quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A Sombra da Serpente - Sadie

Capítulo 17 - A Casa do Brooklyn vai para a guerra

Eu fiquei triste por sair da Terra dos Demônios.
[Sim, Carter, eu estou falando muito sério.]
Afinal, eu tinha tido uma passagem bastante satisfatória por lá. Eu tinha salvado Zia e meu irmão daquele fantasma horrível, Setne. Tinha capturado a Sombra da Serpente. Eu tinha visto o Comando da Brigada dos Deuses Idosos em toda a sua glória, e mais que tudo, tinha me reunido com Bes. Porque eu não teria boas lembranças do lugar? Eu poderia até passar um feriado na praia lá qualquer dia, alugar uma cabana no Mar do Caos. Porque não?
A onda de atividade também tinha me distraído de pensamentos menos agradáveis. Mas uma vez que nós tínhamos chegado à margem do rio e que eu tive uns poucos momentos para respirar, comecei a pensar sobre como aprendi o feitiço para resgatar a sombra de Bes. Minha alegria se tornou desespero.
Walt, ah, Walt. O que você fez?
Eu me lembrei de como ele tinha ficado frio e sem vida, deitado em meus braços no meio das ruínas de tijolos de barro. Então de repente ele tinha aberto os olhos e suspirado.
Olhe, ele tinha me dito.
Na superfície, eu tinha visto Walt como sempre eu o tinha conhecido. Mas no Duat... o deus garoto Anúbis tremeluzia, sua áurea cinza de fantasma sustentando a vida de Walt.
Ainda sou eu, eles disseram juntos. A voz dupla deles tinha feito minha pele formigar.Vou te encontrar ao nascer do sol, eles tinham me prometido, no Primeiro Nomo, se você estiver certa de que não me odeia.
Eu odiava ele? Ou melhor, eles? Deuses do Egito, eu não tinha certeza nem de como chamá-los mais! Certamente não sabia como eu me sentia, ou se eu queria vê-lo novamente.
Tentei colocar esses pensamentos de lado. Nós ainda precisávamos derrotar Apófis. Mesmo com a sombra dele capturada, não havia garantia de que nós teríamos sucesso em realizar o feitiço. Duvidava que Apófis fosse ficar de braços cruzados enquanto nós tentávamos obliterá-lo do universo. E ainda era inteiramente possível que a execração pudesse requerer mais magia do que Carter e eu tínhamos combinadas. Se nós queimássemos, meu dilema com Walt dificilmente seria um problema.
No entanto, eu não conseguia parar de pensar nele/neles – o modo como seus calorosos olhos castanhos tinham se mesclado tão perfeitamente, como o sorriso natural de Anúbis tinha ficado no rosto de Walt.
Argh! Isso não estava ajudando.
Nós subimos a bordo do barco do sol – Carter, Zia, Bes e eu. Eu fiquei aliviada, além do que se possa dizer com palavras, que meu anão favorito fosse nos acompanhar na nossa batalha final. Eu precisava de um confiável deus feio na minha vida naquele momento.
No barco, nosso antigo inimigo Sobek me olhou com um sorriso de Crocodilo, o que eu supunha que era o único tipo de sorriso que ele tinha.
— Então... as pequenas crianças Kane retornaram.
— Então — mandei de volta — o deus crocodilo quer levar um chute nos dentes.
Sobek jogou para trás sua escamosa cabeça verde e gargalhou.
— Muito bem, garota! Você tem ferro nos ossos.
Supus que aquilo foi dito como um elogio. Escolhi zombar dele e me virei.
Sobek só respeitava a força. No nosso primeiro encontro, ele afundou Carter dentro do Rio Grande e me chutou através da fronteira do Texas com o México. Nós não éramos muito próximos desde então. Pelo o que ouvi, ele só tinha concordado em se unir ao nosso lado porque Hórus e Ísis o tinham ameaçado com lesões corporais extremas. Isso não dizia muito sobre sua lealdade.
A tripulação de esferas brilhantes flutuou em volta de mim, cantarolando em minha mente – pequenos cumprimentos felizes: Sadie. Sadie. Sadie. Uma vez, eles tambémtinham querido me matar; mas desde que eu acordei seu antigo mestre Rá, eles se tornaram bastante amigáveis.
— Sim, olá garotos — murmurei. — Estou encantada por vê-los. Desculpem-me.
Eu segui Carter e Zia até o Trono de Fogo. Rá nos deu um sorriso desdentado. Ele ainda estava tão velho e enrugado como sempre, mas alguma coisa parecia diferente nos seus olhos. Antes seu olhar sempre deslizava por mim, como se eu fosse parte do cenário. Agora, eles estavam realmente focados no meu rosto.
Ele estendeu um prato de macaroon e biscoitos de chocolate, os quais estavam meio derretidos por causa do calor do trono dele.
— Biscoitos? Ebaaa!
— Ah, obrigado — Carter pegou um macaroon.
Naturalmente, eu optei pelo chocolate. Eu não comia comida de verdade desde que nós deixamos a tribunal do nosso pai. Rá abaixou o prato e se levantou sobre seus pés. Bes tentou ajudar, mas Rá acenou dizendo que não. Ele cambaleou em direção a Zia.
— Zia — ele cantarolou alegremente, como se estivesse cantando uma canção de ninar. — Zia, Zia, Zia.
Com um sobressalto, percebi que era a primeira vez que eu ouvia ele usar o nome real dela.
Ele estendeu a mão para tocar o amuleto de escaravelho. Zia se afastou nervosa. Ela olhou para Carter procurando por segurança.
— Está tudo bem — Carter prometeu.
Ela respirou fundo, depois tirou o colar e o pressionou dentro da mão do velho deus. Um brilho quente saiu do escaravelho, envolvendo Zia e Rá em uma brilhante luz dourada.
— Bom, bom — Rá disse. — Bom...
Eu esperava que o velho deus melhorasse. Em vez disso, ele começou a se desfazer. Isso foi uma das coisas mais alarmantes que eu já tinha visto no meu alarmante dia. Primeiro suas orelhas caíram e se tornaram pó. Depois sua pele começou a se tornar areia.
— O que está acontecendo? — chorei. — Nós não deveríamos fazer alguma coisa?
Os olhos de Carter se arregalaram de horror. A boca dele estava aberta, mas nenhuma palavra saia.
O rosto sorridente de Rá se dissolveu. Seus braços e pernas racharam em pedaços como uma escultura de areia ressecada. Suas partículas se espalharam pelo Rio da Noite.
Bes grunhiu.
— Isso foi rápido — ele não parecia particularmente chocado. — Usualmente demora mais.
Eu o encarei.
— Você já viu isso antes?
Bes me deu um sorriso torto.
— Ei, eu pagava alguns turnos trabalhando no barco do sol nos dias antigos. Nós todos vimos Rá ir através de seu ciclo. Mas isso foi há muito, muito tempo atrás. Olhe.
Ele apontou para Zia.
O escaravelho tinha desaparecido das mãos dela, mas ela ainda irradiava luz dourada ao seu redor, como uma aureola de corpo inteiro. Ela se virou para mim com um sorriso brilhante. Eu nunca a tinha visto tão a vontade, tão feliz.
— Eu vejo agora.
A voz dela estava muito mais rica, um coro de tons descendo em oitava através do Duat.
— Isso é tudo sobre equilíbrio, não é? Meus pensamentos e os dele. Ou os meus e os dela...?
Ele riu como uma criança que anda de bicicleta pela primeira vez.
— Renascido finalmente! Vocês estavam certos, Sadie e Carter! Depois de tantos éons na escuridão, eu estou finalmente renascido através da compaixão de Zia. Eu tinha me esquecido como era ser jovem e poderoso.
Carter deu um passo pra trás. Eu não podia culpá-lo. A lembrança da fusão de Walt e Anúbis ainda estava fresca na minha mente, então eu tinha uma ideia do que Carter estava sentindo; era mais do que um pouco estranho ver Zia falar de si mesma na terceira pessoa.
Eu baixei minha visão mais fundo no Duat. No lugar de Zia estava de pé um homem alto em uma armadura de couro e bronze. De alguns modos, ele ainda parecia com Rá. Ele ainda era careca. Seu rosto ainda era enrugado e desgastado pela idade, e ele ainda tinha o mesmo sorriso bondoso (só que com dentes). Agora, porém, sua postura estava ereta. Seu corpo estava musculoso. Sua pele brilhava como ouro derretido. Ele era o avô mais forte e dourado do mundo.
Bes se ajoelhou.
— Meu senhor Rá.
— Ah, meu pequeno amigo — Rá despenteou os cabelos do deus anão. — Se levante! É bom ver você.
Na proa, Sobek chamou a atenção, segurando seu longo cajado de ferro como um rifle.
— Senhor Rá! Eu sabia que retornaria.
Rá riu.
— Sobek, seu réptil velho. Você me comeria no jantar se pensasse que conseguiria escapar disso. Hórus e Ísis te mantiveram na linha?
Sobek limpou sua garganta.
— É como diz, meu rei — ele deu de ombros. — Eu não consigo suprimir minha natureza.
— Não importa — Rá respondeu. — Nós vamos precisar da sua força logo, logo. Estamos nos aproximando do nascer do sol?
— Sim, meu rei — Sobek apontou para a nossa frente.
Eu vi a luz no fim do túnel – literalmente. Quanto mais nos aproximávamos do fim do Duat, o Rio da Noite se alargava. Os portões finais estavam mais ou menos a um quilômetro a frente, flanqueados por estátuas do deus sol. Depois dele, a luz do sol brilhava. O rio se transformava em nuvens e vertia no céu da manhã.
— Muito bom — Rá disse. — Leve-nos para Gizé, Senhor Sobek.
— Sim, meu rei.
O deus crocodilo enfiou seu cajado de ferro na água, nos levando como um gondoleiro.
Carter ainda não tinha se movido. O pobre garoto encarava o deus sol com um misto de fascínio e choque.
— Carter Kane — Rá disse com afeição — eu sei que é difícil para você, mas Zia se importa muito com você. Os sentimentos dela não mudaram nada.
Eu tossi.
— Ah... um pedido? Por favor, não beije ele.
Rá riu. A imagem dele mudou, e eu vi Zia na minha frente de novo.
— Tudo bem Sadie — ela prometeu. — Agora não seria momento para isso.
Carter se virou desajeitadamente.
— Hum... Eu vou... estar ali.
Ele bateu no mastro e em seguida foi cambaleando em direção à popa do barco.
Zia franziu a testa preocupada.
— Sadie, vai cuidar dele, sim? Nós vamos chegar ao mundo mortal em breve. Eu devo ficar vigilante.
Pela primeira vez eu não discuti. Fui checar meu irmão.
Ele estava sentado no leme, em posição fetal, com a cabeça entre os joelhos.
— Tudo bem? — perguntei.
Pergunta estúpida, eu sei.
— Ela é um homem velho — ele murmurou. — A garota de quem eu gosto é um homem velho amarelo com a voz mais grossa que a minha. Eu a beijei na praia e agora...
Eu me sentei perto dele. As esferas de luz flutuavam em torno de nós excitadas pelo navio estar se aproximando da luz do dia.
— Beijou ela, é? Detalhes, por favor.
Eu pensei que ele podia se sentir melhor eu se o fizesse falar. Eu não tenho certeza se funcionou, mas pelo menos, isso tirou a cabeça dele do meio dos joelhos. Ele me contou sobre a viagem dele com Zia pelo serapeum, e a destruição do Rainha Egípcia.
Rá – quero dizer Zia – estava na proa entre Sobek e Bes, tomando muito cuidado para não olhar para a gente.
— Então você disse a ela que tudo estava bem — resumi. — Você a encorajou a ajudar Rá. E agora você se arrependeu.
— Você me culpa? — ele perguntou.
— Nós dois mesmos já hospedamos deuses. Isso não tem que ser permanente. E ela ainda é a Zia. Além disso, nós estamos inda para uma batalha. Se nós não sobrevivermos, você quer passar suas últimas horas se mantendo afastado dela?
Ele estudou minha expressão.
— O que aconteceu com Walt?
Ah... touché. Algumas vezes, parecia que Carter sabia meu nome secreto tanto quanto eu sabia o dele.
— Eu... eu não sei exatamente. Ele está vivo, mas só porque...
— Ele está hospedando Anúbis — Carter terminou.
— Você sabia?
Ele balançou a cabeça.
— Não até eu ver aquele olhar no seu rosto. Mas isso faz sentido. Walt tem um talento especial para... o que quer que seja aquilo. Aquele toque obliterador cinza. Magia de morte.
Eu não podia responder. Eu tinha vindo para confortar Carter e assegurar a ele que tudo ficaria bem. Agora, de alguma forma, ele tinha virado a mesa.
Ele pôs sua mão brevemente sobre seu joelho.
— Isso pode funcionar, irmãzinha. Anúbis pode manter Walt vivo. Walt pode viver uma vida normal.
— Você chama aquilo de normal?
— Anúbis nunca teve um hospedeiro mortal. Essa é a chance dele de ter um corpo verdadeiro, de ser de carne e osso.
Eu estremeci.
— Carter, isso não é como a situação de Zia. Ela pode se separar quando quiser.
— Então deixe-me entender isso direito — Carter disse. — Os dois caras que você gosta – um que estava morrendo e o outro que estava fora de alcance por ser um deus – são agora um único cara, que não está morrendo e fora de alcance. E você está reclamando.
— Não me faça soar ridícula! — gritei. — Eu não sou ridícula!
Os três deuses olharam para mim. Tudo bem. Certo. Isso soa ridículo.
— Olha — Carter disse — vamos concordar em pirar sobre isso depois, ok? Assumindo que não morreremos.
Eu respirei rápido.
— Concordo.
Ajudei meu irmão a levantar. Nós nos juntamos aos deuses na proa do barco enquanto o barco do sol emergia do Duat.
O Rio da Noite desapareceu atrás de nós, e nós navegamos através da nuvens.
A paisagem egípcia espalhava-se à nossa frente, vermelha, dourada e verde na madrugada. No oeste, tempestades de areia rodopiavam pelo deserto. No leste, o Nilo serpenteava seu caminho através do Cairo. Diretamente abaixo de nós, na borda da cidade, três pirâmides se erguiam nas planícies de Gizé.
Sobek bateu seu cajado contra a proa do barco. Ele gritou como um arauto:
— Finalmente, Rá realmente está de volta! Deixem as pessoas se alegrarem! Deixem suas legiões de adoradores se reunirem!
Talvez Sobek tenha dito isso como uma formalidade, ou para puxar o saco de Rá, ou possivelmente só para fazer o velho deus sol se sentir pior. Qualquer que fosse o caso, ninguém abaixo de nós estava se reunindo. Definitivamente, ninguém estava festejando. Eu tinha visto essa paisagem muitas vezes, mas alguma coisa estava errada. Incêndios queimavam pela cidade. As ruas pareciam estranhamente desertas. Não haviam turistas, nenhum humano estava em volta das pirâmides. Eu nunca tinha visto Gizé tão vazio.
— Onde estão todos? — perguntei.
Sobek sibilou com nojo.
— Eu deveria ter sabido. Os fracos seres humanos estão se escondendo, ou foram afugentados pela instabilidade no Egito. Apófis planejou isso bem. A sua escolha de campo de batalha vai estar limpa de mortais aborrecedores.
Eu estremeci. Tinha ouvido sobre os problemas no Egito ultimamente, juntamente com os desastres naturais, mas eu não tinha imaginado que isso fosse parte do plano de Apófis.
Se esse fosse o campo de batalha que ele escolheu...
Eu olhei melhor para as planícies de Gizé. Perscrutando o Duat, percebi que a área estava completamente vazia. Circundando a base das Grandes Pirâmides estava uma enorme serpente formada por turbilhões de areia vermelha e escuridão. Seus olhos eram pontos de luz ferventes. Suas presas eram garfos de relâmpagos. O que quer que ela tocasse, fervia com o deserto, e as próprias pirâmides tremeram com uma ressonância horrível. Uma das mais antigas estruturas da história da humanidade estava para desabar.
Mesmo do alto, eu podia sentir a presença de Apófis. Ele irradiava pânico e medo tão fortemente, que eu podia sentir os mortais através do Cairo encolhidos em suas casas, com medo de sair. Toda a terra do Egito estava segurando o fôlego.
Enquanto nós assistíamos, a gigante cabeça de cobra de Apófis se ergueu do chão. Ela se chocou contra o chão do deserto, engolindo uma área do tamanho de uma casa na areia. Então ele recuou como se tivesse sido picado, e sibilou com raiva.
No início, eu não podia dizer contra o que ele estava lutando. Convoquei a visão da ave de rapina de Ísis e vi uma pequena ágil com um collant de pele de leopardo, com facas brilhando em ambas as mãos enquanto ela saltava com velocidade e agilidades desumanas, atacando a serpente e fugindo de sua mordida. Sozinha, Bastet estava segurando Apófis na baía.
Eu senti um gosto de moedas antigas na minha boca.
— Ela está sozinha. Onde estão os outros?
— Eles esperam pelas ordens do faraó — Rá disse. — O Caos os deixou divididos e confusos. Eles não vão marchar para a batalha sem um líder.
— Então os lidere! — exigi.
O deus sol se virou. Sua forma tremulou, e por um momento eu vi Zia na minha frente em vez dele. Eu me perguntei se ela iria acabar comigo. Eu tinha um pressentimento de que isso seria bem fácil para ela agora.
— Eu vou enfrentar meu antigo inimigo — ela disse calmamente, ainda com a voz de Rá. — Eu não vou deixar minha leal gata lutar sozinha. Sobek, Bes, venham comigo.
— Sim, meu rei — Sobek respondeu.
Bes estalou os dedos. Sua roupa de motorista desapareceu, no lugar ficou somente sua sunga Orgulho Anão.
— Caos... esteja pronto para conhecer o Feio.
— Espere — Carter disse. — E quanto a nós? Nós temos a sombra da serpente.
O barco estava descendo rapidamente agora, indo pousar logo a sul das pirâmides.
— Prioridades primeiro, Carter — Zia apontou para a grande esfinge, que estava a trezentos metros das pirâmides. — Você e Sadie tem que ajudar seu tio.
Entre as patas da esfinge, uma linha de fumaça se erguia da entrada de um túnel. Meu coração parou. Zia tinha nos dito uma vez como aquele túnel tinha sido selado para que arqueólogos não encontrassem o caminho para o Primeiro Nomo. Obviamente, o túnel tinha sido aberto à força.
— O Primeiro Nomo está para cair — Zia falou.
Sua forma mudou novamente, e o deus sol estava em pé na minha frente. Eu realmente queria que ele/ela/eles pudessem se manter de um jeito.
— Eu vou segurar Apófis enquanto eu puder — Rá anunciou. — Mas se vocês não ajudarem o seu tio e seus amigos imediatamente, não vai haver ninguém para salvar. A Casa da Vida vai desmoronar.
Eu pensei no pobre Amós e nos jovens iniciados, cercados por uma multidão de magos rebeldes. Nós não podíamos deixá-los serem abatidos.
— Ela está certa. Er, ele está certo. O que quer que seja.
Carter concordou relutantemente.
— Vai precisar disso, senhor Rá.
Ele ofereceu ao deus sol o cajado e o mangual, mas Rá balançou a cabeça. Ou Zia balançou a cabeça. Deuses do Egito, aquilo era confuso!
— Quando eu te disse que os deuses estavam esperando pelo faraó deles — Rá continuou — eu quis dizer você, Carter Kane, o Olho de Hórus. Eu estou aqui para enfrentar meu antigo inimigo, não para assumir o trono. Esse é o seu destino. Una a Casa da Vida, comande os deuses em meu nome. Nunca tema, eu vou segurar Apófis até você voltar.
Carter encarou a cajado e o mangual em suas mãos. Ele parecia tão aterrorizado como quando Rá se desfez em areia.
Eu não podia culpá-lo. Carter tinha acabado de ser ordenado a assumir o trono da criação e liderar um exército de magos e deuses na batalha. Um ano atrás, mesmo seis meses atrás, a ideia de meu irmão receber esse tipo de responsabilidade também iria me aterrorizar. Estranhamente, eu não pensava mais assim. Pensar em Carter como faraó era na verdade confortante.
Tenho certeza de que vou me arrepender de dizer isso, e eu tenho certeza de que Carter nunca vai me deixar esquecer isso, mas a verdade era que eu tenho contado com meu irmão desde que nós nos mudamos para a Casa do Brooklyn. Eu tinha passado a depender da força dele. Eu confiava nele para tomar as decisões certas, mesmo quando ele não confiava nele mesmo. Quando eu tinha aprendido seu nome secreto, eu tinha visto um traço muito claro tecido em seu caráter: Liderança.
— Você está pronto — falei a ele.
— Verdade — Rá concordou.
Carter olhou para cima, um pouco atordoado, mas eu podia supor que ele sabia que eu não estava implicando com ele – não dessa vez.
Bes deu um soco no ombro dele.
— Claro que você está pronto, garoto. Agora, pare de perder tempo e vá salvar seu tio!
Olhando para Bes, eu tentei não ficar com os olhos marejados. Eu já tinha o perdido uma vez.
Quanto a Rá, ele parecia tão confiante, mas ele ainda estava confinado na forma de Zia Rashid. Ela era uma maga forte, sim, mas era nova nesse negócio de hospedeiro. Se ela vacilasse, mesmo que ligeiramente, ou se extrapolasse...
— Boa sorte então. — Carter engoliu. — Eu espero...
Ele vacilou. Percebi que o pobre rapaz estava tentando dizer adeus à sua namorada, possivelmente pela última vez, e ele nem mesmo podia beijá-la sem beijar o deus sol.
Carter começou a mudar de forma. Suas roupas, sua mochila, mesmo o cajado e o mangual se transformaram em plumagem. Sua forma encolheu até que ele era um falcão marrom e branco. Depois ele abriu suas asas e mergulhou para fora do barco.
— Ah, odeio essa parte — murmurei.
Eu chamei Ísis e a convidei: Agora. É hora de agirmos como uma.
Imediatamente a magia dela fluiu em mim. Eu senti como se alguém tivesse ligado geradores elétricos suficientes para ligar uma nação e canalizado todo o poder através de mim. Eu me tornei um papagaio e me lancei no ar.
Pela primeira vez, não tive nenhum problema em voltar a ser humana. Carter e eu nos encontramos aos pés da Grande Esfinge e estudamos a recém-explodida entrada do túnel. Os rebeldes não haviam sido muito sutis. Blocos de pedra do tamanho de carro tinham sido reduzidos a escombros. A areia circundante tinha escurecido e derretido em vidro. Ou Sarah Jacobi tinha usado um feitiço ha-di ou diversas bananas de dinamite.
— Esse túnel... A outra entrada não fica bem em frente ao Salão das Eras?
Carter acenou com a cabeça tristemente. Ele pegou o cajado e o mangual, que agora estavam brilhando com fogo fantasmagórico branco. Ele adentrou na escuridão. Eu convoquei meu cajado e varinha e o segui.
Enquanto nós descíamos, vimos evidências da batalha. Explosões tinham queimado as paredes e os degraus. Uma parte do teto tinha desmoronado. Carter foi capaz de limpar o caminho com a força de Hórus, mas assim que entramos no túnel a entrada atrás de nós desabou. Nós não sairíamos por ali.
Abaixo de nós, eu ouvi os sons do combate – palavras divinas sendo conjuradas; magias de fogo, água, e terra se chocando. Um leão rugiu. Metal se chocou contra metal. Poucos metros à frente, encontramos nossa primeira casualidade. Um homem jovem em um uniforme militar cinza esfarrapado estava encostado na parede, segurando seu estômago e respirando ofegante e dolorosamente.
— Leonid! — chorei.
Meu amigo russo estava pálido e ensanguentado. Eu botei minha mão na testa dele. Sua pele estava fria.
— Abaixo — ele suspirou. — Muitos, eu tento...
— Fique aqui — percebi que era bobagem, desde que ele mal podia se mexer. — Nós vamos voltar com ajuda.
Ele concordou bravamente, mas eu olhei para Carter e sabia que nós estávamos pensando a mesma coisa. Leonid podia não durar tanto. O casaco de seu uniforme estava encharcado de sangue. Ele mantinha a mão sobre sua barriga, mas ele claramente tinha sido atacado – por garras, facas ou alguma magia igualmente horrível.
Eu conjurei um feitiço de lentidão em Leonid, o que iria pelo menos estabilizar sua respiração e estancar o fluxo de sangue, mas isso não ia ajudar muito. O pobre rapaz tinha arriscado sua vida fugindo de São Petersburgo. Tinha vindo até o Brooklyn para me avisar sobre o ataque iminente. Agora tinha tentado defender o Primeiro Nomo de seus antigos mestres, e eles o cortaram e simplesmente passaram por ele, o deixando para sofrer uma morte lenta.
— Nós vamos voltar — prometi de novo.
Carter e eu demos de cara com a batalha.
Nós chegamos ao fim das escadas e fomos jogados no meio da batalha. Um leão shabtipulou na minha cara.
Ísis reagiu mais rápido do que eu poderia. Ele me deu uma simples palavra para dizer:
— Fah!
E o hieróglifo para Libertação brilhou no ar.


O leão diminuiu até virar uma estatueta de cera e bateu inofensivamente contra o meu peito.
A nossa volta, o corredor estava em caos. Em todos os lugares, os nossos iniciados estavam presos em combates contra magos inimigos. Bem na nossa frente, uma dúzia de rebeldes tinha formado um escudo bloqueando o Salão das Eras, e nossos amigos pareciam estar tentando passar por eles.
Por um momento, as coisas pareceram invertidas para mim. Não deveria ser o nosso lado defendendo as portas? Depois eu percebi o que deveria ter acontecido. O ataque ao túnel selado deve ter surpreendido nossos aliados. Eles tinham corrido de volta para ajudar Amós, mas na hora em que chegaram às portas os inimigos já deveriam estar lá dentro. Agora esse grupo estava impedindo os nossos reforços de alcançar Amós, enquanto nosso tio estava dentro do salão possivelmente sozinho, enfrentando Sarah Jacobi e seu esquadrão de elite.
Meu pulso aumentou. Eu investi em batalha, conjurando feitiços do menu diversificado de Ísis. Me senti bem de ser uma divindade de novo, eu tinha que admitir, mas tinha que manter minha energia cuidadosamente equilibrada. Se eu deixasse Ísis ter a rédea solta, ela iria destruir todos os nossos inimigos em segundos, mas também me queimaria no processo. Eu tinha que moderar sua inclinação em transformar os mortais insignificantes em pedaços.
Eu joguei minha varinha como um bumerangue e acertei um mago com uma barba muito grande que estavam gritando em russo enquanto lutava espada a espada contra Julian.
O russo desapareceu em uma luz dourada. Onde ele tinha estado, um hamster guinchou de medo e fugiu. Julian sorriu para mim. A lâmina de sua espada estava esfumaçando e as bainhas de suas calças estavam em chamas, mas por outro lado ele estava bem.
— Bem a tempo! — ele disse.
Outro mago investiu contra mim, e nós não tivemos mais tempo para conversar.
Carter estava mais a frente, balançando seu cajado e mangual como se tivesse treinado com eles durante toda a vida. Um mago inimigo conjurou um rinoceronte – o que eu achei bem rude já que nós estávamos naquele lugar apertado. Carter o atacou com seu mangual e cada corrente espinhosa se tornou uma corda de fogo. O rinoceronte desmoronou, cortado em três pedaços, e se desfez em uma poça de cera.
Nossos outros amigos também não estavam indo tão mal. Felix usou um feitiço de gelo que eu nunca tinha visto antes – encasulando seus inimigos em bonecos de neve, completos com narizes de cenouras e tubos para os braços. Seu exército de pinguins cambaleava ao redor, bicando magos inimigos e roubando varinhas.
Alyssa estava lutando com outra elementarista de terra, mas a mulher russa estava sendo claramente superada. Ela provavelmente nunca tinha enfrentado o poder de Geb antes. Assim que a russa conjurava uma criatura de pedra ou atirava rochas, seus ataques se dissolviam em escombros. Alyssa estalou os dedos e o chão abaixo dos pés da sua oponente virou areia movediça. A russa afundou até os ombros, bem presa.
No final norte do corredor, Jaz estava abaixada ao lado de Cleo, cuidando do braço dela, que tinha sido transformado em um girassol. No entanto, Cleo tinha se saído melhor que o seu oponente. Aos seus pés estava um volume de um romance de David Copperfield do tamanho de uma pessoa, que me deu a impressão de já ter sido um mago inimigo antes.
[Carter me disse que David Copperfield é um mago. Ele achou isso engraçado por alguma razão. Apenas o ignore. Eu ignoro.]
Até mesmo nossos pirralhos estavam agindo. A jovem Shelby havia jogado seus lápis de cor pelo corredor, uma armadilha para os inimigos. Agora ela estava segurando sua varinha como uma raquete de tênis, correndo entre as pernas dos magos adultos, esmagando seus pés e gritando:
— Morre, morre, morre!
Não são crianças adoráveis?
Ela golpeou um grande guerreiro de metal, um shabti sem dúvidas, e ele se transformou em um porco barrigudo cor de arco-íris. Se nós sobrevivêssemos a esse dia, eu tinha um péssimo pressentimento de que ela iria querer ficar com ele.
Alguns residentes do Primeiro Nomo estavam nos ajudando, mas lamentavelmente eram poucos. Um punhado de magos velhos e vendedores desesperados jogando talismãs e refletindo feitiços.
Lenta mas seguramente, nós estávamos chegando até as portas, onde o grupo principal de inimigos parecia estar focado em um único atacante.
Quando percebi quem era, fiquei tentada a me transformar em um hamster e fugir dali, guinchando.
Walt estava de volta. Ele rompeu as linhas inimigas com as mãos nuas – jogando um mago rebelde corredor abaixo com uma força desumana, tocando outro e encasulando-o em linho de múmia. Ele segurou o cajado de um terceiro rebelde e o transformou em pó. Finalmente ele acenou sua mão em direção aos magos restantes, e eles ficaram do tamanho de bonecos. Jarros Canopos – do tipo usado para se colocar os órgãos internos das múmias – surgiram em volta de cada um dos magos minúsculos, selando-os com tampas em forma de cabeças de animais. Os pobres magos gritavam desesperadamente, batendo nos recipientes e fazendo-os parecer uma linha de pinos de boliche muito infeliz.
Walt se virou para nossos amigos.
— Está todo mundo bem?
Ele parecia com o antigo e normal Walt – alto e musculoso com o rosto confiante, olhos castanhos e mãos fortes. Mas suas roupas tinham mudado. Ele usava jeans, uma camisa dos Dead Weather escura, e uma jaqueta de couro preta – as roupas de Anúbis, aumentadas para caber no porte físico de Walt. Tudo o que eu tinha fazer era baixar minha visão no Duat, só um pouco, e via Anúbis em pé com toda sua usual suntuosidade irritante. Os dois – ocupando o mesmo espaço.
— Preparem-se — Walt disse para as nossas tropas. — Eles selaram as portas, mas eu posso...
Então ele me notou, e sua voz falhou.
— Sadie — ele disse. — Eu...
— Alguma coisa sobre como abrir as portas? — interrompi.
Ele balançou a cabeça em silêncio.
— Amós está lá? — perguntei. — Lutando contra Kwai e Jacobi e sabe-se lá quem mais?
Ele balançou a cabeça novamente.
— Então para de me encarar e abra as portas, garoto irritante!
Eu estava falando para os dois. Eu me senti bem natural. E me senti bem por deixar minha raiva sair. Eu tinha que lidar com aqueles dois – aquele um – o que quer que ele seja – mas depois. Agora meu tio precisava da minha ajuda.
Walt/Anúbis teve a coragem de sorrir.
Ele pôs suas mãos na porta. Toda a superfície dela ficou cheia de cinzas. O bronze desmoronou em poeira.
— Depois de você — ele me disse, e nós entramos no Salão das Eras.

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