domingo, 25 de janeiro de 2015

A Sombra da Serpente - Carter

Capítulo 20 - Eu pego uma cadeira

Como eu disse, não sou bom em encantamentos.
Fazer um corretamente requer concentração ininterrupta, pronúncia correta e um timing perfeito. Caso contrário, você está sujeito a destruir a si mesmo e tudo dentro de três metros, ou se transformar em algum tipo de marsupial.
Tentar lançar um feitiço com outra pessoa é duas vezes mais difícil.
Claro, Sadie e eu tínhamos estudado as palavras, mas não é como se nós pudéssemos realmente fazer a execração com antecedência. Com um feitiço assim, você apenas tem uma chance.
Quando começamos, eu estava ciente de que Bastet e Bes lutavam contra a serpente, e os nossos outros aliados estavam em combates em diferentes níveis do o Duat. A temperatura continuou caindo. Fendas apareceram no chão. Luz vermelha se espalhou pelo céu como rachaduras pretas em uma cúpula.
Era difícil manter os meus dentes sem bater. Eu me concentrei na estatueta de pedra de Apófis. À medida que cantava, a estátua começou a esfumaçar.
Tentei não pensar na última vez que eu ouvi esse encantamento. Michel Desjardins morreu lançando-o e ele tinha enfrentado apenas uma demonstração parcial da serpente, não Apófis em seus plenos poderes após devorar triunfalmente Rá.
Concentre-se, Hórus me disse.
Fácil para ele dizer. O ruído, o frio e as explosões ao redor de nós tornaram tudo quase impossível, era como tentar contar de um até cem enquanto pessoas gritam números aleatórios em seus ouvidos.
Bastet foi jogada sobre as nossas cabeças e caiu contra um bloco de pedra. Bes rugiu de raiva. Ele bateu com o taco no pescoço da serpente com tanta força que os olhos de Apófis reviraram em sua cabeça.
Apófis agarrou Bes, que pegou uma presa e se pendurou, a serpente levantou e sacudiu a cabeça, tentando expulsar o deus anão.
Sadie e eu continuávamos a cantar. A sombra da serpente estava cozinhando com a estatueta aquecida. Luzes douradas e azuis rodavam à nossa volta, conforme Ísis e Hórus faziam o seu melhor para nos proteger. O suor pingava em meus olhos. Apesar do ar gelado, comecei a sentir-me febril.
Quando chegamos à parte mais importante da magia, a nomeação do inimigo, eu finalmente comecei a perceber a verdadeira natureza da sombra serpente. Engraçado como isso funciona: às vezes você não compreende realmente algo até você destruí-lo. A sombra era mais do que apenas uma cópia ou um reflexo, era mais um “disco de backup” para a alma.
A sombra de uma pessoa representa o seu legado, seu impacto sobre o mundo. Algumas pessoas não lançam quase nenhuma sombra. Alguns lançam longas e profundas sombras, que duram séculos. Pensei no que o fantasma de Setne havia dito como nós tínhamos crescidos na sombra de um pai famoso. Percebi agora que ele não tinha apenas dito isso como uma figura de linguagem. Meu pai lançou uma sombra poderosa que ainda me afeta e a todo o mundo.
Se uma pessoa não lançar uma sombra, ela não poderia estar viva. Sua existência torna-se sem sentido. Execrar Apófis, destruindo sua sombra iria cortar sua conexão com o mundo mortal completamente. Ele nunca seria capaz de subir novamente. Eu finalmente entendi por que ele estava tão ansioso para queimar os manuscritos e porque Setne estava com medo dessa magia.
Chegamos às últimas linhas. Apófis conseguiu tirar Bes de suas presas e o anão partiu para o lado da Grande Pirâmide.
A serpente voltou-se para nós quando falávamos as palavras finais:
— Nós exilamos você para além do vazio. Você não existe mais.
— NÃO! — Apófis rugiu.
A estátua explodiu, dissolvendo-se em nossas mãos. A sombra desapareceu em uma nuvem de vapor e uma onda explosiva das trevas nos derrubou.
O legado da serpente sobre a terra criou guerras, assassinatos, tumultos, e Apófis, que tinha causado a anarquia desde os tempos antigos, finalmente perdeu o poder, não tinha mais sua sombra em nosso futuro. As almas dos mortos foram expelidas devido à explosão, milhares de fantasmas que haviam sido presos e esmagados dentro da sombra do Caos.
Uma voz sussurrou em minha mente: Carter! E eu chorei de alívio. Eu não podia vê-la, mas sabia que a nossa mãe estava livre. Seu espírito estava retornando ao seu lugar no Duat.
— Míopes mortais! — Apófis se contorceu e começou a encolher. — Você não matou somente a mim. Você exilou os deuses!
O Duat desabou camada após camada, até que as planícies de Gizé eram uma só realidade novamente. Nossos amigos magos estavam em transe em torno de nós. Os deuses, porém, não estavam em nenhum lugar visível.
A serpente sibilou, suas escamas caindo em pedaços de fumaça.
— Maat e o Caos estão ligados, seus tolos! Vocês não podem me afastar sem afastar os deuses. Quanto a Rá, ele morrerá junto comigo, lentamente digerido...
Ela foi cortada (literalmente) quando sua cabeça explodiu. Sim, foi tão grosseiro quanto parece. Pedaços flamejantes de réptil voaram para todos os cantos. Uma bola de fogo rolou do pescoço da serpente. O corpo de Apófis se desintegrou em areia, vapor e gosma, e Zia Rashid saiu dos destroços.
O vestido dela estava em frangalhos. Seu equipamento de ouro tinha rachado como um triângulo, mas ela estava viva.
Corri em sua direção. Ela tropeçou e caiu em cima de mim completamente exausta. Então alguém se ergueu das ruínas fumegantes de Apófis.
Rá brilhava como uma miragem, elevando-se sobre nós como um musculoso velho, com a pele dourada, mantos reais e a coroa do faraó. Ele avançou e a luz do dia voltou para o céu. A temperatura aumentou. As fendas no chão fecharam.
O deus sol sorriu para mim.
— Bom trabalho, Carter e Sadie. Agora, devo me retirar como os outros deuses fizeram, mas eu devo-lhes a minha vida.
— Retirar?
Minha voz não soou como se fosse minha. Foi mais profunda, mais rouca, mas não era a voz de Hórus também. O deus da guerra parecia ter desaparecido da minha mente.
— Você quer dizer... para sempre?
Rá deu uma risadinha.
— Quando você é tão velho quanto eu sou, aprende a ser cuidadoso com essa palavrasempre. Eu pensei que eu estava indo embora para sempre da primeira vez que abdiquei. Por um tempo, pelo menos, devo recuar para o céu. Meu velho inimigo Apófis não estava errado. Quando o Caos é afastado, os deuses da ordem, do Maat também devem se distanciar. Tal é o equilíbrio do universo.
— Então... você deve ficar com isso.
Mais uma vez eu ofereci-lhe o cajado e o mangual.
Rá balançou a cabeça.
— Guarde-os para mim. Você é o legítimo faraó. E tome conta da minha favorita... — Ele balançou a cabeça em direção a Zia. — Ela vai se recuperar, mas vai precisar de apoio.
Uma luz brilhou em torno do deus Sol, e quando a luz desapareceu, ele tinha desaparecido. Duas dúzias de magos cansados ficaram em torno da fumaça em forma de serpente marcada no deserto enquanto o sol nascia sobre as Pirâmides de Gizé.
Sadie descansou a mão no meu braço.
— Irmão, querido?
— Sim?
— Isso foi um pouco perto demais.
Pela primeira vez, eu não tive nenhuma discussão com a minha irmã.

***

O resto do dia foi um borrão. Lembro-me de ajudar Zia a arrumar as salas do Primeiro Nomo. Minha própria mão quebrada levou apenas minutos para curar, mas fiquei com Zia até que Jaz me disse que eu precisava ir. Ela e os outros curandeiros tinham dúzias de magos feridos para tratar, incluindo o garoto russo Leonid, que, surpreendentemente, tinha chance de sobreviver. Enquanto Jaz pensava que eu estava sendo muito legal, percebi que estava atrapalhando.
Eu vaguei através da caverna principal e fiquei chocado ao vê-la cheia de pessoas. Portais em todo o mundo tinham começado a funcionar novamente. Magos estavam chegando para ajudar com a limpeza e jurar seu apoio ao Sacerdote-leitor Chefe. Todos gostam de aparecer na festa uma vez que todo o trabalho duro já foi feito.
Tentei não me sentir amargurado com isso. Eu sabia que muitos dos outros nomos estavam lutando suas próprias batalhas. Apófis tinha feito o seu melhor para nos dividir e conquistar. Ainda assim, isso deixou um gosto ruim na minha boca. Muitas pessoas olhavam com admiração para o cajado e o mangual, que ainda estavam presos no meu cinto. Algumas pessoas me cumprimentaram e me chamaram de herói. Eu continuei andando.
Quando passei pelo carro do fornecedor de pessoal, alguém disse:
— Pssssiu!
Olhei para o beco mais próximo. O fantasma de Setne estava encostado na parede. Eu fiquei tão assustado que pensei que deveria ser uma alucinação. Não era possível que ele estivesse aqui, ele ainda estava com sua horrível jaqueta, calça jeans e joias, com o cabelo perfeitamente penteado como o do Elvis, o Livro de Tot debaixo do braço.
— Você fez bem, amigo — ele disse. — Não do jeito que eu teria feito, mas não foi mau.
Finalmente eu descongelei.
— Tas!
Setne apenas sorriu.
— Sim, ainda estamos jogando esse jogo. Mas não se preocupe amigo. Vejo você por aí.
Ele desapareceu em uma nuvem de fumaça.
Eu não sei quanto tempo eu fiquei lá antes de Sadie me encontrar.
— Tudo bem? — ela perguntou.
Eu disse a ela o que tinha visto. Ela estremeceu, mas não pareceu muito surpresa.
— Eu suponho que nós vamos ter que lidar com isso mais cedo ou mais tarde, mas por enquanto, é melhor vir comigo. Amós convocou a assembleia geral no Salão das Eras. — Ela entrelaçou o braço com meu. — E tente sorrir, querido irmão. Eu sei que é difícil. Mas você é um modelo agora, por mais que eu ache isso terrível.
Eu fiz o meu melhor, embora fosse difícil colocar Setne fora da minha mente.
Passamos por muitos dos nossos amigos que estavam ajudando com a restauração. Alyssa e um esquadrão de elementais de terra estavam reforçando paredes e tetos, tentando garantir que as cavernas não caíssem sobre nós.
Julian estava sentado nos degraus, conversando com algumas meninas do nomo escandinavo.
— Sim, você sabe... — ele estava dizendo — Apófis me viu chegando com o meu grande avatar de combate e percebeu que tinha acabado.
Sadie revirou os olhos e me puxou junto.
A pequena Shelby e os outros pirralhos correram até nós, sorrindo e sem fôlego. Eles assaltaram uns dos quiosques de amuletos, então pareciam ter acabado de voltar de um carnaval egípcio.
— Eu matei uma cobra! — Shelby disse-nos. — Uma cobra grande!
— Sério? — perguntei. — Sozinha?
— Sim! — Shelby assegurou-me. — Matar, matar, matar!
Ela bateu os pés, e faíscas voaram de seus sapatos. Então ela saiu correndo, seguindo amigos.
— Essa menina tem futuro — disse Sadie. — Me lembra de mim mesma quando era jovem.
Estremeci. Esse era um pensamento perturbador.
Os gongos começaram a tocar ao longo dos túneis, convocando todos para o Salão das eras. No momento em que chegamos lá, o salão estava absolutamente congestionado com os magos, alguns em trajes normais, alguns em roupas modernas, alguns de pijama, provavelmente se teleportaram direto da cama.
Em ambos os lados do tapete, cortinas holográficas de luz brilhavam entre as colunas da mesma forma que tinham antes.
Felix correu até nós, sorrindo, com um rebanho de pinguins por trás dele. (Rebanho? Bando? Amontoado? Oh, tanto faz).
— Dê uma olhada! — disse ele alegremente. — Aprendi isso um durante a batalha!
Ele falou uma palavra de comando. No começo eu pensei que era shish kebab, mas depois ele me disse que era:
— Se-kebeb.
Faça frio.
Hieróglifos apareceram no chão em gelo branco:


O frio se estendeu uns 20 metros, o piso foi revestido de gelo branco e grosso. Os pinguins caminharam bamboleando através dele, batendo as asas. Um mago infeliz recuou e caiu, seu cajado saiu voando.
Felix ergueu o punho.
— Sim! Eu encontrei meu caminho. Eu tenho que seguir o deus do gelo!
Cocei a cabeça.
— Há um deus do gelo? O Egito é um deserto. Quem é o deus do gelo?
— Eu não tenho ideia! — Felix sorriu. Ele deslizou no gelo e foi correndo com seus pinguins.
Nós continuamos nosso caminho pelo corredor. Magos estavam compartilhando histórias e revendo os velhos amigos. Hieróglifos flutuavam no ar, mais brilhantes e fortes que eu jamais havia visto, era como uma sopa de letrinhas cor de arco-íris.
Finalmente, perceberam Sadie e eu. A multidão silenciou pela sala. Todos os olhos foram voltados para nós. Os magos se separaram, abrindo caminho para o trono.
A maioria dos magos sorriu enquanto passávamos pelo caminho. Alguns sussurraram agradecimentos e parabéns. Mesmo antigos rebeldes magos pareciam genuinamente satisfeitos ao nos ver. Mas eu peguei uns poucos olhares furiosos. Não importava que tivéssemos derrotado Apófis, alguns dos nossos colegas magos sempre duvidariam de nós. Alguns nunca parariam de nos odiar. A família Kane ainda tinha que tomar cuidado.
Sadie olhou a multidão ansiosa. Percebi que ela estava à procura de Walt. Eu tinha estado tão focado em Zia que não tinha pensado sobre como ela devia estar preocupada. Walt tinha desaparecido após a batalha, juntamente com o resto dos deuses. Ele não parecia estar aqui agora.
— Tenho certeza que ele está bem — eu disse a ela.
— Shh — Sadie sorriu para mim, mas seus olhos disseram: Se você me envergonhar na frente de todas essas pessoas, eu vou te estrangular.
Amós esperou por nós nos degraus do trono. Ele tinha mudado de roupa, estava em um terno vermelho que ficou surpreendentemente bem com sua capa de pele de leopardo. Seu cabelo estava trançado, e seus óculos estavam tingidos de vermelho. A cor do Caos? Eu tenho a sensação de que ele estava brincando com sua ligação com Set, que todos os outros magos tinham definitivamente ouvido falar até agora.
Pela primeira vez na história, o nosso Sacerdote-leitor Chefe teve o deus da força, do mal e do caos na discagem rápida. Isso pode fazer as pessoas confiarem menos nele, mas magos são como os deuses, eles respeitavam a força. Eu duvidava que Amós teria muita dificuldade para impor seu governo.
Ele sorriu quando nos aproximamos.
— Carter e Sadie, em nome da Casa da Vida, eu os agradeço. Vocês restauraram o Maat! Apófis foi execrado, e Rá, mais uma vez subiu aos céus, mas desta vez em triunfo. Bom trabalho!
A sala irrompeu em aplausos e aplausos. Dúzias de magos levantaram seus cajados e atiraram fogos de artificio em miniatura.
Amós nos abraçou. Então ele se afastou e apontou em direção ao trono. Eu esperava que Hórus pudesse me dar algumas palavras de encorajamento, mas eu não podia mais sentir sua presença.
Tentei controlar a minha respiração. Aquela cadeira tinha estado vazia por milhares de anos. Como eu poderia ter certeza de que poderia mesmo segurar o meu peso? Se o trono dos faraós quebrasse debaixo do meu bumbum real, seria um presságio e tanto.
Sadie me cutucou.
— Vá em frente. Não seja estúpido.
Subi as escadas e me sentei cuidadosamente no trono. A velha cadeira rangeu, mas me segurou. Olhei para a multidão de magos.
Hórus não estava lá para mim. Mas de alguma forma, eu estava bem. Eu olhei para as cortinas brilhantes de luz – a nova era brilhando roxo – e eu tive a sensação de que ia ser uma época de coisas boas, apesar de tudo.
Meus músculos começaram a relaxar. Eu senti como se tivesse saído da sombra do deus da guerra, exatamente como saí da do meu pai. Eu encontrei as palavras.
— Eu aceito o trono — levantei o cajado e o mangual. — Rá me deu autoridade para liderar os deuses e magos em tempos de crise, e eu farei o meu melhor, Apófis foi banido, mas o mar de Caos sempre estará lá. Eu vi isso com meus próprios olhos. As suas forças vão sempre tentar desgastar o Maat. Não podemos pensar que todos os nossos inimigos se foram.
A multidão agitou-se nervosamente.
— Mas, por agora — adicionei — estamos em paz. Podemos reconstruir e ampliar a Casa da Vida. Se a guerra vier de novo, eu vou estar aqui como o Olho de Hórus e como faraó. Mas como Carter Kane...
Levantei-me e coloquei o cajado e o mangual no trono. Eu desci do tablado.
— Como Carter Kane, eu sou um garoto que tem um monte de tempo perdido a recuperar. Eu tenho o meu próprio Nomo para cuidar na Casa do Brooklyn. E tenho que concluir o ensino médio. Então, vou ficar fora das operações do dia-a-dia que devem ficar nas mãos do Sacerdote-leitor Chefe, mordomo do faraó, Amós Kane.
Amós se inclinou para mim, o que fez me sentir um pouco estranho. A multidão aplaudiu freneticamente. Eu não tinha certeza se eles me aprovaram ou se estavam apenas aliviados de que uma criança não iria ficar diariamente dando ordens do trono. De qualquer maneira, eu estava bem com isso.
Amós nos abraçou novamente.
— Estou orgulhoso de vocês dois — ele disse. — Nós vamos nos falar em breve, mas agora, venham... — Ele apontou para o lado da tribuna, onde um portal de trevas foi aberto no ar. — Seus pais gostariam de vê-los.
Sadie me olhou nervosa.
— Uh-oh.
Eu balancei a cabeça. Estranho como eu fui instantaneamente do faraó para o universo de um garoto preocupado em levar bronca. Por mais que eu quisesse ver os meus pais, eu tinha quebrado uma promessa importante com o meu pai... Perdi o controle de um preso perigoso.

***

A Câmara de Julgamento tinha se transformado em um salão de festas. Ammit, o Devorador, corria em volta da balança da justiça, latindo animadamente com um chapéu de aniversário na sua cabeça de crocodilo. Os demônios com cabeça de guilhotina descansavam apoiados em suas lanças, segurando copos que pareciam ser de champanhe. Eu não sabia como eles poderiam beber com as cabeças de guilhotina, mas não queria descobrir. Mesmo o Deus juiz azul, Perturbador, parecia estar de bom humor. Sua peruca de Cleópatra estava de lado na cabeça. Seu longo pergaminho tinha se desenrolado até, pelo menos, a metade do salão, mas ele estava rindo e falando com os outros deuses juízes que haviam sido resgatados da Casa de Repouso. Pé Quente estava soltando cinzas em seus papiros, mas por mais perturbador que isso fosse, não parecia notar ou se importar.
No outro extremo da sala, meu pai se sentava em seu trono, segurando as mãos fantasmagóricas de nossa mãe. À esquerda da plataforma, os espíritos do Mundo Inferior tocavam jazz. Eu tinha certeza que tinha reconhecido Miles Davis, John Coltrane e alguns dos outros favoritos do meu pai. Ser o deus do mundo inferior tinha suas vantagens afinal.
Papai nos chamou. Ele não parecia bravo, o que era um bom sinal. Nós fizemos nosso caminho através da multidão de demônios felizes e deuses juízes. Ammit saltitou e ronronou para Sadie quando ela coçou sob seu queixo.
— Crianças — papai estendeu os braços.
Era estranho ser chamado de criança. Eu não me sentia mais como uma criança. Não era pedido a crianças para combater serpentes do Caos. Elas não levam exércitos para impedir o fim do mundo.
Sadie e eu abraçamos o nosso pai. Eu não podia abraçar mamãe naturalmente, já que ela era um fantasma, mas eu estava feliz só por vê-la segura. Exceto pela aura brilhante em torno dela, ela parecia exatamente à mesma de quando estava viva, vestida de jeans e sua camiseta com um ankh, seus cabelos loiros presos atrás em uma bandana. Se eu não olhasse diretamente para ela, eu poderia ter confundido-a com a Sadie.
— Mãe, você sobreviveu — disse. — Como...?
— Tudo graças a vocês dois — os olhos da mamãe brilhavam. — Eu me segurei enquanto pude, mas a sombra era muito poderosa. Eu estava consumida, junto com tantos outros espíritos. Se vocês não tivessem destruído a sombra, eu teria... bem, agora não importa mais. Vocês fizeram o impossível. Estamos muito orgulhosos.
— Sim — papai concordou, apertando meu ombro. — Tudo que trabalhamos, tudo o que esperávamos, você realizou. Você excedeu as minhas maiores expectativas.
Hesitei. Seria possível que ele não soubesse sobre Setne?
— Pai — eu disse. — Hum... não obtivemos êxito em tudo. Nós perdemos o seu prisioneiro. Eu ainda não entendo como ele escapou. Ele estava amarrado e...
Papai levantou a mão para me impedir.
— Eu ouvi. Nós poderemos nunca saber como Setne escapou exatamente, mas vocês não podem se culpar.
— Nós não podemos? — Sadie perguntou.
— Setne evitou ser capturado por eras — disse papai. — Ele enganou deuses, magos, mortais e demônios. Quando eu deixei você levá-lo, eu suspeitava que ele fosse encontrar uma maneira de escapar. Só esperava que você pudesse controlá-lo tempo suficiente para obter sua ajuda. E você fez.
— Ele nos levou para a sombra — admiti. — Mas também roubou o Livro de Tot.
Sadie mordeu o lábio.
— Material perigoso, o livro. Setne pode não ser capaz de lançar todas as magias sozinho, sendo um fantasma, mas ele ainda poderia causar todos os tipos de mal.
— Nós vamos encontrá-lo novamente — papai prometeu — Mas, por agora, vamos comemorar sua vitória.
Mamãe estendeu o braço e roçou sua mão fantasmagórica no cabelo de Sadie.
— Posso pedir-lhe um momento, minha querida? Tenho algo que gostaria de discutir com você.
Eu não tinha certeza do que se tratava, mas Sadie seguiu nossa mãe por entre a banda de jazz. Eu não tinha notado antes, mas dois dos músicos fantasmagóricos pareciam muito familiares, e um pouco fora de lugar. Um homem ruivo grande usando roupas ocidentais com uma guitarra, sorrindo e batendo as botas enquanto tocava solos com Miles Davis. Ao lado dele, uma mulher loira tocava violino, inclinando-se para baixo de vez em quando para beijar o homem ruivo na testa.
JD Grissom e sua esposa, Anne, do Museu de Dallas, tinham finalmente achado uma festa que não tem que acabar. Eu nunca tinha ouvido guitarra e violino em uma banda de jazz antes, mas de alguma forma eles fizeram isso dar certo. Suponho que Amós estava certo: Ambos, música e magia precisavam de um pouco de caos.
Enquanto mamãe falava, os olhos de Sadie se arregalaram. Sua expressão ficou séria. Então ela sorriu timidamente e corou, aquilo não era de todo a Sadie.
— Carter — meu pai disse. — Você fez bem no Salão das Eras, vai ser um bom líder. Um líder sábio.
Eu não tinha certeza de como ele sabia sobre o meu discurso, mas um nó se formou na minha garganta. Meu pai não sai distribuindo elogios. Estar com ele de novo me lembrou de como a vida tinha sido fácil viajando com ele. Ele sempre soube o que fazer. Eu poderia sempre contar com sua presença calmante. Até a véspera do Natal em Londres, quando ele desapareceu, eu não tinha percebido o quanto eu dependia dele.
— Eu sei que tem sido difícil — disse papai. — Mas você vai levar a família Kane para o futuro. Você realmente saiu de minha sombra.
— Não completamente. Eu não iria querer isso. Como pai você é, bem, hmm, “sombreante”.
Ele riu.
— Eu estarei aqui se precisar de mim. Nunca duvide disso. Mas, como Rá disse, os deuses terão mais dificuldade em entrar em contato com o mundo mortal agora que Apófis foi execrado. Como o Caos se retirou, assim deve fazer também o Maat. No entanto, não acho que você vai precisar de muita ajuda. Você já tem sua própria força. Agora você está lançando uma grande sombra. A Casa da Vida vai se lembrar de você por eras.
Ele me abraçou mais uma vez, e era fácil esquecer que ele era o deus dos mortos. Ele parecia ser apenas o meu pai – quente, vivo e forte.
Sadie se aproximou, parecendo um pouco abalada.
— O quê foi? — perguntei.
Ela riu sem motivo aparente, então ficou séria novamente.
— Nada.
Mamãe veio ao lado dela.
— Podem ir, vocês dois. A casa do Brooklyn está esperando.
Outro portal de trevas apareceu sobre o trono. Sadie e eu entramos. E pela primeira vez, eu não estava preocupado com o que esperar no outro lado. Eu sabia que estávamos indo para casa.

***

A vida voltou ao normal com uma velocidade surpreendente.
Vou deixar Sadie informá-lo sobre os eventos na Casa Brooklyn e seu próprio drama. Vou avançar para a parte interessante.
[Ai! Eu pensei que tínhamos combinado: sem beliscar!]
Duas semanas após a batalha com Apófis, Zia e eu estávamos sentados na praça de alimentação no Mall of America em Bloomington, Minnesota.
Por que lá? Eu tinha ouvido que o Mall of America era o maior do país, e achei que tínhamos que começar grande. Foi uma viagem tranquila através do Duat. Freak ficou feliz de sentar no telhado e comer perus congelados enquanto nós exploramos o shopping.
[É isso mesmo, Sadie. Para o nosso primeiro encontro real, eu peguei Zia em um barco puxado por um grifo demente. E daí? Como se os seus encontros não fossem estranhos.]
Enfim, quando chegamos à praça de alimentação, Zia ficou de boca aberta.
— Deuses do Egito...
As opções de restaurantes eram bastante impressionantes. Já que nós não conseguíamos nos decidir, pegamos um pouco de tudo: comida chinesa, mexicana (os nachos), pizza e sorvete – os quatro grupos básicos de comida. Nós pegamos uma mesa com vista para o parque de diversões no centro do shopping.
Um monte de outras crianças estava saindo na praça de alimentação. Muitos deles olharam para nós. Bem... Não para mim. Eles olhavam para Zia e sem dúvida se perguntavam o que uma menina como ela estava fazendo com um cara como eu.
Ela se curou bem desde a batalha. Usava um vestido simples sem mangas de linho bege e preto, sandálias, sem maquiagem, sem joias com exceção de seu colar de escaravelho de ouro. Ela parecia de alguma maneira mais glamourosa e madura do que todas as outras garotas no shopping.
Seu longo cabelo negro estava preso em um rabo de cavalo, com exceção de uma mecha atrás de sua orelha direita. Ela tinha olhos luminosos cor de âmbar e pele cor de café com leite quente, mas desde que canalizou Rá, parecia brilhar ainda mais. Eu podia sentir seu calor do outro lado da mesa.
Ela sorriu para mim sobre a sua tigela de comida chinesa.
— Então, isso é o que os adolescentes normais americanos fazem?
— Bem... tipo isso — eu disse. — Embora eu não ache que nenhum de nós possa se passar por normal.
— Espero que não.
Eu tive problemas para pensar direito quando olhei para ela. Se ela tivesse me pedido para saltar sobre os trilhos, eu provavelmente teria feito isso.
Zia girou o garfo através de seu macarrão.
— Carter, não temos falado muito sobre... você sabe, eu ser o Olho de Rá. Eu posso adivinhar como é estranho para você.
— Hey, eu entendo. Não é estranho.
Ela levantou uma sobrancelha.
— Tudo bem, é estranho — admiti. — Mas Rá precisava da sua ajuda. Você foi incrível. Você, uh, falou com ele desde que...?
Ela balançou a cabeça.
— Ele se retirou do mundo, assim como disse. Duvido que eu volte a ser o Olho de Rá novamente, a menos que enfrentemos outro Apocalipse.
— Com a nossa sorte, não por mais algumas semanas, você quer dizer.
Zia riu. Eu amei vê-la rir. Eu amei aquela mecha de cabelos atrás da orelha.
[Sadie diz que eu estou sendo ridículo. Como se ela pudesse falar algo.]
— Tive uma reunião com seu tio Amós — ela continuou. — Ele tem muita ajuda no Primeiro Nomo agora. Pensou que seria bom para mim passar algum tempo longe, tentar viver uma vida mais... normal.
— Quer dizer, deixar o Egito?
Zia assentiu.
— Sua irmã sugeriu que eu ficasse na Casa do Brooklyn, frequentar uma escola americana. Ela disse... como é que ela disse? Os americanos são um bando estranho, mas eles são legais.
Zia deslizou ao redor da mesa e pegou minha mão. Senti cerca de vinte homens ciumentos encarando-me dos outros cantos da praça de alimentação.
— Você se importaria se eu ficasse na Casa Brooklyn? Eu poderia ajudar a ensinar os iniciados. Mas se isso te incomoda...
— Não! — Eu disse muito alto. — Quero dizer, não, eu não me importo. Sim, Eu gostaria disso. Muito. Tudo bem.
Zia sorriu. A temperatura na praça de alimentação parecia ter aumentado dez graus.
— Então isso é um sim?
— Sim. Quer dizer, a menos que você se sinta desconfortável. Eu não quero fazer que as coisas fiquem estranhas ou...
— Carter — ela disse suavemente. — Cale a boca.
Ela se inclinou e me beijou.
Fiz como ela mandou, não foi necessário nenhuma magia. Eu calei a boca.

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