segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Trono do Fogo - Carter

Capítulo 1 - Diversão com combustão espontânea

AQUI É CARTER. Olhe, não temos tempo para longas introduções. Preciso contar essa história logo, ou vamos todos morrer. Se você não ouviu a nossa primeira gravação, bem... Prazer em conhecê-lo: os deuses egípcios estão correndo soltos no mundo moderno; um grupo de magos chamado de Casa da Vida está tentando pará-los; todos odeiam Sadie e eu; e uma cobra gigante está prestes a engolir o sol e destruir o mundo.
[Ai! O que foi isso?]
Sadie acabou de me dar um soco. Ela diz que vou assustar muito vocês. Eu deveria me acalmar, e voltar desde o começo. Certo. Mas pessoalmente, acho que você deveria se assustar. O objetivo dessa gravação é informá-lo do que está realmente acontecendo e como as coisas deram errado. Você vai ouvir um monte de pessoas dizendo horrores sobre a gente, mas nós não causamos aquelas mortes. Quanto à cobra, aquela também não foi a nossa culpa. Bem... não exatamente. Todos os magos no mundo têm que se unir. É a nossa única chance.
Então, essa é a história. Decida por si só.
Começou quando colocamos fogo no Brooklyn. O trabalho deveria ser simples: entrar discretamente no Museu do Brooklyn, pegar emprestado um artefato particularmente egípcio e sair sem sermos pegos. Não, não era roubo. Devolveríamos o artefato no final. Mas acho que a gente pareceu suspeito: quatro crianças em roupas pretas de ninja no telhado do museu. Ah, e um babuíno também vestido como um ninja.Definitivamente isso é suspeito.
A primeira coisa que fizemos foi mandar os nossos recrutas Jaz e Walt abrir a janela lateral, enquanto Khufu, Sadie e eu examinávamos a grande cúpula de vidro no meio do telhado, que devia ser a nossa saída estratégica. A nossa saída estratégica não estava parecendo tão boa.
Depois de escurecer deveria ficar tudo bem, e o museu estaria fechado.
Em vez disso, a cúpula de vidro brilhava com uma luz vinda de dentro. Doze metros abaixo, centenas de pessoas em smokings e vestidos se misturavam e dançavam num salão de baile do tamanho de um hangar de avião. Uma orquestra tocava, mas com o vento zumbindo nas minhas orelhas e os meus dentes batendo, não pude ouvir a música.
Eu estava congelando no meu pijama de linho. Magos tinham que usar linho porque ele não interfere com magia, o que é provavelmente uma grande tradição no deserto egípcio, onde dificilmente fica frio ou chove. No Brooklyn, em Março – nem tanto.
A minha irmã, Sadie, não parecia incomodada pelo frio. Ela estava quebrando as travas na cúpula enquanto alguma coisa tocava no seu iPod. Digo, é sério – quem é que fica ouvindo música quando vai arrombar um museu?
Ela usava roupas como as minhas, com exceção de seus coturnos. O seu cabelo loiro estava tingido com mechas vermelhas – bastante sutil para uma missão de furto. Com seus olhos azuis e sua cor clara, ela não tinha absolutamente nada de parecido comigo, algo que ambos concordamos que estava tudo bem. É sempre bom ter a opção de negar que a garota maluca ao meu lado é a minha irmã.
― Você disse que o museu estaria vazio ― reclamei.
Sadie não me ouviu até eu puxar os fones de ouvido e repetir.
― Bem, deveria estar vazio.
Ela vai negar isso, mas depois de viver nos Estados Unidos pelos últimos três meses, ela estava começando a perder o sotaque britânico.
― O site do museu disse que fechava às cinco. Como eu ia saber que tinha um casamento?
Um casamento? Abaixei o olhar e vi que Sadie tinha razão. Algumas das mulheres usavam vestidos de damas de honra cor de pêssego. Uma das mesas tinha um grande bolo branco em camadas. Dois grupos separados de convidados haviam levantado a noiva e o noivo nas cadeiras e os carregavam pela sala enquanto os amigos giravam em volta deles, dançando e batendo palmas. A coisa toda parecia que ia dar em uma iminente colisão frontal de mobília.
Khufu deu um tapa no vidro. Mesmo nas suas roupas pretas, era difícil para ele se misturas às sombras com o pelo dourado, sem mencionar o seu nariz da cor do arco-íris e a traseira vermelha.
― Agh! ― grunhiu.
Já que ele era um babuíno, aquilo poderia significar algo de Olhe, tem comida ali embaixo, ou Esse vidro está sujo e até Ei, aquelas pessoas estão fazendo coisas estúpidas com cadeiras.
― Khufu tem razão ― interpretou Sadie. ― Será difícil para a gente passar despercebido por essa festa. Quem sabe se fingíssemos que somos a equipe de manutenção.
― Certo ― falei. ― Me desculpe. Quatro crianças passando com uma estátua de três toneladas. Só vamos fazê-la flutuar pelo telhado. Não se importem conosco.
Sadie revirou os olhos. Ela sacou a varinha – uma extensão curvada de marfim esculpida com imagens de monstros – e apontou-a para a base da cúpula. Um hieróglifo dourado reluziu e o último cadeado abriu com um estouro.
― Bem, se nós não vamos usar isso como saída ― ela disse ― por que estou abrindo? Não poderíamos simplesmente sair pelo caminho em que entramos, pela janela lateral?
― Eu te disse. A estátua é imensa. Não vai passar pela janela lateral. E ainda tem as armadilhas.
― Que tal tentarmos novamente amanhã à noite? ― perguntou ela.
Sacudi a cabeça.
― Amanhã a exibição inteira será encaixotada e despachada de navio para viagem.
Ela ergueu as sobrancelhas naquele jeito irritante que fazia.
― Talvez se alguém tivesse nos dado mais informações para roubar essa estátua...
― Esqueça.
Eu percebi onde aquela conversa ia chegar, e não ajudaria nada se Sadie e eu discutíssemos no telhado a noite toda. Naturalmente, ela estava certa. Eu não dera a ela muitas informações. Mas cara, as minhas fontes não eram exatamente confiáveis.
Depois de semanas pedindo ajuda, eu finalmente arranjei uma pista do meu amigo, o deus falcão da guerra Hórus, falando nos meus sonhos: Ah, a propósito, aquele artefato que você queria? Aquele que pode ter a chave para salvar o planeta? Esteve exposto lá no fim da rua, no Museu do Brooklyn, pelos últimos trinta anos, mas amanhã ele parte para a Europa, então é melhor você se apressar! Terá cinco dias para descobrir como usá-lo, ou estaremos todos condenados. Boa sorte!
Eu poderia ter berrado com ele, perguntando o porquê de não ter me falar mais cedo, mas não faria nenhuma diferença. Os deuses só falam quando estão prontos e, eles não têm um bom senso do tempo mortal. Eu sabia disso, porque Hórus compartilhou um espaço da minha cabeça há alguns meses atrás. Eu ainda tinha alguns dos seus hábitos antissociais – como o impulso ocasional de caçar pequenos roedores peludos ou desafiar pessoas à morte.
― Vamos apenas seguir o plano ― disse Sadie. ― Entrar pela janela lateral, encontrar a estátua e passá-la flutuando pelo salão do baile. Descobriremos como lidar com a festa de casamento quando chegar a hora. Quem sabe até criar uma diversão!
Franzi a testa.
― Uma diversão?
― Carter, você se preocupa demais ― ela disse. ― Será brilhante. A menos que você tenha outra ideia!
Esse era o problema: eu não tinha. Você acha que magia deixa as coisas mais simples? Na verdade, ela geralmente deixa as coisas mais complicadas. Havia sempre um milhão de motivos do por que desse ou daquele feitiço não funcionar em certas situações. Ou poderia haver outra magia a impedindo – como os feitiços de proteção nesse museu.
Não sabíamos ao certo quem os lançara. Talvez um dos membros do museu fosse um mago disfarçado, algo que não seria anormal. O nosso próprio pai usara o seu PhD em egiptologia como uma cobertura para ganhar acesso a artefatos. E mais, o Museu do Brooklyn também tem a maior coleção de rolos de pergaminho mágicos egípcios do mundo. Por isso que o nosso tio Amós estabeleceu o seu quartel-general no Brooklyn.
Muitos magos teriam motivos para guardar ou camuflar os tesouros do museu. Seja qual fosse o caso, as portas e janelas tinham algumas maldições bastante chatas. Não podíamos abrir um portal mágico na exibição, nem usar o nosso shabti de busca – as estátuas mágicas de argila que nos serviam na nossa biblioteca – para nos trazer o artefato que precisávamos.
Teríamos que entrar e sair do jeito difícil; e se cometêssemos algum erro, não havia como saber qual tipo de maldição seria liberada: guardiões monstros, pragas, chamas, jumentos que explodem (não ria; eles são má notícia). A única saída que não estava protegida era a cúpula no topo do salão de baile. Aparentemente, os guardiões do museu não se preocuparam com ladrões levitando artefatos para fora, por uma abertura a doze metros no ar. Ou talvez tivesse uma armadilha na cúpula, e era simplesmente boa demais para percebermos.
De um jeito ou de outro, tínhamos de tentar. Só tínhamos aquela noite para roubar... desculpe, pegar o artefato emprestado. Aí tínhamos cinco dias para descobrir como usá-lo. Eu simplesmente adoro prazos.
― Então a gente vai em frente e improvisa? ― perguntou Sadie.
Olhei para a festa de casamento, esperando que não estivéssemos prestes a arruinar a noite especial deles.
― Acho que sim.
― Encantador ― disse Sadie. ― Khufu, fique aqui e monte guarda. Abra a cúpula quando nos vir voltando, certo?
― Agh! ― disse o babuíno.
A parte de trás do meu pescoço formigou. Tive a sensação que esse roubo não ia ser nada encantador.
― Vamos ― falei para Sadie. ― Vamos ver como Jaz e Walt estão se saindo.
Descemos pela beirada do lado de fora do terceiro andar, onde estava a coleção egípcia. Jaz e Walt trabalharam perfeitamente. Eles passaram fita adesiva sobre quatro estátuas dos Filhos de Hórus em volta das bordas da janela e pintaram hieróglifos no vidro para neutralizar as maldições e o sistema de alarme mortal. Enquanto eu e Sadie pousávamos ao lado deles, eles pareciam estar no meio de uma séria conversa. Jaz estava segurando as mãos de Walt. Aquilo me surpreendeu, mas surpreendeu Sadie ainda mais. Ela fez um som como um guinchar de um rato sendo pisado.
[Ah sim, você fez. Eu estava lá.]
Por que Sadie se importaria? Certo, logo depois do Ano Novo, quando Sadie e eu colocamos nosso amuleto djed para atrair crianças com potencial em magia ao nosso quartel-general, Jaz e Walt foram os primeiros a responder. Eles treinaram conosco por sete semanas, mais tempo do que qualquer outra criança; então conseguimos conhecê-los muito bem.
Jaz era uma líder de torcida de Nashville. Jaz era o apelido de Jasmine, mas nunca a chame assim a menos que queira ser transformado num arbusto. Ela é bonita como uma líder de torcida loira seria – não realmente o meu tipo – mas você não podia evitar gostar dela, porque ela era legal com todos e sempre pronta a ajudar. Tinha também um talento para magia curativa, e era a pessoa perfeita para se trazer em caso de alguma coisa dar errado, o que sempre acontecia com Sadie e eu em quase noventa e nove por cento do tempo.
Nessa noite, ela cobriu o cabelo com uma bandana preta. Amarrado no seu ombro estava sua mochila de mago, marcada com o símbolo da deusa leoa Sekhmet. Ela estava falando para Walt: “Vamos descobrir” quando Sadie e eu caímos ao lado deles.
Walt pareceu embaraçado. Ele era... Bem, como eu descrevo Walt?
[Não, obrigado Sadie. Eu não vou descrevê-lo como gostoso. Espere a sua vez.]
Walt tinha catorze anos, o mesmo que eu, mas ele era alto o suficiente para jogar como atacante em um time de universidade. Ele tinha o corpo certo para isso – forte e musculoso, e os pés do garoto eram imensos. A pele dele era castanha da cor de café, um pouco mais escura que a minha, e o cabelo dele era raspado para que parecesse uma sombra no seu couro cabeludo. Apesar do frio, ele estava vestido com uma camiseta preta sem mangas e um short de exercício – nada de roupa padrão de mago – mas ninguém discutia com Walt.
Ele foi o nosso primeiro recruta a chegar vindo de Seattle – e o cara era um sau natural – um criador de talismãs. Ele usava umas correntes douradas de pescoço com amuletos mágicos que ele mesmo fizera. De qualquer jeito, eu tinha certeza absoluta que Sadie tinha ciúmes de Jaz e gostava de Walt, contudo ela nunca admitiu isso porque gastou os últimos meses se esfregando em outro cara – na verdade um deus que ela se apaixonara.
[Sim, tá certo Sadie. Vou esquecer isso por enquanto. Mas noto que você não está negando.]
Quando interrompemos a conversa deles, Walt soltou as mãos de Jaz com uma incrível velocidade e se afastou. Os olhos de Sadie se mexiam de um para o outro, tentando entender o que estava acontecendo.
Walt deu uma tossidela.
― A janela está pronta.
― Brilhante ― Sadie olhou para Jaz. ― O que você quis dizer com, “Vamos descobrir”?
A boca de Jaz se agitou como um peixe tentando respirar.
Walt respondeu por ela:
― Você sabe. O Livro de Rá. Vamos descobrir.
― Sim! ― falou Jaz. ― O Livro de Rá.
Percebi que eles estavam mentindo, mas calculei que não era da minha conta se eles se gostavam. Não tínhamos tempo para drama.
― Certo ― falei antes de Sadie poder exigir uma explicação melhor. ― Vamos começar a diversão.
A janela abriu facilmente. Sem explosões mágicas. Sem alarmes. Soltei um suspiro de alívio e pisei dentro da ala egípcia, imaginando se conseguiríamos sair dessa.
Os artefatos egípcios trouxeram de volta todos os tipos de memórias. Até o ano passado, eu gastei a maior parte da minha vida viajando pelo mundo com o meu pai, enquanto ele ia de museu a museu, fazendo conferências sobre o Egito Antigo. Isso foi antes de eu descobrir que ele era um mago – antes dele libertar alguns deuses, e as nossas vidas ficarem complicadas. Agora, eu não podia olhar para uma ilustração egípcia sem sentir uma conexão pessoal.
Estremeci quando passei por uma estátua de Hórus – o deus com cabeça de falcão que habitou o meu corpo no último Natal. Passamos por um sarcófago e, lembrei-me como um deus maligno Set, aprisionara o nosso pai num caixão dourado no Museu Britânico.
Em todos os lugares havia pinturas de Osíris, o deus dos mortos de pele azul, e pensei sobre como papai se sacrificara para se tornar o novo hospedeiro de Osíris. Agora mesmo, em algum lugar no reino mágico do Duat, o nosso pai era o rei do mundo inferior.
Não consigo sequer descrever como pareceu estranho, ver uma pintura de cinco milhões de anos de um deus azul egípcio e pensar, “É, esse é o meu pai”. Todos os artefatos pareciam como lembranças de família: uma varinha igual a de Sadie; a imagem de Serpopardos que uma vez atacou a gente; uma página do Livro dos Mortos mostrando demônios que nós conhecemos pessoalmente.
Depois havia os shabti, estatuetas de argila mágicas que deviam vir à vida quando convocados. Alguns meses atrás, eu me apaixonei por uma garota chamada Zia Rashid, que no fim era uma shabti. Se apaixonar pela primeira vez havia sido muito difícil. Mas quando a garota que você gosta na verdade é feita de cerâmica e se quebra em pedaços diante dos seus olhos, bem, isso dá um significado novo à “coração partido”.
Abrimos caminho pela primeira sala, passando debaixo de um grande mural do zodíaco ao estilo egípcio, pintado no teto. Pude ouvir a celebração acontecendo no grande salão de baile no fim do corredor à nossa direita. Música e risadas ecoavam pelo prédio.
Na segunda sala egípcia, paramos na frente de uma laje de pedra do tamanho de uma porta de garagem. Esculpida na rocha estava uma ilustração de um monstro esmagando alguns humanos.
― É um grifo? ― perguntou Jaz.
Assenti.
― É, essa é a versão egípcia.
O animal tinha o corpo de um leão e a cabeça de um falcão, mas as suas asas não eram como a maioria das pinturas de grifo que você vê. No lugar de asas de pássaro, as asas do monstro corriam ao longo de seu dorso, longas, horizontais, eriçadas como um par de escovas de dente viradas para baixo. Se o monstro pudesse pelo menos flutuar com aquelas asas grossas, calculei que deveria voar erraticamente como uma borboleta.
A pintura não havia sido retocada. Eu podia distinguir manchas de vermelho e ouro na pele da criatura; mas até sem cor, o grifo parecia misteriosamente vivo. Os seus olhos grandes e redondos pareciam me seguir.
― Grifos eram protetores ― eu falei lembrando uma coisa que meu pai me disse uma vez. ― Eles guardavam tesouros e outras coisas.
― Fabuloso ― disse Sadie. ― Então você quer dizer que eles atacavam... ah, ladrões, por exemplo, arrombando museus e roubando artefatos?
― É só uma pedra ― falei.
Mas duvido que alguém se sentiu melhor. A magia egípcia se resumia em transformar palavras e pinturas em realidade.
― Ali ― Walt apontou pela sala. ― É aquilo, não é?
Fizemos um largo arco em volta do grifo e nos aproximamos da estátua no centro da sala. O deus se erguia em quase dois metros e meio de altura. Ele era esculpido de pedra negra e estava vestido num típico estilo egípcio, de peito nu, com um saiote e sandálias. Ele tinha o rosto de um carneiro e chifres que parcialmente se quebraram ao longo dos séculos. Na cabeça dele havia uma coroa em forma de frisbee – um disco do sol entrelaçado com serpentes.
Em sua frente havia uma figura humana muito menor. O deus estava com as mãos sobre a cabeça do pequeno rapaz, como se lhe estivesse abençoando. Sadie olhou de soslaio a inscrição em hieróglifos. Desde que hospedara o espírito de Ísis, a deusa da magia, Sadie tinha uma habilidade misteriosa de ler hieróglifos.
― KNM ― leu ela. ― Seria pronunciado Khnum, acho. Rima com cabum?
― Sim ― concordei. ― Essa é a estátua que precisamos. Hórus me disse que ela guarda o segredo para encontrar o Livro de Rá.
Infelizmente Hórus não foi muito específico. Agora que encontramos a estátua, eu não tinha ideia alguma de como ela nos ajudaria. Examinei os hieróglifos esperando por uma pista.
― Quem é o garotinho na frente? ― Walt perguntou. ― Uma criança?
Jaz estalou os dedos.
― Não, eu me lembro disso! Khnum fez os humanos num vaso de argila. É o que ele está fazendo aqui, aposto, formando um humano da argila.
Ela olhou para mim em confirmação. A verdade era que eu mesmo esquecera aquela história. Sadie e eu devíamos ser os professores, mas Jaz frequentemente lembrava-se de mais detalhes que eu.
― É, bem ― falei. ― Tirar os homens da argila. Exato.
Sadie franziu a testa para a cabeça de carneiro de Khnum.
― Parece um pouco com aquele desenho animado antigo... As aventuras de Rock e Bullwinkle, não é? Poderia ser o deus alce.
― Ele não é o deus alce ― falei.
― Mas se estamos procurando pelo Livro de Rá ― ela disse ― e Rá é o deus do sol, então por que estamos procurando um alce?
Sadie pode ser muito irritante. Eu já mencionei isso?
― Khnum era um aspecto do deus do sol ― falei. ― Rá tinha três personalidades diferentes. Ele era Khepri, o deus escaravelho, na parte da manhã; Rá durante o dia; e Khnum, o deus de cabeça de carneiro no pôr do sol, quando ele descia ao mundo inferior.
― É confuso ― falou Jaz.
― Não é não ― disse Sadie. ― Carter tem diferentes personalidades. Ele vai de zumbi pela manhã para lesma à tarde, e de...
― Sadie ― chamei ― cale a boca.
Walt coçou o queixo.
― Acho que Sadie está certa. É um alce.
― Obrigada ― disse Sadie.
Walt deu a ela um sorriso relutante, mas ainda parecia preocupado, como se alguma coisa o incomodasse. Peguei Jaz estudando-o com uma expressão preocupada, e fiquei imaginando o que eles haviam conversado mais cedo.
― Já chega de alce ― falei a eles. ― Temos que levar essa estátua de volta à casa doBrooklyn. Tem algum tipo de pista aí.
― Mas como encontramos? ― perguntou Walt. ― E vocês ainda não nos contaram por que precisamos desse Livro de Rá com tanta urgência.
Hesitei. Havia um monte de coisas que ainda não havíamos contado aos nossos recrutas, nem a Walt e Jaz – como o modo em que o mundo poderia acabar em cinco dias. Esse tipo de coisa pode distrair você do seu treino.
― Vou explicar quando voltarmos ― prometi. ― Agora, vamos descobrir como mover a estátua.
Jaz uniu as sobrancelhas.
― Acho que não vai caber na minha mochila.
― Ah, que preocupação ― falou Sadie. ― Olhem, lançamos um feitiço de levitação na estátua. Criamos alguma grande diversão para limpar o salão de baile.
― Aguenta aí.
Walt se inclinou para frente e examinou a figura menor do humano. O garotinho estava sorrindo, como se ser moldado de argila fosse incrivelmente divertido.
― Ele está usando um amuleto. Um escaravelho.
― É um símbolo comum ― eu disse.
― É... ― Walt pegou a sua própria coleção de amuletos. ― Mas o escaravelho é um símbolo do renascimento de Rá, certo? E essa estátua mostra Khnum criando uma nova vida. Talvez não precisemos da estátua inteira. Talvez a pista seja...
― Ah! ― Sadie sacou a varinha. ― Brilhante.
Eu estava prestes a dizer, “Sadie, não!” naturalmente aquilo seria algo sem sentido. Sadie nunca me ouvia. Ela tocou o amuleto do garotinho. As mãos de Khnum brilharam. A cabeça da estátua menor abriu-se em quatro seções como o topo de um projétil, e desprendendo-se do seu pescoço estava um rolo de papiro amarelado.
― Voilà ― disse Sadie, orgulhosa.
Ela deslizou a varinha para a mochila e pegou o pergaminho na hora em que eu falei:
― Pode ser uma armadilha!
Como eu disse, ela nunca me ouvia. Assim que ela arrancou o rolo da estátua, a sala inteira ribombou. Rachaduras apareceram nas vitrines. Sadie deu um berro quando o rolo na sua mão explodiu em chamas. Elas não pareceram consumir o papiro ou ferir Sadie; mas quando ela tentou sacudir o fogo a fim de apagá-lo, chamas brancas espectrais pularam para a vitrine mais próxima e correram em volta da sala como se seguissem uma trilha de gasolina. O fogo tocou as janelas e hieróglifos brancos inflamaram no vidro, provavelmente disparando uma tonelada de alarmes e maldições protetoras. Então o fogo fantasmagórico ondulou pelo grande friso na entrada da sala. A placa de pedra sacudiu violentamente. Eu não podia ver os sinais esculpidos no outro lado, mas ouvi um ruído estridente – como um papagaio grande e realmente zangado.
Walt puxou o cajado das costas. Sadie balançava o rolo flamejante como se estivesse preso na mão dela.
― Tire essa coisa de mim! Isso tudo não é só a minha culpa!
― Hã... ― Jaz puxou a varinha. ― Que som foi aquele?
Meu coração afundou.
― Eu acho ― falei ― que Sadie acabou de arranjar uma grande diversão para nós.

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