segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O Trono de Fogo - Carter

Capítulo 10 - A visita de um velho amigo vermelho

ENTRAR NAQUELA HABITAÇÃO ISOLADA não foi um problema. Os seguranças não eram protegidos com magia. Sadie e eu tivemos que juntar nossas forças para passar do portão, mas com um pouco de concentração, tinta e papiros, e aproveitando um pouco da energia dos nossos amigos deuses Ísis e Hórus, nós conseguimos um pequeno passeio através do Duat. Em um minuto nós estávamos no abandonado Palace Square.
Então tudo ficou cinza e místico. Meu estômago formigava como se eu estivesse numa queda livre. Deslizamos, sem sincronia com o mundo mortal, e passamos através dos portões de ferro e pedra sólida para dentro do museu.
A Sala Egípcia era no térreo, assim como Bes havia dito. Nós entramos novamente no mundo mortal e vimos que estávamos no meio da coleção: sarcófagos em caixas de vidro, pergaminhos com hieróglifos, estátuas de deuses e faraós. Não era muito diferente de uma centena de outras coleções Egípcias que eu já vi, mas o cenário era bastante impressionante.
A sala possuía um teto abobadado. O chão de mármore polido terminava em um padrão em forma de diamantes branco e cinza, o que fazia com que, quando você andasse nele, parecesse andar tipo numa ilusão de ótica. Eu imaginei quantas salas como essa havia no palácio do czar, e se realmente levava onze dias para vê-lo por inteiro. Eu esperava que Bes estivesse certo sobre a passagem secreta para o Nomo estar em algum lugar nesta sala. Nós não tínhamos onze dias para procurar. Em menos de setenta e duas horas, Apófis estaria livre.
Eu lembrava daqueles olhos vermelhos que brilhavam sob conchas de escaravelhos – uma força do caos tão poderosa que podia derreter os sentidos humanos. Três dias, e essa coisa iria estar solta pelo mundo.
Sadie conjurou seu cajado e o apontou para a câmera de segurança mais próxima. As lentes racharam e começaram a chiar. Mesmo na melhor das situações, tecnologia e magia não andavam juntas. Um dos feitiços mais fáceis do mundo era fazer aparelhos eletrônicos terem um mau-funcionamento.
Eu só precisava olhar de um jeito engraçado para um celular para fazê-lo explodir. E computadores? Esquece. Acho que Sadie poderia mandar apenas um pulsar mágico para o sistema de segurança e conseguiria fritar todas as câmeras e sensores da rede.
Ainda assim, havia outras coisas para a vigilância – coisas mágicas. Eu puxei um pedaço de pano feito de linho preto e um par de shabti feitos de cera crua de minha mochila. Enrolei os shabti no pano e falei a palavra de comando:
― I mun.



O hieróglifo para Esconder brilhou brevemente sobre o pano. Muita escuridão veio do pacote, como uma nuvem de tinta de lula. Ela se expandiu até cobrir Sadie e eu em uma bolha transparente de sombras. Nós podíamos ver através dela, mas nada podia ver dentro dela. A nuvem seria invisível para qualquer um que estivesse fora dela.
― Você fez certo dessa vez! ― disse Sadie. ― Quando foi que dominou essa magia?
Eu provavelmente corei. Estava obcecado em descobrir a magia da invisibilidade por meses, desde que tinha visto Zia usá-la no Primeiro Nomo.
― Na verdade, eu ainda estou... ― uma centelha dourada disparou para fora da nuvem, como um fogo de artifício em miniatura. ― Eu ainda estou aperfeiçoando-a.
Sadie suspirou.
― Bem… está melhor do que da última vez. A nuvem parecia uma lâmpada de lava. E naquela outra vez, quando cheirava a ovo podre...
― Podemos apenas continuar andando? ― eu perguntei. ― Por onde devemos começar?
Seus olhos foram para uma das exibições. Ela estava andando a deriva, olhando na direção dela, em transe.
― Sadie? ― eu a segui até uma lápide de pedra calcária – uma estela – que tinha cerca de meio metro por um metro. A descrição ao lado dela estava em russo e em inglês.
― “Túmulo do escriba Ipi” ― li em voz alta. ― “Trabalhou na corte do Rei Tut”. Porque você está interessada… oh.
Como eu sou idiota. A imagem da lápide mostrava o escriba falecido honrando Anúbis. Depois de falar com Anúbis em pessoa, Sadie deve ter achado estranho vê-lo em uma pintura de um túmulo de três mil anos de idade, especialmente porque ele estava retratado com a cabeça de chacal, vestindo uma saia.
― Walt gosta de você.
Eu não tinha a menor ideia de porque balbuciei isso. Essa não era a hora nem o lugar. Eu sabia que não estava fazendo nenhum favor a Walt passando para o lado dele. Mas comecei a me sentir mal por ele depois que Bes o chutou da limusine. O cara havia vindo de Londres para me ajudar a salvar Sadie, e nós o abandonamos no Crystal Palace Park como uma carona indesejada.
Eu estava um pouco bravo com Sadie por ela tê-lo tratado com indiferença e ter tido uma queda tão grande por Anúbis, que era uns cinco mil anos mais velho que ela e nem ao menos era humano. Aliás, a forma como ela esnobou Walt me lembrou muito a forma como Zia havia me tratado primeiro. E talvez, sendo honesto comigo mesmo, eu também estava irritado com Sadie porque ela resolveu os próprios problemas em Londres sem precisar da nossa ajuda.
Uau. Isso soou realmente egoísta. Mas eu suponho que fosse verdade. É incrível de quantas maneiras diferentes uma irmã mais nova consegue te irritar. Sadie não tirou seus olhos da estela.
― Carter, você não tem ideia do que está falando.
― Você não deu uma chance pro cara ― insisti. ― Seja o que for que esteja acontecendo com ele, não tem nada a ver com você.
― Muito tranquilizador, mas não é disso...
― Além disso, Anúbis é um deus. Você não acha, honestamente, que...
― Carter!
Minha nuvem enfeitiçada deve ser sensível a emoções, porque outra faísca dourada assobiou e estalou da nossa não-tão-invisível nuvem.
― Eu não estava olhando para esta pedra por causa de Anúbis.
― Não?
― Não. E estou certa de que não tenho que discutir com você sobre Walt. Ao contrário do que você deve pensar, eu não gasto cada hora do meu dia pensando em garotos.
― A maior parte das horas do seu dia, então?
Ela revirou os olhos.
― Olhe para a pedra, cérebro de passarinho. Tem uma fresta em volta dela, como uma janela ou...
― Uma porta ― eu disse. ― É uma porta falsa. Um monte de tumbas tem isso. É tipo um portão simbólico para o ba das pessoas mortas, para eles poderem ir e voltar do Duat.
Sadie puxou sua varinha e traçou a borda da estela.
― Este sujeito Ipi era um escriba, que é uma outra palavra para mago. Ele pode ter sido um de nós.
― E?
― E talvez seja por isso que a pedra está brilhando, Carter. E se essa porta falsa não for falsa?
Olhei para a estela mais de perto, mas não via nenhum brilho. Pensei que talvez Sadie estivesse tendo alucinações pela exaustão ou por muita poção em seu corpo. Então ela tocou com sua varinha o centro da estela e falou a primeira palavra de comando que nós havíamos aprendido:
― W peh.
Abra. Um hieróglifo dourado brilhou na pedra:


A lápide disparou um feixe de luz, como um projetor de cinema. De repente, uma porta em tamanho real brilhou diante de nós – um portal retangular mostrando a vaga imagem de uma outra sala.
Eu olhei com espanto para Sadie.
― Como você fez isso? ― perguntei. ― Você nunca foi capaz de fazer isso antes.
Ela encolheu os ombros como se não fosse nada de mais.
― Eu não tinha treze anos antes. Talvez seja isso.
― Mas eu tenho quatorze! ― protestei. ― E eu ainda não consigo fazer isso.
― Garotas amadurecem mais cedo.
Cerrei os dentes. Eu odiava os meses de primavera – março, abril, maio – porque até o meu aniversário chegar, em junho, Sadie podia dizer que era apenas um ano mais nova que eu. Ela sempre tomava uma atitude depois de seu aniversário, como se pudesse me pegar no colo e virar minha irmã mais velha. Tipo um pesadelo. Ela apontou para a porta brilhante.
― Depois de você, irmão querido. Você é o único com a nuvem brilhante e invisível.
Antes que pudesse perder a calma, pisei para além do portal. Eu quase caí e quebrei a cara. Do outro lado da porta estava pendurado um espelho há um metro e meio do chão. Eu havia pisado em uma cornija de lareira. Parei Sadie assim que ela veio, exatamente na hora de impedi-la de cair para fora da borda.
― Obrigada ― ela sussurrou. ― Alguém andou lendo muito Alice Através do Espelho.
Eu achei que a sala egípcia era impressionante, mas não era nada comparado a esse salão. Enfeites geométricos cor de cobre brilhavam no teto. As paredes eram revestidas de colunas verde escuro e de portas douradas. No chão, um padrão octogonal enorme, dourado e branco-mármore. Com um candelabro brilhante em cima, uma pedra de filigrana dourada, verde e branco-polido brilhava tão fortemente que feria meus olhos.
Então percebi que a maior parte da luz não estava vindo do candelabro. Estava vindo do mago que lançava um feitiço no outro extremo da sala. Estava de costas, mas eu podia dizer que era Vlad Menshikov.
Assim como Sadie o havia descrito, ele era um homem gorducho, com cabelo encaracolado e cinzento e um terno branco. Estava em um círculo de proteção que pulsava com uma luz cor de esmeralda. Ele levantou seu cajado e a ponta ardeu como uma tocha de soldagem. À sua direita, fora do círculo, havia um vaso verde do tamanho de um homem adulto. À sua esquerda, contorcendo-se em correntes brilhantes, estava uma criatura que eu reconheci como sendo um demônio. Ele tinha um corpo humanoide peludo, com a pele arroxeada, mas ao invés de uma cabeça, um saca-rolhas gigante brotava de entre os seus ombros.
― Misericórdia! ― ele gritou com uma voz metálica e lacrimosa.
Não me pergunte como um demônio pode gritar com uma cabeça de saca-rolhas, mas o som ressoou e ecoou como se fosse um diapasão gigante. Vlad Menshikov continuou cantando. O vaso verde vibrava com a luz. Sadie me cutucou e cochichou:
― Olhe.
― Sim ― eu sussurrei de volta. ― Algum tipo de ritual de invocação.
― Não ― ela cochichou. ― Olhe !
Ela apontou para a nossa direita. No canto da sala, há seis metros da lareira, havia uma mesa de mogno fora de moda. Sadie havia me falado sobre as instruções de Anúbis: Devíamos encontrar a mesa de Menshikov. O próximo pedaço do Livro de Rá estaria na gaveta do meio. Poderia ser essa realmente a mesa? Parecia muito fácil.
Tão silenciosamente quanto podíamos, Sadie e eu escalamos para fora da lareira e nos arrastamos ao longo da parede. Rezei para a nuvem da invisibilidade não soltar mais nenhum fogo de artifício.
― Não fique nervoso, Morte-às-Rolhas ― Menshikov censurou. Sua voz era ainda pior do que Sadie havia descrito – como um fumante falando através de pás de um ventilador. ― Você sabe que eu preciso de um sacrifício para convocar um deus maior. Não é nada pessoal.
Sadie franziu as sobrancelhas e gesticulou com a boca, deus maior? Eu balancei a cabeça, perplexo. A Casa da Vida não permitia que mortais convocassem deuses. Esse foi o principal motivo de Desjardins nos odiar. Menshikov supostamente era o seu melhor amigo. Então o que ele estava fazendo, quebrando as regras?
― Dói! ― o pobre demônio gemeu. ― Servi você por cinquenta anos, mestre. Por favor!
― Chega, chega ― Menshikov disse, sem um traço de simpatia. ― Eu tenho que fazer uma execração. Somente a forma mais dolorosa de banimento vai gerar energia suficiente.
Do bolso do paletó do terno, Menshikov puxou um saca-rolhas comum e um caco de cerâmica coberto com hieróglifos vermelhos. Ele ergueu os itens e começou a cantar novamente.
― Eu te nomeio Morte-às-Rolhas, o Servo de Vladimir, Aquele Que Se Transformou na Noite.
Enquanto o nome do demônio era dito, as correntes mágicas soltaram vapor e se apertaram ao redor de seu corpo. Menshikov segurou o saca-rolhas acima das chamas de seu cajado. O demônio se debulhou e lamentou. Assim que o pequeno saca-rolhas ficou em brasas, o corpo do demônio começou a soltar fumaça.
Eu assistia com horror. Sabia sobre a magia de ligação, é claro. A ideia era fazer algo pequeno afetar algo grande, ligando-os. Quanto mais parecidos os itens eram – como o saca-rolhas e o demônio – mais fácil era de ligá-los. Bonecos de vodu funcionavam na mesma teoria. Mas a execração era coisa séria. Isso significava destruir uma coisa totalmente – apagando a sua forma física, e até mesmo o seu nome, da existência.
Precisava de algumas magias sérias para retirar esse tipo de magia. Se feito errado, poderia destruir quem a lançava. Mas, se feita corretamente, a maioria das vítimas não teria a menor chance. Mortais normais, magos, fantasmas, até mesmo demônios, poderiam ser varridos da face da terra.
Execração não podia destruir grandes potências, como os deuses, mas ainda assim seria como detonar uma bomba nuclear nos rostos deles. Eles seriam jogados tão profundamente no Duat que talvez nunca mais voltassem.
Vlad Menshikov fez essa magia como se a fizesse todos os dias. Ele continuou cantando enquanto o saca-rolhas começava a derreter, e o demônio derretia com ele. Menshikov deixou o caco de cerâmica cair no chão – os hieróglifos vermelhos que descreviam todos os vários nomes dos demônios. Com uma palavra final de poder, Menshikov pisou no caco e o esmagou aos pedacinhos.
Morte-às-Rolhas havia dissolvido, assim como suas correntes e todo o resto. Normalmente, eu não sinto pena de criaturas do submundo, mas não pude deixar de ficar com um nó na garganta. Eu não conseguia acreditar no jeito casual com que Menshikov havia extinguido o seu servo, só para poder ampliar seu feitiço.
Logo que o demônio foi embora, o fogo no cajado de Menshikov morreu. Hieróglifos queimaram ao redor do círculo de invocação. O grande jarro verde tremeu e uma voz lá do fundo rugiu.
― Olá, Vladimir. Quanto tempo.
Sadie inalou nitidamente. Eu tive que cobrir a boca para impedi-la de gritar. Nós dois conhecíamos aquela voz. Eu me lembrei de tudo muito bem, desde a Pirâmide Vermelha.
― Set.
Menshikov não parecia ao menos cansado da convocação. Ele parecia incrivelmente calmo para alguém que acabara de abordar o deus do mal.
― Nós precisamos conversar.
Sadie empurrou minha mão e sussurrou:
― Ele está louco?
― Mesa ― eu disse. ― Pergaminho. Fora daqui. Agora.
Pela primeira vez, ela não argumentou comigo. Ela começou a pescar objetos de sua bolsa. Enquanto isso, o jarro verde e grande balançava como se Set estivesse tentando entorná-lo.
― Um vaso malaquita? ― O deus parecia irritado. ― Realmente, Vladimir. Pensei que estávamos em condições mais amigáveis do que isso.
A risada de Menshikov parecia alguém esganando um gato.
― Excelente para prender espíritos malignos, não é? E este quarto tem mais malaquita do que qualquer outro lugar do planeta. A Imperatriz Alexandra foi bastante prudente em ter isso construído em sua sala de estar.
A jarra tilintou.
― Mas cheira moedas antigas aqui, e é muito frio. Você um dia já ficou preso em um vaso malaquita, Vlad? Eu não sou um gênio. Eu ficaria muito mais conversável se pudesse me sentar frente a frente, talvez tomando chá.
― Temo que não ― disse Menshikov. ― Agora, você vai responder minhas perguntas.
― Oh, é claro ― Set respondeu. ― Eu gosto do Brasil na Copa do Mundo. Eu o aconselho a fazer um investimento em platina e em fundos de pequena-cobertura. E os seus números da sorte desta semana são 2, 13...
― Não estas perguntas! ― disparou Menshikov.
Sadie puxou um pedaço de cera de sua bolsa e começou a trabalhar arduamente, formando uma espécie de forma animal. Eu sabia que ela ia testar a mesa para magias defensivas. Ela era melhor neste tipo de magia do que eu, mas eu não tinha certeza de como ela o faria. Magia egípcia é bastante ampla. Há sempre mil maneiras diferentes para realizar uma tarefa. O truque é ser criativo com o que se tem de material e escolher um caminho que não vá te matar.
― Você vai me dizer o que eu preciso saber ― Menshikov pediu ― ou essa jarra vai ficar ainda mais desconfortável.
― Meu querido Vladimir. ― A voz de Set era cheia de um divertimento maléfico. ― O que você precisa saber pode ser bem diferente do que você quer saber. O seu lamentável acidente não te ensinou isso?
Menshikov tocou os seus óculos escuros, como se para ter certeza de que eles não haviam caído.
― Você vai me dizer a ligação para Apófis ― ele disse em um tom de aço. ― E depois vai me dizer como neutralizar os encantamentos da Casa do Brooklyn. Você conhece as defesas dos Kane melhor do que ninguém. Uma vez que eu os destrua, não vou ter opositores.
Assim que o significado das palavras de Menshikov afundou em mim, uma onda de fúria quase me fez cair. Desta vez, Sadie teve que tampar a minha boca para ela ficar fechada.
― Calma! ― ela sussurrou. ― Você vai fazer a nuvem da invisibilidade começar a estalar de novo!
Empurrei a mão dela e sussurrei:
― Mas ele quer Apófis livre!
― Eu sei.
― E quer atacar Amós...
― Eu sei! Então me ajude a pegar aquela droga de coisa e vamos sair daqui!
Ela colocou o animal de cera sobre a mesa – um cão, eu acho – e começou a escrever hieróglifos nas costas dele com um estilete.
Eu tomei um fôlego instável. Sadie estava certa, mas ainda assim, Menshikov estava falando sobre como libertar Apófis e matar nosso tio. Que tipo de mago faz acordos com Set? Com exceção de Sadie e eu. Aquilo foi diferente. A risada de Set ecoou dentro do vaso verde.
― Então: a ligação para Apófis e o segredo da Casa do Brooklyn. É só isso, Vladimir? Gostaria de saber o que o seu mestre, Desjardins, pensaria se descobrisse o seu plano real, e o tipo de amigos que você tem.
Menshikov pegou seu cajado. A ponta esculpida de serpente recomeçou a queimar.
― Tenha cuidado com suas ameaças, Dia do Mal.
O vaso tremeu. Ao longo da sala, caixas de vidro estremeceram. O candelabro fez um som estridente, como se um carrilhão de vento de três toneladas estivesse soprando. Eu dei um olhar de pânico para Sadie.
― Ele acabou de pronunciar...
― O nome secreto de Set ― ela confirmou, ainda escrevendo em seu cachorro de cera.
― Como...
― Eu não sei, Carter. Agora, shh!
O nome secreto de um deus tinha todo o tipo de poder. Era praticamente impossível de se conseguir. Para realmente aprendê-lo, você não pode apenas ouvi-lo repetidas vezes de alguma pessoa aleatória. Você tem que ouvir diretamente do próprio deus, ou da pessoa mais próxima ao seu coração. Uma vez que você o tenha, o nome lhe dava uma alavanca mágica séria sobre esse deus. Sadie tinha aprendido o nome secreto de Set durante a nossa missão no último Natal, mas como Menshikov o havia conseguido?
Dentro do vaso, Set rosnou com aborrecimento.
― Eu realmente odeio esse nome. Por que não poderia ter sido Dia da Glória? Ou o Ceifeiro Vermelho que Detona? Isso seria bastante agradável. Já era ruim o bastante quando você era o único que o conhecia, Vlad. Agora eu tenho a garota Kane para me preocupar...
― Nos sirva ― Menshikov disse ― e os Kane serão destruídos. Você será homenageado o tenente de Apófis. Pode levantar outro templo, ainda maior do que a Pirâmide Vermelha.
― Aham ― Set falou. ― Talvez você não tenha notado, mas eu não faço bem o tipo da coisa de segundo-no-comando. Quanto a Apófis, ele não é o único a sofrer para chamar a atenção dos outros deuses.
― Nós iremos libertar Apófis, com ou sem a sua ajuda ― Menshikov avisou. ― No equinócio, ele irá se levantar. Mas se você nos ajudar a fazer as coisas acontecerem mais rápido, será recompensado. A sua outra opção é a execração. Oh, eu sei que não vai te destruir completamente, mas com o seu nome secreto eu consigo te enviar para o abismo da eternidade, e isso será muito, muito doloroso. Eu te darei trinta segundos para decidir.
Cutuquei Sadie.
― Mais rápido.
Ela bateu no cão de cera, e ele veio à vida. Começou a cheirar em torno da mesa, olhando para as armadilhas mágicas. Dentro do vaso, Set suspirou.
― Bem, Vladimir, você sabe como fazer uma oferta atraente. A ligação para Apófis, você diz? Sim, eu estava lá quando Rá prendeu a Serpente naquela prisão de escaravelhos. Suponho que eu devesse lembrar os ingredientes que ele usou para a ligação. Foi há muito tempo! Eu estava vestindo vermelho, acho. Na festa da vitória que ele serviu os gafanhotos mais deliciosos, cozidos com mel...
― Você tem dez segundos ― disse Menshikov.
― Oh, eu vou ajudar! Espero que você tenha uma caneta e um papel em mãos. É uma lista realmente longa de ingredientes. Deixe-me ver… o que Rá usou para a base? Esterco de morcego? Então havia os sapos secos, é claro. E depois...
Set começou a tagarelar ingredientes, enquanto o cão de cera de Sadie farejava ao redor da mesa. Por fim, deitou-se sobre o talão e dormiu. Sadie franziu a testa para mim.
― Sem armadilhas.
― Isso está muito fácil ― sussurrei de volta.
Ela abriu a gaveta de cima. Lá estava o rolo de papiro, tal como aquele que tínhamos encontrado no Brooklyn. Ela o colocou em sua bolsa. Estávamos na metade do caminho de volta para a lareira quando Set nos pegou de surpresa. Ele continuava sua lista de ingredientes ridículos:
― E pele de cobra. Sim, três grandes, com uma pitada de molho quente...
Então ele parou abruptamente, como se tivesse uma revelação. Ele falou numa voz bem mais alta, que preenchia toda a sala.
― E uma vítima para um sacrifício seria bom! Talvez um mago jovem e idiota que não consegue fazer um feitiço de invisibilidade adequado, como CARTER KANE, ali atrás!
Congelei. Vladimir Menshikov se virou, e o meu pânico se tornou grande demais para a nuvem de invisibilidade. Meia dúzia de faíscas douradas pularam com um alto e felizWHEEEEE! A nuvem de escuridão se dissolveu.
Menshikov olhou diretamente para mim.
― Ai, ai... que sorte a de vocês de se entregarem. Muito bem, Set.
― Humm? ― Set perguntou inocentemente. ― Nós temos visitas?
― Set! ― rosnou Sadie. ― Eu vou te chutar em forma de ba se precisar, então me ajude!
A voz no vaso ofegou.
― Sadie Kane? Que emocionante! Pena que estou preso neste vaso e ninguém me deixa sair.
A dica não foi muito sutil, mas sério, ele realmente acreditava que nós íamos soltá-lo depois de ele estragar nosso disfarce? Sadie encarou Menshikov, sua varinha e seu cajado prontos.
― Você está trabalhando para Apófis. Está do lado errado.
Menshikov tirou os óculos. Seus olhos eram poços de cicatrizes arruinados, a pele queimada e as córneas brilhantes. Acredite em mim, essa é a forma menos grosseira de descrevê-lo.
― Do lado errado? ― Menshikov perguntou. ― Garota, você não tem nem ideia do tanto de poder que está em jogo. Há cinco mil anos, sacerdotes egípcios profetizaram o modo como o mundo iria acabar. Rá iria ficar velho e cansado, e Apófis iria engoli-lo e mergulharia o mundo em trevas. O Caos iria governar para sempre. Essa é a hora! Você não pode deter isso. Só pode escolher se vai ser destruído ou se vai se curvar ao poder do caos e sobreviver.
― Certo ― Set comentou. ― É muito ruim eu estar preso neste vaso. Porque senão eu poderia tomar um partido e ajudar alguém.
― Cale-se, Set ― repreendeu Menshikov. ― Ninguém seria louco o suficiente para confiar em você. E quanto a vocês, crianças, claramente não são a ameaça que eu imaginava que fossem.
― Ótimo ― falei. ― Então podemos ir?
Menshikov riu.
― Para vocês irem correndo à Desjardins e dizerem tudo o que ouviram? Ele não acreditaria em vocês. Ele iria julgá-los e depois executá-los. Mas eu vou poupá-los do embaraço. Vou matá-los agora.
― Que divertido! ― disse Set. ― Eu queria poder ver, mas estou preso nesse vaso.
Eu tentei pensar. Menshikov ainda estava dentro do círculo de proteção, o que significava que ele tinha uma grande vantagem defensiva. Eu não estava muito certo que poderia acabar com ele, mesmo se pudesse invocar o meu avatar de combate.
Enquanto isso, Menshikov tomava seu tempo tentando encontrar maneiras diferentes de nos destruir. Será que ele iria nos explodir com magia elementar? Nos transformar em besouros? Ele jogou seu cajado no chão, e eu xinguei. Jogar o seu cajado no chão deveria parecer algo como um sinal de rendição, mas na magia egípcia, é uma má notícia. Geralmente significa Ei, eu vou convocar uma coisa enorme e desagradável para te matar, enquanto fico seguro dentro do meu círculo e dou risadas!
Como eu já imaginava, o cajado de Menshikov começou a se contorcer e a crescer. Ótimo, pensei. Outra serpente. Mas algo estava errado com esta. Em vez de uma cauda, ela tinha cabeças em ambas as extremidades. No começo pensei que nós havíamos tido um pouco de sorte e que Menshikov invocara um monstro com um defeito genético raro. Então, da coisa, brotaram quatro pernas de dragão. Seu corpo cresceu até que ele ficasse do tamanho de um cavalo, curvado como um U, com uma nuance em escalas de verde e vermelho e uma cabeça de cascavel em ambos os lados.
Isso me lembrou o animal de duas cabeças de Doutor Dolittle. Sabe, o mimpurra-tupuxa? Só que Dr. Dolittle nunca iria querer falar com essa coisa, e mesmo que quisesse, ela provavelmente diria Olá, eu vou te comer. As duas cabeças se viraram na nossa direção e sibilaram.
― Eu realmente já tive a minha dose de cobras por uma semana ― murmurei.
Menshikov sorriu.
― Ah, mas serpentes são a minha especialidade, Carter Kane!
Ele tocou em um pingente de prata que estava pendurado em seu colar – um amuleto em forma de serpente.
― E essa criatura em especial é a minha favorita: a tjesu heru. Duas bocas famintas para alimentar. Duas crianças travessas. Perfeito!
Sadie e eu nos entreolhamos. Tivemos um daqueles momentos em que podíamos ler as expressões um do outro perfeitamente. Nós dois sabíamos que não conseguiríamos derrotar Menshikov. Ele faria com que a cobra mimpurra-tupuxa nos desgastasse e depois, se sobrevivêssemos a isso, iria apenas nos explodir como qualquer outra coisa.
O cara era profissional. Nós iríamos morrer, ou então, seríamos capturados, e Bes havia nos avisado sobre não sermos capturados com vida. Depois de ver o que havia acontecido com aquele demônio Morte-às-Rolhas, eu levei a advertência de Bes à sério. Para sobreviver, nós teríamos que fazer algo maluco, algo tão suicida que Menshikov nunca imaginaria. Nós tivemos que pedir ajuda imediatamente.
― Devo? ― perguntou Sadie.
― Faça ― concordei.
tjesu heru mostrou suas presas pingando. Você não pensaria que uma criatura sem fim poderia se mover tão rápido, mas as duas cabeças vieram na nossa direção como uma ferradura gigante e atacou.
Puxei minha espada. Sadie foi mais rápida. Ela apontou seu cajado para o vaso de malaquita de Set e gritou as suas palavras de comando preferidas:
― Ha-di!
Eu estava com medo que isso não funcionasse. Ela não tentara o feitiço de destruição desde que se separara de Ísis. Mas pouco antes do monstro chegar em mim, a jarra verde já havia quebrado.
Menshikov gritou:
― Nyet!
Uma tempestade de areia explodiu pela sala. Ventos quentes empurraram Sadie e eu contra a lareira. A parede de areia vermelha bateu no tjesu heru e o mandou voando até a coluna de malaquita lateral. Vlad Menshikov foi jogado para a direita, fora de seu círculo de proteção, e bateu a cabeça na mesa. Ele caiu no chão, areia vermelha rodopiando sobre si, até que ficou completamente enterrado.
Quando a tempestade se acalmou, um homem em um terno de seda vermelho ficou na nossa frente. Ele tinha cor de um Kool-Aid de cereja, cabeça raspada, um cavanhaque escuro e brilhante e olhos pretos e alinhados com kohl. Parecia um demônio egípcio pronto para uma noite na cidade. Ele sorriu e estendeu as mãos num gesto de tcharam!
― Assim está melhor! Obrigado, Sadie Kane!
À nossa esquerda, o tjesu heru sibilou e se debateu, tentando ficar em pé novamente. A pilha de areia vermelha que recobria Vlad Menshikov começou a se mover.
― Faça alguma coisa, Dia do Mal! ― Sadie ordenou. ― Livre-se deles!
Set estremeceu.
― Não precisa tornar os nomes algo pessoal.
― Talvez você prefira Ceifeiro Vermelho que Detona? ― perguntei.
Set gesticulou uma moldura com os dedos, como se imaginasse o nome em sua carteira de motorista.
― Sim... esse monstro é legal, não é?
tjesu heru cambaleou até ficar de pé. Balançou a cabeça e nos encarou, mas parecia ignorar Set, mesmo que tenha sido ele o único culpado de jogá-lo contra a parede.
― Esse bicho tem uma coloração bonita, não é? ― Set perguntou. ― Um espécime lindo.
― Mate-o! ― gritei.
Set olhou chocado.
― Oh, eu não posso fazer isso! Eu sou muito afeiçoado a cobras. Além disso, o CDTEM iria ficar no meu pé.
― CDTEM? ― perguntei.
― Conselho de Divindades pelo Tratamento Ético com Monstros.
― Você está inventando!
Set sorriu.
― Ainda assim... temo que tenham de lidar com o tjesu heru vocês mesmos.
O monstro sibilou para nós, o que provavelmente significava Ótimo! Ergui a espada para mantê-lo afastado. A pilha de areia vermelha se moveu. O rosto abobalhado de Menshikov surgiu do topo da areia. Set estalou os dedos e uma grande panela de barro apareceu no ar, quebrando sobre a cabeça do mago. Menshikov caiu de volta na areia.
― Eu vou ficar aqui e entreter Vladimir ― disse Set.
― Você não pode execrá-lo, ou algo assim? ― exigiu Sadie.
― Oh, eu bem que gostaria! Infelizmente, fico muito limitado quando alguém possui o meu nome secreto, especialmente quando esse alguém me deu ordens específicas para não matá-lo. ― Ele olhou acusatoriamente para Sadie. ― De qualquer forma, posso lhes conseguir alguns minutos, mas Vlad vai ficar muito bravo quando acordar, então eu teria pressa se fosse vocês. Boa sorte com o negócio da sobrevivência! E boa sorte em comê-los, tjesu heru!
Eu queria estrangular Set, mas tinha problemas maiores. Como se encorajado pela conversa de Set, o tjesu heru investiu contra nós. Sadie e eu corremos para a porta mais próxima. Corríamos pelo Palácio de Inverno com a risada de Set ecoando atrás de nós.

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