quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A Sombra da Serpente - Sadie

Capítulo 10 - O dia do trabalho acontece horrivelmente errado

Enquanto se aproximavam da doca, Carter e Walt acenaram para nós da proa doRainha Egípcia. Ao lado deles estava o capitão, Lâmina Suja de Sangue, que parecia um tanto quanto impetuoso no seu uniforme de piloto de barco, exceto pelo fato de que sua cabeça era um machado de dois gumes sujo de sangue.
— Isso é um demônio — disse Zia angustiada.
— Sim — concordei.
— É seguro?
Eu levantei uma sobrancelha para ela.
— Claro que não — ela murmurou. — Eu estou viajando com os Kanes.
A tripulação de esferas brilhantes circulava pelo barco, puxando cordas e abaixando a prancha.
Carter parecia cansado. Ele usava calça jeans e uma blusa amarrotada com manchas de molho barbecue. Seu cabelo estava molhado e achatado de um lado, como se ele tivesse caído no sono durante o banho.
Walt parecia muito melhor – bem, de fato, não havia competição. Ele usava sua blusa sem mangas, como de costume e calças de malhar. Conseguiu sorrir para mim, mesmo sua postura deixando óbvio que ele sentia dor. O encantamento shen no meu colar pareceu esquentar, ou então talvez fosse só minha temperatura corporal subindo.
Zia e eu subimos na prancha. Lâmina Suja de Sangue curvou-se, o que era um pouco incômodo, já que sua cabeça poderia partir uma melancia ao meio.
— Bem vinda a bordo, senhorita Kane — sua voz era um grunhido metálico que saia a partir da borda da sua lâmina frontal. — Eu estou ao seu serviço.
— Muitíssimo obrigada. Carter, posso falar com você?
Eu agarrei a orelha dele e o levei em direção à cabine do convés.
— Ai! — Ele reclamou enquanto eu o puxava pelo caminho.
Acredito que fazer isso na frente de Zia não foi legal, mas achei que seria bom para mostrar a ela a melhor maneira de lidar com meu irmão.
Walt e Zia nos seguiram até a sala de jantar. Como de costume, a mesa de mogno estava repleta de pratos com comida fresca. O lustre iluminava as paredes coloridas repletas com murais de deuses egípcios, as colunas douradas e o teto ornamentado.
Eu soltei a orelha de Carter e rosnei:
— Você ficou louco?
— Ai! — ele gritou de novo. — Qual é o seu problema?
— O meu problema — falei abaixando meu tom de voz. — É que você convocou esse barco de novo e esse capitão demônio, o qual Bastet te avisou que iria cortar sua garganta se tivesse a oportunidade!
— Ele está sob obrigação mágica — Carter argumentou. — Ele foi bem da ultima vez.
— Da ultima vez Bastet estava com a gente — Eu o lembrei — E se você acha que eu confio em um demônio chamado Lâmina Suja de Sangue mais do que eu...
— Pessoal — Walt interrompeu.
Lâmina Suja de Sangue entrou na sala de jantar, abaixando sua cabeça de lâmina sob o portal da porta.
— Lorde e lady Kane, a viagem é curta por aqui. Nós iremos chegar ao Salão do Julgamento em aproximadamente 20 minutos.
— Obrigado LSS — Carter disse enquanto coçava sua orelha. — Iremos nos juntar a você no deque logo.
— Muito bem — disse o demônio. — Quais são as ordens para quando chegarmos?
Eu fiquei tensa, esperando que Carter tivesse planejado o que faria. Bastet tinha nos avisado que demônios precisam de ordens muito claras para mantê-los sob controle.
— Você irá nos esperar enquanto visitamos o Salão do Julgamento — anunciou Carter. — Quando voltarmos, você irá nos levar para onde desejarmos ir.
— Como quiser.
Pelo tom de voz de Lâmina Suja de Sangue , ele parecia desapontado. Ou era só minha imaginação?
Depois que ele saiu, Zia fez uma careta.
— Carter, nesse caso eu concordo com Sadie. Como você pode confiar naquela criatura? Onde você arranjou esse barco?
— Ele pertencia aos nossos pais — Carter respondeu
Eu e ele compartilhamos um olhar, concordando silenciosamente que aquilo era suficiente. Nossos pais velejaram nesse barco do Tâmisa até a Agulha de Cleópatra na noite que mamãe morreu libertando Bastet do abismo. Depois papai tinha sentado nesse mesmo cômodo, de luto, com somente a deusa gato e o capitão demônio como companhia.
Lâmina Suja de Sangue havia nos aceitado como seus novos mestres. Ele havia seguido nossas ordens antes, mas era de pouco consolo. Eu não confiava nele. Não gostava de estar naquele barco. Mas por outro lado, nós precisávamos chegar ao Salão do Julgamento. Eu estava com fome e com sede, e acreditava que poderia aguentar uma viagem de vinte minutos, se isso significasse aproveitar um suco gelado e um prato de frango com naan.
Nós quatro nos sentamos envolta da mesa. Comemos enquanto comparávamos as nossas histórias. Era bem possível que esse tivesse sido o encontro duplo mais estranho de todos os tempos. Não tínhamos nenhum assunto sério para discutir, mas a tensão no ambiente estava tão forte quanto o ar poluído do Cairo.
Carter não tinha visto Zia em pessoa há meses. Eu conseguia perceber que ele estava tentando não encarar. Zia estava visivelmente desconfortável se sentando tão próxima dele. Ela se inclinava para longe toda hora, o que sem dúvidas feria os sentimentos dele. Talvez ela só estivesse preocupada que acontecesse outro episódio de arremesso de bolas de fogo.
Quanto a mim, estava exaltada por estar ao lado de Walt, mas ao mesmo tempo, desesperadamente preocupada com ele. Eu não conseguia esquecer sua aparência quando estava enrolado no linho brilhante de múmia, e me perguntei o que Amós queria dizer sobre a situação de Walt.
Walt tentava esconder, mas ele obviamente sentia dor. Suas mãos tremiam quando foi pegar seu sanduíche de pasta de amendoim.
Carter me contou sobre a evacuação da Casa no Brooklyn, que Bastet estava vigiando. Meu coração quase se partiu em pedaços ao pensar na pequena Shelby, o bobo maravilhoso do Felix, a tímida Cleo, indo defender o primeiro Nomo contra um ataque impossível, mas eu sabia que Carter estava certo. Não havia outra opção.
Carter continuava hesitando, como se esperasse que Walt contribuísse com informações. Walt permaneceu em silêncio. Claramente ele estava escondendo alguma coisa. De alguma maneira, eu tinha que pegá-lo sozinho e tirar as informações dele.
Em troca, contei a Carter sobre a Casa de Repouso. Falei sobre minha suspeita de que Amós tinha invocado Set, por causa do poder extra. Zia não me contradisse, e meu irmão não aceitou muito bem a notícia. Após alguns minutos falando palavrões e quebrando coisas da sala, ele finalmente se acalmou e disse:
— Nós não podemos deixar isso acontecer. Ele vai ser destruído.
— Eu sei. Mas iremos ajudar mais se seguirmos em frente.
Eu não mencionei o apagão de Zia na casa de repouso. No presente estado de espírito de Carter, achei que poderia ser demais para ele. Mas eu de fato lhe contei sobre o que Taueret tinha dito a respeito da possível localização da sombra de Bes.
— As ruínas de Saїs... — ele murmurou. — Acho que papai mencionou esse lugar. Ele disse que não havia sobrado muita coisa. Mas mesmo se pudéssemos encontrar a sombra, nós não temos tempo. Temos que impedir Apófis.
— Eu prometi. Além do mais, precisamos de Bes. Pense nisso como um período experimental. Salvando a sombra dele teremos tempo para praticar esse tipo de magia, antes de usá-la em Apóf... hum, ao contrário, lógico. Pode até nos levar ao caminho para ressuscitar .
— Mas...
— Ela tem um ponto — Walt interrompeu.
Eu não sei quem ficou mais surpreso, Carter ou eu.
— Mesmo se conseguirmos a ajuda de Setne — Walt falou— prender uma sombra em uma estátua vai ser difícil. Eu me sentiria melhor se pudéssemos testar primeiro em um alvo amigável. Eu posso te mostrar como se faz enquanto... enquanto eu ainda tenho tempo.
— Walt — falei — por favor, não fale assim.
— Quando você enfrentar Apófis — ele continuou — só terá uma chance para fazer o feitiço certo. Seria melhor se tivéssemos alguma prática.
Quando você enfrentar Apófis, ele falou isso tão calmo, mas o significado era claro: ele não estaria por perto quando acontecesse.
Carter cutucou seu pedaço de pizza meio comido.
— Eu só... Eu só não consigo imaginar como vamos fazer tudo isso a tempo. Eu sei que é uma missão pessoal para você, Sadie, mas...
— Ela tem que fazer — Zia falou gentilmente. — Carter, você uma vez foi em uma missão pessoal no meio de uma crise, não foi? E funcionou — ela colocou sua mão em Carter — às vezes você tem que seguir seu coração.
Pela expressão de Carter, parecia que ele estava tentando engolir uma bola de golfe. Antes que ele pudesse responder qualquer coisa, o sino do barco tocou. No canto da sala de jantar, o auto falante chiou, e a voz de Lâmina Suja de Sangue anunciou:
— Meus senhores e senhoras, chegamos ao Salão do Julgamento.

***

O templo negro estava exatamente do jeito que me lembrava. Subimos os degraus da doca e passamos entre as fileiras de colunas de obsidiana que seguiam em frente até se perderem na escuridão.
Cenas sinistras sobre a vida de baixo da terra brilhavam no chão e nos frisos circulando os pilares. Desenhos negros em pedras pretas. Fora as tochas vermelhas que queimavam a cada poucos metros, o ar estava tão nebuloso por causa das cinzas vulcânicas, que não conseguíamos enxergar muito a nossa frente.
Conforme íamos mais fundo no templo, vozes sussurravam ao nosso redor. Com o canto do meu olho, vi grupos de espíritos à deriva através do pavilhão – formas fantasmagóricas camufladas no ar enfumaçado. Alguns se moviam sem rumo – chorando baixinho ou rasgando suas roupas em desespero. Outros carregavam braçadas de rolos de papiro. Estes fantasmas pareciam mais sólidos e importantes, como se estivessem esperando por algo.
— Peticionários — disse Walt. — Eles trouxeram seus arquivos de caso, na esperança de uma audiência com Osíris. Ele ficou fora por muito tempo... deve haver um verdadeiro atraso de casos.
Os passos de Walt pareciam mais leves. Seus olhos pareciam mais alertas, seu corpo menos curvado por causa da dor. Ele estava tão perto da morte que eu temia que esta viagem ao mundo inferior pudesse ser difícil para ele, mas ele parecia mais à vontade do que o resto de nós.
— Como você sabe? — perguntei.
Walt hesitou.
— Eu não tenho certeza. Parece apenas... correto.
— E os fantasmas sem pergaminhos?
— Refugiados — disse ele. — Eles estão esperando que este lugar vá protegê-los.
Eu não perguntei do que. Lembrei-me do fantasma no baile da Academia do Brooklyn que tinha sido envolvido por tentáculos pretos e arrastado para o subterrâneo. Pensei sobre a visão que Carter descreveu – a nossa mãe encolhida debaixo de um penhasco em algum lugar do Duat, resistindo à atração de uma força escura à distância.
— Nós precisamos nos apressar — comecei a andar para frente, mas Zia agarrou meu braço.
— Não — disse ela. — Olha.
A fumaça se separou. Vinte metros a frente havia um enorme conjunto de portas de obsidiana. Na frente delas, um animal do tamanho de um galgo sentado em suas ancas – um chacal enorme com pelo preto e grosso, macias orelhas pontudas e uma cara em algum lugar entre uma raposa e um lobo. Seus olhos cor de lua brilhavam na escuridão.
Ele rosnou para nós, mas não foi com raiva. Eu posso ser influenciada, mas acho que os chacais são bonitos e fofinhos, mesmo que eles fossem conhecidos por cavar sepulturas no Egito Antigo.
— É apenas Anúbis — eu disse, esperançosa. — Este é o lugar onde nós o encontramos pela última vez.
— Isso não é Anúbis —, Walt avisou.
— Claro que é — disse para ele. — Veja.
— Sadie, não — disse Carter, mas eu caminhava em direção ao guardião.
— Alô, Anúbis — chamei. — Sou só eu, Sadie.
O chacal bonitinho e felpudo mostrou suas presas. Sua boca começou a espumar. Seus adoráveis olhos amarelos enviaram, uma mensagem inconfundível: Um passo a mais, e eu vou mastigar sua cabeça.
Eu congelei.
— Certo... isso não é Anúbis, a menos que ele esteja tendo um dia realmente ruim.
— Este é o lugar onde nós encontramos ele antes — disse Carter. — Por que ele não está aqui?
— É um de seus servos — Walt arriscou. — Anúbis deve estar... em outro lugar.
Mais uma vez, ele parecia muito certo, e eu senti uma pontada estranha de ciúmes. Walt e Anúbis pareciam ter passado mais tempo falando um com o outro do que comigo. Walt era de repente um especialista em todas as coisas de morte. Enquanto isso, eu não podia nem mesmo estar perto de Anúbis sem invocar a ira de seu acompanhante Shu, o deus do ar quente. Isso não era justo!
Zia se moveu para o meu lado, segurando seu cajado.
— Então, e agora? Não temos que derrotá-lo para passar?
Imaginei-a arremessando algumas de suas bolas de fogo destruidoras de margaridas. Isso era tudo o que precisávamos – um chacal latindo, flamejante correndo através do pátio de meu pai.
— Não — Walt disse, dando um passo a frente. — É apenas um porteiro. Ele precisa conhecer o nosso assunto.
— Walt — Carter avisou — se você estiver errado...
Walt levantou as mãos e lentamente se aproximou do chacal.
— Eu sou Walt Stone — ele apresentou. — Este é o Carter e Sadie Kane. E esta é Zia...
— Rashid — Zia terminou.
— Temos negócios no Salão do Julgamento — Walt terminou.
O chacal rosnou, mas parecia mais curioso, não tão com o seu hostil mastigar-a-nossa-cabeça.
— Temos um testemunho a oferecer — Walt continuou. — Informação relevante para o julgamento de Setne.
— Walt — Carter sussurrou. — Quando você se tornou um advogado júnior?
Eu o silenciei. O plano de Walt parecia estar funcionando. O chacal inclinou a cabeça como se estivesse ouvindo, depois se levantou e caminhou para dentro da escuridão. As portas duplas de obsidiana se abriram silenciosamente.
— Bem feito, Walt — eu disse. — Como é que você...?
Ele me encarou, e meu coração deu um salto mortal. Apenas por um momento, pensei que ele parecia... Não. Obviamente minhas emoções misturadas estavam brincando com minha mente.
— Hum, como você sabia o que dizer?
Walt deu de ombros.
— Eu tomei um palpite.
Tão rapidamente como elas se abriram, as portas começaram a se fechar.
— Depressa! — Carter avisou.
Nós corremos para a sala do tribunal dos mortos.

***

No início do semestre de Outono – minha primeira experiência em uma escola americana – nosso professor nos pediu para escrever a informação de contato de nossos pais e o que eles faziam para viver, no caso de eles poderem ajudar com o dia das profissões. Eu nunca tinha ouvido falar do dia das profissões. Quando entendi o que era, não consegui parar de rir.
O seu pai poderia vir falar sobre o seu trabalho? Eu imaginava a diretora pedindo.
Possivelmente, Sra. Laird... eu diria. Só que ele está morto, você vê. Bem, não completamente morto. Ele é mais como um deus ressuscitado. Ele julga espíritos mortais e alimenta o seu monstro de estimação com os corações dos maus. Ah, e ele tem a pele azul. Tenho certeza que ele ia deixar uma grande impressão no dia das profissões, para todos os estudantes que aspiram crescer e se tornar antigas divindades egípcias.
O Salão de Julgamento havia mudado desde a minha última visita. A sala tende a espelhar os pensamentos de Osíris, por isso, muitas vezes parecia uma réplica fantasmagórica do antigo apartamento da minha família em Los Angeles, nos tempos mais felizes quando todos viviam juntos.
Agora, possivelmente porque papai estava em serviço, o local era totalmente egípcio. A câmara circular estava forrada com pilares de pedra esculpido com desenhos de flores de lótus. Braseiros de fogo mágico lavavam as paredes em verde claro e azul. No centro da sala havia a balança da justiça, dois grandes discos de ouro equilibrados em um T de ferro.
Ajoelhado diante das balanças estava o fantasma de um homem em um terno risca de giz, nervoso, recitando de um pergaminho. Eu entendia porque ele estava tenso. Em cada lado dele havia um grande demônio réptil com pele verde, uma cabeça de cobra, e um perverso cajado posicionado sobre a cabeça do fantasma.
Papai se sentava na extremidade da sala em um estrado de ouro, com um atendente egípcio de pele azul ao seu lado. Ver o meu pai no Duat sempre foi confuso, porque ele parecia ser duas pessoas ao mesmo tempo. Por um lado, parecia como ele era em vida – um homem bonito e musculoso, com pele marrom-chocolate, calvo, e um cavanhaque bem aparado. Ele usava um terno de seda e um casaco escuro de viagem, como um empresário prestes a embarcar em um jato particular.
Em um nível mais profundo da realidade, no entanto, ele aparecia como Osíris, deus dos mortos. Ele estava vestido como um faraó em sandálias, um saiote bordado em linho e as linhas de ouro e corais de pescoço em seu peito nu. Sua pele era da cor de um céu de verão. Em seu colo estava um cajado e o mangual – os símbolos da realeza egípcia.
Por mais estranho que fosse ver meu pai com a pele azul e uma saia, eu estava tão feliz de estar perto dele de novo que quase esqueci sobre os julgamentos.
— Pai! — corri em direção a ele.
[Carter diz que eu fui tola, mas meu pai era o rei do tribunal, não era? Porque eu não deveria ter permissão para correr e dizer olá?]
Eu estava na metade do caminho quando as cobras demônios cruzaram seus cajados e bloquearam o meu caminho.
— Está tudo bem — disse papai, parecendo um pouco assustado. — Deixe-a passar.
Eu voei em seus braços, derrubando o cajado e o mangual para fora de seu colo.
Ele me abraçou calorosamente, sorrindo com carinho. Por um momento, me senti como uma garotinha de novo, segura em seu abraço. Então ele me segurou no comprimento do braço, e eu pude ver como ele estava cansado. Ele tinha bolsas sob os olhos. Seu rosto estava magro. Mesmo a poderosa aura azul de Osíris, que normalmente o rodeava como a coroa de uma estrela, tremeluzia fracamente.
— Sadie, meu amor — ele disse em uma voz tensa. — Por que você veio? Eu estou trabalhando.
Eu tentei não me sentir mal.
— Mas, pai, isso é importante!
Carter, Walt e Zia se aproximaram do estrado. A expressão de meu pai ficou sombria.
— Eu vejo — disse ele. — Primeiro, deixe-me terminar este julgamento. Crianças, fiquem aqui à minha direita. E por favor, não me interrompam.
O atendente do meu pai bateu o pé.
— Meu senhor, isso é muito irregular!
Ele era um companheiro de aparência estranha – um homem azul idoso, egípcio, com um pergaminho enorme em seus braços. Muito sólido para ser um fantasma, muito azul para ser humano, ele estava quase tão decrépito como Rá, vestindo apenas uma tanga, sandálias e uma peruca mal ajustada. Suponho que o cabelo falso preto brilhante em formato de cunha era para parecer viril em uma antiga forma egípcia, mas junto com o delineador kohl e o rouge em suas bochechas, o velho parecia um imitador de Cleópatra grotesco.
O rolo de papiro que ele segurava era simplesmente enorme. Anos atrás, eu tinha ido à sinagoga com minha amiga Liz, e o Torá que eles mantinham lá era pequeno, em comparação.
— Está tudo bem, Perturbador — meu pai disse a ele. — Podemos continuar agora.
— Mas, meu senhor... — o velho (seria Perturbador realmente o nome dele?) ficou tão agitado que perdeu o controle de seu rolo. O fundo caiu e se desenrolou, saltando os degraus como um tapete de papiro.
— Oh, incomoda, incomoda, incomoda! — Perturbador se esforçou para rebobinar seu documento.
Meu pai reprimiu um sorriso. Ele se voltou para o fantasma de terno de risca de giz, que ainda estava ajoelhado nas balanças.
— Minhas desculpas, Robert Windham. Você pode terminar o seu testemunho.
O fantasma curvou-se e engasgou.
— S... sim, senhor Osíris.
Ele se referiu a suas notas e começou a despejar uma lista de crimes que ele não era culpado – assassinato, roubo e venda de gado sob falsos pretextos.
Eu me virei para Walt e sussurrei:
— Ele é um cara moderno, não é? O que ele está fazendo no tribunal de Osíris?
Fiquei um pouco preocupada ao descobrir que Walt mais uma vez tinha uma resposta.
— A vida após a morte aparece diferente para cada alma — disse ele — dependendo do que eles acreditam. Para aquele cara, o Egito deve ter feito uma forte impressão. Talvez ele tivesse lido as histórias quando era jovem.
— E se alguém não acredita em vida após a morte? — perguntei.
Walt me deu um olhar triste.
— Então, isso é o que eles experimentam.
Do outro lado do tablado, o deus azul Perturbador assobiou para nós ficarmos quietos. Por que é que quando os adultos tentam silenciar as crianças, eles sempre fazem mais barulho do que o barulho que eles estão tentando parar?
O fantasma de Robert Windham parecia estar terminando o seu testemunho.
— Eu não dei falso testemunho contra os meus vizinhos. Hum, desculpe, eu não posso ler esta última linha...
— Peixe! — Perturbador gritou irritado. — Você roubou qualquer peixe dos lagos sagrados?
— Eu morava em Kansas — o fantasma disse. — Então... não.
Meu pai se levantou de seu trono.
— Muito bem. Deixe seu coração ser pesado.
Um dos demônios cobra pegou um pedaço de linho do tamanho do punho de uma criança.
Perto de mim, Carter inalou bruscamente.
— O coração dele está lá?
— Shh! — Perturbador disse tão alto que sua peruca quase caiu. — Tragam o Destruidor de Almas!
Na parede do fundo da câmara, uma porta de cãozinho se abriu. Ammit correu para a sala em grande excitação. O pobre coitado não era muito coordenado. Seu peito de leão em miniatura e antebraços eram elegantes e ágeis, mas sua metade de trás era um atarracado e muito menos ágil traseiro de hipopótamo. Ele continuou deslizando para o lado, desviando em pilares e derrubando braseiros. Cada vez que ele caía, balançava sua juba de leão e focinho de crocodilo e latia alegremente.
[Carter está me repreendendo, como sempre. Ele diz que Ammit é fêmea. Admito que não posso provar isso de qualquer maneira, mas eu sempre pensei em Ammit como um monstro macho. Ele é muito diferente, e do jeito que ele marca seu território... mas não importa.]
— Lá está o meu bebê! — falei alto demais.
Ammit correu para mim e pulou em meus braços, aninhando-me com seu focinho áspero.
— Meu senhor Osíris! — Perturbador perdeu o fundo de seu rolo novamente, que se desenrolou em torno de suas pernas. — Isso é um ultraje!
— Sadie — papai disse com firmeza — por favor, não se refira ao Devorador de Almas como bebê.
— Desculpe — murmurei, e deixei Ammit descer.
Um dos demônios cobra colocou o coração de Robert Windham sobre a balança da justiça. Eu tinha visto muitas fotos de Anúbis fazendo esse dever, e eu queria que ele estivesse aqui agora. Anúbis teria sido muito mais interessante de assistir do que algum demônio cobra.
No prato oposto, a Pena da Verdade apareceu. (Não me fale sobre a Pena da Verdade.) As balanças vacilaram. Os dois discos pararam, na mesma altura. O fantasma de risca de giz chorou de alívio. Ammit choramingou decepcionada.
— Muito impressionante — meu pai disse. — Robert Windham, você foi considerado suficientemente virtuoso, apesar do fato de que você era um banqueiro de investimentos.
— Doações para a Cruz Vermelha, baby! — O fantasma gritou.
— Sim, bem — meu pai disse secamente — você pode continuar a vida após a morte.
Uma porta se abriu para a esquerda do estrado. Os demônios cobra levantaram Robert Windham de pé.
— Obrigado — ele gritou, com os demônios o escoltando para fora.
— E se você precisar de algum conselho financeiro, Senhor Osíris, eu ainda acredito na viabilidade a longo prazo do mercado...
A porta se fechou atrás dele.
Perturbador cheirou indignado.
— Homem horrível.
Meu pai deu de ombros.
— Uma alma moderna que apreciava os meios do antigo Egito. Ele não poderia ser de todo ruim.
Então papai virou-se para nós.
— Crianças, esse é Perturbador, um dos meus conselheiros e deuses de julgamento.
— Desculpe? — fingi que não ouvi. — Você disse que ele é perturbado?
— Perturbador é o meu nome! — O deus gritou com raiva. — Eu julgo aqueles que são culpados de perder a paciência!
— Sim. — Apesar do cansaço de meu pai, seus olhos brilhavam com diversão. — Esse era o dever tradicional de Perturbador, embora agora que ele seja meu último ministro, ele me ajuda com todos os meus casos. Costumava haver 42 deuses de julgamentos por crimes diferentes, você vê, mas...
— Como Pé Quente e Abraçador de Fogo — Zia afirmou.
Perturbador engasgou.
— Como você sabe deles?
— Nós os vimos — ela respondeu. — Na Quarta Casa da Noite.
— Você viu... — Perturbador quase derrubou seu pergaminho completamente. — Senhor Osíris, devemos salvá-los imediatamente! Meus irmãos...
— Vamos discutir isso — papai prometeu. — Primeiro, eu quero ouvir o que trouxe meus filhos para o Duat.
Nós nos revezamos explicando: os magos rebeldes e sua aliança secreta com Apófis, o ataque iminente sobre o Primeiro Nomo e nossa esperança de encontrar um novo tipo de feitiço de execração que poderia parar Apófis.
Algumas de nossas notícias surpreenderam e perturbaram nosso pai – como o fato de que muitos magos tinham fugido do Primeiro Nomo, deixando-o tão mal defendido que tínhamos enviado nossos iniciados da Casa do Brooklyn para ajudar, e que Amós estava flertando com os poderes de Set.
— Não — disse o pai. — Não, ele não pode! Estes magos, que já o abandonaram... Imperdoável! A Casa da Vida deve se reagrupar ao Sacerdote-leitor Chefe. — Ele começou a se levantar. — Eu deveria ir para o meu irmão...
— Meu senhor — Perturbador lembrou — você não é mais um mago. Você é Osíris.
Papai fez uma careta, mas recuou de volta ao trono.
— Sim. Sim, é claro. Por favor, crianças, continuem.
Algumas de nossas notícias papai já conhecia. Seus ombros caíram quando mencionamos os espíritos dos mortos que estavam desaparecendo, e com a visão de nossa mãe perdida em algum lugar no profundo do Duat, lutando contra a força de uma escuridão que Carter e eu estávamos certos de ser a sombra de Apófis.
— Tenho procurado por sua mãe em todos os lugares — disse papai desanimado. — Esta força que está levando os espíritos... se é a sombra da serpente ou algo ou... eu não posso parar. Eu não posso nem mesmo encontrar isso. Sua mãe...
Sua expressão se tornou frágil como o gelo. Eu entendi o que ele estava sentindo. Durante anos, ele viveu com a culpa por não conseguir evitar a morte de nossa mãe. Agora ela estava em perigo de novo, e mesmo que ele fosse o senhor dos mortos, se sentia impotente para salvá-la.
— Nós podemos encontrá-la — prometi. — Tudo isso está ligado, pai. Nós temos um plano.
Carter e eu explicamos sobre o sheut, e como ele poderia ser usado para um feitiço de execração gigante.
Meu pai se sentou mais à frente. Seus olhos se estreitaram.
— Anúbis lhe disse isso? Ele revelou a natureza do sheut a um mortal?
Sua aura azul cintilou perigosamente. Eu nunca tinha estado com medo do meu pai, mas admito que dei um passo para trás.
— Bem... não foi só Anúbis.
— Tot ajudou — disse Carter. — E alguns de nós adivinhamos...
— Tot! — Meu pai cuspiu. — Este é um conhecimento perigoso, crianças. Muito perigoso. Eu não vou ter vocês...
— Pai! — gritei.
Acho que o surpreendeu, mas minha paciência finalmente estalou. Eu tive o bastante de deuses me dizendo o que não devia ou não podia fazer.
— A sombra de Apófis é o que está atraindo as almas dos mortos. Tem que ser! Ela está se alimentando delas, ficando mais forte conforme Apófis se prepara para subir.
Eu realmente não tinha processado a ideia antes, mas quando eu disse as palavras, elas se pareceram com a verdade – horrível, mas a verdade.
— Temos que encontrar a sombra e capturá-la — insisti. — Então nós podemos usá-la para banir a serpente. É nossa única chance... a menos que você queira que a gente use uma execração padrão. Nós temos a estátua pronta para fazer isso, não temos, Carter?
Carter deu um tapinha em sua mochila.
— O feitiço vai nos matar — disse ele. — E provavelmente não vai funcionar. Mas se essa é a nossa única opção...
Zia pareceu horrorizada.
— Carter, você não me disse! Você fez uma estátua de... dele? Você iria sacrificar-se para...
— Não — nosso pai cortou. A raiva se drenando para fora dele. Ele caiu para frente e colocou seu rosto entre as mãos. — Não, você está certa, Sadie. Uma pequena chance é melhor do que nenhuma. Eu não poderia suportar se vocês... — Ele sentou-se e respirou fundo, tentando recuperar a compostura. — Como posso ajudar? Eu suponho que vocês vieram aqui por uma razão, mas estão pedindo magia que eu não possuo.
— Sim, bem — falei — essa é a parte difícil.
Antes que eu pudesse dizer mais, o som de um gongo reverberou através da câmara. As portas principais começaram a abrir.
— Meu senhor — Perturbador disse — o julgamento começa.
— Agora não! — meu pai respondeu. — Não é possível ser adiado?
— Não, meu senhor. — O deus azul baixou a voz. — Este é o seu julgamento. Você sabe...
— Ah, pelas doze portas da noite! — Papai amaldiçoou. — Crianças, este julgamento é muito grave.
— Sim — eu disse. — Na verdade, isso é o que...
— Nós vamos conversar depois — papai me cortou. — E, por favor, o que quer que você faça, não fale com o acusado ou tenha contato com os olhos dele. Este espírito é particularmente...
O gongo soou outra vez. Uma tropa de demônios marchou em volta, cercando o acusado. Eu não tive que perguntar quem ele era.
Setne tinha chegado.

***

Os guardas estavam intimidadores o suficiente – seis guerreiros de pele vermelha com lâminas de guilhotina nas cabeças. Mesmo sem eles, eu poderia dizer que Setne era perigoso por todas as precauções mágicas. Hieróglifos brilhavam em espiral em torno dele como os anéis de Saturno – uma coleção de símbolos anti-magia como: Reprimir, Amortecer, Fique, Cale-se, Impotente e Nem Sequer Pensar Nisso.
Os pulsos de Setne estavam unidos com tiras de pano rosa. Duas faixas mais escuras estavam amarradas em torno de sua cintura. Uma delas estava presa em volta do pescoço, e mais duas uniam os tornozelos, então ele se arrastava conforme ele andava.
Para o observador casual, as fitas cor de rosa podem ter parecido como um kit de jogo de encarceramento da Hello Kitty, mas eu sabia por experiência própria que elas eram alguns dos vínculos mágicos mais poderosos do mundo.
— As Sete Fitas de Hathor — Walt sussurrou. — Eu gostaria de poder fazer algumas dessas.
— Eu tenho algumas — Zia murmurou. — Mas o tempo de recarga é muito longo. A minha não estará pronta até dezembro.
Walt olhou para ela com admiração.
Os demônios guilhotina se espalharam em cada lado do acusado.
O próprio Setne não parecia problema, certamente não alguém digno de tanta segurança. Ele era muito pequeno – não pequeno como Bes, veja bem, mas ainda um homem diminuto. Seus braços e pernas eram magros. Seu peito era um xilofone de costelas. No entanto, ele estendeu o queixo e sorriu com confiança, como se fosse o dono do mundo – o que não é fácil quando se está usando apenas uma tanga e algumas fitas cor de rosa.
Sem dúvida, seu rosto era o mesmo que eu tinha visto na parede do Museu de Dallas, e outra vez no Salão das Eras. Ele tinha sido o sacerdote que sacrificou o touro na visão brilhante do Novo Reino.
Ele tinha o mesmo nariz aquilino, olhos de pálpebras pesadas e lábios finos cruéis. A maioria dos sacerdotes dos tempos antigos eram carecas, mas o cabelo de Setne era escuro e grosso, penteado para trás com óleo – como um garoto difícil dos anos 50. Se eu tivesse visto ele na praça Piccadilly Circus em Londres (com mais roupas, espero) eu o teria evitado, assumindo que ele estava distribuindo anúncios ou tentando vender ingressos para um show no West End. Desprezível e irritante? Sim. Perigoso? Não de verdade.
Os demônios guilhotina o empurraram de joelhos. Setne parecia achar isso divertido. Seus olhos brilharam sobre a sala, registrando cada um de nós. Tentei não fazer contato visual, mas era difícil. Setne me reconheceu e piscou. De alguma forma, eu sabia que ele podia ler minhas emoções misturadas muito bem, e que ele as achou engraçadas.
Ele inclinou a cabeça para o trono.
— Senhor Osíris, todo este alarido para mim? Você não deveria.
Meu pai não respondeu. Com uma expressão sombria, ele fez um gesto para Perturbador, que vasculhou seu pergaminho até encontrar o local adequado.
— Setne, também conhecido como Príncipe Khaemwaset...
— Oh, uau... — Setne sorriu para mim, e eu lutei contra a vontade de sorrir de volta. —Não ouvia esse nome havia tempo. Isso é história antiga, bem ali!
Perturbador bufou.
— Você é acusado de crimes hediondos! Você blasfemou contra os deuses quatro mil e noventa e duas vezes.
— Noventa e um — Setne corrigiu. — Aquela rachadura sobre Senhor Hórus, aquilo foi apenas um mal-entendido — ele piscou para Carter. — Estou certo, amigo?
Como diabos ele sabia sobre Carter e Hórus?
Perturbador embaralhou seu rolo.
— Você usou a magia para o mal, incluindo 23 assassinatos...
— Auto-defesa! — Setne tentou levantar suas mãos, mas as fitas o contiveram.
— ...incluindo um incidente em que foi pago para matar com magia — Perturbador disse.
Setne encolheu os ombros.
— Isso foi legítima defesa para o meu empregador.
— Você conspirou contra três faraós diferentes — Perturbador continuou — tentou derrubar a Casa da Vida em seis ocasiões. Mais grave que tudo, roubou os túmulos dos mortos para roubar livros de magia.
Setne ria com facilidade. Ele olhou para mim como se dissesse: Você acredita nesse cara?
— Olha, Perturbador — disse ele — esse é o seu nome, certo? Um bonito deus de julgamento inteligente como você... você deve estar sobrecarregado e subvalorizado. Eu sinto por você, realmente sinto. Você tem coisas melhores a fazer do que cavar minha história antiga. Além disso, todas essas acusações... já lhes respondi em meus julgamentos anteriores.
— Ah — Perturbador parecia confuso. Ele ajustou a peruca conscientemente e se virou para o meu pai. — Devemos deixá-lo ir, então, meu senhor?
— Não, Perturbador — papai se sentou para frente. — O prisioneiro está usando palavras divinas para influenciar sua mente, distorcendo a magia mais sagrada do Maat. Mesmo em suas amarras, ele é perigoso.
Setne examinou suas unhas.
— Senhor Osíris, estou lisonjeado, mas, sinceramente, essas acusações...
— Silêncio! — papai empurrou a mão em direção ao prisioneiro.
Os hieróglifos em espiral brilharam mais em torno dele. As Fitas de Hathor se apertaram.
Setne começou a engasgar. Sua expressão presunçosa derreteu, substituída por ódio absoluto. Eu podia sentir sua raiva. Ele queria matar meu pai, matar todos nós.
— Pai! — eu disse. — Por favor, não!
Meu pai franziu a testa para mim, claramente descontente com a interrupção. Ele estalou os dedos, e as amarras de Setne relaxaram. O mágico fantasma tossiu e vomitou.
— Khaemwaset, filho de Ramsés — meu pai disse calmamente — você foi condenado ao esquecimento mais de uma vez. Na primeira vez, você conseguiu implorar por uma redução da pena, se voluntariando para servir ao faraó com a sua magia...
— Sim — Setne resmungou. Ele tentou recuperar o seu equilíbrio, mas seu sorriso estava torcido de dor. — Eu sou mão de obra qualificada, meu senhor. Seria um crime me destruir.
— No entanto, você escapou a caminho — disse meu pai. — Matou seus guardas e passou os 300 anos seguintes semeando o caos em todo o Egito.
Setne encolheu os ombros.
— Não foi tão ruim assim. Apenas um pouco de diversão.
— Você foi capturado e sentenciado novamente — meu pai continuou — mais três vezes. Em cada caso, você foi conivente com seu caminho para a liberdade. E desde que os deuses estiveram ausentes do mundo, você correu solto, fazendo o que te satisfaz, cometendo crimes e aterrorizando os mortais.
— Meu senhor, isso é injusto — Setne protestou. — Primeiro de tudo, eu senti falta de vocês deuses. Honestamente, foi um milênio um pouco maçante sem vocês. Quanto a estes ditos crimes, bem, algumas pessoas podem dizer que a Revolução Francesa foi uma festa de primeira classe! Eu sei que eu me diverti muito. E arquiduque Ferdinando? Um total furo. Se você o conhecesse, você teria assassinado ele também.
— Basta! — disse papai. — Está feito. Eu sou o hospedeiro de Osíris agora. Não vou tolerar a existência de um vilão como você, até mesmo como um espírito. Desta vez, você está sem truques.
Ammit latiu animadamente. Os guardas guilhotina picaram suas lâminas para cima e para baixo como se estivessem batendo palmas. Perturbador gritou:
— Ouçam, ouçam!
Quanto a Setne... ele jogou a cabeça para trás e riu.
Meu pai pareceu espantado, depois indignado. Ele levantou a mão para apertar as fitas de Hathor, mas Setne disse:
— Espere, meu senhor. Aqui está a coisa. Eu não estou sem truques. Pergunte a seus filhos ali. Pergunte a seus amigos. Essas crianças precisam de minha ajuda.
— Sem mais mentiras — meu pai rosnou. — Seu coração deve ser pesado, de novo, e Ammit vai devorar...
— Pai! — gritei. — Ele está certo! Nós precisamos dele.
Meu pai se virou para mim. Eu praticamente podia ver a dor e a raiva se agitando dentro dele. Ele tinha perdido a sua mulher. Estava impotente para ajudar seu irmão. A batalha do fim do mundo estava prestes a começar, e seus filhos estavam na linha de frente. Papai precisava fazer a justiça neste mago fantasma. Precisava sentir que ele poderia fazer algo certo.
— Pai, por favor, ouça. Eu sei que é perigoso. Sei que você odeia isso. Mas nós viemos aqui por causa de Setne. O que disse antes sobre o nosso plano... Setne está com o conhecimento de que precisamos.
— Sadie está certa — Carter concordou. — Por favor, pai. Você perguntou como poderia ajudar. Dê-nos a custódia de Setne. Ele é a chave para derrotar Apófis.
Ao som daquele nome, um vento frio soprou o tribunal. Os braseiros estalaram. Ammit choramingou e colocou as patas sobre o seu focinho. Até mesmo os demônios guilhotina se embaralharam nervosamente.
— Não — papai respondeu. — Absolutamente não. Setne está influenciando você com sua magia. Ele é um servo do Caos.
— Meu senhor — Setne disse, seu tom de repente suave e respeitoso — eu sou um monte de coisas, mas um servo da cobra? Não. Eu não quero o mundo destruído. Não há nada nisso para mim. Ouça a menina. Deixe-a dizer-lhe o seu plano.
As palavras fizeram seu caminho em minha mente. Percebi que Setne estava usando magia, comandando-me a falar. Eu me endureci contra o desejo. Infelizmente, Setne estava ordenando-me a fazer algo que eu amava – falar. Tudo veio derramando: Como nós tentamos salvar o Livro da Derrota de Apófis, em Dallas, como Setne tinha falado comigo lá, como nós encontramos a caixa de sombra e batemos na ideia de usar osheut. Expliquei minhas esperanças de reviver Bes e destruir Apófis.
— É impossível — disse papai. — Mesmo se não fosse, Setne não pode ser confiável. Eu nunca iria soltá-lo, especialmente para meus filhos. Ele os mataria na primeira oportunidade!
— Pai — Carter disse — nós não somos mais crianças. Nós podemos fazer isso.
A agonia no rosto do meu pai era difícil de suportar. Forcei as lágrimas e me aproximei do trono.
— Pai, sei que você nos ama — eu segurei sua mão — sei que quer nos proteger, mas você arriscou tudo para nos dar uma chance de salvar o mundo. Agora é hora de fazermos isso. Este é o único caminho.
— Ela está certa — Setne conseguiu parecer arrependido, como se ele lamentasse que pudesse obter uma prorrogação. — Além disso, meu senhor, é a única maneira de salvar os espíritos dos mortos antes da sombra de Apófis destruir tudo, inclusive sua esposa.
O rosto do meu pai passou de céu azul para índigo profundo. Ele agarrou o trono como se quisesse arrancar os braços.
Pensei que Setne tinha ido longe demais.
Então as mãos de meu pai relaxaram. A raiva nos olhos dele mudou para desespero e fome.
— Guardas — disse ele — dê ao prisioneiro a Pena da Verdade. Ele vai segurá-la enquanto se explica. Se ele mentir, vai perecer em chamas.
Um dos demônios guilhotina arrancou a pena da balança da justiça. Setne parecia despreocupado quando a pluma brilhante foi colocada em suas mãos.
— Certo — ele começou. — Então, os seus filhos estão corretos. Eu criei um feitiço de execração da sombra. Em teoria, isto poderia ser utilizado para destruir um deus... ou mesmo Apófis. Eu nunca tentei. Infelizmente, ele só pode ser lançado por um mago vivo. Eu morri antes que pudesse testá-lo. Não que eu queria matar qualquer deus, meu senhor. Eu estava pensando em usá-lo para chantageá-los, para vocês fazerem as minhas ordens.
— Chantagear... os deuses — papai rosnou.
Setne sorriu culpado.
— Isso foi em minha juventude equivocada. De qualquer forma, eu gravei a fórmula em vários exemplares do Livro da Derrota de Apófis.
Walt resmungou.
— Que foram todos destruídos.
— Certo — Setne disse — mas minhas notas originais ainda estão nas margens do Livro de Tot que eu... que eu roubei. Vê? Sou honesto. Eu garanto que Apófis ainda não encontrou esse livro. Eu escondi muito bem. Posso mostrar-lhes onde está. O livro explica como encontrar a sombra de Apófis, como capturá-la e como converter a execração.
— Você não pode simplesmente dizer-nos como? — Carter pediu.
Setne fez beicinho.
— Jovem mestre, eu adoraria. Mas não tenho o livro todo decorado. E faz milênios desde que eu escrevi aquela magia. Se eu lhe disser uma palavra errada no encantamento, bem... nós não queremos cometer erros. Mas eu posso levá-lo para o livro. Assim que conseguir...
— Nós? — Zia perguntou. — Porque você não pode apenas nos dar instruções para chegar no livro? Por que você precisa vir junto?
O fantasma sorriu.
— Porque, boneca, eu sou o único que pode recuperá-lo. Armadilhas, maldições... você sabe. Além disso, você vai precisar da minha ajuda para decifrar as notas. O feitiço é complicado! Mas não se preocupe. Tudo o que você precisa fazer é manter essas fitas de Hathor em mim. É Zia, certo? Você tem experiência com elas.
— Como você sabe...?
— Se eu não lhes causar nenhum problema — Setne continuou — você pode me amarrar bem como um presente de Dia da Colheita. Mas eu não vou tentar escapar, pelo menos não até eu levar você até o Livro de Tot e depois levá-los em segurança para a sombra de Apófis. Ninguém conhece os níveis mais profundos da Duat como eu. Eu sou sua melhor esperança para um guia.
A pena da verdade não reagiu. Setne não ficou em chamas, então imaginei que ele não estava mentindo.
— Quatro de nós — disse Carter. — Ele é só um.
— Só que ele matou seus guardas da última vez — Walt apontou.
— Então, nós vamos ter mais cuidado — disse Carter. — Todos nós juntos devemos ser capazes de mantê-lo sob controle.
Setne estremeceu.
— Oh, exceto... veja, Sadie tem sua pequena tarefa um pouco de lado, não é? Ela tem que encontrar a sombra de Bes. E, na verdade, é uma boa ideia.
Eu pisquei.
— É mesmo?
— Absolutamente, boneca — Setne disse. — Nós não temos muito tempo. Mais especificamente, o seu amigo Walt não tem muito tempo.
Eu queria matar o fantasma, só que ele já estava morto. De repente, eu odiava aquele sorriso presunçoso.
Eu cerrei os dentes.
— Vá em frente.
— Walt Stone... Sinto muito, amigo, mas você não vai sobreviver o tempo suficiente para obter o Livro de Tot, viajar para a sombra de Apófis, e usar o feitiço. Simplesmente não há tempo restante em seu relógio. Mas conseguir a sombra de Bes... Isso não vai demorar tanto tempo. Vai ser um bom teste para a magia. Se funcionar, ótimo! Se isso não acontecer... bem, nós só perdemos um deus anão.
Eu queria bater no rosto dele, mas ele fez um gesto para paciência.
— O que eu estou pensando — disse ele — é nos separarmos. Carter e Zia, vocês dois vão comigo para obter o Livro de Tot. Enquanto isso, Sadie leva Walt para as ruínas de Saïs para encontrar sombra do anão. Eu vou dar-lhes algumas notas sobre como capturá-la, mas a magia é apenas uma teoria. Na prática, você vai precisar da habilidade de encantamentos de Walt para retirá-la. Ele vai ter que improvisar, se alguma coisa der errado. Se Walt tiver êxito, Sadie vai saber como capturar uma sombra. Se Walt morrer depois... e eu sinto muito, mas lançar um feitiço como esse provavelmente vai fazê-lo morrer. Em seguida, Sadie pode encontrar conosco no Duat, e vamos caçar a sombra da cobra. Todo mundo ganha!
Eu não tinha certeza se chorava ou gritava. Eu só consegui manter a calma, porque eu sentia que Setne iria achar qualquer reação extremamente engraçado.
Ele enfrentou meu pai.
— O que você diz, Senhor Osíris? É uma chance de obter sua esposa de volta, derrotar Apófis, restaurar a alma de Bes e salvar o mundo! Tudo que eu peço é que, quando eu voltar, o tribunal leve minhas boas ações em consideração quando você me sentenciar. Como isso é justo, né?
A câmara estava em silêncio, exceto pelos fogos crepitando nos braseiros.
Finalmente Perturbador parecia agitar-se de um transe.
— Meu senhor... qual é a sua decisão?
Papai olhou para mim. Eu poderia dizer que ele odiava este plano. Mas Setne tinha tentado ele com a única coisa que ele não podia deixar passar: a chance de salvar a nossa mãe.
O fantasma vil me prometeu um último dia sozinho com Walt, que eu queria mais do que qualquer coisa, e uma chance de salvar Bes, a segunda coisa que eu mais queria. Ele colocou Carter e Zia juntos e prometeu-lhes uma chance de salvar o mundo.
Ele ia colocar ganchos em todos nós e nos pescar como peixes de um lago sagrado. Mas, apesar do fato de eu saber que estava sendo usada, eu não poderia encontrar uma razão para dizer não.
— Nós temos que fazer, pai — eu disse.
Ele abaixou a cabeça.
— Sim, nós temos. Que o Maat nos proteja a todos.
— Ah, vamos nos divertir! — Setne disse alegremente. — Devemos ir? O Fim do Mundo não vai esperar!

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