segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

A Pirâmide Vermelha - Sadie

Capítulo 36 - Nossa família vira vapor

MENOS DE UM QUILÔMETRO ANTES DA montanha Camelback, encontramos um círculo de perfeita calmaria.
— O olho do furacão — deduziu Carter.
Era sinistro. Em torno da montanha girava um cilindro de nuvens negras. Rastros de fumaça ligavam os picos da Camelback às paredes do redemoinho, como raios de uma roda, mas bem acima de nós o céu estava claro e estrelado, começando a se tingir de cinza.
Um novo dia se aproximava.
As ruas estavam vazias. Mansões e hotéis que ocupavam toda a área em volta da base da montanha estavam completamente escuros; mas a Camelback brilhava. Você já pôs a mão na frente de uma lanterna acesa e viu como sua pele reflete a luz vermelha? Era assim que a montanha parecia: algo muito claro e quente tentava romper a rocha.
— Nada se move nas ruas — observou Zia. — Se tentarmos subir a encosta...
— Seremos vistos — completei.
— E aquele encantamento? — Carter olhou para Zia. — Você sabe... Aquele que usou no Primeiro Nomo.
— Que encantamento? — perguntei.
Zia balançou a cabeça.
— Carter se refere a um feitiço de invisibilidade. Mas estou sem magia. E, a menos que você tenha os componentes apropriados, esse encantamento não pode ser feito assim, de imediato.
— Amós? — tentei.
Ele pensou por um instante.
— Lamento, sem invisibilidade. Mas tenho outra ideia.

***

Eu pensava que me transformar em ave era ruim, até Amós nos transformar em nuvens de tempestade. Ele explicou antecipadamente o que faríamos, mas isso não me deixava menos nervosa.
— Ninguém vai notar algumas nuvens negras no meio de uma tempestade — argumentou ele.
— Mas isso é impossível — contestou Zia. — Isso é tempestade mágica, magia do caos. Não devemos...
Amós levantou a varinha e Zia se desintegrou.
— Não! — gritou Carter, mas em seguida ele também sumiu, substituído por uma espiral de poeira negra.
Amós se virou para mim.
— Ah, não. Muito obrigada, mas...
Puf. Eu era uma nuvem de tempestade. Sei que isso pode soar incrível para você, mas imagine seus pés e suas mãos desaparecendo, transformando-se em sopros de vento. Imagine ter seu corpo substituído por poeira e vapor e sentir um estranho frio no estômago, sem sequer ter um estômago. Imagine precisar de concentração simplesmente para não se dispersar e virar um nada.
Fiquei tão furiosa, que um raio de luz estalou dentro de mim.
— Não fique assim — Amós me censurou. — É só por alguns minutos. Siga-me.
Ele se desintegrou numa nuvem mais pesada e escura, e partiu para a montanha. Segui-lo não foi fácil. No início, eu só conseguia flutuar. Cada sopro de vento ameaçava levar parte de mim. Tentei girar e descobri que esse movimento ajudava a manter minhas partículas unidas. Então, eu me imaginei cheia de hélio, e de repente disparei.
Não conseguia ter certeza se Zia e Carter estavam nos seguindo ou não. Quando você é uma tempestade, sua visão não é humana. Eu podia sentir vagamente o que me cercava, mas o que eu “via” era indistinto e sem foco, cercado de eletrostática.
Me dirigi à montanha, que era um ímã quase irresistível para minha personalidade de tempestade. Ela brilhava com aquela mistura de calor, pressão, turbulência... Tudo o que eu podia querer.
Segui Amós até uma reentrância na encosta da montanha, mas recuperei a forma humana cedo demais. Rolei do alto e derrubei Carter.
— Ai — reclamou ele.
— Desculpe — pedi, embora estivesse muito mais preocupada em controlar meu enjoo.
Meu estômago continuava sentindo que havia uma tempestade dentro dele.
Zia e Amós estavam em pé perto de nós, espiando por uma brecha entre duas grandes pedras. A claridade vermelha do interior da montanha fazia o rosto deles parecer diabólico.
Zia olhou para nós. A julgar por sua expressão, o que ela vira não era bom.
— Só falta o piramidião.
— O quê? — perguntei.
Eu me aproximei para espiar pela fresta, e o que vi era quase tão desorientador quanto ser uma nuvem de tempestade. Toda a montanha estava oca, como Carter tinha descrito. O piso da caverna ficava uns seiscentos metros abaixo de nós. O fogo ardia em vários lugares, banhando as paredes de pedra com uma claridade cor de sangue. Uma pirâmide vermelha gigantesca ocupava a caverna, e, na base, uma multidão de demônios se movimentava como a plateia de um concerto de rock esperando pelo início do show. Bem acima deles, na altura de nossos olhos, dois barcos mágicos tripulados por demônios flutuavam lentamente, de forma cerimoniosa, na direção da pirâmide. Suspensa por um emaranhado de cordas entre os barcos ia a única parte da construção que ainda não tinha sido colocada: uma pedra triangular dourada, que seria o topo da estrutura.
— Eles sabem que venceram — comentou Carter. — Estão transformando o final do projeto em um espetáculo.
— Sim — concordou Amós.
— Bem, vamos explodir os barcos ou sei lá! — sugeri.
Amós me olhou.
— Essa é sua estratégia? Francamente.
Seu tom de voz fez eu me sentir completamente estúpida. Olhei para baixo, para o exército de demônios, para a pirâmide enorme... Onde eu estava com a cabeça? Não podia lutar contra aquilo. Eu era só uma menina de doze anos!
— Precisamos tentar — disse Carter. — Papai está lá.
Isso me arrancou do momento de autopiedade. Se íamos morrer, pelo menos morreríamos tentando salvar meu pai (ah, e a América do Norte também, eu acho).
— Certo — respondi. — Vamos voar até os barcos. E vamos impedir que coloquem o cume...
— O piramidião — corrigiu Zia.
— Que seja. Depois voamos para dentro da pirâmide e encontramos papai.
— E quando Set tentar impedir vocês? — perguntou Amós.
Olhei para Zia, cujo olhar me dizia para não revelar mais nada.
— Uma coisa de cada vez — respondi. — Como voamos até os barcos?
— Como tempestade — sugeriu Amós.
— Não! — todos nós respondemos.
— Não quero tomar parte em mais magia do caos — insistiu Zia. — Não é natural.
Amós acenou para o espetáculo no interior da montanha.
— E isso é natural? Você tem outro plano?
— Aves? — anunciei, odiando-me por pensar nisso. — Vou me transformar em papagaio. Carter pode ser um falcão.
— Sadie — Carter me alertou —, e se...
— Preciso tentar. — Desviei o olhar antes de perder a coragem. — Zia, já faz quase dez horas que você criou aquele pilar de fogo. Ainda está sem magia?
Zia estendeu a mão e se concentrou. No início, nada aconteceu. Depois, uma luz vermelha começou a brilhar entre seus dedos e o cajado surgiu, ainda fumegando.
— Bem na hora — aprovou Carter.
— Mais ou menos — observou Amós. — Significa que Desjardins não está mais sendo perseguido pelo pilar de fogo. Logo estará aqui, e tenho certeza de que trará reforços. Mais inimigos para nós.
— Minha magia ainda estará fraca — avisou Zia. — Não vou poder ajudar muito em um combate, mas talvez consiga invocar um transporte.
Ela mostrou o pingente de abutre que usava em Luxor.
— Nesse caso, sobro eu — concluiu Amós. — Não se preocupem. Vamos nos encontrar no barco da esquerda. Derrubamos esse primeiro, depois cuidamos do da direita. E vamos contar com o fator surpresa.
Eu não estava disposta a deixar Amós traçar nossos planos, mas sua lógica fazia sentido.
— Certo. Vamos ter de acabar com os barcos bem depressa, depois seguimos para a pirâmide. Talvez possamos lacrar a entrada, ou algo parecido.
Carter assentiu.
— Estou pronto.
No início, o plano pareceu funcionar bem. Transformar-me em papagaio não foi problema, e, para minha surpresa, assim que cheguei à proa do navio consegui voltar à forma humana, na primeira tentativa, com o cajado e a varinha em mãos. A única pessoa mais surpresa era o demônio à minha frente. Sua cabeça de canivete armou-se com o susto.
Antes que ele pudesse me atacar ou dar o alarme, eu invoquei o vento com meu cajado e soprei o demônio para fora do barco. Dois de seus parceiros se adiantaram, mas Carter apareceu atrás deles, espada em punho, e os transformou em montes de areia.
Infelizmente, Zia não foi tão discreta. Um falcão gigante com uma menina pendurada nas garras sempre chama muita atenção. Quando ela voava para o barco, demônios apontaram e gritaram. Alguns arremessaram lanças que passaram bem perto.
Mas a entrada triunfal de Zia distraiu os outros dois demônios no barco, o que permitiu que Amós surgisse atrás deles. Ele assumira a forma de um morcego de frutas, o que me trouxe más lembranças. Rapidamente, no entanto, Amós retornou à forma humana e jogou o corpo contra os demônios, lançando-os longe.
— Segurem-se! — ele nos disse.
Zia aterrissou bem a tempo de agarrar o leme. Carter e eu nos seguramos nas laterais do barco. Eu não tinha ideia do que Amós planejava, mas depois de minha última viagem em um barco voador, preferia não correr riscos.
Amós começou a entoar algo, apontando o cajado para o outro barco, onde os demônios gritavam e apontavam para nós. Um deles era alto e muito magro, de olhos negros e rosto repugnante, músculos expostos sem pele alguma.
— Aquele é o ajudante de Set — avisou Carter. — Rosto do Terror.
— Vocês! — berrou o demônio. — Peguem eles!
Amós concluiu seu feitiço.
— Fumaça — entoou ele.
No mesmo instante, o segundo barco evaporou numa névoa cinzenta. Os demônios caíram gritando. O piramidião dourado despencou até as cordas que o seguravam ficarem totalmente esticadas, e nosso barco quase virou. Inclinados, começamos a cair.
— Carter, corte as cordas! — gritei.
Ele as cortou com sua espada e o barco voltou a prumo, subindo vários metros num único instante e deixando meu estômago para trás.
O piramidião atingiu o piso da caverna com um grande estrondo. Tive a sensação de que tínhamos acabado de produzir um amontoado de panquecas de demônio.
— Até aqui tudo bem — comentou Carter, mas, como sempre, ele falou cedo demais.
Zia apontou para baixo.
— Vejam.
Todos os demônios que tinham asas – uma pequena porcentagem, mas, ainda assim, uns bons quarenta ou cinquenta deles – investiam contra nós, parecendo um enxame de vespas furiosas.
— Voem para a pirâmide — indicou Amós. — Eu vou distrair os demônios.
A entrada da pirâmide, uma porta simples entre duas colunas na base da estrutura, não estava muito longe. Era guardada por alguns poucos demônios, mas boa parte das forças de Set corria para nosso barco, gritando e atirando pedras, que caíam de volta em cima deles (ninguém disse que demônios são inteligentes).
— São muitos — argumentei. — Amós, eles vão matar você.
— Não se preocupe comigo — disse ele em tom sombrio. — Lacre a entrada quando passar.
Ele me empurrou por cima da lateral do barco, e não tive escolha senão me transformar em papagaio. Carter, na forma de falcão, já descia numa espiral até a entrada, e eu podia ouvir o abutre de Zia batendo suas grandes asas atrás de nós.
Ouvi Amós gritar: “Por Brooklyn!”
Era um velho grito de guerra. Olhei para trás e o barco explodiu em chamas, começou a se afastar da pirâmide e desceu na direção do exército de monstros. Bolas de fogo brotavam da embarcação em todas as direções e pedaços do casco despencavam. Não tive tempo para admirar a magia de Amós, ou me preocupar com o que aconteceria a ele. Amós tinha distraído a maioria dos demônios com sua pirotecnia, mas alguns deles nos notaram.
Carter e eu aterrissamos dentro da pirâmide e voltamos à forma humana. Zia caiu do nosso lado e transformou seu abutre novamente em amuleto. Os demônios estavam a poucos passos – uma dúzia de criaturas enormes com cabeça de inseto ou de dragão e com variados apêndices do tipo canivete suíço.
Carter estendeu a mão. Um punho imenso e radiante surgiu, acompanhando seu movimento – passou entre mim e Zia e fechou as portas. Carter cerrou os olhos e se concentrou, e um símbolo dourado cintilante desenhou-se nas portas como um lacre: o Olho de Hórus. As linhas brilhavam pálidas enquanto os demônios se chocavam contra a barreira, tentando entrar.
— Isso não vai detê-los por muito tempo — alertou Carter.
Fiquei muito impressionada, mas nada disse, é claro. Olhei para as portas fechadas e só conseguia pensar em Amós lá fora, no barco, cercado por um exército do mal.
— Amós sabia o que estava fazendo — disse Carter, embora não parecesse muito convencido. — Ele deve estar bem.
— Vamos — Zia nos chamou. — Não temos tempo para suposições.
O túnel era estreito, vermelho e úmido, por isso me senti como se rastejasse pela artéria de uma enorme besta. Descemos em fila única, com o túnel inclinado em cerca de quarenta graus – o que teria servido como um divertido escorregador à beira de uma piscina, mas era horrível para quem tinha de caminhar com cuidado. As paredes eram decoradas com inscrições complexas, como muitas paredes egípcias que tínhamos visto, mas Carter obviamente não estava gostando. Ele parava toda hora, olhando os desenhos com ar preocupado.
— O que é? — perguntei depois da quinta ou da sexta vez.
— Não são desenhos normais para uma tumba — respondeu ele. — Não há símbolos do pós-vida, nem imagens dos deuses.
Zia assentiu.
— Esta pirâmide não é uma tumba. É um receptáculo, um corpo para conter o poder de Set. Todas essas imagens têm o propósito de aumentar o caos e fazê-lo reinar para sempre.
Continuamos andando e prestei mais atenção aos desenhos, compreendendo o que Zia queria dizer. As imagens eram de monstros terríveis, cenas de guerra, cidades como Paris e Londres em chamas, retratos coloridos de Set e do animal Set derrotando exércitos modernos – cenas tão terríveis, que nenhum egípcio jamais as gravaria em pedra. Quanto mais caminhávamos, mais estranhas e nítidas ficavam as imagens, e mais eu me sentia enjoada.
Finalmente, chegamos ao coração da pirâmide.
Onde deveria estar a câmara de sepultamento em uma pirâmide comum, Set havia criado uma sala do trono para ele mesmo. Era do tamanho de uma quadra de tênis, e, ao redor, o piso era mais fundo, formando uma trincheira, como um fosso. Lá embaixo, um líquido vermelho borbulhava. Sangue? Lava? Ketchup do mal? Nenhuma das alternativas era boa.
A trincheira era fácil de saltar, mas eu não estava muito animada para isso, porque o piso da sala toda era entalhado com hieróglifos vermelhos – feitiços invocando Isfet, o caos. Acima, no centro do teto, um único buraco quadrado deixava entrar a luz vermelha. Além desse espaço, era como se não existissem saídas. Ao longo de cada parede, havia quatro estátuas do animal Set, todas viradas para nós, com os dentes brancos expostos e os olhos verdes cintilando.
Mas a pior parte era o trono. Era uma coisa horrível e deformada, como uma estalagmite vermelha que tivesse crescido aleatoriamente por séculos de respingos de sedimento. E ela se formara em torno de um caixão dourado – o caixão de papai – que estava enterrado na base do trono, com uma parte exposta formando um apoio para pés.
— Como vamos tirá-lo de lá? — perguntei com a voz trêmula.
Do meu lado, Carter prendeu a respiração.
— Amós?
Segui o olhar de meu irmão até a abertura vermelha no meio do teto. Um par de pernas pendia dali. Em seguida, Amós caiu, abrindo o manto como um paraquedas e planando até o chão. Suas roupas ainda fumegavam, os cabelos estavam cobertos de cinzas. Ele apontou o cajado para o teto e disse um comando. A abertura pela qual entrara estremeceu, provocando uma chuva de escombros e poeira, e a luz se apagou de repente.
Amós limpou as roupas e sorriu para nós.
— Isso deve detê-los por algum tempo.
— Como fez aquilo? — perguntei.
Ele fez um gesto para que o seguíssemos ao interior do aposento.
Carter pulou a trincheira sem hesitar. Eu não gostava daquilo, mas não o deixaria ir sem mim, por isso saltei também o fosso. Imediatamente senti um enjoo mais forte que antes, como se a sala balançasse, causando certa desorientação.
Zia foi a última a pular, observando Amós com cautela.
— Você não devia estar vivo — disse ela.
Amós riu.
— Ah, já ouvi isso antes. Agora, vamos trabalhar.
— Sim. — Eu me dirigi ao trono. — Como tiramos o caixão de lá?
— Cortando? — Carter já empunhava a espada, mas Amós ergueu a mão.
— Não, crianças. Não é disso que estou falando. Tomei providências para que ninguém nos interrompesse. Chegou o momento sobre o qual conversamos.
Um arrepio percorreu minha espinha.
— Conversamos?
De repente, Amós caiu de joelhos e começou a sofrer convulsões. Corri para perto dele, mas ele ergueu os olhos e seu rosto estava contorcido pela dor. Seus olhos encontravam-se vermelhos como lava derretida.
— Fujam! — ele gemeu.
Amós caiu, e um vapor vermelho se desprendeu de seu corpo.
— Temos de ir! — Zia agarrou meu braço. — Agora!
Mas eu estava paralisada, olhando horrorizada para o vapor que se desprendia de Amós e subia ao trono, tomando lentamente a forma de um homem sentado: um guerreiro vermelho em armadura de fogo, com um cajado de ferro em uma das mãos e a cabeça de um monstro canino.
— E agora —Set sorriu — Zia vai dizer: “Eu avisei.”

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