segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Trono de Fogo - Sadie

Capítulo 24 - Faço uma promessa impossível

EU NÃO GOSTO DE DESPEDIDAS, e ainda tenho que contar a você sobre muitas delas.
[Não Carter, isto não foi um convite para pegar o microfone. Solte!]
Ao entardecer, a Casa no Brooklin estava de volta à ordem. Alyssa consertou quase toda a alvenaria sozinha, com o poder do deus da terra. Nossos iniciantes sabiam usar muito bem o feitiço Hi-nehm, que era o suficiente para consertar a maioria das coisas quebradas.
Khufu mostrou muita destreza com trapos e líquidos de limpeza como ele fazia com uma bola de basquete, e é realmente incrível o quanto polimento e limpeza que pode-se realizar pendurando grandes panos nas asas de um grifo.
Tivemos várias reuniões durante o dia. Filipe da Macedônia ficou de guarda na piscina, enquanto nosso exército shabti patrulhava o terreno, mas ninguém tentou atacar – nem as forças de Apófis e nem nossos colegas mágicos. Eu quase podia sentir o choque coletivo espalhado por todos os trezentos e sessenta nomos quando eles souberam das notícias: Desjardins estava morto, Apófis se reergueu, Rá voltou e Amós Kane era o novo Sacerdote-leitor Chefe. Esse fato foi o mais alarmante de todos, e eu não sei, mas penso que vou ter um tempo para descansar enquanto os outros nomos processam esta rodada de eventos e decidem o que vão fazer.
Logo antes pôr-do-sol, eu e Carter voltamos ao telhado, onde Zia abriu um portal para o Cairo para ela e Amós. Com seus cabelos negros recém cortados e um novo conjunto de roupas bege, pareceu que Zia não havia mudado nada desde nosso primeiro encontro com ela no British Museum, mesmo depois de tudo o que aconteceu desde então.
E eu posso supor, falando tecnicamente, que não era ela que estava no museu aquele dia, era apenas seu shabti. [Sim, eu sei. É terrivelmente confuso acompanhar tudo isso. Você tem que aprender a magia para a convocação de um remédio para dor de cabeça. Isso faz maravilhas.]
O portal apareceu e Zia se virou para se despedir.
― Eu vou acompanhar Amós... quero dizer, o Sacerdote-leitor Chefe do Primeiro Nomo ― ela prometeu. ― Vou me certificar para que ele seja reconhecido como o líder da Casa.
― Eles vão se opor a você ― falei. ― Tenha cuidado.
Amós sorriu.
― Nós vamos ficar bem. Não se preocupe.
Ele estava vestido em seu elegante estilo usual: um terno de seda dourado que combinava com sua capa de pele de leopardo nova, um chapéu porkpie e contas de ouro em seu cabelo trançado. Ao seu lado havia uma bolsa de couro e um case de saxofone. Imaginei-o sentado nos degraus do trono do faraó, tocando sax – John Coltrane, talvez – no ritmo new age, brilhando em luz violeta e com hieróglifos saindo da boca do saxofone.
― Vou manter contato ― ele prometeu. ― Além disso, vocês tem as coisas sob controle aqui na Casa do Brooklin. E não precisam mais de um mentor.
Eu tentei ficar feliz, embora odiasse a sua saída. O fato de eu ter treze anos não significava que eu queria responsabilidades de adultos. Certamente não quero levar o Vigésimo Primeiro Nomo à guerra ou liderar um exército em guerra. Mas eu suponho que ninguém que é colocado numa situação parecida se sinta pronto
 Zia pôs a mão no braço de Carter. Ele deu um pulo como se ela tivesse encostado nele com um desfibrilador.
― Vamos nos falar logo depois que as coisas se acertarem. Mas, muito obrigada.
Carter concordou, embora parecesse desanimado. Todos nós sabíamos que as coisas não iriam se resolver em breve. Não havia nenhuma garantia de que nós vivêssemos o suficiente para ver Zia novamente.
― Cuide-se ― Carter disse. ― Você tem um papel importante para desempenhar.
Zia olhou para mim e uma espécie de entendimento passou entre nós. Eu acho que ela começou a ter uma suspeita, um medo profundo, sobre o que seu papel poderia ser. Eu ainda não posso dizer que entendi, mas compartilho sua inquietação. Zebras, Rá havia dito. Ele havia acordado falando sobre zebras.
― Se você precisar de nós ― falei ― não hesite. Eu vou aparecer e dar naqueles magos do Primeiro Nomo uma boa surra.
Amós beijou minha testa. Ele deu um tapinha no ombro de Carter.
― Vocês dois me orgulham. E me deram esperança, pela primeira vez em muitos anos.
Eu queria que eles ficassem mais. Queria falar com eles um pouco mais. Mas minha experiência com Khonsu me ensinou a não ser gananciosa sobre o tempo. É melhor apreciar o que você tem e não ansiar por mais.
Amós e Zia entraram no portal e desapareceram. Assim que o sol estava se pondo, uma exausta Bastet apareceu no Grande Salão. Em vez de seu traje de costume, ela usava um vestido formal e joias egípcias pesadas que pareciam muito desconfortáveis.
― Eu tinha esquecido o quanto é difícil guiar o barco sol através do céu ― disse ela, limpando a testa. ― E quente. Da próxima vez, vou trazer um pires e uma geladeira cheia de leite.
― Rá está bem? ― perguntei.
A deusa gato contraiu os lábios.
― Bem... ele é o mesmo. Eu guiei o barco para a sala do trono dos deuses. Eles estão recebendo uma nova tripulação para a jornada desta noite. Mas você deve ir vê-lo antes que ele saia.
― Jornada desta noite? ― Carter perguntou. ― Pelo Duat? Nós justamente o trouxemos de volta!
Bastet estendeu as mãos.
― O que você esperava? Você reiniciou o ciclo antigo. Rá vai gastar os dias no céu e as noites no rio. Os deuses terão que protegê-lo como antigamente. Venham, temos apenas alguns minutos.
Eu estava prestes a perguntar como ela planejava nos levar a sala do trono dos deuses. Bastet nos disse várias vezes que não é boa na convocação de portais. Então, uma porta de sombras se abriu no meio do ar. E Anúbis atravessou-a. Parecia irritantemente lindo, como sempre, em sua calça jeans preta e em sua jaqueta de couro, com uma camisa de algodão branco, que abraçou seu peito tão bem que eu perguntei se ele estava mostrando de propósito. Suspeitei que não. Ele provavelmente pulou da cama de manhã parecendo perfeito. Certo... esta imagem não me ajuda a manter a concentração.
― Olá, Sadie ― ele disse.
[Sim, Carter. Ele me cumprimentou primeiro. O que eu posso dizer? Eu sou importante assim.]
Eu tentei cruzar o olhar com ele.
― Então é você. Não notei você no submundo enquanto nós estávamos apostando nossas almas.
― Sim, estou feliz por você ter sobrevivido. Seu elogio fúnebre teria sido muito difícil de escrever.
― Ah, ha-ha. Onde você estava?
Uma dose de tristeza extra apareceu em seus olhos castanhos.
― Em um plano paralelo ― ele disse. ― Mas agora, devemos nos apressar.
Ele apontou para a porta das trevas. E só para mostrar a ele que eu não estava com medo, fui primeiro.
Do outro lado era a sala do trono dos deuses. Uma multidão de deuses reunidos virou-se para nós. O palácio parecia ainda maior do que da última vez que estive lá. As colunas estavam mais altas e a pintura era mais rica. No piso de mármore polido, estavam rodopiando várias constelações. Era como se estivéssemos pisando em toda a galáxia. O teto brilhava como um painel fluorescente gigante. O estrado e o trono de Hórus tinham sido transferidos para um dos lados, de modo que agora parecia mais como uma cadeira de observador, em vez de ser a principal do evento.
No centro da sala, o barco sol brilhava na doca seca. Esferas de luz faziam a limpeza do casco e a verificação dos aparelhos. Uraei circulavam o trono de fogo, onde Rá estava vestido como um rei egípcio, com seu mangual e cajado em seu colo. Seu queixo estava sobre o peito, e ele roncava alto.
Um jovem homem musculoso com armadura de couro reforçada veio em nossa direção. Ele tinha a cabeça raspada e olhos de cores diferentes, uma de prata, uma de ouro.
― Bem-vindos, Carter e Sadie ― Hórus disse. ― Nós estamos honrados.
Suas palavras não concordavam com seu tom, que era seco e formal. Os outros deuses inclinaram-se respeitosamente a nós, mas eu podia sentir a hostilidade latente sob suas aparências.
Todos estavam vestindo sua melhor armadura e pareciam muito imponentes. Sobek, o deus crocodilo (que não é o meu favorito) usava uma malha de ferro e trazia uma enorme equipe que fluía com a água. Nekhbet parecia tão limpa quanto um urubu pode estar, em seu manto preto de penas de seda e veludo. Ela inclinou a cabeça para mim, mas seus olhos me disseram que ela ainda queria me rasgar. Babi, o deus babuíno, estava com seus dentes escovados e seu pelo penteado. Ele estava segurando uma bola de rúgbi, possivelmente porque vovô tinha infectado-o com a obsessão.
Khonsu estava em seu terno prateado reluzente, atirando uma moeda ao ar e sorrindo. Eu queria dar-lhe um soco, mas ele balançou a cabeça como se fôssemos velhos amigos. Mesmo Set estava lá, em seu terno disco diabólico vermelho, encostado em uma coluna na parte de trás da multidão, segurando seu cajado de ferro preto. Lembrei-me que ele tinha prometido não me matar só até que libertasse Rá, mas no momento, ele parecia relaxado. Ele tirou o chapéu e sorriu para mim como se estivesse curtindo o meu desconforto.
Tot, o deus do conhecimento, era o único que não estava bem vestido. Ele usava a calça jeans habitual e um jaleco coberto de rabiscos. Ele me estudou com seus estranhos olhos de caleidoscópio, e eu tinha a sensação de que ele era o único na sala que realmente via o meu desconforto.
Ísís deu um passo a frente. Seus longos cabelos negros estavam trançados para baixo, por trás dos ombros de seu vestido fino. Suas asas de arco-íris brilhavam atrás dela. Ela se curvou para mim formalmente, mas eu podia sentir as ondas de frio vindas de cima dela.
Hórus voltou-se para os deuses reunidos. Eu percebi que ele não estava mais usando a coroa do faraó.
― Eis ― disse à multidão. ― Carter e Sadie Kane, que despertaram o nosso rei! Que não haja dúvida: Apófis tem um inimigo muito maior agora. Devemos nos unir a Rá.
Rá murmurou em seu sono – peixe, bolinho, doninha – e então voltou para o ronco.
Hórus pigarreou.
― Eu juro minha lealdade! Espero que todos façam o mesmo. Protegerei o barco de Rá, enquanto passamos a noite no Duat. Cada um de vocês deve se revezar com este dever até o deus sol... estar totalmente recuperado.
Ele parecia absolutamente convencido que isso nunca aconteceria.
― E nós encontraremos uma maneira de derrotar Apófis! ― disse. ― Agora, para comemorarmos o retorno de Rá, eu abraçarei Carter Kane como a um irmão!
Música começou a tocar, ecoando pelos corredores. Rá, no trono de seu barco, acordou e começou a bater palmas. Ele sorriu enquanto os deuses giravam em torno dele, alguns em forma humana, alguns se dissolvendo em tufos de nuvem, fogo ou luz. Ísis tomou minhas mãos.
― Espero que você saiba o que fez, Sadie ― disse ela em uma voz gelada. ― Nosso maior inimigo se reergueu, e você destronou o meu filho e fez um deus senil nosso líder.
― Dê a ele uma chance ― eu disse, apesar de sentir meus tornozelos virando manteiga.
Hórus apertou os ombros de Carter. E suas palavras não foram amigáveis.
― Eu sou seu aliado, Carter ― Hórus prometeu. ― Vou te emprestar a minha força sempre que pedir. Você pode reavivar o caminho da minha magia na Casa da Vida, e vamos lutar juntos para destruir a serpente. Mas não se engane: você me custou um trono. Se a sua escolha nos custar a guerra, juro que meu último ato antes de Apófis me engolir será esmagá-lo como um mosquito. Se ganharmos esta guerra sem a ajuda de Rá, se isso vier a acontecer, se você tiver me desgraçado para nada, eu juro que a morte de Cleópatra e a maldição de Akhenaton serão parecidos com nada, comparado com a ira que despejarei sobre você e sua família para sempre. Você me entendeu?
Para crédito de Carter, ele ergueu o olhar sobre o deus da guerra.
― Basta fazer a sua parte ― Carter respondeu.
Hórus riu para o público como se ele e Carter tivessem acabado de compartilhar uma boa piada.
― Vá agora, Carter. Veja o que custou sua vitória. Esperemos que todos os seus aliados não compartilhem esse destino.
Hórus virou as costas para nós e se juntou à celebração. Ísis sorriu para mim uma última vez e se dissolveu em um arco-íris cintilante.
Bastet estava ao meu lado, segurando sua língua, mas ela olhou como se quisesse retalhar Hórus como um poste de arranhar. Anúbis ficou constrangido.
― Sinto muito, Sadie. Os deuses podem ser...
― Ingratos ― perguntei ― irritantes?
Seu rosto ficou vermelho. Supus que ele pensou que eu estava falando dele.
― Nós podemos ser lentos para perceber o que é importante ― disse por fim. ― Às vezes, demora algum tempo para aceitarmos algo novo, algo que pode nos mudar para melhor.
Ele me encarou com aqueles olhos quentes, e eu queria derreter em uma poça.
― Nós temos que ir ― Bastet interrompeu. ― Mais uma parada, se você estiver bem para ela.
― O custo da vitória ― Carter lembrou. ― Bes? Ele está vivo?
Bastet suspirou.
― Pergunta difícil. Vamos lá.

***

O último lugar que eu queria ver de novo era os Acres Ensolarados. Nada mudou muito na casa de repouso. Nenhum sol renovador ajudou os deuses senis. Eles ainda estavam girando em volta de seus suportes para soro, batendo nas paredes e cantando hinos antigos, enquanto eles procuravam em vão os templos que não existiam mais.
Um novo paciente tinha se juntado a eles. Bes estava sentado com uma camisola de hospital em uma cadeira de vime, olhando pela janela para o Lago de Fogo. Taueret se ajoelhou ao seu lado, e seus pequenos olhos de hipopótamo estavam vermelhos de tanto chorar. Estava tentando fazê-lo beber com um copo de vidro. A água escorria pelo queixo de Bes.
Ele olhava fixamente na cachoeira de fogo à distância, com seu rosto inundado de luz vermelha. Seus cabelos encaracolados haviam sido recém-penteados, e estava vestindo uma camisa azul nova, havaiana e shorts, então parecia bastante confortável. Mas seu rosto estava franzido. Seus dedos seguravam os braços, como se ele soubesse que deveria se lembrar de algo, mas não conseguia.
― Está tudo bem, Bes ― A voz de Taueret tremeu quando ela limpou seu queixo com um guardanapo. ― Nós vamos trabalhar nisto. Eu vou cuidar de você.
Então nos notou. Sua expressão endureceu. Para uma deusa bondosa do parto, Taueret poderia parecer bem assustadora quando quisesse. Ela deu um tapinha no joelho do deus anão.
― Eu já volto, querido Bes.
Ela se levantou, o que foi um grande feito com sua barriga inchada, e dirigiu-nos para longe de sua cadeira.
― Como você se atreve a vir aqui! Como se você não tivesse feito o suficiente!
Eu estava prestes a romper em lágrimas e me desculpar quando percebi que sua raiva não se destinava a Carter ou a mim. Ela estava olhando para Bastet.
― Taueret... ― Bastet estendeu as mãos. ― Eu não queria isso. Ele era meu amigo.
― Ele foi um dos seus brinquedos de gato! ― Taueret gritou tão alto que alguns dos pacientes começaram a chorar. ― Você é tão egoísta como todo o seu tipo, Bastet. Você o usou e o descartou. Você sabia que ele te amava, e se aproveitou disso. Você brincava com ele como um rato sob sua pata.
― Isso não é justo ― Bastet murmurou, mas o cabelo dela começou a eriçar como ela faz quando está com medo.
Eu não podia culpá-la. Não há quase nada mais assustador do que um hipopótamo enfurecido. Taueret pisou com força, e seu salto quebrou.
― Bes merecia mais do que isso. Ele merecia mais do que você. Tinha um bom coração. Eu nunca mais me esquecerei dele!
Senti uma luta muito violenta entre uma gata e uma hipopótama prestes a começar. Eu não sei se eu fiz isso para salvar Bastet, ou para poupar os pacientes de serem traumatizados ou para amenizar minha culpa, mas fiquei entre as deusas.
― Nós vamos corrigir isso ― disparei. ― Taueret, eu juro pela minha vida. Nós vamos encontrar uma maneira de curar Bes.
Ela olhou para mim, e sua raiva fora drenada de seus olhos até que não restou nada além de pena.
― Criança, oh criança... Eu sei o que você quer dizer. Mas não me dê falsas esperanças. Eu tenho vivido com falsas esperanças por muito tempo. Vá vê-lo, se necessário. Veja o que aconteceu com o melhor anão do mundo. Então, nos deixe em paz. Não prometa-me o que não pode cumprir.
Ela se virou e saiu mancando em seu salto quebrado para a sala das enfermeiras. Bastet abaixou a cabeça. Ela expressava um sentimento muito estranho para um gato: vergonha.
― Eu vou esperar aqui ― anunciou.
Eu poderia dizer que foi a sua resposta final, assim, eu e Carter nos aproximamos de Bes sozinhos. O deus anão não se moveu. Ele se sentou em sua cadeira de vime, com a boca ligeiramente aberta, os olhos fixos no Lago de Fogo.
― Bes?
Eu coloquei minha mão em seu braço.
― Você pode me ouvir?
Ele não respondeu, é claro. Ele usava uma pulseira com seu nome escrito em hieróglifos, carinhosamente decorados, provavelmente feitos pela própria Taueret.
― Sinto muito. Nós vamos pegar seu ren de volta. Nós vamos encontrar uma maneira de curá-lo. Não vamos, Carter?
― Sim.
Ele limpou a garganta, e posso garantir que ele não estava agindo muito macho naquele momento.
― Sim, eu juro, Bes. Mesmo se for...
Ele provavelmente ia dizer mesmo se for a última coisa que nós faremos, mas decidiu não dizer nada. Atendendo à guerra eminente com Apófis, era melhor não pensar em como tão rápido nossas vidas podiam acabar.
Inclinei-me e beijei a testa de Bes. Me lembrei de como nós tínhamos nos encontrado na estação de Waterloo, quando ele levou Liz, Emma e eu em segurança. Me lembrei de como ele assustou Nekhbet e Babi em sua ridícula sunga. Pensei sobre a boba cabeça de Lênin de chocolate que ele comprou em São Petersburgo, e como ele colocou Walt e eu em segurança no portal nas Areias Vermelhas.
Não consegui pensar nele como pequeno. Ele tinha uma enorme, colorida, engraçada e maravilhosa personalidade – parecia impossível que ele se fora para sempre. Ele deu sua vida imortal para comprar para nós uma hora extra.
Não pude deixar de chorar. Carter me puxou para longe. Eu não me lembro de como chegamos de volta em casa, mas lembro de me sentir como se estivéssemos caindo ao invés de subir, como se o mundo mortal tivesse se tornado um lugar mais profundo e mais triste do que qualquer lugar do Duat.
Naquela noite, sentei sozinha no meu quarto com as janelas abertas.
A primeira noite de primavera estava surpreendentemente quente e agradável. Luzes brilhavam ao longo das margens do rio. A fábrica de bagel do bairro encheu o ar com o cheiro de pão.
Eu ouvia a minha playlist de músicas tristes e me perguntava como era possível que meu aniversário tivesse sido apenas alguns dias atrás. O mundo mudou. O deus sol retornou. Apófis estava livre de sua jaula e, embora tivesse sido banido a uma parte muito profunda do Duat, estaria trabalhando em seu caminho de volta muito rapidamente. A guerra estava chegando. Nós ainda tínhamos muito trabalho a fazer. No entanto, eu estava sentada aqui, ouvindo as mesmas músicas de antes, olhando para o meu pôster de Anúbis e me sentindo impotentemente conflitada sobre algo tão banal e irritante como... sim, você adivinhou. Garotos. Alguém bateu na porta.
― Entre ― falei sem muito entusiasmo.
Pensei que fosse o Carter. Conversamos muitas vezes no final do dia, mas apenas sobre reuniões. Ao contrário, era Walt, e de repente eu estava muito consciente que eu estava vestindo uma surrada camiseta velha e estava de pijama. Meu cabelo, sem dúvida parecia tão horrível quanto o de Nekhbet. Se Carter me visse desta maneira não haveria problemas. Mas Walt? Ruim.
― O que você está fazendo aqui? ― perguntei um pouco alto demais.
Ele piscou, obviamente surpreso com a minha falta de hospitalidade.
― Desculpe, eu vou sair.
― Não! Eu digo... tudo bem. Você só me surpreendeu. E... você sabe... nós temos regras com relação à garotos entrarem no quarto de garotas sem, hum, supervisão.
Percebi que havia soado terrivelmente pesado para mim, quase Carteresco. Mas eu estava nervosa. Walt cruzou seus braços. E ele tinha braços muito bons. Estava vestindo sua camisa de basquete e um calção, com sua usual coleção de amuletos ao redor de seu pescoço. Ele parecia tão saudável e atlético que era difícil acreditar que estava morrendo de uma antiga maldição.
― Bem, você é uma instrutora. Você pode me supervisionar?
Não há dúvida de que eu estava corando horrivelmente.
― Certo. Suponho que se você deixar a porta entreaberta... Er, o que lhe traz aqui?
Ele encostou a porta do armário. Com algum horror, percebi que ainda estava aberto, revelando meu pôster de Anúbis.
― Há tanta coisa acontecendo ― disse Walt. ― Você tem o suficiente para se preocupar. Eu não quero que você se preocupe comigo também.
― Tarde demais ― admiti.
Ele balançou a cabeça, como se ele compartilhasse minha frustração.
― Naquele dia, no deserto, em Bahariya... você pensaria que sou louco se eu disser que foi o melhor dia da minha vida?
Meu coração acelerou, mas eu tentei manter a calma.
― Bem, o transporte público egípcio, bandidos de estrada, os camelos fedorentos, múmias psicóticas romanas, e agricultores possuídos... Caramba, foi um grande dia.
― E você ― disse ele.
― Sim, bem... Acho que pertenço a essa lista de catástrofes.
― Não foi o que eu quis dizer.
Eu estava me sentindo como uma orientadora muito ruim – nervosa e confusa, e tendo pensamentos muito não-supervisórios. Meus olhos se desviaram para a porta do armário. Walt percebeu.
― Ah. ― Ele apontou para Anúbis. ― Você quer que eu feche isso?
― Sim ― eu falei. ― Não. Possivelmente. Eu quero dizer, não importa. Bem, não é que isso não importa, mas...
Walt riu como se o meu desconforto não o incomodasse.
― Sadie, olha. Eu só queria dizer que, aconteça o que acontecer, estou feliz de ter te conhecido. Eu estou contente de ter vindo para o Brooklyn. Jaz está trabalhando em uma cura para mim. Talvez ela encontre alguma coisa, mas de qualquer modo... está tudo bem.
― Não está tudo bem! ― Acho que minha raiva me surpreendeu mais do que surpreendeu ele. ― Walt, você está morrendo de uma maldição sangrenta. E eu tinha Menshikov ali, pronto para me dizer a cura, e... eu falhei com você. Como eu falhei com Bes. E nem trazer Rá de volta corretamente eu consegui.
Fiquei furiosa comigo mesma por chorar, mas eu não poderia ajudá-lo. Walt se aproximou e se sentou ao meu lado. Ele não tentou colocar o braço em volta de mim, o que foi tão bom. Eu já estava bastante confusa.
― Você não falhou comigo ― disse ele. ― Não falhou com ninguém. Fez o que era certo e isto precisou de sacrifício.
― Não você ― respondi. ― Eu não quero que você morra.
Seu sorriso me fez sentir como se o mundo fosse reduzido a apenas duas pessoas.
― O retorno de Rá pode não ter me curado ― ele disse ― mas continua me dando uma nova esperança. Você é incrível, Sadie. De um jeito ou de outro, nós vamos fazer este trabalho. Eu não estou deixando você.
Aquilo soou tão bem, tão excelente e tão impossível.
― Como você pode prometer isso?
Ele deslocou os olhos para a imagem de Anúbis, em seguida, de volta para mim.
― Apenas tente não se preocupar comigo. Temos de nos concentrar em derrotar Apófis.
―Alguma ideia de como?
Ele gesticulou em direção à minha mesa de cabeceira, onde o meu velho gravador estava – um presente de meus avós anos atrás.
― Conte as pessoas o que realmente aconteceu ― ele disse. ― Não deixe Jacobi e os outros espalharem mentiras sobre sua família. Eu vim para o Brooklyn porque peguei sua mensagem, a gravação sobre a pirâmide vermelha e sobre o amuleto djed. Você pediu por ajuda, e nós respondemos. Está na hora de pedir ajuda de novo.
― Mas quantos magos nós conseguimos da primeira vez... vinte?
― Ei, nós fomos muito bem na noite passada.
Walt olhou em meus olhos. Eu pensei que ele poderia me beijar, mas algo nos fez hesitar – um senso que só iria tornar as coisas mais incertas, mais frágeis.
― Mande outra fita, Sadie. Basta dizer a verdade. Quando você fala... ― Ele encolheu os ombros e, em seguida levantou-se para sair. ― Bem, você é muito difícil de ignorar.

***

Poucos momentos depois que ele saiu, Carter entrou, com um livro debaixo do braço. Ele me encontrou escutando música triste, e olhando para o gravador na cômoda.
― Isso foi Walt saindo do seu quarto? ― perguntou.
Um pouco de protecionismo fraterno penetrou em sua voz.
― O que aconteceu?
― Oh, apenas...
Meus olhos estavam fixos no livro que ele estava carregando. Era um livro esfarrapado, e me perguntei se ele queria me dar uma espécie de lição de casa. Mas a capa parecia tão familiar: o desenho de um diamante. A capa tinha letras multicoloridas.
― O que é isso?
Carter sentou ao meu lado. Nervoso, ele me ofereceu o livro.
― É, hum... não é um colar de ouro. Nem mesmo uma faca mágica. Mas eu disse que tinha um presente de aniversário para você. Este...
Corri meus dedos sobre o título: Levantamento Blackley de Ciências para o primeiro ano de colégio, Décima Edição. Então eu abri o livro. Na capa interna, estava escrito o nome em uma bonita letra cursiva: Ruby Kane. Era o livro da mamãe na faculdade – o mesmo que ela costumava ler para nós na hora de dormir. A mesma cópia.
Pisquei, em lágrimas.
― Como você conseguiu...
― Um shabti de recuperação da biblioteca ― disse Carter. ― Eles podem encontrar qualquer livro. Eu sei que é... uma espécie de presente imperfeito. Não me custou nada, e eu não fiz isso, mas...
― Cale a boca, seu idiota! ― atirei meus braços ao redor dele. ― É um presente de aniversário maravilhoso. E você é um irmão maravilhoso!
[Ótimo, Carter. Aí está, gravado para sempre. Basta não ter uma imaginação grande. Falei num momento de fraqueza.]
Nós viramos as páginas, sorrindo para o bigode que Carter tinha desenhado na cara de Isaac Newton e os diagramas desatualizados do sistema solar. Encontramos uma velha mancha de comida que foi provavelmente uma das minhas maçãs. Eu adorava maçãs.
Corremos nossas mãos sobre as notas na margens, feitas em letra cursiva pela mamãe. Eu me senti mais perto de minha mãe apenas segurando o livro, e espantado pela consideração de Carter. Eu aprendi seu nome secreto e achava que eu sabia tudo sobre ele, e ele ainda conseguiu me surpreender.
― Então, o que você estava dizendo sobre Walt? ― ele perguntou. ― O que está acontecendo?
Relutantemente, eu fechei o Levantamento Blackley de Ciências. E sim, essa foi provavelmente a única vez em minha vida que eu tinha fechado um livro com relutância. Levantei-me e coloquei o livro no meu armário. Então peguei o meu gravador antigo de fitas cassete.
― Temos trabalho a fazer ― disse a Carter.
E atirei-lhe o microfone. Então agora você sabe o que realmente aconteceu no equinócio, como o antigo Sacerdote-leitor Chefe morreu, e como Amós tomou seu lugar. Desjardins sacrificou sua vida para nos dar tempo, mas Apófis está trabalhando rapidamente em seu caminho para sair do abismo. Podemos ter semanas, se tivermos sorte. Dias, se não tivermos. Amós está tentando afirmar-se como o líder da Casa da Vida, mas não vai ser fácil.
Alguns nomos estão em rebelião. Muitos acreditam que os Kanes assumiram pela força. Estamos enviando esta fita para ajustar o registro. Nós não temos ainda todas as respostas. Não sabemos quando ou onde Apófis irá atacar. Não sabemos como curar Rá, ou Bes, ou mesmo Walt. Nós não sabemos qual é o papel que Zia vai ter, ou se podemos confiar nos deuses para nos ajudar. Mais importante, eu estou completamente dividida entre dois caras incríveis – um que está morrendo e outro que é o deus da morte. Que tipo de escolha é esta, eu lhe pergunto?
[Certo, desculpe... está acabando a fita novamente.]
O ponto é, onde quer que esteja, independentemente do tipo de mágica que você pratique, precisamos de sua ajuda. A menos que nos unamos e aprendamos o caminho dos deuses rapidamente, não temos a menor chance. Espero que Walt esteja certo e você vai me achar difícil de ignorar, porque o relógio está correndo. Nós vamos manter um quarto preparado para você na Casa do Brooklyn.

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