segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

A Pirâmide Vermelha - Carter

Capítulo 41 - Paramos de gravar, por enquanto

NÃO ACREDITO QUE SADIE vai me deixar contar o final. Nossa experiência deve ter servido para ela aprender alguma lição. Ai, ela acabou de me bater. Tudo bem.
De qualquer maneira, estou feliz por Sadie ter relatado a parte anterior. Acho que ela entendeu aquilo melhor que eu. E toda a história sobre Zia não ser Zia, e papai não ter sido resgatado... Foi duro de enfrentar.
Se alguém se sentia pior do que eu, esse alguém era Amós. Eu ainda tive magia suficiente para me transformar em falcão e transformá-lo em hamster (ei, eu estava com pressa!), mas, a alguns quilômetros do National Mall, ele começou a lutar para voltar ao normal. Sadie e eu fomos forçados a aterrissar do lado de fora de uma estação ferroviária, onde Amós se transformou novamente em humano e ficou encolhido, tremendo. Tentamos conversar, mas ele mal conseguia pronunciar uma frase.
Por fim, nós o levamos para dentro da estação. Deixamos Amós dormindo em um banco enquanto Sadie e eu nos aquecíamos e víamos as notícias.
De acordo com o Canal 5, a cidade inteira de Washington estava em alerta. Havia relatos de explosões e de luzes estranhas no Monumento a Washington, mas tudo que as câmeras conseguiam mostrar era um grande quadrado de neve derretida, uma imagem bem sem graça. Os especialistas falavam em terrorismo, mas, no final, ficou claro que não tinha havido nenhum dano permanente – só algumas luzes estranhas e assustadoras.
Depois de um tempo, a mídia começou a especular sobre uma estranha tempestade ou uma raríssima aurora boreal “no sul”. Uma hora mais tarde, as autoridades suspenderam o alerta.
Eu queria que Bastet estivesse conosco, porque, nas condições de Amós, não dava para dizermos que era ele o adulto que nos acompanhava; mas conseguimos comprar as passagens – para nós e para nosso tio “doente” – até Nova York.
Dormi no caminho, mas não soltei o amuleto de Hórus.
Chegamos ao Brooklyn quando o sol se punha.
Encontramos a mansão queimada, o que já esperávamos, mas não tínhamos para onde ir. Vi que tínhamos feito a escolha certa quando guiamos Amós para dentro e ouvimos um conhecido: “Agh! Agh!
— Khufu! — gritou Sadie.
O babuíno a abraçou e subiu em seus ombros. Ele cutucou seus cabelos, verificando se ela tinha trazido alguns piolhos bons para comer. Depois, pulou para o chão e foi buscar uma bola de basquete meio derretida. Ele grunhiu para mim com insistência, apontando para uma tabela improvisada com vigas queimadas e um cesto de roupa suja. Era um gesto de perdão, percebi. Ele tinha me perdoado por ser péssimo em seu jogo favorito, e estava se oferecendo para me ensinar.
Olhando em volta, percebi que ele tinha tentado arrumar e limpar a casa à sua maneira babuína. Tirara o pó do sofá que restava, empilhara caixas de Cheerios na lareira e tinha até posto vasilhas com água fresca e comida para Muffin, que dormia, encolhida, em uma pequena almofada. Na parte mais limpa da sala de estar, sob um trecho intacto do telhado, Khufu fez três pilhas distintas de travesseiros e lençóis – camas improvisadas para nós.
Um nó se formou em minha garganta. Ao ver o cuidado com que ele se preparou para nos receber, não consegui imaginar melhor presente de boas-vindas.
— Khufu — eu disse — você é um babuíno fabuloso.
— Agh! — disse ele, apontando para a bola de basquete.
— Quer me dar aulas? — perguntei. — Sim, eu mereço. Só preciso de um segundo para...
Meu sorriso se apagou quando olhei Amós.
Ele tinha se aproximado da estátua arruinada de Tot. A cabeça de íbis do deus, quebrada, jazia aos pés dele. A mão estava quebrada, e a tábua e o estilo também estavam no chão, destruídos. Amós olhava para o deus sem cabeça – o patrono dos magos – e deduzi o que ele estava pensando: Mau presságio para quem está voltando para casa.
— Tudo bem — disse a ele. — Vamos consertar tudo.
Se Amós me ouviu, não deu qualquer sinal. Apenas caminhou até o sofá e sentou-se, cansado, segurando a cabeça entre as mãos.
Sadie me olhou com desconforto. Depois olhou em volta para as paredes enegrecidas, o teto desmoronado e os restos queimados de mobília.
— Bem — disse ela, tentando soar animada. — Que tal se eu jogar basquete com Khufu enquanto você limpa a casa?

***

Mesmo fazendo uso de magia, levamos várias semanas para pôr a casa em ordem novamente. E só para torná-la habitável. Era difícil sem Ísis e Hórus ajudando, mas ainda conseguíamos fazer mágica. Só precisávamos de muito mais concentração e mais tempo. Todo dia, eu ia dormir me sentindo como se tivesse enfrentado doze horas de trabalhos forçados, mas, no final, conseguimos reparar as paredes e o teto e remover todo o lixo, até que a casa não tinha mais cheiro de fumaça. Conseguimos até consertar a varanda e a piscina. Levamos Amós para assistir quando jogamos o crocodilo de cera na água e Filipe da Macedônia ganhou vida.
Amós quase sorriu ao ver isso. Depois, afundou em uma cadeira na varanda e olhou desolado para o horizonte de Manhattan.
Comecei a me perguntar se algum dia ele voltaria a ser como antes. Amós tinha emagrecido muito. Seu rosto parecia cansado. Na maioria dos dias, ele se vestia com o roupão de banho e nem se dava o trabalho de pentear os cabelos.
— Ele foi possuído por Set — Sadie me disse certa manhã, quando mencionei quanto estava preocupado. — Tem ideia de como isso deve ser invasivo? A vontade dele foi vencida. Ele agora não confia em si mesmo e... Bem, pode levar muito tempo...
Tentamos nos distrair com o trabalho. Consertamos a estátua de Tot e o shabtiquebrado na biblioteca. Eu era melhor no trabalho pesado – mover blocos de pedra ou colocar vigas de madeira no lugar.
Sadie era melhor com os detalhes, como reparar os brasões de hieróglifos nas portas. Uma vez, ela realmente me deixou impressionado: imaginou seu quarto como era antes, e pronunciou o feitiço de reparação, hi-nehm. Os pedaços dos móveis se atraíram e bum! Reforma imediata. É claro, Sadie passou as doze horas seguintes dormindo, mas mesmo assim... foi legal! Devagar e sempre, a mansão começou a parecer um lar.
À noite, eu dormia com meu apoio de cabeça encantado, o que impedia meu ba de perambular. Mas, às vezes, ainda tinha visões estranhas – a pirâmide vermelha, a serpente no céu ou o rosto de meu pai preso no caixão de Set. Uma vez pensei ter ouvido a voz de Zia tentando me dizer algo ao longe, mas não consegui entender o que era.
Sadie e eu mantínhamos nossos amuletos trancados em uma caixa na biblioteca. Todas as manhãs eu ia até lá para me certificar de que estavam no mesmo lugar. Eu os encontrava brilhando, quentes, e me sentia tentado – muito tentado – a colocar o Olho de Hórus no pescoço. Mas sabia que não podia. O poder vicia, é perigoso demais. Consegui chegar ao equilíbrio com Hórus uma vez, em circunstâncias extremas, mas sabia que, se tentasse novamente, poderia ser muito fácil me deixar dominar. Eu precisava treinar antes, tornar-me um mago mais poderoso, até me sentir preparado para lançar mão de tamanha força.
Certa noite, na hora do jantar, recebemos um visitante.
Amós tinha ido para a cama cedo, como sempre. Khufu estava assistindo à ESPN com Muffin no colo. Sadie e eu estávamos exaustos, sentados na varanda que dava para o rio. Filipe da Macedônia flutuava silencioso na piscina. Exceto pelo murmúrio da cidade, a noite estava calma.
Não sei bem como aconteceu, mas num minuto estávamos sozinhos, e no outro havia um sujeito enorme na porta. Ele era alto e magro, tinha cabelos desarrumados e pele clara, e suas roupas eram pretas, como se ele as tivesse pegado emprestado de um padre ou coisa parecida. Devia ter uns dezesseis anos e, embora eu nunca tivesse visto seu rosto, tive a estranha sensação de que o conhecia.
Sadie se levantou tão depressa, que derrubou sua vasilha de sopa de ervilha – que já é bem repugnante na tigela, mas espalhada sobre a mesa... Eca!
— Anúbis! — exclamou ela.
Anúbis? Ela devia estar brincando, porque aquele cara não era nada parecido com o deus de cabeça de chacal que eu tinha visto no Mundo dos Mortos. Ele deu um passo para a frente e minha mão buscou a varinha.
— Sadie — ele falou. — Carter. Podem vir comigo, por favor?
— É claro — respondeu ela com a voz falhando.
— Espere aí — interferi. — Aonde vamos?
Anúbis apontou para trás dele e uma porta se abriu no vazio – um retângulo inteiramente preto.
— Alguém deseja vê-los.
Sadie segurou a mão dele e se dirigiu à escuridão, o que me deixou sem alternativa senão segui-la.
O Salão do Julgamento tinha passado por uma reforma. As balanças douradas ainda dominavam o espaço, mas agora estavam inteiras. Os pilares negros ainda marchavam para a penumbra nos quatro cantos. Mas agora eu podia ver a sobreposição – a estranha imagem holográfica do mundo real – e não era mais a visão de um cemitério, como Sadie descrevera. Era uma sala de estar branca, com pé-direito alto e janelas amplas. A porta dupla dava para uma varanda de onde se via o oceano.
Fiquei sem fala. Olhei para Sadie e notei, pelo susto estampado em seu rosto, que ela também reconhecia aquele lugar: nossa casa em Los Angeles, nas colinas do Pacífico – o último lugar onde vivemos como uma família.
— O Salão do Julgamento é intuitivo — explicou uma voz familiar. — Ele responde a lembranças fortes.
Só então notei que o trono não estava mais vazio. Sentado ali, com Ammit, o Devorador, deitado a seus pés, eu vi nosso pai.
Quase corri para ele, mas algo me impediu. Parecia o mesmo em muitos aspectos: o casaco marrom comprido, o terno amarrotado e as botas empoeiradas, a cabeça recém-raspada e a barba aparada. Seus olhos brilhavam, como sempre acontecia quando ele estava orgulhoso de nós.
Mas sua silhueta cintilava com uma luz estranha. Como o próprio ambiente, entendi que ele existia em dois mundos. Eu me concentrei, e meus olhos enxergaram um nível mais profundo do Duat.
Papai ainda estava ali, porém mais alto e mais forte, com trajes e joias de um faraó do Egito. Sua pele era de um tom escuro de azul, como o fundo do oceano.
Anúbis se aproximou e parou ao lado dele, mas Sadie e eu fomos um pouco mais cautelosos.
— Bem, aproximem-se — meu pai chamou. — Não vou mordê-los.
Ammit, o Devorador, rosnou quando chegamos mais perto, mas papai afagou sua cabeça de crocodilo e o acalmou.
— São meus filhos, Ammit. Comporte-se.
— Pa... papai? — gaguejei.
Quero ser claro: embora semanas tivessem passado desde a batalha contra Set, e apesar de eu ter estado ocupado durante todo esse tempo reconstruindo a mansão, não tinha deixado de pensar em meu pai nem por um minuto. Cada vez que via uma foto na biblioteca, lembrava as histórias que ele costumava me contar. Guardei as roupas dele em uma mala no armário de meu quarto, porque não suportava pensar que nossa vida de viagens tivesse chegado ao fim. Sentia tanta falta dele, que às vezes me virava para contar alguma coisa antes de lembrar que ele tinha nos deixado. Apesar de tudo isso, e de toda a emoção que fervia dentro de mim, tudo que consegui dizer foi:
— Você está azul.
A risada de papai soou tão normal, tão dele, que quebrou a tensão. O som ecoou pelo salão e até Anúbis sorriu.
— Faz parte — explicou meu pai. — Lamento não tê-los trazido aqui antes, mas as coisas têm estado... — Ele olhou para Anúbis, procurando a palavra ideal.
— Complicadas — sugeriu Anúbis.
— Complicadas. Queria dizer a vocês dois o quanto me orgulho de tudo o que fizeram, quanto os deuses são gratos...
— Espere aí — interrompeu Sadie.
Ela se aproximou do trono. Ammit grunhiu, mas Sadie rosnou de volta, o que confundiu o monstro, que acabou em silêncio.
— O que você é? — perguntou ela. — Meu pai? Osíris? Pelo menos está vivo?
Papai olhou para Anúbis.
— O que foi que eu disse sobre ela? Mais feroz que Ammit, eu falei.
— Não precisava me dizer. — O rosto de Anúbis tornou-se grave. — Aprendi a temer essa língua ferina.
Sadie reagiu ultrajada.
— Como disse?
— Respondendo à sua pergunta — continuou meu pai — sou Osíris e Julius Kane. Estou vivo morto, embora o termo reciclado se aproxime mais da verdade. Osíris é o deus dos mortos e o deus da vida nova. Para devolvê-lo ao trono...
— Você precisou morrer — concluí. — Sabia que seria assim. Hospedouintencionalmente Osíris, sabendo que morreria.
Eu tremia de raiva. Não tinha percebido o quanto aquilo me afetava, e não podia acreditar no que meu pai tinha feito.
— Era isso que queria dizer com “farei com que tudo fique bem outra vez”?
A expressão de meu pai não mudou. Ele ainda me olhava com orgulho e muitasatisfação, como se tudo que eu fazia o encantasse – até meus gritos. Era irritante.
— Senti sua falta, Carter — disse ele. — Não posso nem dizer quanto. Mas fizemos a escolha certa. Todos nós fizemos. Se você me salvasse no mundo lá em cima, teríamos perdido tudo. Pela primeira vez em milênios, temos uma chance de renascer, e uma chance de deter o caos, e tudo graças a vocês.
— Tinha de haver outro jeito — retruquei. — Você podia ter lutado como mortal, sem... sem...
— Carter, quando Osíris estava vivo, ele foi um grande rei. Mas quando morreu...
— Ele se tornou mil vezes mais poderoso — completei, lembrando a história que papai costumava nos contar.
Meu pai assentiu.
— O Duat é a base para o mundo real. Se há caos aqui, ele reverbera no mundo superior. Ajudar Osíris a retomar o trono foi o primeiro passo, uma medida mil vezes mais importante que tudo o que eu poderia ter feito no mundo superior... exceto ser seu pai. E eu ainda sou seu pai.
Meus olhos ardiam. Acho que entendi o que ele dizia, mas não gostava nada daquilo. Sadie parecia ainda mais furiosa do que eu, mas ela olhava para Anúbis.
— Língua ferina? — perguntou ela.
Papai pigarreou.
— Crianças, há outra razão para minha escolha, como já devem ter imaginado.
Ele estendeu a mão e uma mulher vestida de preto apareceu a seu lado. Tinha cabelos dourados, olhos azuis e inteligentes, e um rosto que parecia familiar. Parecia Sadie.
— Mãe — chamei.
Ela olhou para Sadie, depois para mim, e seu rosto expressava espanto, como se nósfôssemos os fantasmas.
— Julius me contou que tinham crescido, mas não imaginei que fosse tanto. Carter, aposto que já faz a barba...
— Mãe.
— ... e sai com garotas...
— Mãe!
Já notou como em três segundos os pais conseguem passar de pessoas maravilhosas a totalmente constrangedoras?
Ela sorriu para mim, e tive de lutar com uns vinte sentimentos diferentes ao mesmo tempo. Eu tinha passado anos sonhando estar novamente com meus pais, juntos, em nossa casa em Los Angeles. Mas não assim: não era para a casa ser uma holografia, minha mãe, um espírito, e meu pai... reciclado. Era como se o mundo se movesse sob meus pés, transformando-se em areia.
— Não podemos voltar, Carter — disse mamãe, como se lesse meus pensamentos. — Mas nada está perdido, nem mesmo na morte. Lembra-se da lei da conservação?
Eu tinha seis anos quando nos sentamos na sala de estar – esta sala de estar – e ela leu para mim as leis da física, como outros pais leem histórias na hora de dormir. Mas eu ainda lembrava.
— Energia e matéria não podem ser criadas ou destruídas.
— Só modificadas — minha mãe concordou. — E, às vezes, modificadas para melhor.
Ela segurou a mão de papai, e tive de admitir que, mesmo ele estando azul e ela, fantasmagórica, os dois pareciam muito felizes.
— Mãe. — Sadie engoliu em seco. Pela primeira vez, a atenção dela não estava em Anúbis. — Você realmente... Foi mesmo...
— Sim, minha menina corajosa. Meus pensamentos se misturaram com os seus. Estou muito orgulhosa de você. E graças a Ísis, sinto que também a conheço. — Ela se inclinou para a frente e sorriu com ar de cumplicidade. — Também gosto de caramelos de chocolate, embora sua avó nunca tenha aprovado o hábito de guardarmos doces no armário.
Sadie sorriu aliviada.
— Eu sei! Ela é impossível!
Tive a impressão de que elas começariam uma conversa que se estenderia por horas, mas, nesse momento, o Salão do Julgamento tremeu. Papai olhou o relógio, o que me fez pensar qual seria o fuso horário do Mundo dos Mortos.
— Precisamos terminar logo — informou. — Os outros esperam por vocês.
— Outros? — perguntei.
— Um presente antes de partirem. — Papai assentiu para mamãe.
Ela se adiantou e me entregou um pacote embrulhado em linho, do tamanho da palma de minha mão. Sadie me ajudou a desembrulhá-lo, e dentro havia um novo amuleto – algo como um pilar, ou um tronco de árvore, ou...
— Isto é uma coluna? — perguntou Sadie.
— O nome é djed — explicou meu pai. — Meu símbolo: a espinha de Osíris.
— Argh... — resmungou Sadie.
Minha mãe riu.
— É um pouco repugnante, mas, na verdade, é um símbolo poderoso. Representa estabilidade, força...
— A espinha dorsal? — perguntei.
Mamãe deu um sorriso aprovador, e novamente tive aquela sensação surreal de que o mundo se movia. Eu não conseguia acreditar que estava ali em pé, conversando com meus pais mortos.
Mamãe fechou minha mão com o amuleto. Seu toque era quente, como o de uma pessoa viva.
— Djed também representa o poder de Osíris: a vida renovada das cinzas da morte. É exatamente disso que você precisará para fazer com que outras pessoas inspirem-se no sangue dos faraós e então reconstruir a Casa da Vida.
— A Casa não vai gostar disso — opinou Sadie.
— Não — concordou minha mãe, animada. — Certamente não vai.
O Salão do Julgamento tremeu novamente.
— Chegou a hora — disse meu pai. — Voltaremos a nos encontrar, crianças. Mas, até lá, cuidem-se.
— Fiquem atentos a seus inimigos — acrescentou mamãe.
— E digam a Amós... — A voz de meu pai falhou. — Lembrem meu irmão que os egípcios acreditam no poder do sol nascente. Acreditam que cada amanhecer marca o início não só de um novo dia, mas de um novo mundo.
Antes que eu pudesse compreender o que isso significava o Salão do Julgamento desapareceu, e nós ficamos com Anúbis em uma área de escuridão.
— Vou lhes mostrar o caminho — disse ele. — Esse é meu dever.
Anúbis nos conduziu a um espaço na escuridão que não parecia diferente de outro qualquer. Mas, quando ele moveu a mão para a frente, uma porta se abriu. A passagem brilhou com a luz do dia.
Anúbis se curvou a mim com formalidade. Depois fitou Sadie com um brilho travesso no olhar.
— Foi... estimulante.
Sadie corou e apontou para ele com ar acusador.
— Ainda não terminamos, senhor. Espero que cuide de meus pais. E, na próxima vez que eu estiver no Mundo dos Mortos, você e eu teremos uma conversinha.
Os lábios dele se curvaram em um sorriso.
— Estarei esperando ansioso.
Passamos pela porta e entramos no palácio dos deuses.
O lugar era exatamente como Sadie descrevera depois de suas visões: repleto de colunas de fogo, braseiros incandescentes, piso de mármore lustroso e, no centro, um trono vermelho e dourado. À nossa volta, os deuses estavam reunidos. Muitos eram apenas flashes de luz e fogo. Outros eram imagens sombrias que mudavam, de humanas a animais. Reconheci alguns: Tot fez um aparecimento rápido como um cara de cabelos desgrenhados e jaleco, e depois se transformou em uma nuvem de gás verde; Hátor, a deusa com cabeça de vaca, me olhou confusa, como se me reconhecesse vagamente do incidente com o Molho Mágico. Procurei por Bastet, mas meu coração ficou pesado. Ela não estava ali. Na verdade, muitos deuses eu nem reconhecia.
— O que foi que começamos? — murmurou Sadie.
Entendi o que ela queria dizer. A sala do trono estava cheia com centenas de deuses, maiores e menores, todos se movendo pelo palácio, criando novas formas, brilhando com sua energia. Um exército sobrenatural...
E todos pareciam estar olhando para nós.
Felizmente, dois velhos amigos estavam ao lado do trono. Hórus vestia armadura completa e carregava um khopesh. Seus olhos delineados com kohl – um dourado, outro prateado – estavam mais penetrantes que nunca.
Ao lado dele, Ísis cintilava em seu vestido branco, com asas de luz.
— Bem-vindos — disse Hórus.
— Ah, oi — respondi.
— Ele tem um jeito todo especial com as palavras — resmungou Ísis, o que fez Sadie bufar.
Hórus apontou para o trono.
— Conheço seus pensamentos, Carter, por isso acho que sei o que você vai dizer. Mas preciso perguntar mais uma vez. Vai se unir a mim? Podemos governar a terra e o céu. O Maat precisa de um líder.
— Sim, eu sei.
— Eu seria mais forte com você como hospedeiro. Você não viu nada do que pode ser a magia de combate. Podemos realizar muitas coisas, e é seu destino liderar a Casa da Vida. Poderá ser o rei de dois tronos.
Voltei-me para Sadie, mas ela só deu de ombros.
— Não olhe para mim. Acho a ideia horrível.
Hórus olhou-a de cara feia, mas eu concordava com Sadie. Todos aqueles deuses esperando alguém que os liderasse, todos aqueles magos que nos odiavam – a ideia de tentar comandá-los fazia meus joelhos tremerem.
— Talvez um dia — eu disse. — Muito mais tarde.
Hórus suspirou.
— Cinco mil anos e ainda não entendo os mortais. Mas... que seja.
Ele subiu ao trono e olhou em volta, para os deuses reunidos.
— Eu, Hórus, filho de Osíris, reclamo o trono dos céus como meu direito! — gritou. — O que um dia foi meu será meu novamente. Alguém aqui deseja desafiar-me?
Os deuses tremularam e brilharam. Alguns ficaram muito sérios. Um deles resmungou algo que pareceu “queijo”, embora pudesse ser minha imaginação. Notei Sobek, ou outro deus crocodilo, mostrando as presas nas sombras. Mas ninguém desafiou Hórus.
O deus sentou-se no trono. Ísis entregou a ele um gancho e um mangual – os cetros gêmeos dos faraós. Ele os cruzou na altura do peito e todos os deuses se curvaram.
Quando se ergueram, Ísis caminhou em nossa direção.
— Carter e Sadie Kane, vocês fizeram muito para restaurar o Maat. Os deuses precisam reunir seu poder, e vocês ganharam tempo para nós, embora não saibamos quanto. Não será possível prender Apófis para sempre.
— Eu me contentaria com algumas centenas de anos — disse Sadie.
Ísis sorriu.
— Seja como for, hoje vocês são heróis. Os deuses têm com vocês uma dívida de gratidão, e sempre tratamos nossas dívidas com seriedade.
Hórus se levantou do trono. Piscou para mim e se ajoelhou diante de nós. Os outros deuses demonstraram desconforto, mas fizeram o mesmo. Até os deuses em forma de fogo baixaram as chamas.
Devo ter parecido muito surpreso, porque, quando se levantou, Hórus riu.
— Você está com aquela cara de quando Zia falou...
— Ah, podemos pular essa parte? — interrompi, apressado.
Deixar um deus morar em sua cabeça tinha sérias desvantagens.
— Vão em paz, Carter e Sadie — disse Hórus. — Encontrarão nosso presente amanhã.
— Presente? — perguntei, nervoso.
Se eu ganhasse mais um amuleto mágico, ia começar a suar frio.
— Você vai ver — prometeu Ísis. — Estaremos observando vocês, e esperando.
— É isso o que me assusta — disse Sadie.
Ísis moveu a mão e de repente estávamos de volta à varanda da mansão, como se nada tivesse acontecido.
Sadie me olhou de um jeito triste e pensativo.
— Animador — comentou ela.
Eu estendi a mão. O amuleto djed brilhava e eu o sentia quente no pacote de linho preto.
— Alguma ideia do que esta coisa faz?
Ela piscou.
— Hum? Ah, não interessa. O que achou de Anúbis? Quer dizer, como você o viu?
— Como eu... Ele parecia um garoto. Por quê?
— Um garoto mesmo ou um garoto com cabeça de cachorro?
— Acho que... Não, um garoto. Sem cabeça de cachorro.
— Eu sabia! — Sadie apontou para mim como se vencesse uma discussão. — Um garoto bonito! Eu sabia!
E com um sorriso ridículo, ela se virou e entrou na casa.
Minha irmã, como já devo ter mencionado, é um pouco estranha.
No dia seguinte, recebemos o presente dos deuses.
Acordamos e encontramos a mansão completamente reparada, mesmo os menores detalhes. Tudo o que ainda não tínhamos terminado – provavelmente o que equivaleria a mais um mês de trabalho – estava pronto.
A primeira coisa que encontrei foram as roupas novas no armário, e depois de um momento de hesitação, eu as vesti. Desci e encontrei Sadie e Khufu dançando no Grande Salão reformado. Khufu vestia uma camiseta nova dos Lakers e tinha uma bola de basquete novinha. Vassouras e baldes mágicos se ocupavam da limpeza de rotina.
Sadie olhou para mim e riu – e então fez cara de susto.
— Carter, o que... o que está vestindo?
Desci a escada me sentindo ainda mais encabulado. O armário estava cheio de roupas diferentes, não mais aqueles pijamas de linho. Minhas roupas antigas estavam lá, limpas – uma camisa com botões, calça cáqui, mocassins. Mas também havia outras peças, e foram essas que eu escolhi: Reeboks, jeans, camiseta e casaco com capuz.
— É, hum, nada demais. Roupas confortáveis de algodão, boas para magos. Papai certamente diria que pareço um gângster.
Esperei que Sadie debochasse de mim por causa das roupas e tentei me adiantar. Ela estudou cada detalhe de minha aparência.
Depois riu, satisfeita.
— É brilhante, Carter. Você quase parece um adolescente comum! E papai... — Ela puxou o capuz sobre minha cabeça. — Papai ia achar que você parece um mago perfeito, porque é isso que você é. Agora venha, o café da manhã está servido na varanda.
Estávamos começando a comer, quando Amós apareceu do lado de fora da mansão, e as roupas dele eram ainda mais surpreendentes que as minhas. Estava com um terno marrom novo, de casaco e chapéu combinando. Os sapatos brilhavam, os óculos redondos eram perfeitos e os cabelos estavam trançados com contas cor de âmbar. Sadie e eu o observamos.
— O que é? — perguntou Amós.
— Nada — respondemos juntos.
Sadie olhou para mim e moveu os lábios dizendo MEU DEUS, depois voltou aos ovos que estava comendo. Eu ataquei minhas panquecas. Filipe nadava feliz em sua piscina.
Amós sentou-se conosco à mesa. Ele estalou os dedos e o café encheu sua xícara de maneira mágica. Ergui as sobrancelhas. Ele não usava magia desde os Dias do Demônio.
— Pensei em me afastar por um tempo — anunciou ele. — Ir para o Primeiro Nomo.
Sadie e eu trocamos olhares.
— Tem certeza de que é boa ideia? — perguntei.
Amós bebeu seu café. Ele olhou para o rio East como se pudesse ver Washington do outro lado.
— Lá eles têm os melhores magos curandeiros. Não vão recusar alguém que chegue pedindo ajuda... Mesmo que seja eu. Acho... acho que devo tentar.
A voz dele era frágil, como se pudesse se calar a qualquer momento. Mesmo assim, aquilo era mais do que ele havia falado em semanas.
— Acho que é uma ideia brilhante — opinou Sadie. — Vamos cuidar de tudo por aqui, não é, Carter?
— Sim, com certeza.
— Talvez eu fique longe por um bom tempo — Amós nos preveniu. — Sintam-se em casa. Porque esta aqui é a casa de vocês. — Ele hesitou, como se escolhesse as palavras seguintes com grande cuidado. — E acho que, talvez, vocês devam começar a recrutar. Há muitas crianças pelo mundo que têm sangue de faraós. Muitas nem sabem o que são. O que vocês disseram em Washington, sobre restabelecer o caminho dos deuses, bem, essa pode ser nossa única chance.
Sadie se levantou e beijou a testa de Amós.
— Deixe conosco, tio. Temos um plano.
— Isso soa péssimo — comentei.
Amós conseguiu sorrir. Ele afagou a mão de Sadie, depois se levantou e, antes de entrar, afagou meus cabelos.
Eu comi mais um pedaço de panqueca e fiquei pensando por que, em uma manhã tão linda, ainda me sentia triste e um pouco incompleto. Com tantas coisas melhorando de repente, o que me faltava acabava sendo ainda mais doloroso.
Sadie mexia nos ovos em seu prato, mas não os comia mais.
— Suponho que seria egoísmo fazer mais algum pedido.
Olhei para ela e percebi que estávamos pensando o mesmo. Quando os deuses disseram que tinham um presente...Bem, você pode esperar muitas coisas, mas, como Sadie acabara de dizer, não é legal ser ganancioso.
— Vai ser difícil viajar se tivermos de fazer o recrutamento — comentei cauteloso. — Dois menores desacompanhados...
Sadie assentiu.
— Sem Amós. Sem um adulto responsável. Acho que Khufu não conta.
E foi então que os deuses completaram o presente.
Uma voz soou na porta.
— Parece que vocês têm uma vaga. Um emprego.
Eu me virei e senti uma tonelada de dor sendo removida de meu peito. Apoiada à porta e vestindo um macacão de pele de leopardo, uma mulher de cabelos escuros e olhos dourados empunhava duas lâminas enormes.
— Bastet! — gritou Sadie.
A deusa gata nos lançou um sorriso brincalhão, como se planejasse todo o tipo de travessuras.
— Alguém precisa de um acompanhante maior de idade?

***

Alguns dias mais tarde, Sadie teve uma longa conversa por telefone com vovô e vovó Faust, em Londres. Eles não pediram para falar comigo, e eu não fiquei para ouvir a conversa. Quando Sadie voltou ao Grande Salão, tinha uma expressão distante no olhar. Tive medo – muito medo – de que ela estivesse com saudades de lá.
— E então? — perguntei, relutante.
— Disse a eles que estamos bem — respondeu ela. — E eles me disseram que a polícia parou de incomodá-los por conta da explosão no British Museum. Parece que a Pedra de Roseta reapareceu, intacta.
— Como num passe de mágica — sugeri.
Sadie sorriu.
— A polícia decidiu que a explosão devia ter sido provocada por gás, algum tipo de acidente. Papai foi inocentado, e nós também. Eles disseram que posso voltar para casa. Para Londres. As aulas vão começar em algumas semanas. Liz e Emma, minhas amigas da escola, têm perguntado por mim.
O único som era o crepitar do fogo na lareira. De repente, o Grande Salão me parecia ainda maior, mais vazio.
— E o que disse a eles? — perguntei finalmente.
Sadie levantou uma sobrancelha.
— Deus, às vezes você é bem burro. O que acha que eu disse?
— Ah... — Minha boca estava seca como uma lixa. — Acho que vai ser bom rever suas amigas e voltar a seu antigo quarto e...
— Carter! — Ela me deu um soco no braço. — Eu disse a eles que não posso voltar para casa, porque já estou em casa. Meu lugar é aqui. Graças ao Duat, posso ver minhas amigas sempre que quiser. Além do mais, você estaria perdido sem mim.
Devo ter sorrido como um idiota, porque Sadie me mandou parar de fazer cara de bobo – mas ela parecia feliz com minha reação. Acho que ela sabia que estava certa, pela menos dessa vez. Eu teria ficado perdido sem ela.
[É, Sadie, também não acredito que acabei de dizer isso.]
Quando as coisas começaram a se acomodar, Sadie e eu nos dedicamos a nossa nova missão. Nosso destino era uma escola que Sadie tinha visto em um sonho. Não vou dizer qual, mas Bastet dirigiu por um bom tempo para nos levar até lá. Gravamos esta fita durante a viagem. Várias vezes as forças do caos tentaram nos deter. Várias vezes ouvimos boatos de que os inimigos começavam a caçar descendentes de faraós, tentando frustrar nossos planos.
Chegamos à escola um dia antes do início das aulas. Os corredores estavam vazios, e foi fácil entrar. Sadie e eu escolhemos um armário aleatoriamente, e ela me disse para criar uma combinação. Usando um pouco de magia, misturei os números: 13/32/33. Ei, para que mexer em time que está ganhando?
Sadie recitou um feitiço e o armário começou a brilhar. Ela guardou o embrulho lá dentro e fechou a porta.
— Tem certeza disso? — perguntei.
Ela assentiu.
— O armário está parcialmente no Duat. Vai guardar o amuleto até ser aberto pela pessoa certa.
— Mas se o djed cair em mãos erradas...
— Não vai — garantiu ela. — O sangue dos faraós é forte. As pessoas certas encontrarão o amuleto. Se descobrirem como devem usá-lo, seus poderes serão despertados. Precisamos acreditar que os deuses as guiarão até o Brooklyn.
— Não saberemos como treiná-los — argumentei. — Ninguém estudou o caminho dos deuses por dois mil anos.
— Vamos encontrar um jeito — respondeu Sadie. — Precisamos encontrar.
— A menos que Apófis nos encontre antes. Ou Desjardins e a Casa da Vida. Ou a menos que Set quebre a promessa. Ou que mil outras coisas deem errado.
— Sim — concordou Sadie com um sorriso. — Vai ser divertido, não vai?
Trancamos o armário e saímos dali.
Agora estamos de volta ao Vigésimo Primeiro Nomo, no Brooklyn.
Vamos mandar esta fita para algumas poucas pessoas escolhidas a dedo, para ver se ela é publicada. Sadie acredita em destino. Se a história chegou a suas mãos, provavelmente há um motivo. Procure pelo djed. Não vai levar muito tempo para ele despertar o poder em você. Depois, o truque é aprender a usar esse dom sem morrer.
Como eu disse no início: a história ainda não está terminada. Nossos pais prometeram que nos verão novamente, por isso sei que teremos de voltar ao Mundo dos Mortos em algum momento. Contanto que Anúbis esteja por lá, acho que Sadie vai gostar disso.
Zia está em algum lugar por aí – a verdadeira Zia. E eu pretendo encontrá-la.
Mas o principal, o mais importante, é que o caos está se reerguendo. Apófis está ganhando força. O que significa que precisamos nos fortalecer também – deuses e homens, unidos como nos velhos tempos. É a única maneira de impedir que o mundo seja destruído.
A família Kane tem muito trabalho a fazer. E você também.
Talvez queira seguir o caminho de Hórus ou de Ísis, de Tot ou de Anúbis, ou até mesmo o de Bastet. Não sei. Mas, seja qual for sua decisão, a Casa da Vida precisa de sangue novo para sobreviver.
Aqui somos nós, Carter e Sadie Kane, e vamos desligar.
Venha para o Brooklyn. Estamos esperando.

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