segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Trono de Fogo - Sadie

Capítulo 16 - ...mas não tão maus quanto os romanos

PARA SER JUSTA, AS MÚMIAS naquela sala já estavam bem arruinadas, graças à umidade da torre vazando acima. Adicionar água em múmias causa um cheiro realmente horrível.
Descemos pelos escombros e encontramos um corredor levando mais para o subsolo. Eu não podia dizer se era natural ou feito pelo homem, mas serpenteamos uns bons quarenta metros pela rocha sólida antes de chegarmos à outra câmara funerária. Essa sala não tinha sido danificada pela água. Tudo estava extraordinariamente bem preservado.
Walt trouxera lanternas, e na luz opaca, nas placas de pedra e nos nichos esculpidos ao longo das paredes, múmias pintadas de ouro brilhavam. Elas eram pelo menos cem só naquela sala, e mais corredores levavam a todas as direções.
Walt colocou a luz em três múmias deitadas juntas em um trono do centro. Seus corpos estavam completamente enrolados em linho, então elas se pareciam bastante com pinos de boliche. Suas semelhanças foram pintadas no linho em detalhes meticulosos – mãos cruzadas sobre seus peitos, joias enfeitando seus pescoços, saias egípcias e sandálias, e um esquadrão de hieróglifos protetores e imagens de deuses na borda de cada lado.
Tudo isso era arte egípcia, mas seus rostos foram feitos em um estilo completamente diferente – retratos realistas que pareciam recortar-e-colar nas cabeças das múmias.
Na esquerda estava um homem com um rosto barbado e fino e tristes olhos escuros. Na direita estava uma mulher bonita com cabelo curto ruivo.
O que realmente puxou meu coração, acho, foi à múmia do meio. Seu corpo era muito pequeno – obviamente uma criança. Seus retratos mostravam um garoto de cerca de sete anos de idade. Ele tinha os olhos do homem e o cabelo da mulher.
― Uma família ― Walt adivinhou. ― Enterrada junta.
Havia alguma coisa dobrada debaixo do cotovelo direito da criança – um cavalo de madeira pequeno, provavelmente seu brinquedo favorito. Mesmo que essa família estivesse morta por milhares de anos, não consegui não ficar com lágrimas nos olhos. Era tão cruel e triste.
― Como eles morreram? ― perguntei.
Do corredor bem na nossa frente, uma voz ecoou.
― Da doença do desperdício.
Meu cajado estava instantaneamente na minha mão. Walt apontou sua lanterna para a porta, e um fantasma entrou na sala. Pelo menos eu achei que fosse um fantasma, pois ele era transparente.
Era um homem gordo e velho com cabelo branco curto, bochechas de buldogue, e uma expressão intrigada. Ele vestia roupas do estilo romano e delineador Kohl, então se parecia bastante com Winston Churchill – se o antigo primeiro ministro vestisse uma toga de festa selvagem e pintasse seu rosto.
― Recém-mortos? ― Ele olhou para nós com cuidado. ― Não vejo recém-chegados há muito tempo. Onde estão seus corpos?
Walt e eu olhamos um para o outro.
― Na verdade ― eu disse ― estamos vestindo eles.
As sobrancelhas do fantasma levantaram.
― Di immortales! Vocês estão vivos?
― Por enquanto ― Walt respondeu.
― Então vocês trouxeram oferendas? ― o homem esfregou as mãos. ― Oh, elesdisseram que vocês viriam, mas eu esperei eras! Onde estiveram?
― Hmm...
Eu não queria desapontar o fantasma, especialmente enquanto ele estava começando a brilhar mais intensamente, o que na magia geralmente é um prelúdio de explosão.
― Talvez devêssemos nos apresentar. Eu sou Sadie Kane. Esse é Walt...
― Claro! Vocês precisam de meu nome para o encanto ― o fantasma pigarreou. ― Eu sou Appius Claudius Iratus.
Senti que era para eu estar impressionada.
― Certo. Isso não é egípcio, imagino?
O fantasma pareceu ofendido.
― Romano, claro. Por seguir esses malditos costumes egípcios todos nós acabamos aqui para começar! Como se não bastasse, eu fiquei postado nesse oásis abandonado por Deus, como se Roma precisasse de uma legião inteira para guardar só algumas explorações! Então eu tive a má sorte de adoecer. Disse à minha esposa no meu leito de morte: “Lobélia, um enterro romano à moda antiga. Não essas coisas sem sentido”. Mas não! Ela nem escutou. Tinha que me mumificar, então meu ba está preso aqui para sempre. Mulheres! Ela provavelmente voltou para Roma e morreu do jeito apropriado.
― Lobélia? ― perguntei, porque na verdade não tinha ouvido muito depois disso. Que tipo de pais chamaria sua criança de Lobélia?
O fantasma bufou e cruzou os braços.
― Mas vocês não querem me ouvir continuar, não é? Vocês podem me chamar de Cláudio Maluco. É a tradução para a sua língua.
Me perguntei como um fantasma romano sabia falar inglês – ou se eu simplesmente entendesse ele através de algum tipo de telepatia. De qualquer jeito, não fiquei aliviada de saber que seu nome era Cláudio Maluco.
― Hmm...
Walt levantou a mão.
― Você é maluco como raivoso? Ou maluco como doido?
― Sim, sim, tanto faz ― Cláudio disse. ― Agora, sobre aquelas oferendas. Vejo cajados, varinhas, e amuletos, então presumo que sejam sacerdotes com a Casa da Vida local? Bom, bom. Então saberão o que fazer.
― O que fazer! ― concordei com vontade. ― Sim, tudo!
Os olhos de Cláudio se estreitaram.
― Oh, Júpiter. Vocês são novatos, não é? O templo explicou mesmo o problema para vocês?
― Hmm...
Ele disparou para a família de múmias que estávamos olhando.
― Esse é Lucius, Flávia e o pequeno Purpens. Eles morreram da doença do desperdício. Estive aqui por tanto tempo, podia te dizer praticamente a historia de todo mundo!
― Eles falam com você?
Me afastei da família mumificada. De repente, o pequeno Purpens não parecia tão fofo. Cláudio Maluco agitou sua mão impaciente.
― Ás vezes, sim. Não tanto quanto os dias antigos. Seus espíritos dormem a maior parte do tempo, agora. O ponto é, não importa o quanto ruim a morte que essas pessoas tiveram, seu destino após a morte é pior! Todos nós, todos esses romanos vivendo no Egito, tiveram um enterro egípcio. Costumes locais, sacerdotes locais, mumificar os corpos para a próxima vida, etc. Pensávamos que estávamos ganhando com isso... duas religiões, duas vezes seguro. O problema era, vocês sacerdotes egípcios tolos não sabiam mais o que estavam fazendo! No momento em que nós romanos viemos, a maioria da sua magia de conhecimento se perdeu. Mas vocês nos disseram isso? Não! Vocês ficaram felizes de pegar nossas moedas e fazer um trabalho de má qualidade.
― Ah.
Me afastei um pouco mais do Cláudio Maluco, que agora estava brilhando muito perigosamente.
― Bem, tenho certeza que a Casa da Vida tem um número de atendimento ao cliente para isso...
― Vocês não conseguem ir até a metade do caminho com esses rituais egípcios ― ele resmungou. ― Nós acabamos com corpos mumificados e almas eternas presas a eles, e ninguém nos segue! Ninguém disse orações para nos ajudar a ir para a próxima vida. Ninguém fez oferendas para alimentar os nossos bas. Vocês sabem o quanto faminto eu estou?
― Temos alguma carne seca ― Walt ofereceu.
― Não pudemos ir para o reino de Plutão como bons romanos ― Cláudio Maluco continuou ― porque nossos corpos foram preparados para um pós-vida diferente. Não pudemos ir para o Duat, porque não tivemos os rituais egípcios apropriados. Nossas almas foram presas aqui, amarradas a esses corpos. Você tem alguma ideia do quantoentediante é aqui embaixo?
― Então, se você é um ba ― perguntei ― por que você não tem um corpo de pássaro?
― Eu te disse! Somos todos misturados, nem fantasma romano puro, nem baapropriado. Se eu tivesse asas, acredite, eu teria voado para fora daqui! A propósito, que ano é esse? Quem é o imperador agora?
― Oh, seu nome é... ― Walt tossiu, então se apressou: ― Você sabe, Cláudio, que tenho certeza que podemos te ajudar.
― Podemos? ― eu disse. ― Ah, certo! Podemos!
Walt assentiu encorajadoramente.
― A coisa é, temos que encontrar alguma coisa primeiro.
― Um pergaminho ― intervi. ― Parte do Livro de Rá.
Cláudio arranhou suas bochechas consideráveis.
― E isso vai ajudar vocês a mandar nossas almas para a próxima vida?
― Bem... ― comecei.
― Sim ― Walt respondeu.
― Provavelmente ― falei. ― Não sabemos realmente até encontrá-lo. É supostamente para acordar Rá, veja, o que vai ajudar os deuses egípcios. Acho que melhoraria suas chances de ir para a pós-vida. Além disso, estou em boas condições com os deuses egípcios. Eles vem para um chá de vez em quando. Se você nos ajudasse, eu podia conversar sobre seu caso.
Honestamente, eu só estava inventando coisas para dizer. Tenho certeza que isso vai te surpreender, mas às vezes eu me perco quando fico nervosa. [Ah, pare de rir, Carter.] De qualquer jeito, a expressão de Cláudio Maluco ficou perspicaz. Ele nos estudou como se acessasse nossas contas bancárias. Me perguntei se o Império Romano usava vendedores de bigas, e se Cláudio Maluco fora um. Imaginei ele em um comércio romano em uma toga xadrez barata: Devo ser louco para estar oferecendo bigas a esses preços!
― Em boas condições com os deuses egípcios ― ele refletiu. ― Conversar sobre meu caso, você disse.
Então ele se virou para Walt. A expressão de Cláudio estava tão calculista, tão ansiosa, que fez minha pele se arrepiar.
― Se o pergaminho que vocês procuram é antigo, poderia estar na seção mais velha das catacumbas. Alguns nativos estavam escondidos aqui, sabe, muito antes de nós romanos viermos. Seus bas todos se mudaram agora. Não há problemas para entrar no Duat para eles. Mas seus locais escondidos ainda estão intactos, muitas relíquias e assim por diante.
― Você está disposto a nos mostrar? ― Walt perguntou, com mais empolgação que eu podia ter controlado.
― Oh, sim ― Cláudio Maluco nos deu seu melhor sorriso de “vendedor de bigas”. ― E depois, vamos conversar sobre uma recompensa apropriada, hein? Venham, meus amigos. Não é longe.
Nota pessoal: Quando um fantasma oferece para te guiar para mais fundo em uma escavação escondida e seu nome inclui a palavra Maluco, é melhor dizer não.
Enquanto passávamos pelos túneis e câmaras, Cláudio Maluco nos dava comentários rápidos das várias múmias. Sobre Calígula, o comerciante da época:
― Nome horrível! Mas uma vez vocês o nomearam para um imperador, mesmo um psicótico, vocês não podem fazer muito sobre isso. Ele morreu apostando com alguém que podia beijar um escorpião.
Varens, o traficante de escravos:
― Homem nojento. Tentou entrar para o negócio de gladiador. Se você desse a um escravo uma espada, bem... você pode imaginar como ele morreu!
Otávia, a mulher do comandante da legião:
― Era completamente nativa! Teve seu gato mumificado. Ela até acreditava ter o sangue dos faraós e tentou canalizar o espírito de Ísis. Sua morte, desnecessário dizer, foi dolorosa.
Ele sorriu para mim como se fosse extremamente engraçado. Tentei não parecer horrorizada. O que mais me atingiu foi o grande número e variedade de múmias. Algumas estavam embrulhadas em ouro de verdade. Seus retratos pareciam tão naturais, seus olhos pareciam me seguir enquanto passávamos. Elas sentavam em esculturas de mármore cercadas de objetos de valor: joias, vasos, até alguns shabti.
Outras múmias pareciam como se as crianças da creche tivessem feito na aula de artes. Elas estavam grosseiramente enroladas, pintadas com hieróglifos fracos e pequenas figuras de deuses de palitos. Seus retratos não eram muito melhores do que eu teria feito – o que quer dizer, medonho. Seus corpos foram cheios profundamente em três nichos superficiais, ou simplesmente empilhados nos cantos do quarto.
Quando perguntei sobre eles, Cláudio Maluco foi desdenhoso.
― Plebeus. Imitadores. Não tem dinheiro para artistas e rituais fúnebres, então tentaram a abordagem faça-você-mesmo.
Olhei para baixo para o retrato mais próximo da múmia, seu rosto como uma imagem pintada a dedo brutamente. Me perguntei se seus filhos de luto tinham feito isso – um único presente para sua mãe. Apesar de sua qualidade ruim, percebi que era bem encantador. Eles não tinham direito e nem habilidade artística, mas fizeram o seu melhor para carinhosamente mandá-la para a pós-vida.
Da próxima vez que visse Anúbis, pediria a ele sobre isso. Uma mulher como essa merecia uma chance de felicidade no próximo mundo, mesmo que ela não pudesse pagar. Tivemos esnobismo o suficiente nesse mundo sem exportá-lo para o além.
Walt se arrastava atrás de nós, sem falar. Ele colocava sua luz em uma múmia ou outra, como se pensasse no destino de cada uma. Me perguntei se ele estava pensando no rei Tut, seu ancestral famoso, cuja tumba tinha sido uma caverna não muito diferente dessa.
Depois de vários túneis mais longos e lotados de salas de múmias, chegamos a uma câmara funerária que era claramente muito velha. As pinturas na parede tinham desbotado, mas elas pareciam mais autenticamente egípcias, com pessoal andando de lado e hieróglifos que na verdade formavam palavras, ao invés de simplesmente oferecer decoração.
Em vez de retratos faciais realistas, as múmias tinham genéricos com olhos arregalados, rostos sorridentes que eu tinha visto na maioria das máscaras de morte egípcias. Algumas tinham desintegrado em poeira. Outras estavam envoltas em sarcófagos de pedra.
― Nativos ― Cláudio Maluco confirmou. ― Nobres egípcios de antes de Roma assumir. O que vocês estão procurando pode estar em algum lugar dessa área.
Vasculhei a sala. A única outra porta estava bloqueada com pedras e escombros. Enquanto Walt começava a procurar, lembrei do que Bes tinha dito – que os primeiros dois pergaminhos de Rá poderiam me ajudar a encontrar o terceiro. Puxei-os de minha bolsa, esperando eles apontarem o caminho como um cajado de radiestesia, mas nada aconteceu.
Do outro lado da sala, Walt gritou:
― O que é isso?
Ele estava em pé em frente a algum tipo de santuário um conjunto de nicho na parede, com a estátua de um homem embrulhado como uma múmia. A figura estava esculpida na madeira, decorada com joias e metais preciosos. Suas envolturas brilhavam como pérola na luz da tocha. Ele segurava um cajado dourado com o símbolo djed prateado no topo. Ao redor de seus pés estavam vários roedores de ouro – ratos, talvez. A pele do seu rosto brilhava azul turquesa.
― É meu pai ― adivinhei. ― Er... Quis dizer Osíris, não é?
Cláudio Maluco arqueou suas sobrancelhas.
― Seu pai?
Felizmente, Walt me salvou da explicação.
― Não ― ele disse. ― Olha essa barba.
A barba da estátua era bem incomum. Era fino nas costeletas em torno das linhas de suas mandíbulas, com um tipo de reta perfeita descendo para um cavanhaque – como se alguém tivesse traçado a barba com tinta de caneca, então enfiou a caneta em seu queixo.
― E o colar ― Walt continuou. ― Tem um pendão pendurado nas costas. Não se parece com Osíris. E esses animais em seus pés... são ratos? Lembro de alguma história sobre ratos...
― Eu achava que vocês fossem sacerdotes ― Cláudio Maluco resmungou. ― Obviamente, o deus é Ptá.
― Ptá? ― Eu já tinha ouvido muitos nomes estranhos de deus egípcios, mas esse era novo para mim. ― Ptá, filho de Pitooey? Ele é deus do cuspe?
Cláudio olhou para mim.
― Você é sempre tão irreverente?
― Geralmente, mais.
― Uma novata herege ― ele disse. ― Que sorte a minha. Bem, garota, não deveria ter que ensinar a você sobre nossos próprios deuses, mas como entendo disso, Ptá era o deus dos artesãos. Nós o comparávamos com nosso deus romano Vulcano.
― Então o que ele está fazendo em uma tumba? ― Walt perguntou.
Cláudio coçou a cabeça inexistente.
― Eu nunca tive certeza, na verdade. Vocês não o veem na maioria dos ritos funerários.
Walt apontou para o cajado da estátua. Quando olhei mais de perto, percebi que o símbolo djed estava combinado com algo mais, um topo curvado que parecia estranhamente familiar.
― Esse é o símbolo was ― Walt disse. ― Quer dizer poder. Muitos deuses tinham cajados como esse, mas nunca percebi que parecia...
― Sim, sim ― Cláudio disse impaciente. ― A faca cerimonial dos sacerdotes para a abertura da boca da morte. Honestamente, vocês sacerdotes egípcios estão sem solução. Não é à toa que nós os conquistamos com tanta facilidade.
Minha mão agiu por conta própria, vasculhando minha bolsa e tirando a lâmina netjeriescura que Anúbis tinha me dado. Os olhos de Cláudio Maluco brilharam.
― Ah, então vocês não são sem solução. Isso é perfeito! Com essa faca e o encanto apropriado, vocês devem conseguir tocar minha múmia e me libertar para o Duat.
― Não ― eu disse. ― Não, é mais que isso. A faca, o Livro de Rá, essa estátua do deus do cuspe. Tudo isso se encaixa de algum jeito.
O rosto de Walt se iluminou.
― Sadie, Ptá era mais que o deus artesão, certo? Ele não era chamado de Deus da Abertura?
― Hmm... é possível.
― Acho que você nos ensinou isso. Ou talvez fosse Carter.
― Esse tipo de informação chata? Provavelmente Carter.
― Mas é importante ― Walt insistiu. ― Ptá era um deus da criação. Em algumas lendas, ele criou as almas da humanidade só falando uma palavra. Ele podia reviver qualquer alma, e abrir qualquer porta.
Meus olhos se direcionaram para a porta cheia de entulhos, a única saída da sala.
― Abrir qualquer porta?
Segurei os dois pergaminhos de Rá e caminhei na direção do túnel desmoronado. Os pergaminhos ficaram desconfortavelmente quentes.
― O último pergaminho está do outro lado ― eu disse. ― Precisamos passar desse pedregulho.
Segurei a faca escura em uma mão e os pergaminhos na outra. Falei o comando para Abrir. Nada aconteceu. Voltei para a estátua de Ptá e tentei a mesma coisa. Sem sorte.
― Alô, Ptá? ― chamei. ― Desculpe pelo comentário do cuspe. Olha, estamos tentando pegar o terceiro pergaminho de Rá, que está no outro lado, ali. Acho que você está colocado aqui para abrir um caminho. Então você se importaria?
Ainda assim, nada aconteceu. Cláudio Maluco agarrou o corte de sua toga como se quisesse nos estrangular com isso.
― Olha, eu não sei por que vocês precisam desse pergaminho para nos libertar se têm essa faca. Mas por que não tentam uma oferenda? Todos os deuses precisam de oferendas.
Walt vasculhou seus suprimentos. Ele colocou uma jarra de suco e um tipo de carne seca no pé da estátua. A estátua não fez nada. Até os ratos de ouro em seus pés aparentemente não queria nossa carne seca.
― Deus do cuspe sanguinário.
Me atirei no chão empoeirado. Eu tinha uma múmia em cada lado, mas não ligava mais. Não podia acreditar que nós chegamos tão perto do último pergaminho, depois de lutar contra demônios, deuses, e assassinos russos, e agora tínhamos sido parados por uma pilha de rochas.
― Odeio sugerir isso ― Walt disse ― mas você podia explodir isso com a magia ha-di.
― E derrubar o teto em cima de nós?
― Vocês morreriam ― Cláudio concordou. ― O que não é uma experiência que eu recomendo.
Walt se ajoelhou perto de mim.
― Tem que ser alguma coisa...
Ele fez um balanço de seus amuletos. Cláudio Maluco passeou pela sala.
― Ainda não entendi. Vocês são sacerdotes. Vocês tem uma faca cerimonial. Por que não nos libertam?
― A faca não é para você! ― vociferei. ― É para Rá!
Ambos Walt e Cláudio me encararam. Não tinha percebido antes, mas assim que falei, soube que era a verdade.
― Desculpe ― falei. ― Mas a faca é usada para a cerimônia da Abertura da Boca, para libertar uma alma. Vou precisar disso para acordar Rá. É por isso que Anúbis me deu isso.
― Você conhece Anúbis! ― Cláudio aplaudiu prazeroso. ― Ele pode libertar a todos nós! E você... ― Ele apontou para Walt. ― Você é um dos escolhidos de Anúbis, não é? Vocês pode nos dar mais facas se precisar! Senti a presença do deus ao redor assim que nos conhecemos. Vocês pegaram seu serviço quando ele percebeu que você estava morrendo?
― Espera... o quê? ― perguntei.
Walt não me olhou nos olhos.
― Não sou um sacerdote de Anúbis.
― Mas morrendo? ― engasguei. ― Como está morrendo?
Cláudio Maluco pareceu incrédulo.
― Quer dizer que não sabe? Ele tem a maldição do antigo faraó. Não víamos ele nos meus dias, mas reconheço, certamente. Ocasionalmente, uma pessoa de uma das antigas linhagens reais egípcias...
― Cláudio, cale a boca ― falei.
― Walt, fale. Como essa maldição funciona?
Na luz ofuscante, ele parecia mais magro e mais velho. Na parede atrás dele, sua sombra parecia um monstro deformado.
― A maldição de Amenófis corre pela minha família ― ele disse. ― Um tipo de doença genética. Não toda geração, não toda pessoa, mas quando ataca, é ruim. Tut morreu com dezenove. A maioria dos outros... doze, treze. Eu tenho dezesseis agora. Meu pai... meu pai tinha dezoito. Eu nunca o conheci.
― Dezoito? ― Mas isso só trouxe à tona uma série de perguntas novas, mas tentei ficar focada. ― Isso não pode ser curado...?
A culpa tomou conta de mim, e me senti como uma total imbecil.
― Ah, deus. É por isso que você estava falando com Jaz. Ela é uma curandeira.
Walt assentiu severamente.
― Achava que ela pudesse conhecer encantos que eu não tinha conseguido achar. A família de meu pai... eles perderam anos procurando. Minha mãe esteve procurando por uma cura desde que nasci. Os médicos de Seattle não podiam fazer nada.
― Médicos ― Cláudio Maluco disse com desgosto. ― Eu tinha um na legião, adorava colocar sanguessugas nas minhas pernas. Só me fez piorar. Agora, sobre essa conexão com Anúbis, e usando essa faca...
Walt balançou a cabeça.
― Cláudio, vamos tentar te ajudar, mas não com a faca. Conheço itens mágicos, tenho certeza absoluta que só podem ser usados uma vez, e não podemos apenas fazer outro. Se Sadie precisa disso para Rá, ela não pode arriscar usando isso antes.
― Desculpe! ― Cláudio rugiu.
― Se você não calar a boca ― avisei ― vou achar sua múmia e desenhar um bigode no seu retrato!
Cláudio ficou tão branco quanto... bem, um fantasma.
― Você não ousaria!
― Walt ― falei, tentando ignorar o romano ― Jaz conseguiu ajudar?
― Ela tentou seu melhor. Mas essa maldição vem desafiando curandeiros por três mil anos. Médicos modernos acham que está relacionado a anemia falciforme, mas eles não sabem. Eles tem tentando por décadas descobrir como rei Tut morreu, e não concordam. Alguns dizem veneno. Alguns dizem uma doença genética. É a maldição, mas claro que não dizem isso.
― Não tem outro jeito? Quer dizer, conhecemos deuses. Talvez eu possa te curar como Ísis fez com Rá. Se eu soubesse de seu nome secreto...
― Sadie, eu já pensei nisso ― ele disse ― já pensei em tudo. A maldição não pode ser curada. Ela só pode ser diminuída se... se eu evitar a magia. Por isso que eu entrei para os talismãs e amuletos. Eles armazenam magia avançada, então não requerem muito do usuário. Mas isso só ajuda um pouco. Eu nasci para fazer magia, então a maldição progride em mim, não importa o que eu faça. Em alguns dias isso não é tão ruim. Quando eu faço magia, ela piora.
― E quanto mais você fazer...
― Mais rápido eu morro.
Eu dei um soco em seu peito. Não podia ajudar nisso. Todo o meu sofrimento e culpa virou raiva.
― Seu idiota! Por que você está aqui, então? Você deveria ter me falado para dar o fora! Bes te avisou para ficar no Brooklyn. Por que você não ouviu?
O que eu te disse mais cedo sobre os olhos de Walt não me fazerem derreter? Retiro o que disse. Quando ele olhou para mim naquela tumba empoeirada, seus olhos estavam tão escuros, sensíveis e tristes quanto os de Anúbis.
― Vou morrer de qualquer jeito, Sadie. Eu quero que minha vida signifique alguma coisa. E... quero perder todo tempo que puder com você.
Isso me machucou mais que um soco no peito. Muito mais. Acho que eu deveria ter beijado ele. Ou possivelmente dado um tapa. Cláudio Maluco, no entanto, não era uma audiência simpática.
― Muito meigo, tenho certeza, mas vocês me prometeram um pagamento! Voltar para as tumbas romanas. Libertar meu espírito da múmia. Então libertar os outros. Depois disso, vocês podem fazer o que bem-entenderem.
― Os outros? ― perguntei. ― Você ficou maluco?
Ele me encarou.
― Pergunta idiota ― admiti. ― Mas há milhares de múmias. Só temos uma faca.
― Vocês prometeram!
― Não fizemos isso ― eu disse. ― Você disse que iria discutir uma taxa depois de encontrarmos o pergaminho. Não encontramos nada além de um beco sem saída aqui.
O fantasma rosnou, mais como um lobo que um humano.
― Se vocês não vierem conosco ― ele disse ― teremos que ir com vocês.
Seu espírito brilhou, então desapareceu em um clarão. Olhei nervosa para Walt.
― O que ele quis dizer com isso?
― Não sei ― ele respondeu. ― Mas devemos descobrir como passar pelo escombro e sair daqui, rápido.
Apesar de nossos melhores esforços, nada pareceu acontecer tão rápido. Não conseguimos mexer os detritos. Havia muitos pedregulhos. Não conseguimos cavar em volta, por cima, ou por baixo. Eu não arrisquei a magia ha-di ou usei a magia da lâmina escura.
Walt não tinha amuletos que ajudariam. Eu estava francamente perplexa. A estátua de Ptá sorria para nós, mas não ofereceu qualquer sugestão útil, não que ele parecesse interessado em sua carne seca e suco.
Finalmente, coberta de poeira, encharcada de suor, sentei em um sarcófago de pedra e examinei meus dedos cheios de bolhas. Walt se sentou perto de mim.
― Não desista. Tem que haver um jeito.
― Mesmo? ― perguntei, me sentindo especialmente ressentida. ― Como tem que haver uma cura para você? E se não tiver? E se...
Minha voz falhou. Walt virou seu rosto escondido na sombra.
― Me desculpe ― eu disse. ― Isso é terrível. Mas eu não poderia suportar se...
Eu estava tão confusa, não sabia o que dizer, ou como me sentia. Tudo o que sabia era que não queria perder Walt.
― Você quis dizer aquilo? ― perguntei. ― Quando você disse que queria perder tempo... você sabe.
Walt encolheu os ombros.
― Não é óbvio?
Não respondi, mas, por favor – nada é óbvio com garotos. Para criaturas tão simples, eles são bem desorientadores. Imaginei que estivesse corando ferozmente, então decidi mudar de assunto.
― Cláudio disse que sentia o espírito de Anúbis em você. Você esteve falando muito com Anúbis?
Walt virava seus anéis.
― Achava que talvez ele pudesse me ajudar. Talvez me concedesse um tempo extra antes... antes do fim. Eu queria ficar tempo o suficiente para te ajudar a derrotar Apófis. Então, senti como se tivesse alguma coisa com minha vida. E... tinha outras razões que eu quisesse falar com ele. Alguns... alguns poderes que desenvolvi.
― Que tipo de poderes?
Foi a vez de Walt mudar de assunto. Ele olhou para suas mãos como se tivessem virado armas perigosas.
― A coisa é, eu quase não vim pro Brooklyn. Quando eu ganhei o amuleto djed, aquela gravação que vocês mandaram, minha mãe não queria me deixar ir. Ela sabia que aprender magia faria a maldição acelerar. Parte de mim estava preocupada em ir. Parte de mim estava zangada. Parecia uma piada cruel. Vocês me ofereceram um treinamento de magia quando eu sabia que não sobreviveria muito mais que um ano ou dois.
― Um ano ou dois?
Eu respirava com dificuldade. Sempre achei que um ano era incrivelmente longo. Eu esperei para sempre ter treze. E cada ano letivo parecia uma eternidade. Mas de repente dois anos pareceram muito pouco. Eu só teria quinze, nem mesmo dirigiria ainda. Não podia imaginar o que seria saber que morreria em dois anos – possivelmente mais cedo, se eu continuasse fazendo o que nasci para fazer, praticando magia.
― Por que você veio pro Brooklyn, então?
― Tive que ir ― Walt disse. ― Vivi toda a vida sob ameaça de morte. Minha mãe fez tudo tão seriamente, tão imenso. Mas então no Brooklyn, senti como se tivesse um destino, um propósito. Mesmo se isso fizesse da maldição mais dolorosa, valeria a pena.
― Mas isso é tão injusto.
Walt olhou para mim, e percebi que ele estava sorrindo.
― Essa é a minha linhagem. Estive dizendo isso por anos. Sadie, eu quero ficar aqui. Os últimos dois meses eu senti como se estivesse realmente vivendo pela primeira vez. E tendo conhecido você...
Ele pigarreou. Ele ficava bem atraente quando ficava nervoso.
― Comecei a me preocupar com coisas pequenas. Meu cabelo. Minhas roupas. Sequer escovar meus dentes. Quer dizer, estou morrendo, e me preocupando com meus dentes.
― Você tem dentes adoráveis.
Ele riu.
― É isso que quis dizer. Alguns comentários como esse, e me sinto melhor. Todas essas coisas pequenas de repente pareceram importantes. Não sinto como se estivesse morrendo. Me sinto feliz.
Pessoalmente, me senti miserável. Por meses sonhei sobre Walt admitir que gostava de mim, mas não desse jeito, não como, posso ser honesto com você, porque estou morrendo de qualquer jeito. Alguma coisa que ele disse estava me irritando, também. Lembrei de uma lição que ensinei na casa do Brooklyn, e uma ideia começou a formar na minha mente.
― “Coisas pequenas de repente pareceram importantes” ― repeti.
Olhei para baixo para um pequeno monte de escombro que estava claramente bloqueando a porta.
― Oh, isso não pode ser tão fácil.
― O quê? ― perguntou Walt.
― Pedras.
― Eu expus a minha alma, e você está pensando em pedras?
― A porta ― eu disse. ― Magia de ligação. Você acha...
Ele piscou.
― Sadie Kane, você é um gênio.
― Bem, eu sei disso. Mas podemos trabalhar?
Walt e eu começamos recolhendo a maioria dos pedregulhos. Lascamos algumas peças das bordas largas e adicionamos para nossa pilha. Tentamos nosso melhor para fazer uma réplica em miniatura da coleção do escombro bloqueando a porta.
Minha esperança, claro, era criar uma ligação solidária, como eu tinha feito com Carter e a estatueta de cera em Alexandria. As pedras da nossa pilha de rochas vieram do túnel destruído, então nossa pilha e a original já estavam conectadas em substância, que deve ter facilitado para estabelecer uma ligação. Mas mexer alguma coisa tão grande com alguma coisa tão pequena é sempre complicado. Se não fizéssemos isso com cuidado, podíamos destruir aquela sala. Eu não sabia o quanto no fundo estávamos, mas imaginei que tinha pedra o suficiente e nos enterrar sob nossas cabeças para sempre.
― Pronto? ― perguntei.
Walt assentiu e puxou sua varinha.
― Oh, não, garoto da maldição ― eu disse. ― Você só assiste atrás de mim. Se o teto começar a cair e precisarmos de um escudo, esse é seu trabalho. Mas você não vai fazer nenhuma mágica a não ser que seja absolutamente necessário. Vou limpar a porta.
― Sadie, eu não sou fraco ― ele se queixou. ― Não preciso de uma protetora.
― Burrice ― eu disse. ― Isso é arrogância machista, e todos os garotos gostam de ser cuidados.
― O quê? Deus, você é irritante!
Sorri suavemente.
― Você que queria perder tempo comigo.
Antes que ele pudesse protestar, levantei minha varinha e comecei o encanto. Imaginei uma ligação entre nossa pequena pilha de escombro e os detritos na porta. Imaginei isso no Duat, eles eram um e o mesmo. Falei um comando de unir.
― Hi-nehm.




O símbolo queimou levemente sobre nossa pilha de escombro em miniatura. Lentamente e cuidadosamente, afastei algumas pedras para longe da pilha. Os detritos no corredor ribombaram.
― Está funcionando ― Walt disse.
Não ousei olhar. Fiquei focada na minha tarefa – mover as pedras um pouco de cada vez, dispersando a pilha em montes menores. Era quase tão difícil quando mover pedregulhos de verdade. Fiquei atordoada.
Quando Walt colocou a mão no meu ombro, não tinha ideia de quanto tempo tinha passado. Estava tão exausta que não podia ver direito.
― Está feito ― ele disse. ― Você foi ótima.
A porta estava limpa. Os escombros tinham sido empurrados para os cantos do quarto, onde estavam colocadas em pilhas menores.
― Bom trabalho, Sadie.
Walt se inclinou e me beijou. Ele provavelmente só estava expressando apreciação ou felicidade, mas o beijo não me fez sentir menos tonta.
― Hum ― eu disse — de novo com incríveis habilidades verbais.
Walt me ajudou a ficar de pé. Entramos no corredor para o próximo quarto. Por todo o trabalho que tínhamos feitos para entrar ali, o quarto não era muito empolgante, só uma câmara de cinco metros quadrados com nada dentro exceto uma caixa vermelha lacrada em um pedestal de arenito. No topo da caixa estava uma escultura de madeira em forma de punho como um cachorro galgo demoníaco com orelhas compridas – o animal Set.
― Oh, isso não pode ser bom ― Walt disse.
Mas eu caminhei direto para a caixa, abri a tampa, e peguei o pergaminho de dentro.
― Sadie! ― Walt gritou.
― O quê? ― me virei. ― É a caixa de Set. Se ele quisesse me matar, teria feito isso em São Petersburgo. Ele quer que eu tenha o pergaminho. Provavelmente acha que vai ser engraçado ver me matando tentando acordar Rá.
Olhei para cima no teto e gritei:
― Não é mesmo, Set?
Minha voz ecoou através das catacumbas. Eu não tinha mais o poder de invocar o nome secreto de Set, mas ainda sentia como se tivesse sua atenção. O ar ficou mais nítido. O chão tremeu como se alguma coisa embaixo, alguma coisa muito grande, estivesse rindo.
Walt expirou.
― Gostaria que você não se arriscasse assim.
― Isso de um garoto que está disposto a morrer para perder tempo comigo?
Walt fez um arco exagerado.
― Retiro o que disse, senhorita Kane. Por favor, continue tentando se matar.
― Obrigada.
Olhei para os três pergaminhos em minhas mãos – o Livro de Rá inteiro, junto provavelmente pela primeira vez desde que Cláudio Maluco vestiu pequenas fraldas romanas. Eu tinha coletado os pergaminhos, feito o impossível, triunfado sobre todas as expectativas. No entanto, não seria suficiente até que conseguíssemos encontrar Rá e acordá-lo antes de Apófis se levantar.
― Não temos tempo para desperdiçar ― eu disse. ― Vamos...
Um gemido profundo ecoou pelos corredores, como se alguma coisa – ou uma série de algumas coisas – tivesse acordado em um mau humor danado.
― Sair daqui ― Walt disse. ― Ótima ideia.
Enquanto corríamos pela câmara anterior, olhei para a estátua de Ptá. Fiquei tentada a pegar de volta a carne e o suco, só para ser má, mas decidi evitar. Acho que não é sua culpa, pensei. Não deve ser fácil ter um nome como Ptá. Aproveite o lanche, mas eu gostaria que você nos ajudasse.
Corremos. Não foi fácil lembrar nosso caminho. Duas vezes tivemos que voltar antes de encontrar a sala com a família de múmias onde tínhamos conhecido Cláudio Maluco. Eu estava prestes a disparar cegamente pela câmara e entrar no último túnel, mas Walt me segurou e salvou minha vida. Ele apontou sua lanterna para a saída distante, então nos corredores de cada lado.
― Não ― eu disse. ― Não, não, não.
Todas as três portas estavam entupidas com figuras humanas enroladas em linho. Elas se apertaram juntas na medida em que eu podia ver para baixo em cada corredor. Algumas ainda estavam completamente delimitadas. Elas pularam e se embaralharam e gingavam para frente como se fossem casulos gigantes envolvidos em uma corrida de saco.
Outras múmias tinham parcialmente se libertado. Elas se perduravam nas pernas magras, mãos como ramos secos arranhando suas roupas. Mas ainda vestiam seus retratos de rosto pintado, e o efeito foi macabro – máscaras realistas sorrindo serenamente no topo de espantalhos vivos de ossos e linho pintado.
― Odeio múmias ― choraminguei.
― Talvez um encanto de fogo ― Walt disse. ― Elas devem queimar fácil.
― Vamos nos queimar, também! Aqui é muito fechado.
― Tem uma ideia melhor?
Eu queria chorar. A liberdade tão perto... assim como eu temia, estávamos presos por um aglomerado de múmias. Mas essas eram piores que múmias de filme. Elas eram silenciosas e lentas, pateticamente coisas arruinadas que uma vez foram humanas. Uma das múmias no chão agarrou minha perna. Antes de eu mesmo poder gritar, Walt estendeu a mão e bateu a coisa no pulso. A múmia virou pó na hora. Eu o encarei com espanto.
― É esse o poder que você estava preocupado? Isso é brilhante! Faça isso de novo!
Imediatamente me senti terrível por sugerir isso. O rosto de Walt estava tenso com pânico.
― Não posso fazer isso mil vezes mais ― ele disse lamentavelmente. ― Quem sabe se...
Então, do trono central, a família de múmias começou a se mexer. Não vou mentir. Quando a múmia do tamanho de uma criança do pequeno Pur-pens levantou, eu quase tive um acidente que teria arruinado meus novos jeans. Se meu ba pudesse ter deixado minha pele e voado longe, ele faria isso.
Agarrei o braço de Walt. No fim longe da sala, o fantasma de Cláudio Maluco entrou à vista. Enquanto ele caminhava na nossa direção, o resto das múmias começou a se mexer.
― Vocês devem ser honrados, meus amigos ― ele nos deu um sorriso maluco. ― É preciso muita emoção para o ba voltar para seus antigos corpos murchos. Mas nós simplesmente não podemos deixar vocês irem até nos libertarem para a pós-vida. Usem a faca, façam seus encantos, e podem ir.
― Não vamos libertar vocês todos! ― gritei.
― Uma pena ― Cláudio replicou. ― Então vamos ter que pegar a faca e libertar a nós mesmos. Acho que mais dois corpos nas catacumbas não farão diferença.
Ele disse algo em latim, e todas as múmias vaguearam na nossa direção, se embaralhando e tropeçando, caindo e rolando. Algumas desmoronaram em pedaços enquanto tentavam caminhar. Outras caíram e foram pisoteadas por seus parceiros. Mas mais vieram para frente.
Nós voltamos para o corredor. Eu tinha o cajado em uma mão. Com a outra, apertei firme a mão de Walt. Nunca fui boa em invocar fogo, mas controlei meu cajado em chamas até o fim.
― Vamos tentar do seu jeito ― falei a Walt.
― Queime-os e corra.
Eu sabia que era uma má ideia. Em aposentos fechados, uma chama nos machucaria tanto quanto as múmias. Iríamos morrer por inalar fumaça ou sufocados ou queimados. Mesmo se conseguíssemos voltar para as catacumbas, só iríamos nos perder e correr para mais múmias. Walt acendeu seu próprio cajado.
― No três ― sugeri.
Olhei com horror para a múmia da criança vindo na nossa direção, o retrato de um garoto de sete anos sorrindo para mim além do túmulo.
― Um, dois ― hesitei.
As múmias estavam só a um metro de distância, mas atrás de mim veio um novo som, como água correndo. Não, algo deslizando. Um conjunto de coisas vivas indo em nossa direção, possivelmente insetos ou...
― O três vem depois ― Walt disse nervoso. ― Vamos queimá-los ou não?
― Abrace as paredes! ― gritei.
Eu não sabia exatamente o que estava vindo, mas sabia que não queria estar em seu caminho. Puxei Walt contra a pedra e me achatei perto dele, nossos rostos pressionados contra a parede, enquanto uma onda de garras e pelo batia em nós e capotava sobre nossas costas: um exército de roedores afundando de profundidade ao longo do chão e correndo horizontalmente pelas paredes, desafiando a gravidade.
Ratos. Milhares de ratos. Eles correram direto para nós, não fazendo dano exceto pelos arranhões de garras. Não tão ruim, você deve achar, mas você já esteve em pé e pisoteado por um exército de ratos imundos? Não pague para a experiência.
Os ratos fluíram da câmara funerária. Eles rasgaram as múmias, agarrando e mastigando e guinchando em sua minúscula batalha. As múmias se contorciam debaixo do ataque, mas não tiveram uma chance. O quarto estava em um furação de pelos, dentes e linho picado. Era como os desenhos animados antigos de cupins fervilhando sobre a madeira e dissolvendo-a a nada.
― Não! ― gritou Cláudio Louco. ― Não!
Mas ele era o único gritando. As múmias murcharam silenciosamente debaixo da fúria dos ratos.
― Vou acabar com vocês! ― Cláudio rosnou enquanto seu espírito começava a tremeluzir. ― Vou ter minha vingança!
E com um brilho final do mal, sua imagem desvaneceu e se foi. Os ratos dividiram suas forças e correram pelos três corredores, mastigando as múmias enquanto elas fugiam, até a sala ficar silenciosa e vazia, o chão cheio de poeira, farrapos de linho, e alguns ossos.
Walt parecia abalado. Caí contra ele e o abracei. Eu provavelmente chorei de alívio. Estava tão feliz de segurar um ser humano vivo e quente.
― Está tudo bem ― ele acariciou meus cabelos, que me fez sentir bem. ― Essa... essa foi a historia sobre ratos.
― O quê? ― Me controlei.
― Eles... eles salvaram Mênfis. Um exército inimigo sitiou a cidade, e as pessoas rezaram por ajuda. Seu deus patrono mandou uma horda de ratos. Eles comeram as cordas de arco dos inimigos, suas sandálias, tudo o que conseguiam mastigar. Os atacantes tiveram que se retirar.
― O deus patrono — você que dizer...
― Eu.
Da saída do corredor da sala, um fazendeiro egípcio entrou em vista. Ele vestia roupas sujas, uma cabeça envolvida e sandálias. Segurava uma espingarda ao seu lado. Ele sorriu para nós, e enquanto se aproximava, vi que seus olhos eram completamente brancos. Sua pele tinha um tom levemente azulado, como se ele estivesse sufocando e realmente aproveitando experiência.
― Desculpe por não ter respondido mais cedo ― disse o fazendeiro. ― Eu sou Ptá. E não, Sadie Kane, não sou o deus do cuspe. Por favor, se sentem ― o deus falou. ― Desculpem pela bagunça, mas o que esperavam dos romanos? Eles nunca se limpam.
Nem Walt nem eu sentamos. Um deus sorridente com uma espingarda era um pouco desconcertante.
― Ah, muito bem ― Ptá piscou com os olhos brancos vazios. ― Estão com pressa.
― Desculpe ― eu disse. ― Você é um fazendeiro?
Ptá olhou para baixo para suas vestes sujas.
― Só estou pegando emprestado esse pobre coitado por um minuto, entende. Achei que vocês não ligariam, já que ele estava descendo para cá para atirar em vocês por destruir sua torre de água.
― Não, continue ― eu disse. ― Mas as múmias... o que vai acontecer com seus ba?
Ptá riu.
― Não se preocupe com elas. Agora que seus restos estão destruídos, imagino que seus ba vão ir para qualquer lugar pós-vida romano que as esperam. Como deve ser.
Ele colocou a mão sobre sua boca e arrotou. Uma nuvem de gás branco ondulou para fora, coalesceu em um ba brilhante, e voou pelo corredor. Walt apontou para o espírito pássaro.
― Você acabou de...
― Sim ― Ptá sorriu. ― Eu tento não falar para todos. Como eu os criei, entende, com palavras. Eles podem me dar problemas. Uma vez por diversão eu compus a palavra “ornitorrinco” e...
Instantaneamente, uma coisa com bico de pato e peluda apareceu no chão, arranhando em pânico.
― Oh, queridos ― Ptá disse. ― Sim, foi exatamente isso que aconteceu. O deslize da língua. Realmente o único jeito de uma coisa como essa ser criada.
Ele ondulou a mão, e o ornitorrinco desapareceu.
― De qualquer maneira, tenho que ser cuidadoso, então não posso falar muito. Estou feliz que tenham encontrado o Livro de Rá! Sempre gostei do meu velho. Eu teria ajudado mais cedo, quando pediu, mas demorou um pouco para chegar aqui do Duat. Também, posso abrir só uma única porta por cliente. Pensei que tinham aquele corredor bloqueado bem na mão. Mas há uma porta muito mais importante da qual vocês precisam.
― Desculpe? ― perguntei.
― Seu irmão ― Ptá disse. ― Ele está em sérios problemas.
Estava tão exausta, suja, e coberta de arranhões de ratos, que as novidades fizeram meus nervos formigarem. Carter precisava de ajuda. Eu tinha que salvar o ridículo do meu irmão.
― Você pode nos mandar para lá? ― perguntei.
Ptá sorriu.
― Pensei que nunca pediria.
Ele apontou para a parede mais próxima. As pedras dissolveram em um portal de turbilhão de areia.
― E, minha querida, algumas palavras de aviso.
Os olhos leitosos de Ptá me estudaram.
― Coragem. Esperança. Sacrifício.
Não tinha certeza se ele estava lendo aquelas qualidades em mim, ou me dando uma conversa estimulante, ou talvez criando as características que eu precisava, do jeito que ele criou o ba e o ornitorrinco. Qualquer que fosse o caso, de repente me senti mais quente, cheia de energia nova.
― Você está começando a entender ― ele me disse. ― Palavras são a fonte de todo o poder. E nomes são mais que uma coleção de letras. Muito bem, Sadie. Você ainda pode ter sucesso.
Olhei para o funil de areia.
― Com o que vamos dar de cara no outro lado?
― Inimigos e amigos ― Ptá disse. ― Mas quem é quem, não posso dizer. Se sobreviverem, vão para o topo da Grande Pirâmide. Pode ser um bom ponto de entrada para o Duat. Quando você ler o Livro de Rá...
Ele engasgou, se dobrando e derrubando sua espingarda.
― Tenho que ir ― ele disse, se endireitando com um grande esforço. ― Esse hospedeiro não consegue mais aguentar. Mas, Walt... ― ele sorriu suavemente. ― Obrigado pela carne seca e o suco. Há uma resposta para você. Não é uma que irá gostar, mas é o melhor jeito.
― Do que você está falando? ― Walt perguntou. ― Que resposta?
O fazendeiro piscou. De repente seus olhos ficaram normais. Ele olhou para nós com surpresa, então gritou alguma coisa em árabe e levantou sua arma. Agarrei a mão de Walt, e juntos pulamos dentro do portal.

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