segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

A Pirâmide Vermelha - Carter

Capítulo 34 - Doughboy nos dá uma carona

INVOQUEI A CAIXA MÁGICA do papai de volta do Duat e peguei nela nosso amigo sem pernas.
— Doughboy, precisamos conversar.
Ele abriu os olhos de cera.
— Finalmente! Tem ideia de como aquilo é abafado? Pelo menos lembraram que precisam de minha brilhante orientação.
— Na verdade, precisamos que se transforme em uma túnica. Só por um tempo.
A boca pequenina se abriu.
— Por acaso pareço uma peça de roupa? Sou o senhor do conhecimento! O todo-poderoso...
Eu o apertei contra a roupa, amassei bem, joguei-o no chão e pisei em cima.
— Zia, qual é o feitiço?
Ela disse as palavras e eu as repeti. A túnica inflou e flutuou na minha frente. Limpou-se e ajeitou a própria gola. Se roupas pudessem parecer indignadas, essa pareceria.
Sadie olhou a peça, desconfiada.
— Como isso vai dirigir um caminhão, se não tem pés para os pedais?
— Não deve ser problema — respondeu Zia. — É uma bela túnica.
Suspirei aliviado. Por um momento, imaginei que teria de animar minha calça também. Isso seria bem constrangedor.
— Leve-nos a Phoenix — ordenei.
A roupa fez um gesto para mim, que teria sido grosseiro se houvesse mãos e dedos para completá-la. Depois, flutuou até o assento do motorista.
A cabine era maior do que eu havia imaginado. Atrás dos bancos havia uma área delimitada por cortinas com uma cama de casal, que Sadie ocupou imediatamente.
— Vou deixar você e Zia a sós — ela me falou. — Só os dois e sua peça de roupa.
Minha irmã se atirou atrás das cortinas antes que eu pudesse bater nela.
A roupa nos levou para oeste pela I-10 enquanto nuvens escuras encobriam as estrelas. O ar trazia o cheiro de chuva. Depois de muito tempo, Zia pigarreou.
— Carter, lamento sobre... Quer dizer, gostaria que as circunstâncias fossem melhores.
— Sim — concordei. — Acho que você vai ter muitos problemas com a Casa.
— Serei banida. Meu cajado será quebrado. Meu nome vai ser apagado dos livros. Serei exilada, presumindo que não me matem.
Pensei no pequeno altar de Zia no Primeiro Nomo – todas aquelas fotos de seu vilarejo e da família que ela não conseguia lembrar. Quando ela falou em ser exilada, ficou com a mesma expressão daquele dia: não havia pesar ou tristeza, mas confusão, como se ela mesma não conseguisse entender por que estava se rebelando, ou o que o Primeiro Nomo significava para ela. Zia dissera que Iskandar era sua única família. Agora, ela não tinha ninguém.
— Você poderia vir conosco — propus.
Ela olhou para mim. Estávamos sentados muito próximos, e eu tinha absoluta consciência do ombro dela encostado no meu. Mesmo com o cheiro de pimentas queimadas que parecia ter aderido à nossa pele, eu ainda sentia seu perfume egípcio. Uma pimenta seca tinha grudado em seus cabelos e, de alguma forma, isso a deixava ainda mais bonita.
Sadie está dizendo que minha cabeça estava confusa, só isso. [Sério, Sadie, eu não interrompo tanto quando você está contando a história.]
Enfim, Zia me olhou com tristeza.
— Para onde iríamos, Carter? Mesmo que você derrote Set e salve o continente, o que vai fazer? A Casa o perseguirá. Os deuses vão tornar sua vida um tormento.
— Vamos pensar em algo — prometi. — Estou acostumado a viajar. Sou bom em improvisação, e Sadie não é tão ruim.
— Eu ouvi isso! — A voz de Sadie soou abafada do outro lado da cortina.
— E com você — continuei — quer dizer, você sabe, com sua magia, tudo seria mais fácil.
Zia afagou minha mão, o que provocou um arrepio que subiu meu braço.
— Você é bom, Carter. Mas não me conhece. Não de verdade. Suponho que Iskandar tenha previsto tudo isso.
— Como assim?
Ela afastou a mão da minha, o que me deixou bem triste.
— Quando Desjardins e eu voltamos do British Museum, Iskandar conversou comigo em particular. Disse que eu corria perigo. Disse que me levaria para algum lugar seguro e... — Uma ruga surgiu bem no meio de sua testa. — Isso é estranho. Não lembro.
Uma sensação gelada começou a me devorar por dentro.
— Espere. Ele a levou para esse lugar seguro?
— Eu... acho que sim. — Zia balançou a cabeça. — Não, não pode ter levado, é claro. Ainda estou aqui. Talvez ele não tenha tido tempo. Ele me mandou procurar por você em Nova York quase imediatamente depois.
Do lado de fora, uma chuva leve começou a cair. A roupa ligou os limpadores de para-brisa. Não entendi o que Zia me disse. Talvez Iskandar tivesse percebido alguma mudança em Desjardins, e tenha tentado proteger sua aluna favorita. Mas algo mais nessa história me incomodava – algo que eu não conseguia identificar.
Zia olhava para a chuva como se visse coisas ruins na noite lá fora.
— O tempo está se esgotando — observou. — Ele está voltando.
— Quem?
Ela me olhou com urgência.
— O que eu precisava lhe dizer... O que você precisa saber. É o nome secreto de Set.
A tempestade desabou. Um trovão ecoou e o caminhão tremeu, sacudido pelo vento.
— Es... espere — gaguejei. — Como pode saber o nome secreto de Set? Mais ainda, como soube que precisamos dele?
— Vocês roubaram o livro de Desjardins. Desjardins nos contou. Ele disse que não tinha importância. Disse que você não poderia usar o feitiço sem o nome secreto de Set, o que é impossível conseguir.
— Então, como você sabe? Tot disse que só o próprio Set poderia dizê-lo, ou uma pessoa... — Minha voz desapareceu quando um terrível pensamento me ocorreu. — A pessoa mais próxima dele.
Zia fechou os olhos como se sentisse dor.
— Eu... não sei explicar, Carter. Só escuto essa voz me dizendo o nome...
— A quinta deusa — eu disse. — Néftis. Você também estava lá, no British Museum.
Zia ficou completamente perplexa.
— Não, isso é impossível.
— Iskandar disse que você estava em perigo. Ele queria levá-la para algum lugar seguro. Era isso que ele queria dizer. Você é uma deusa menor.
Ela balançou a cabeça, teimando.
— Mas ele não me levou. Estou aqui. Se hospedasse um deus, os magos da Casa teriam percebido há dias. Eles me conhecem muito bem. Teriam notado as mudanças em minha magia. Desjardins teria me destruído.
Ela estava certa, mas outro pensamento terrível me ocorreu.
— A menos que Set o esteja controlando — sugeri.
— Carter, você é realmente tão cego? Desjardins não é Set.
— Porque você acha que é Amós. Amós, que arriscou a vida para nos salvar, que nos mandou seguir em frente sem ele. E, também, Set não precisa de uma forma humana. Ele está usando a pirâmide.
— E você sabe disso porque...?
Eu hesitei.
— Porque Amós nos contou.
— Isso não vai nos levar a lugar nenhum — concluiu Zia. — Sei o nome secreto de Set e posso lhe dizer. Mas você precisa prometer que não vai contar a Amós.
— Ah, por favor! Além do mais, se sabe o nome, por que não pode usá-lo você mesma?
Ela balançou a cabeça, e parecia quase tão frustrada quanto eu.
— Não sei por quê... Só sei que não cabe a mim desempenhar esse papel. Tem de ser você ou Sadie: o sangue dos faraós. Se não...
O caminhão reduziu bruscamente a velocidade. Vi pelo para-brisa que um homem vestindo casaco azul estava em pé no meio da estrada, diante dos faróis. Era Amós. Suas roupas estavam em frangalhos, como se ele tivesse sido crivado de balas, mas, com exceção desse detalhe, ele parecia bem. Antes mesmo que o caminhão parasse completamente, saltei da cabine e corri para encontrá-lo.
— Amós! — gritei. — O que aconteceu?
— Eu distraí Sekhmet — respondeu ele, enfiando o dedo em um dos buracos do casaco. — Por cerca de onze segundos. Fico feliz em ver que sobreviveram.
— Havia uma fábrica de molho — comecei a explicar, mas Amós levantou a mão.
— Vamos deixar as explicações para mais tarde. Agora devemos ir.
Ele apontou para noroeste e entendi o que queria dizer. A tempestade era pior lá na frente. Muito pior. Uma parede negra encobria o céu da noite, as montanhas, a estrada, como se a escuridão engolisse o mundo todo.
— A tempestade de Set está se formando — comentou Amós com um brilho no olhar. — Vamos para lá?

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