cauda e as garras atacavam minha armadura. Agarrei seu pescoço com as mãos brilhantes e tentei manter as presas longe de meu rosto, mas onde ele babava, meu escudo mágico fervia e evaporava. Eu já sentia o braço ferido começando a formigar.
Alarmes soavam. Mais passageiros se aglomeravam na área de embarque para ver o que estava acontecendo. Eu precisava acabar logo com aquilo, antes que desmaiasse de dor ou que mais mortais se machucassem.
Sentia minha força desaparecendo, meu escudo fraquejando. As presas de Leroy estavam a um centímetro de meu rosto e Hórus não dizia nada para me incentivar.
Então, eu me lembrei do armário invisível no Duat. Imaginei se outras coisas poderiam ser guardadas nele... Coisas grandes e más.
Fechei as mãos em torno do pescoço de Leroy e enfiei o joelho em suas costelas. Imaginei uma abertura no Duat – no ar, acima de mim: 13/32/33. E imaginei meu armário se abrindo num vão gigantesco.
Com o que me restava de força, empurrei Leroy para o alto. Ele voou para o teto, seus olhos se arregalando surpresos quando o corpo gigantesco passava por um vão invisível e desaparecia.
— Para onde ele foi? — gritou alguém.
— Ei, garoto! — chamou um homem. — Você está bem?
Meu escudo de energia havia desaparecido. Eu queria desmaiar, mas precisava sair dali antes que os seguranças se recuperassem do susto e me prendessem por brigar com um alce. Eu me levantei e joguei a espada para o alto. Ela desapareceu no Duat. Em seguida, enrolei da melhor maneira possível o couro rasgado no braço ferido e corri para o portão de embarque.
Entrei quando as portas do avião já estavam sendo fechadas.
Aparentemente, a notícia sobre a confusão com o homem-galinha ainda não tinha se espalhado. O agente de embarque apontou para trás de mim ao receber a passagem.
— Que barulho foi esse?
— Um alce passou pela segurança — respondi. — Mas já foi dominado.
E corri para o avião antes que tivesse de responder a mais perguntas.
Sentei-me, exausto, na poltrona ao lado de Bastet, com o corredor entre nós. Ela deixou escapar um profundo suspiro de alívio.
— Carter, você conseguiu! Mas está ferido. O que aconteceu?
Contei a ela.
— Guardou o animal Set no armário? — perguntou ela, incrédula. — Tem ideia de quanta força isso exige?
— Sim, eu sei. Eu estava lá.
A comissária de bordo começou a fazer seus anúncios. Tudo indicava que o incidente no terminal não afetara pousos e decolagens. O avião partiu no horário previsto.
Eu me curvei para a frente com a intensidade da dor, e só então Bastet percebeu a gravidade do ferimento em meu braço. Sua expressão tornou-se preocupada.
— Fique quieto.
Ela sussurrou alguma frase em egípcio, e meus olhos começaram a ficar pesados.
— Precisa dormir para curar essa ferida — explicou ela.
— Mas se Leroy voltar...
— Quem?
— Nada.
Bastet me olhou como se me visse pela primeira vez.
— Você foi muito corajoso, Carter. Enfrentar o monstro Set... Tem mais fibra de um gato vira-lata do que eu havia percebido.
— É... obrigado?
Ela sorriu e tocou minha testa.
— Logo estaremos chegando, meu gato vira-lata. Agora, durma.
Eu não podia protestar. A exaustão me dominava, e fechei os olhos.
Naturalmente, minha alma decidiu dar uma volta.
Eu estava em minha forma ba, sobrevoando Phoenix. Era uma clara manhã de inverno. O ar frio do deserto era agradável sob minhas asas. A cidade parecia diferente à luz do dia – uma vasta faixa de quadrados verdes e beges pontilhados por palmeiras e piscinas. Montanhas imponentes se erguiam aqui e ali como pedaços da lua. As mais elevadas estavam bem embaixo de mim – uma longa cordilheira com dois picos distintos. Como o seguidor de Set falara em minha primeira viagem da alma? Camelback. Corcova de camelo.
Os sopés eram ocupados por luxuosas mansões, mas o cume era deserto. Algo chamou minha atenção: uma fenda entre duas grandes rochas e um calor que brotava tremeluzindo do fundo da montanha – coisas que nenhum olho humano teria notado.
Recolhi as asas e voei até a fenda.
O ar quente soprava tão intensamente que tive de forçar minha passagem. Cerca de cento e cinquenta metros abaixo, a fenda se abria, e me descobri em um lugar que não podia existir. Simplesmente não podia.
Toda a parte interna da montanha tinha sido escavada, formando um vão. No meio, uma pirâmide gigantesca estava em construção. Ecoava no ar o som das picaretas. Hordas de demônios cortavam o calcário vermelho sangue em blocos e os transportavam para o centro da caverna, onde mais bandos de demônios usavam cordas e rampas para colocar os blocos no lugar, como meu pai me contava que tinham sido construídas as pirâmides de Gizé. Mas cada pirâmide de Gizé tinha levado uns vinte anos para ficar pronta. Aquela já estava na metade.
Havia algo estranho – e não era só a cor vermelho-sangue. Quando eu olhava para ela sentia um formigamento familiar, como se toda a estrutura vibrasse num tom... não, com uma voz que eu quase reconhecia.
Notei uma forma menor flutuando no alto da pirâmide – um barco de junco, como aquele de tio Amós. Nele viajavam duas figuras. Uma era um demônio alto, com armadura de couro. A outra era um homenzinho encorpado, num traje de guerra vermelho.
Eu me aproximei voando em círculos, tentando me manter nas sombras, porque não sabia se era realmente invisível. Aterrissei no topo do mastro. Foi uma manobra difícil, mas nenhum dos ocupantes do barco olhou para cima.
— Quanto tempo mais? — perguntou o homem de vermelho.
A voz era a de Set, mas sua aparência era completamente diferente daquela de minha última visão. Ele não era uma coisa negra e escorregadia e não estava em chamas – exceto pela mistura assustadora de ódio e diversão cintilando em seus olhos. O corpo era grande e forte como o de um jogador de rúgbi e as mãos eram imensas. O rosto era embrutecido. Os cabelos arrepiados e o cavanhaque aparado eram tão vermelhos quanto as roupas de guerra. Eu nunca tinha visto camuflagem naquela cor. Talvez planejasse se esconder dentro de um vulcão.
Ao lado dele, um demônio se curvava e parecia agitado. Era aquele esquisito com pés de galo que eu tinha visto antes. A criatura tinha uns dois metros, no mínimo, era muito magra e tinha garras de ave em vez de pés.
Infelizmente, desta vez pude ver seu rosto. Era quase horrível demais para ser descrito. Sabe essas exposições de anatomia que mostram cadáveres só em pele? Imagine um rosto desses vivo, com olhos inteiramente negros e com presas.
— Estamos fazendo excelente progresso, mestre! — garantiu o demônio. — Hoje conjuramos mais cem demônios. Com sorte, teremos tudo pronto ao pôr do sol de seu aniversário!
— Isso é inaceitável, Rosto do Terror — respondeu Set, calmo.
O servo se encolheu. Acho que o nome dele era Rosto do Terror. Quanto tempo a mãe dele devia ter levado para pensar nisso? Bob? Não. Sam? Não. Que tal Rosto do Terror?
— Mas... mestre... — gaguejou Rosto. — Eu pensei...
— Não pense, demônio. Nossos inimigos têm mais recursos do que eu imaginava. Incapacitaram temporariamente meu bichinho favorito e agora vêm em nossa direção. Precisamos terminar antes que eles cheguem. Amanhecer de meu aniversário, Rosto do Terror. No máximo. Será o amanhecer de meu novo reino. Banirei toda a vida desse continente e esta pirâmide restará como um monumento a meu poder – a última e definitiva tumba de Osíris!
Meu coração quase parou. Olhei novamente para a pirâmide, para baixo, e percebi por que a julgara tão familiar. Havia ali uma energia – a energia de meu pai. Não sei explicar como, mas eu sabia que seu sarcófago estava escondido em algum lugar naquela pirâmide.
Set sorriu com crueldade, como se ver a obediência de Rosto do Terror ou cortá-lo em pedaços pudessem fazê-lo igualmente feliz.
— Entendeu minha ordem?
— Sim, senhor! — Rosto moveu os pés de pássaro como se tentasse encontrar coragem. — Mas, posso perguntar, senhor... por que parar por aí?
As narinas de Set inflaram.
— Você está a uma frase da destruição, Rosto do Terror. Escolha suas palavras com cuidado.
O demônio passou a língua negra pelos dentes.
— Bem, meu senhor, a aniquilação de um único deus é digna de sua gloriosa existência? E se pudermos criar ainda mais energia do caos a fim de alimentar sua pirâmide para sempre, e fazer de meu senhor o deus eterno de todos os mundos?
Uma luz ambiciosa surgiu nos olhos de Set.
— Senhor de todos os mundos? Isso soa bem. E como conseguiria tal feito, demônio?
— Ah, eu não, meu senhor. Sou só um verme insignificante. Mas se capturássemos os outros... Néftis...
Set chutou o peito de Rosto, que caiu ofegando.
— Já disse para nunca pronunciar esse nome.
— Sim, mestre. — Rosto arfava. — Desculpe-me, mestre. Mas se a capturássemos, e aos outros... Pense no poder que poderia absorver. Com o plano adequado...
Set começou a balançar a cabeça em sentido afirmativo, gostando da ideia.
— Acho que é hora de darmos uma utilidade para Amós Kane.
A tensão me dominou. Amós estava ali?
— Brilhante, mestre. Um plano brilhante.
— Sim, fico feliz por eu ter pensado nisso. Em breve, Rosto do Terror, muito em breve, Hórus, Ísis e minha esposa traiçoeira se curvarão a meus pés... E Amós vai nos ajudar. Teremos uma agradável reunião de família.
Set olhou para cima... para mim, como se soubesse desde o início que eu estava ali, e sorriu como se planejasse me fazer em pedaços.
— Não é verdade, garoto?
Quis abrir as asas e voar. Precisava sair da caverna e avisar Sadie. Mas minhas asas não funcionavam. Fiquei ali, paralisado, enquanto Set erguia a mão para me pegar.

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