segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Trono de Fogo - Sadie

Capítulo 20 - Visitamos a casa da hipopótama prestativa

HOSPITAIS. SALAS DE AULA. Agora vou adicionar na minha lista de lugares menos favoritos: casas de pessoas velhas.
Isso pode soar estranho, apesar de eu ter morado com meus avós. Acho que consideram seu apartamento como uma casa de pessoa velha. Mas eu quero dizerinstituições. Lares de idosos. Esses são os piores. Cheiram como uma horrível mistura de cantinas, materiais de limpeza e aposentados.
Os presidiários (desculpe, pacientes) sempre parecem tão infelizes.  E as casas têm absurdos nomes felizes, como Acres Ensolarados. Por favor.
Caminhamos pelas portas de calcário em um grande salão aberto – uma versão egípcia de assistência da vida. Fileiras de colunas pintadas de colorido estavam repletas de castiçais de ferro segurando tochas em chamas. Palmeiras em vasos e plantas floridas de hibisco estavam colocadas aqui e acolá em uma tentativa fracassada de fazer o lugar se sentir alegre.
Janelas grandes tinham vista para o Lago de Fogo, que eu acho que seria uma ótima vista se você gostasse de enxofre. As paredes foram pintadas da vida egípcia após a morte, junto com lemas hieroglíficos alegres como imortalidade com segurança vida começa em 3000!
Empregados de luzes brilhantes e shabti de argila em uniformes médicos brancos passavam atarefados, carregando bandejas de medicamentos e empurrando cadeiras de rodas.
Os pacientes, no entanto, não se agitavam muito. Uma dúzia de figuras murchas no hospital vestidas de linho sentava ao redor da sala, olhando distraidamente para o espaço. Alguns vagueavam pela sala, empurrando suportes de rodinhas com sacos de sangue.
Todos vestiam braceletes com seus nomes em hieróglifos. Alguns pareciam humanos, mas alguns tinham cabeças de animais. Um homem velho com a cabeça de um guindaste balançava para frente e para trás em uma cadeira dobrável de metal, estragando um jogo de senet em uma mesa de café. Uma mulher idosa com uma cabeça de leoa grisalha corria ao redor em uma cadeira de rodas, balbuciando “Miau, miau”. Um homem enrugado de pele azul não muito mais alto que Bes abraçava uma coluna de calcário e chorava suavemente, como se estivesse com medo da coluna deixá-lo.
Em outras palavras, a cena era completamente depressiva.
― O que é esse lugar? ― perguntei. ― São todos deuses?
Carter parecia tão mistificado quanto eu. Bes parecia que estava prestes a rastejar para fora de sua pele.
― Nunca estive aqui na verdade ― ele admitiu. ― Ouvi rumores, mas...
Ele engoliu como se estivesse comendo uma colher de manteiga de amendoim.
― Vamos lá. Vamos perguntar na estação de enfermagem.
A mesa era um crescente de granito com uma fileira de telefones (embora eu não pudesse imaginar que eles tinham chamadas do Duat), um computador, muitas pranchetas e um relógio de sol de pedra, o que parecia estranho, já que não tinha sol.
Atrás do balcão, uma mulher pequena e gorda estava de costas para nós, checando uma lousa com nomes e horários de medicações. Seu cabelo preto brilhante estava trançado em suas costas como uma cauda de castor extragrande, e seu chapéu de enfermeira mal cabia em sua cabeça larga. Estávamos no meio do caminho para a mesa quando Bes franziu o cenho.
― É ela.
― Quem? ― Carter perguntou.
― Isso é ruim ― Bes ficou pálido. ― Eu devia saber... Maldição! Vocês terão que ir sem mim.
Eu olhei mais de perto a enfermeira, que ainda estava de costas para nós. Ela parecia um pouco grandiosa, com braços maciços musculosos, um pescoço mais grosso que a minha cintura e uma estranha cor de pele arroxeada. Mas não consegui entender por que ela incomodava tanto Bes.
Virei-me para perguntar a ele, mas Bes tinha se abaixado atrás da planta de vaso mais próxima. Não era grande o suficiente para escondê-lo, e certamente não camuflava sua camisa havaiana.
― Bes, pare com isso ― chamei.
― Shhh! Eu sou invisível!
Carter suspirou.
― Não temos tempo para isso. Vamos, Sadie.
Ele abriu caminho para a estação de enfermagem.
― Com licença ― ele chamou, e eu gemi.
Tentei conter meu choque, mas isso foi difícil, sendo que a mulher era um hipopótamo. Eu não quero dizer como uma comparação pouco lisonjeira. Ela era realmente um hipopótamo. Seu focinho longo tinha a forma de um coração de cabeça para baixo, com bigodes eriçados, narinas pequenas e uma boca com dois dentes inferiores enormes. Seus olhos eram pequenos e redondos.
Ela vestia seu avental de enfermeira aberto, revelando uma parte superior de biquíni... como colocar isso delicadamente... que estava tentando cobrir algo muito grande com muito pouco tecido. Sua barriga roxo-rosada era incrivelmente inchada, como se ela estivesse grávida de nove meses.
― Posso ajudar? ― ela perguntou.
Sua voz era agradável e gentil – não o que poderia se esperar de um hipopótamo.
― Hum, hipo... quer dizer, olá! ― gaguejei. ― Meu irmão e eu estamos procurando por...
Olhei para Carter e descobri que ele não estava olhando para o rosto da enfermeira.
― Carter!
― O quê? ― Ele se sacudiu para sair de seu transe. ― Certo. Desculpe. Hã, você não é uma deusa? Taueret, ou algo do tipo?
A mulher hipopótamo arreganhou seus dois dentes enormes em o que eu esperava ser um sorriso.
― Ora, como é bom ser reconhecida! Sim, querido. Eu sou Taueret. Você disse que estavam procurando por alguma coisa? Um parente? Vocês são deuses?
Atrás de nós, o vaso de hibisco farfalhou enquanto Bes o pegava e tentava se mover para trás de uma coluna.
Os olhos de Taueret se esbugalharam.
― Aquele é Bes? ― ela chamou. ― Bes!
O anão se levantou abruptamente e limpou sua camisa. Seu rosto estava mais vermelho que o de Set.
― As plantas parecem estar recebendo bastante água ― ele murmurou. ― Eu deveria checar aquelas ali.
Ele começou a se afastar, mas Taueret chamou de novo:
― Bes! Sou eu, Taueret! Aqui!
Bes gemeu como se ela o tivesse acertado nas costas. Ele se virou com um sorriso de tortura.
― Bem... hey. Taueret. Uau!
Ela saiu de trás da mesa, usando sapatos de salto alto que pareciam inoportunos para uma mamífera aquática prenha. Ela abriu seus braços gordos para um abraço, e Bes estendeu a mão para apertar. Eles terminaram fazendo um tipo estranho de dança, meio um abraço, meio uma sacudida, que fez uma coisa perfeitamente óbvia para mim.
― Então, vocês dois namoravam? ― perguntei.
Bes disparou um olhar de adaga para mim. Taueret corou, e foi a primeira vez que eu tinha envergonhado um hipopótamo.
― Há muito tempo atrás... ― Taueret se virou para o deus anão. ― Bes, como vai? Depois desse tempo terrível no palácio, temo...
― Bem! ― ele gritou. ― Sim, obrigado. Bem. Você está bem? Excelente! Estamos aqui a negócios importantes, como Sadie estava prestes a te dizer.
Ele me chutou na canela, o que achei totalmente desnecessário.
― Sim, certo ― falei. ― Estamos procurando por Rá, para acordá-lo.
Se Bes tinha esperança de redirecionar a linha de pensamentos de Taueret, o plano funcionou. Taueret abriu sua boca em um arquejo silencioso, como se eu tivesse sugerido algo horrível, como uma caça aos hipopótamos.
― Acordar Rá? ― ela disse. ― Oh, querida... oh, isso é lamentável. Bes, você está ajudando-os com isso?
― A-ham ― ele gaguejou. ― Só que, você sabe...
―Bes está nos fazendo um favor ― eu disse. ― Nossa amiga Bastet pediu a ele para cuidar de nós.
Eu podia dizer imediatamente que já tinha feito coisas piores. A temperatura do ar pareceu cair dez graus.
― Entendo ― Taueret disse. ― Um favor para Bastet.
Não tinha certeza do que disse de errado, mas tentei meu melhor retorno.
― Por favor. Olha, o destino do mundo está em jogo. É muito importante encontrarmos Rá.
Taueret cruzou os braços ceticamente.
― Querida, ele está desaparecido por milênios. E tentar acordá-lo pode ser terrivelmente perigoso. Por que agora?
― Diga a ela, Sadie ― Bes avançou para trás como se estivesse se preparando para mergulhar no hibisco. ― Sem segredos aqui. Taueret é completamente confiável.
― Bes! ― Ela se animou imediatamente e vibrou seus cílios. ― O que quer dizer?
― Sadie, fale! ― Bes implorou.
E fiz isso. Mostrei a Taueret o Livro de Rá. Expliquei por que precisávamos acordar o deus do sol – a ameaça da ascensão de Apófis, caos e destruição em massa, o mundo prestes a terminar ao amanhecer, etc. Foi difícil julgar suas expressões hipopotâmicas [Sim, Carter, tenho certeza que isso é uma palavra], mas enquanto eu falava, Taueret enrolava seus longos cabelos pretos nervosamente.
― Isso não é bom ― ela falou. ― Não é nada bom.
Ela olhou para trás, para seu relógio de sol. Apesar da falta de sol, a agulha projetava uma luz clara sobre o hieróglifo número cinco:





― Vocês estão correndo contra o tempo ― ela falou.
Carter franziu o cenho para o relógio de sol.
― Essa não é a Quarta Casa da Noite?
― Sim, querido ― Taueret concordou. ― Tem nomes diferentes... Acres Ensolarados, a Casa de Repouso... mas também é a Quarta Casa.
― Então como o relógio de sol pode estar no cinco? ― ele perguntou. ― Não teríamos que estar, tipo, congelados na quarta hora?
― Não é assim que funciona, criança ― Bes interferiu. ― O tempo do mundo mortal não para de passar só porque estamos na Quarta Casa. Se você quer seguir a viagem do deus sol, tem que se manter em sintonia com seu tempo.
Senti uma explicação de quebrar a cabeça por vir. Estava disposta a aceitar a feliz ignorância e continuar a procurar Rá, mas Carter, naturalmente, não deixaria acabar.
― Então o que acontece se ficarmos muito para trás? ― ele perguntou.
Taueret checou o relógio de sol de novo, que rastejava lentamente.
― As casas são conectadas aos seus tempos da noite. Você pode ficar em cada uma quanto quiser, mas só pode entrar ou sair delas perto do tempo que representam.
― Hum ― esfreguei minhas têmporas. ― Você tem algum remédio para dor de cabeça atrás da estação de enfermagem?
― Isso não é tão confuso ― disse Carter, só pra ser irritante. ― É como uma porta giratória. Você tem que esperar para abrir e entrar.
― Mais ou menos ― Taueret concordou. ― Há um pouco de espaço de manobra com a maioria das Casas. Você pode sair da Quarta Casa, por exemplo, praticamente quando quiser. Mas certamente as portas são impossíveis de passar até seu tempo estar exatamente correto. Você só pode entrar na Primeira Casa ao pôr-do-sol. Só pode sair da Décima Segunda Casa ao amanhecer. E as portas da Oitava Casa, a Casa dos Desafios... só podem ser abertas durante a oitava hora.
― Casa dos Desafios? Já odiei.
― Oh, vocês têm Bes com vocês ― Taueret olhou para ele com ar sonhador. ― Os desafios não serão problema.
Bes me lançou um olhar de pânico, como, Me salve!
― Mas se vocês levarem muito tempo ― Taueret continuou ― as portas serão fechadas antes de poderem chegar lá. Vocês ficarão presos no Duat até amanhã à noite.
― E se não pararmos Apófis ― completei ― não haverá um amanhã à noite. Essa parte eu entendi.
― Então você pode nos ajudar? ― Carter perguntou para Taueret. ― Onde está Rá?
A deusa mexia no seu cabelo. Suas mãos eram um cruzamento entre humano e hipopótamo, com pequenos dedos como tocos e unhas espessas.
― Esse é o problema, querido. Eu não sei. A Quarta Casa é enorme. Rá está provavelmente aqui em algum lugar, mas os corredores e portas continuam para sempre. Nós temos muitos pacientes.
― Você não mantém um controle sobre eles? ― Carter perguntou. ― Não há um mapa ou algo do tipo?
Taueret balançou sua cabeça lamentavelmente.
― Faço o meu melhor, mas só há eu, os shabti e as luzes servidoras... E aqui tem milhares de deuses velhos.
Meu coração afundou. Eu mal podia acompanhar os dez ou os maiores deuses que eu conheci, mas milhares? Só nessa sala, contei uma dúzia de pacientes, seis corredores que conduziam a direções diferentes, duas escadas e três elevadores. Talvez fosse minha imaginação, mas parecia que alguns dos corredores tinham aparecido desde que entramos na sala.
― Todos esses velhos são deuses? ― perguntei.
Taueret assentiu.
― A maioria eram divindades menores mesmo nos tempos antigos. Os magos não consideravam que valia a pena prendê-los. Ao passar dos séculos, eles foram deixados de lado, abandonados e esquecidos. Ás vezes eles fazem seu caminho até aqui. Eles simplesmente esperam.
― Para morrer? ― perguntei.
Taueret ficou com um olhar distante em seus olhos.
― Eu queria saber. Ás vezes eles desaparecem, mas não sei se eles simplesmente se perdem passeando pelos salões, encontram uma nova sala para se esconder ou realmente desaparecem do nada. A triste verdade é que é tudo a mesma coisa. Seus nomes ficam esquecidos pelo mundo acima. Uma vez que seu nome não é mais falado, o que é bom na vida?
Ela olhou para Bes, como se tentasse dizer alguma coisa para ele. O deus anão desviou rapidamente.
― Aquela é Mekhit, não é? ― Ele apontou para uma velha mulher leão que estava fazendo seu caminho de volta em uma cadeira de rodas. ― Ela tinha um templo perto de Abidos, eu acho. Deusa menor leoa. Sempre ficou perplexa com Sekhmet.
A leoa rosnou fracamente quando Bes disse o nome de Sekhmet. Então ela voltou rodando sua cadeira, murmurando, “Miau, miau”.
― História triste ― Taueret disse. ― Ela veio para cá com seu marido, o deus Onuris. Eles eram um casal de celebridades nos dias antigos, tão românticos. Uma vez ele percorreu todo o caminho de Núbia para resgatá-la. Eles se casaram. Um final feliz, todos nós pensávamos. Mas os dois foram esquecidos. Eles vieram para cá juntos. Então Onuris desapareceu. A mente de Mekhit começou a andar depressa depois disso. Agora ela roda sua cadeira ao redor da sala à toa todo dia. Ela não consegue se lembrar de seu próprio nome, mas continuamos lembrando-lhe.
Pensei em Khnum, que eu havia conhecido no rio, e o quão triste ele parecia, sem saber seu nome secreto. Olhei para a velha deusa Mekhit, miando e rosnando e correndo sem nenhuma memória de sua antiga glória. Me imaginei tentando cuidar de milhares de deuses como aqueles, idosos que nunca melhoravam e nunca morriam.
― Taueret, como consegue aguentar isso? ― eu disse com admiração. ― Por que você trabalha aqui?
Ela tocou seu chapéu de enfermeira conscientemente.
― Uma longa história, querida. E temos muito pouco tempo. Eu nem sempre estive aqui. Uma vez eu fui uma deusa protetora. Eu afugentava demônios, mas não tão bem quanto Bes.
― Você era muito assustadora ― Bes discordou.
A deusa hipopótama sorriu com adoração.
― Isso é tão meigo. Eu também protegia mães dando à luz...
― ...porque você está grávida? ― Carter perguntou, acenando para sua enorme barriga.
Taueret pareceu mistificada.
― Não. Por que acha isso?
― Hum...
― Então! ― interrompi. ― Você estava explicando por que cuida de deuses envelhecendo.
Taueret checou o relógio de sol, e eu fiquei alarmada ao ver o quão rápido a sombra estava rastejando em direção ao seis.
― Sempre gostei de ajudar pessoas, mas no mundo de cima, bem... ficou claro que eu não era mais necessária.
Ela teve o cuidado de não olhar para Bes, mas o deus anão corou mais ainda.
― Alguém precisava cuidar dos deuses envelhecendo ― Taueret continuou. ― Acho que entendo sua tristeza. Entendo sobre esperar para sempre...
Bes tossiu em seu punho.
― Olha a hora! Sim, sobre Rá. Você já o viu desde que trabalha aqui?
Taueret refletiu.
― É possível. Eu vi um deus com cabeça de falcão em uma sala na ala sudoeste, oh, há séculos. Pensei que era Nemty, mas é possível que tenha sido Rá. Às vezes ele gostava de tomar forma de falcão.
― Que caminho? ― implorei. ― Se nos aproximarmos, o Livro de Rá pode ser capaz de nos guiar.
Taueret se virou para Bes.
― Você está me pedindo isso, Bes? Você realmente acredita que isso é importante ou só está fazendo isso porque Bastet te pediu?
― Não! Sim! ― Ele estufou o rosto desesperado. ― Quer dizer, sim, é importante. Sim, eu estou pedindo. Preciso de sua ajuda.
Taueret puxou uma tocha da arandela mais próxima.
― Nesse caso, por aqui.
Vagamos pelos salões do lar de infinita magia, liderados por uma enfermeira hipopótama com uma tocha. Realmente, apenas uma noite comum para os Kanes.
Passamos tantos quartos que eu perdi a conta. A maioria das portas estava fechada, mas algumas estavam abertas, mostrando deuses velhos frágeis em suas camas, olhando a luz oscilante das televisões ou simplesmente deitados no escuro chorando.
Depois de vinte ou trinta dessas salas, parei de procurar. Era tão depressivo. Segurei o Livro de Rá, esperando que aquecesse quando nos aproximássemos do deus sol, mas sem sorte.
Taueret hesitava a cada intersecção. Podia dizer que ela não tinha certeza para onde estava nos levando. Depois de alguns corredores e ainda sem nenhuma mudança do rolo, comecei a me sentir agitada. Carter deveria ter notado.
― Está tudo bem ― ele prometeu. ― Nós vamos encontrá-lo.
Lembrei o quão rápido o relógio de sol se movendo na estação de enfermagem. E pensei sobre Vlad Menshikov. Queria acreditar que ele tinha virado fritas russas quando caiu no Lago de Fogo, mas provavelmente era muito para se esperar. Se ele ainda estivesse nos caçando, não poderia estar muito atrás.
Descemos outro corredor e Taueret franziu o cenho.
― Oh, queridos.
Na nossa frente, uma mulher idosa com a cabeça de um sapo estava pulando ao redor. E quando eu disse pulando, quis dizer que ela saltava três metros, coaxando algumas vezes, então saltou contra a parede e se prendeu antes de saltar para a parede oposta.
Seu corpo e membros pareciam humanos, vestida em um roupão de hospital verde, mas sua cabeça era totalmente anfíbia – marrom, úmida, e cheia de verrugas. Seus olhos bulbosos viravam para toda direção e pelo som distraído de seu coaxar, supus que ela estava perdida.
― Heket saiu de novo ― Taueret disse. ― Me deem licença por um momento.
Ela correu para a mulher sapo. Bes puxou um lenço do bolso de sua camisa havaiana. Ele enxugou sua testa nervosamente.
― Me perguntava o que tinha acontecido com Heket. Ela é a deusa sapa, você sabe.
― Eu nunca teria adivinhado ― Carter disse.
Assisti enquanto Taueret tentava acalmar a velha deusa. Ela falava em tons suaves, prometendo ajudar Hekt a encontrar seu quarto se ela parasse de quicar pelas paredes.
― Ela é brilhante ― falei. ― Taueret, quer dizer.
― É ― Bes concordou. ― É, ela é encantadora.
― Encantadora?  eu disse. ― Bem, ela gosta de você. Por que você é tão...
De repente a verdade bateu na minha cara. Me senti quase tão grossa quanto Carter.
― Oh, entendi. Ela mencionou o momento horrível no palácio, não é? Ela foi a única que libertou você na Rússia.
Bes enxugou seu pescoço com o lenço. Ele realmente estava suando muito.
― O q-que fez você dizer isso?
― Por isso você fica tão embaraçado perto dela! Como... ― eu estava prestes a dizer “como quando ela te viu de cuecas”, mas eu duvidava que significaria muito para o Deus das Sungas. ― Como quando ela te viu no pior momento, e você queria esquecer isso.
Bes olhou para Taueret em uma expressão triste, do jeito que ele tinha olhado para o palácio do Príncipe Menshikov em São Petersburgo.
― Ela está sempre me salvando ― ele disse. ― Ela sempre é maravilhosa, simpática, gentil. Nos tempos antigos, todos assumiram que estávamos namorando. Sempre disseram que éramos um casal bonito... os dois deuses assustadores de demônios, os dois desajustados, seja o que for. Nós saímos algumas vezes, mas Taueret era tão... tãosimpática. E eu tinha uma espécie de obsessão por outra pessoa.
― Bastet ― Carter adivinhou.
Os ombros do deus anão caíram.
― É óbvio, hein? É, Bastet. Ela era a deusa mais popular com o povo comum. Eu era o deus mais popular. Então, você sabe, víamos um ao outro em festivais e tal. Ela era... bem, linda.
Um homem típico, pensei. Só vendo a superfície. Mas eu deixei minha boca fechada.
― De qualquer maneira ― Bes suspirou ― Bastet me tratava como um irmão menor. Ela ainda faz isso. Não tem nenhum interesse em mim, mas levei muito tempo para perceber isso. Estava tão obcecado, eu não fui muito bom com Taueret ao passar dos anos.
― Mas ela foi te resgatar na Rússia ― lembrei.
Ele assentiu.
― Mandei pedidos de socorro. Pensei que Bastet viria me ajudar. Ou Hórus. Ou alguém. Eu não sabia onde estavam todos eles, entende, mas eu tinha muitos amigos nos dias antigos. Achei que alguém apareceria. A única que fez isso foi Taueret. Ela arriscou sua vida entrando furtivamente no palácio durante o casamento anão. Ela viu a coisa toda... me viu sendo humilhado na frente do grande povo. Durante a noite, ela quebrou minha jaula e me libertou. Devo tudo a ela. Mas uma vez que estive livre... eu apenas fugi. Fiquei tão envergonhado, não conseguia olhar para ela. Toda hora pensava nela, pensava sobre aquela noite e ouvia os risos.
O pânico em sua voz era bruto, como se ele estivesse descrevendo algo que tivesse acontecido ontem, não três séculos atrás.
― Bes, não é culpa dela ― falei gentilmente. ― Ela se preocupa com você. É óbvio.
― É tarde demais ― ele disse. ― Eu a machuquei muito. Queria voltar no tempo, mas...
Ele hesitou. Taueret estava andando na nossa direção, levando a deusa sapo pelo braço.
― Agora, querida ― Taueret disse ― só venha conosco, e nós vamos encontrar a sua sala. Não há necessidade de pular.
― Mas é um pulo de fé ― Heket coaxou. ― Meu templo está aqui em algum lugar. Ficava em Qus. Cidade adorável.
― Sim, querida ― Taueret disse. ― Mas seu templo se foi agora. Todos os templos se foram. Você tem um ótimo quarto, no entanto.
― Não ― Heket murmurou. ― Os sacerdotes terão sacrifícios para mim. Eu tenho que...
Ela fixou seus olhos amarelos enormes em mim, e entendi como uma mosca deve se sentir antes de ser arrebatada por uma língua de sapo.
― Essa é minha sacerdotisa! ― Heket disse. ― Ela veio me visitar.
― Não, querida ― Taueret disse. ― Essa é Sadie Kane.
― Minha sacerdotisa.
Heket afagou meu ombro com sua mão úmida e cheia de membranas, e fiz o meu melhor para não me encolher.
― Diga ao templo para começarem sem mim, tudo bem? Vou me juntar a eles depois. Você vai dizer a eles?
― Hum, sim. Claro, lady Heket.
― Bom, bom ― seus olhos saíram de foco. ― Estou com muito sono agora. Trabalho duro, lembrando...
― Sim, querida ― Taueret concordou. ― Por que você não vai se deitar em um daqueles quartos agora?
Ela guiou Heket para dentro do quarto vago mais próximo. Bes seguiu-a com os olhos tristes.
― Sou um anão horrível.
Talvez eu devesse ter tranquilizado-o, mas minha mente estava correndo em outros assuntos. Comecem sem mim, Heket havia dito. Um pulo de fé. De repente achei difícil respirar.
― Sadie? ― Carter perguntou. ― O que há de errado?
― Sei por que o pergaminho não está nos guiando ― eu disse. ― Tenho que começar da segunda parte do encantamento.
― Mas não estamos lá ainda  Carter disse.
― E não vamos chegar lá a menos que eu comece o encantamento. É a parte de encontrar Rá.
― O que é?
Taueret apareceu ao lado de Bes e quase assustou o anão para fora de sua camisa havaiana.
― O encantamento ― falei. ― Tenho que dar um pulo de fé.
― Acho que a deusa sapo te infectou ― Carter atormentou.
― Não, seu burro! Esse é o único jeito de encontrar Rá. Tenho certeza disso.
― Ei, criança ― Bes disse ― se você começar esse encantamento, e não encontrarmos Rá no momento em que você terminar de ler isso...
― Eu sei. O encantamento vai sair pela culatra.
Quando eu disse sair pela culatra, quis dizer literalmente. Se o encantamento não achasse o alvo apropriado, o poder do Livro de Rá poderia explodir na minha cara.
― É o único jeito ― insisti. ― Não temos tempo para passear pelos salões para sempre, e Rá só vai aparecer se o invocarmos. Temos que tomar o risco. Vocês vão ter que me levar. Não posso tropeçar nas palavras.
― Você tem coragem, querida ― Taueret segurou sua tocha. ― Não se preocupe, vou te guiar. Só faça a sua leitura.
Abri o pergaminho na segunda seção. As linhas de hieróglifos, que outra vez pareciam frases soltas, agora faziam todo sentido.
― Eu invoco o nome de Rá ― li alto ― o rei adormecido, senhor do Sol do meio dia, que se senta sobre o trono de fogo...
Bem, essa é a ideia. Eu descrevi como Rá se ergueu do mar do Caos. Lembrei de sua luz brilhando sobre a terra original do Egito, trazendo vida ao Vale do Nilo. Enquanto eu lia, me sentia aquecida.
― Sadie ― Carter disse ― você está fumegando.
É difícil não ficar em pânico quando alguém faz um comentário como esse, mas percebi que Carter estava certo. A fumaça estava ondulando para fora do meu corpo, formando uma coluna de cinza que descia pelo corredor.
― É minha imaginação ― Carter perguntou ― ou a fumaça está nos mostrando o caminho? Ai!
Ele disse essa última parte porque eu pisei no pé dele, que eu podia fazer muito bem sem quebrar minha concentração. Ele captou a mensagem: Cale a boca e comece a andar.
Taueret pegou meu braço e me guiou para frente. Bes e Carter nos acompanharam como guardas de segurança. Seguimos a trilha de fumaça por mais dois corredores e subimos um lance de escadas.
O Livro de Rá ficou desconfortavelmente quente em minhas mãos. A fumaça do meu corpo começou a ocultar as letras.
― Você está indo bem, Sadie ― Taueret disse. ― Esse corredor me parece familiar.
Eu não sabia como ela poderia dizer, mas fiquei focada no pergaminho. Descrevi o barco do sol de Rá navegando por todo o céu. Falei de sua sabedoria majestosa e das batalhas que ele venceu contra Apófis.
Uma gota de suor escorreu por meu rosto. Meus olhos começaram a arder. Esperava que eles não estivessem literalmente em chamas. Quando cheguei à linha “Rá, o apogeu do sol...” percebi que havíamos parado em frente a uma porta. Ela não parecia nada diferente das outras portas, mas a abri e entrei.
Eu fiquei lendo, embora estivesse chegando perto do fim do encantamento bem rápido. Lá dentro, a sala estava escura. Sob a luz crepitante da tocha de Taueret, eu vi o homem mais velho do mundo dormindo na cama – seu rosto enrugado, seus braços como gravetos, sua pele tão translúcida que eu conseguia ver cada veia. Algumas múmias de Baharyia pareciam mais vivas que essa casca velha.
― A luz de Rá retorna ― li.
Acenei a cabeça para a janela de cortinas pesadas e felizmente Bes e Carter pegaram a mensagem. Eles puxaram as cortinas, e a luz vermelha do Lago de Fogo inundou a sala.
O velho não se mexeu. Sua boca estava com os lábios franzidos como se tivessem sido costurados. Me movi para sua cabeceira e fiquei lendo. Descrevi Rá acordando ao amanhecer, se sentando em seu trono enquanto seu barco subia o céu, as plantas se virando na direção do calor do sol.
― Não está funcionando ― Bes murmurou.
Fiquei em pânico. Só faltavam duas linhas. Eu podia sentir o poder do encanto aumentando, começando a superaquecer meu corpo. Eu ainda estava fumegando, e não gostava do cheiro de Sadie grelhada. Tinha que acordar Rá ou eu queimaria viva. A boca do deus... É claro. Pus o rolo na cama de Rá e fiz o possível para deixá-lo aberto com uma mão.
― Eu canto os louvores do deus sol.
Estiquei minha mão livre para Carter e estalei os dedos. Graças a Deus, Carter entendeu. Ele vasculhou minha bolsa e me passou a lâmina netjeri de obsidiana de Anúbis. Se havia um momento para a Abertura da Boca, era aquele. Toquei a faca nos lábios do velho e falei a última linha do encantamento:
― Acorde, meu rei, com o novo dia.
O velho ofegou. Fumaça espiralava de sua boca como se ele tivesse virado um aspirador de pó, e a magia do encantamento canalizou dentro dele. Minha temperatura voltou ao normal. Eu quase desmaiei de alívio.
Os olhos de Rá se abriram. Com fascínio horrorizado, vi quando o sangue começou a fluir em suas veias novamente, lentamente inflando-o como um balão de ar quente. Ele se virou para mim, seus olhos fora de foco e leitosos com cataratas.
― Hã?
― Ele ainda parece velho ― Carter disse nervoso. ― Não era para ele supostamente parecer jovem?
Taueret fez uma reverência para o deus do sol (que você não deve tentar em casa se você é uma hipopótama grávida) e sentiu a testa de Rá.
― Ele ainda não está totalmente ― ela disse. ― Vocês vão precisar completar a jornada da noite.
― E a terceira parte do encantamento ― Carter adivinhou. ― Ele tem mais um aspecto, certo? O escaravelho?
Bes balançou a cabeça, embora ele não parecesse extremamente otimista.
― Khepri, o besouro. Talvez se nós encontrarmos a última parte de seu espírito, ele possa nascer devidamente.
Rá abriu um sorriso desdentado.
― Eu gosto de zebras!
Eu estava tão cansada que me perguntei se tinha ouvido direito.
― Desculpa, você disse zebras?
Ele sorriu para nós como uma criança que tinha acabado de descobrir algo magnífico.
― As doninhas estão doentes.
― Ceeerto ― Carter disse. ― Talvez ele precise desses...
Carter pegou o cajado e o mangual de seu cinto. Ele ofereceu-os para Rá. O deus velho puxou o cajado para sua boca e começou a chupá-lo como uma chupeta.
Comecei a me sentir preocupada, e não só pela condição de Rá. Quanto tempo havia passado, e onde estava Vlad Menshikov?
― Vamos levá-lo para o barco. Bes, você pode...
― Sim. Com licença, lorde Rá. Vou ter que te carregar.
Ele tirou o deus sol da cama e disparamos do quarto. Rá não podia pesar muito, e Bes não teve nenhuma dificuldade apesar de suas pernas curtas. Corremos corredor abaixo, refazendo nossos passos, enquanto Rá berrava.
― Wheeee! Wheeee! Wheeee!
Talvez ele estivesse tendo uma boa hora, mas eu estava morta. Passamos por tanta dificuldade, e esse era o tipo de deus que tínhamos acordado? Carter parecia tão terrível quanto eu. Passamos correndo pelos outros deuses decrépitos, que começaram a ficar totalmente animados. Alguns apontaram e fizeram ruídos gorgolejantes. Um deus velho com cabeça de chacal sacudiu seu braço e gritou:
― Aí vem o sol! Lá vai o sol!
Invadimos o saguão e Rá disse:
― Oh-oh. Oh-oh no chão.
Sua cabeça reclinou. Achava que ele queria descer. Então percebi que ele estava olhando para alguma coisa. No chão, próximo ao meu pé, estava um colar prateado brilhante: um amuleto familiar em forma de cobra. Para alguém que estava fumegando calor alguns minutos atrás, eu de repente me senti terrivelmente fria.
― Menshikov. Ele esteve aqui,
Carter invocou sua varinha e vasculhou a sala.
― Mas onde ele está? Por que ele só derrubaria isso e fugiria?
― Ele deixou isso de propósito ― imaginei. ― Ele queria nos insultar.
Assim que eu disse, soube que era verdade. Eu quase pude ouvir Menshikov rindo enquanto continuava sua jornada rio abaixo, nos deixando para trás.
― Temos que pegar o barco! Rápido, antes...
― Sadie ― Bes apontou para a estação de enfermagem.
Sua expressão estava severa.
― Oh, não ― Taueret disse. ― Não, não, não...
No relógio de sol, a sombra da agulha estava apontando para o oito. O que significava que se nós ainda pudéssemos deixar a Quarta Casa, mesmo se conseguíssemos entrar na Quinta, Sexta, e Sétima Casa, não importava. De acordo com o que Taueret nos dissera, as portas da Oitava Casa já estariam fechadas. Não foi à toa que Menshikov tinha nos deixado aqui sem se preocupar em lutar contra nós. Nós já tínhamos perdido.

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