quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

A Sombra da Serpente - Sadie

Capítulo 6 - Amós brinca com bonequinhos

Seu nome era Leonid, e nós concordamos em não matar um ao outro.
Nos sentamos nos degraus do gazebo e conversamos enquanto os estudantes e professores lutavam para acordar ao nosso redor.
O inglês de Leonid não era bom. Meu russo era inexistente, mas entendi o suficiente da sua história para ficar alarmada. Ele escapou do Nomo russo e de alguma forma convenceu Shu a ajudá-lo a chegar rapidamente aqui para me encontrar. Leonid lembrava-se de mim da nossa invasão ao Nomo. Aparentemente, causei uma forte impressão no rapaz. Nenhuma surpresa. Eu sou bastante memorável.
[Ah, pare de rir. Carter.]
Usando palavras, gestos de mãos e efeitos sonoros, Leonid tentou explicar o que tinha acontecido em São Petersburgo desde a morte de Vlad Menshikov. Eu não pude compreender tudo, mas o quanto eu entendi: Kwai, Jacobi, Apófis, Primeiro Nomo, muitas mortes, em breve, muito em breve.
Professores começaram a encurralar alunos e ligar para os pais. Aparentemente, temiam que o desmaio geral dos alunos pudesse ter sido causado por um ponche ruim ou por gás perigoso (o perfume da Drew, talvez) e eles decidiram evacuar a área.
Suspeitei que teríamos policiais e paramédicos na cena rapidamente. Eu queria esta fora antes disso. Arrastei Leonid para conhecer meu irmão, que estava tropeçando meio que perdido, esfregando seus olhos.
— O que aconteceu? — Carter perguntou. Ele fez uma careta para Leonid. — Quem...?
Eu dei para ele uma versão de um minuto: a visita de Anúbis, a intervenção de Shu, o aparecimento do russo.
— Leonid tem a informação de um ataque iminente ao Primeiro Nomo — eu disse. — Os rebeldes vão estar atrás dele.
Carter coçou sua cabeça.
— Você quer escondê-lo na Casa do Brooklyn?
— Não. Eu tenho que levá-lo para Amós imediatamente.
Leonid engasgou.
— Amós? Ele se transforma em Set... comer rosto?
— Amós não vai comer seu rosto — garanti a ele. — Jacobi tem estado contando-lhe histórias.
Leonid ainda parecia pouco à vontade.
— Amós não se torna Set?
Como explicar sem fazer isso soar pior? Eu não sabia o russo certo para: ele foi possuído por Set, mas isso não foi culpa dele, e ele está muito melhor agora.
— Não Set — eu disse. — Amós bom.
Carter estudou o russo. Ele me olhou com preocupação.
— Sadie, e se isso for uma armadilha? Você confia nesse cara?
— Ah, eu posso lidar com Leonid. Ele não quer que eu o transforme em uma lesma banana, quer Leonid?
— Nyet — Leonid respondeu solenemente. — Não lesma banana.
— Aí, você viu?
— E sobre visitar Tot? — Carter perguntou. — Isso não pode esperar.
Eu vi a preocupação em seus olhos. Imaginei se ele estava pensando na mesma coisa que eu: nossa mãe estava com problemas. Os espíritos dos mortos estavam desaparecendo, e isso tinha alguma coisa a ver com a sombra de Apófis. Nós tínhamos que achar uma conexão.
— Você visita Tot — eu disse. — Leve Walt. E, ah, fica de olho nele, tudo bem? Anúbis queria me dizer alguma coisa sobre ele, mas ele não teve tempo. E em Dallas, quando eu olhei para Walt no Duat...
Eu não pude me fazer terminar. Só de pensar em Walt envolto em panos de linhos para múmias trouxe lágrimas para meus olhos.
Felizmente, Carter parecia ter pego a ideia geral.
— Eu vou mantê-lo a salvo — ele prometeu. — Como você vai chegar no Egito?
Eu pensei naquilo. Leonid tinha aparentemente voado até aqui via Linhas Aéreas Shu, mas eu duvidava que aquele espalhafatoso deus aviador estaria disposto a me ajudar, e eu não queria perguntar.
— Nós vamos arriscar um portal. Eu sei que eles tem estado um pouco instáveis, mas é só um pulo rápido. O que pode dar errado?
— Vocês podem se materializar dentro de uma parede — Carter respondeu. — Ou acabarem sendo espalhados pelo Duat em um milhão de pedaços.
— Olha, Carter, não importa! Mas realmente, nós vamos ficar bem. E nós não temos muita escolha.
Dei a ele um abraço rápido – eu sei, horrivelmente sentimental, mas eu queria mostrar solidariedade. Depois, antes que eu pudesse mudar de ideia, peguei a mão de Leonid e corremos através do campus.
Minha cabeça ainda estava rodando por causa da minha conversa com Anúbis. Como Ísis e Hórus se atreveram a nos manter afastados quando nós nem mesmo estávamos juntos! E o que será que Anúbis queria me dizer sobre Walt? Talvez ele quisesse terminar nosso lamentável relacionamento e dar sua benção para que eu namore Walt. (Besteira.) Ou talvez ele quisesse declarar seu amor imortal por mim e lutar com Walt pela minha afeição. (Altamente improvável, nem eu gostaria de ser disputada como uma bola de basquete). Ou talvez – mais provável – ele quisesse trazer algumas más notícias.
Que eu saiba, Anúbis tinha visitado Walt em diversas ocasiões. Ambos tinham sido bastante vagos sobre o que tinha sido discutido, mas já que Anúbis era o guia dos mortos, assumi que eles estavam preparando Walt para a morte. Anúbis pode ter querido me avisar que a hora estava chegando – como se eu precisasse de outro lembrete.
Anúbis: fora dos limites. Walt: nas portas da morte. Se eu perdesse ambos os caras que eu gosto, bem... não haveria muito sentido em salvar o mundo.
Tudo bem, isso foi um pouco exagerado. Mas só um pouco.
E no topo disso, minha mãe estava com problemas, e os rebeldes de Sarah Jacobi estavam planejando algum horrível ataque ao quartel general do meu tio. Por que, então, eu me senti tão... esperançosa?
Uma ideia começou a vir até mim – um minúsculo lampejo de uma possibilidade. Não era apenas a perspectiva de que nós poderíamos encontrar uma forma de derrotar a serpente. As palavras de Anúbis continuavam vindo à minha mente: A sombra permanece. Deve-se haver uma maneira de trazer uma alma de volta do esquecimento.
Se uma sombra podia ser usada para trazer de volta uma alma mortal que foi destruída, ela também poderia fazer o mesmo por um deus?
Eu estava tão perdida em meus pensamentos, que mau percebi quando nós chegamos ao prédio de Belas Artes. Leonid me parou.
— Isso para portal? — Ele apontou para o bloco de pedra de calcário esculpida no pátio.
— Sim. Obrigada.
Para encurtar a história: quando eu comecei na BAG, imaginei que seria bom ter uma relíquia egípcia perto para emergências. Então fiz a coisa lógica: peguei emprestado um bloco ornamentado de calcário do Museu do Brooklyn ali perto. Honestamente, o museu tinha rochas suficientes. Não pensei que eles sentiriam falta dessa.
Eu deixei uma cópia no lugar e pedi para Alyssa apresentar o bloco egípcio real ao seu professor de arte como seu projeto – uma tentativa de simular uma forma de arte ancestral. O professor tinha ficado devidamente impressionado. Ele tinha instalado o trabalho de arte de Alyssa no pátio fora da sala de classe. A escultura mostrava pessoas de luto em um funeral, o que eu achava apropriado ao ambiente escolar.
Não era poderoso ou uma peça de arte importante, mas todas as relíquias do Antigo Egito tem alguma quantidade de poder. Como baterias mágicas. Com o treinamento certo, um mago poderia usar para dar um arranque em feitiços que, caso contrário seria impossível, como abrir um portal.
Eu tinha me tornado muito boa especificamente nessa magia. Leonid me deu cobertura quando eu comecei o encanto.
A maioria dos magos espera por “momentos auspiciosos” para abrir portais. Eles gastam anos memorizando uma tabela de tempo de importantes aniversários como a hora do dia em que cada deus tinha nascido, o alinhamento das estrelas, e outras coisas. Suponho que eu deveria me preocupar com essas coisas, mas eu não me preocupava. Dados os milhares de anos da história egípcia, haviam tantos momentos auspiciosos que eu simplesmente fazia o encanto até acertar um.
É claro, eu tinha a esperança do meu portal não se abrir durante um momento não auspicioso. O que poderia ter causado todos os tipos de efeitos colaterais desagradáveis – mas o que é a vida sem tomar alguns riscos?
[Carter está balançando a cabeça e resmungando, Não tenho ideia do por que.]
O ar ondulou na nossa frente. Uma porta circular apareceu – um vórtex rodopiante de areia dourada, e Leonid e eu pulamos nele.

***

Eu gostaria de dizer que meu feitiço funcionou perfeitamente e que nós terminamos no Primeiro Nomo. Infelizmente, eu errei por pouco. O portal nos deixou cem metros acima do Cairo. Eu me vi em queda livre em meio ao ar frio da noite com as luzes da cidade em baixo.
Não entrei em pânico. Eu poderia fazer um número imenso de feitiços para sair daquela situação. Eu poderia até ter assumido a forma de um papagaio (a ave de rapina, não o brinquedo), embora essa não fosse minha forma favorita de viajar. Antes que eu pudesse me decidir por um plano de ação, Leonid agarrou minha mão.
A direção do vento mudou. De repente, nós estávamos planando sobre a cidade em uma descida controlada. Descemos suavemente do lado de fora da cidade próximos a um conjunto de ruínas que eu sabia por experiência esconder uma entrada do Primeiro Nomo.
Eu olhei espantada para Leonid.
— Você conjurou o poder de Shu!
— Shu — ele disse sombriamente. — Sim. Necessário. Eu sei... proibido.
Eu sorri com prazer.
— Garoto esperto! Você aprendeu o caminho dos deuses por conta própria? Eu sabia que havia uma razão para eu não te transformar em uma lesma banana.
Leniod arregalou os olhos.
— Não lesma banana! Por favor!
— Isso era um elogio, idiota. Proibido é bom! Sadie gosta de proibido. Agora, venha. Você precisa conhecer meu tio.

***

Sem dúvidas, Carter poderia descrever a cidade subterrânea com riqueza de detalhes, com as medidas exatas de cada sala, com a história chata de cada estátua e hieróglifo e notas de fundo sobre a construção da sede mágica da Casa da Vida.
Eu vou poupá-los dessa dor.
Ela é grande. Cheia de magia. É subterrânea. Aí está. Detalhado.
Na parte inferior do túnel de entrada, nós cruzamos uma ponte de pedra sobre um abismo, onde fui desafiada por um ba. Um pássaro espírito brilhante (com a cabeça de um famoso egípcio de quem eu deveria saber o nome) me fez uma pergunta: Qual a cor dos olhos de Anúbis?
Castanhos. Dãh. Suponho que ele estava tentando me enganar com uma pergunta fácil.
ba nos deixou entrar na cidade propriamente dita. Eu não a visitava havia seis meses, e estava angustiada por ver quão poucos mágicos haviam restado. O Primeiro Nomo nunca esteve lotado. A magia egípcia tinha enfraquecido ao longo dos séculos com cada vez menos jovens iniciando seu aprendizado naquelas artes.
Agora a maioria das lojas na caverna central estavam fechadas. Nas bancas do mercado, ninguém estava pechinchando pelo preço dos ankhs ou venenos de escorpião. Um vendedor de amuletos parecendo entediado se animou quando nos aproximamos, e depois voltou à mesma quando passamos direto.
Nossos passos ecoavam nos túneis silenciosos. Cruzamos um dos rios subterrâneos, depois fizemos nosso caminho por uma das seções da biblioteca e pela Câmara dos Pássaros.
[Carter diz que eu deveria contar à vocês porque que ela é chamada assim. É uma caverna cheia de todos os tipos de pássaros. De novo – Dãh. Carter porque que você está batendo sua cabeça contra a mesa?]
Levei meu amigo russo por um corredor longo, passamos por um túnel selado que antes levava à Grande Esfinge de Gizé, e finalmente chegamos às portas de bronze do Salão das Eras. Era agora o salão do meu tio, então eu fui entrando.
Lugar impressionante? Certamente, se você o enchesse com água o salão seria largo o suficiente para um grupo de baleias. Correndo pelo meio, um longo tapete azul brilhava como o rio Nilo. Ao longo de cada lado marchavam fileiras de colunas, e entre elas cortinas de luz brilhavam com cenas do passado do Egito – todo tipo de horríveis, maravilhosos e comoventes eventos.
Tentei evitar olhar para eles. Eu sabia por experiência própria que aquelas imagens poderiam ser perigosas de absorver. Uma vez cometi o erro de tocar naquelas luzes, e a experiência quase tinha transformado meu cérebro em mingau.
A primeira seção era de luz era dourada – a Era dos Deuses. Logo depois, o Reino Antigo brilhava prateado, depois o Reino Médio em um marrom cobre e assim por diante. Várias vezes enquanto eu andava, tive que puxar Leonid para fora das cenas que prendiam seus olhos. Honestamente, eu não estava muito melhor.
Fiquei com lágrimas nos olhos quando eu vi uma visão de Bes entretendo os outros deuses fazendo piruetas com uma tanga. (Eu chorei porque eu sentia falta de vê-lo tão cheio de vida, eu quero dizer, apesar da visão de Bes em uma tanga ser o suficiente para fazer os olhos de qualquer um queimarem.)
Nós passamos pelas cortinas de luz de bronze do Novo Reino. Eu parei abruptamente. Nas miragens passageiras, um homem magro usando robes de sacerdote segurava uma varinha e uma faca sobre um touro negro. O homem murmurou como se estivesse abençoando o animal. Eu não poderia dizer mais sobre a cena, mas reconheci o rosto do homem – nariz adunco, testa larga, lábios finos que se torceram em um sorriso perverso enquanto corria a faca ao longo da garganta do pobre animal.
— É ele — murmurei.
Eu andei em direção às cortinas de luz.
— Nyet — Leonid agarrou meu braço. — Você me disse que as luzes são más, fica longe.
— Você... você está certo. Mas aquele é o tio Vinnie.
Eu tinha certeza de que aquele era o mesmo rosto que apareceu na parede no Museu de Dallas, mas como poderia ser? A cena que eu estava olhando devia ter acontecido a milhares de anos atrás.
— Não Vinnie. — Leonid disse. — Khaemwaset.
— Como? — Eu não estava certa se tinha ouvido ele corretamente, ou mesmo em qual linguagem ele tinha falado. — Isso é um nome?
— Ele é... — Leonid escorregou para o russo, depois suspirou exasperado. — Muito difícil de explicar. Vamos ver Amós, que não vai comer meu rosto.
Eu me forcei a parar de olhar a imagem.
— Boa ideia. Vamos continuar.
No final do salão, as cortinas de luz vermelha da Era Moderna mudaram para um roxo escuro. Supostamente, isso marcava o início de uma nova era, mesmo que nenhum de nós soubesse exatamente que tipo de era ela seria. Se Apófis destruísse o mundo, eu achava que seria a Era das Vidas Extremamente Curtas.
Eu esperava ver Amós sentado aos pés do trono do faraó. Aquele era o lugar tradicional para o Sacerdote-leitor Chefe, simbolizando seu papel como conselheiro principal do faraó. É claro que os faraós raramente precisam de conselhos nesses dias, já que todos eles têm estado mortos a vários milhares de anos.
O estrado estava vazio.
Isso me confundiu. Eu nunca havia considerado onde o Sacerdote-leitor Chefe ficava quando ele não estava à mostra. Ele teria um escritório, possivelmente com seu nome e uma pequena estrela na porta?
— Ali — Leonid apontou.
Mais uma vez, meu esperto amigo russo estava certo. Na parede do fundo, atrás do trono, uma linha fraca de luz brilhava no chão – na borda inferior da porta.
— Uma assustadora porta secreta — eu disse. — Muito bom Leonid.
No outro lado, nós encontramos um tipo de sala de guerra. Amós e uma jovem em roupas camufladas estavam situados nos lados opostos de uma grande mesa incrustada com um mapa do mundo a cores. A superfície da mesa estava cheia de pequenas estatuetas – navios pintados, monstros, mágicos, carros e marcadores com hieróglifos. Amós e a garota camuflada estavam tão concentrados em seu trabalho, movendo estatuetas através do mapa, que não nos perceberam inicialmente.
Amós usava as tradicionais túnicas de linho. Com sua forma de barril, a vestimenta o fazia parecer um pouco com o Frei Tuck, de Robin Hood, exceto pela pele negra e o cabelo mais legal. Seus cabelos trançados estavam decorados com contas de ouro. Os óculos redondos refletiam a luz enquanto ele estudava o mapa. Amarrada envolta dos seus ombros estava a capa de pele de leopardo do Sacerdote-leitor Chefe.
Quanto à garota jovem... ah, deuses do Egito. Era Zia.
Eu nunca a tinha visto em roupas modernas antes. Ela vestia calças camufladas, botas de caminhada e um top cor de azeitona que valorizava sua pele acobreada. Seus cabelos negros estavam mais longos do que eu me lembrava. Ela parecia muito mais madura e linda do que era seis meses atrás, e eu estava feliz que Carter não tinha vindo junto. Ele teria tido dificuldades de apanhar seu queixo do chão.
[Sim, você teria, Carter. Ela parecia bastante impressionante, em um estilo Garota Comando.]
Amós moveu uma das estatuetas através do mapa.
— Aqui — ele disse para Zia.
— Tudo bem — ela respondeu. — Mas isso deixa Paris indefesa.
Eu limpei minha garganta.
— Estamos interrompendo?
Amós se virou e abriu um sorriso.
— Sadie!
Ele me esmagou em um abraço, em seguida, esfregou minha cabeça carinhosamente.
— Ai.
Ele riu.
— Me desculpe. Só que é tão bom ver você — ele olhou para Leonid. — E esse é...
Zia amaldiçoou. Ela se pôs entre Amós e Leonid.
— Ele é um dos russos! Porque está aqui?
— Calma — falei a ela — ele é um amigo.
Eu expliquei sobre o aparecimento de Leonid no baile. Leonid tentou ajudar, mas continuava escorregando para o russo.
— Espere — Amós disse. — Vamos facilitar isso.
Ele tocou a testa de Leonid.
— Med-wa.
No ar à nossa frente, o hieróglifo para Falar queimou vermelho:


— Pronto — disse Amós. — Isso deve ajudar.
As sobrancelhas de Leonid se levantaram.
— Você fala russo?
Amós sorriu.
— Na verdade, pelos próximos minutos, nós vamos todos estar falando egípcio antigo, mas soará a cada um de nós como nossa língua nativa.
— Brilhante — falei. — Leonid, é melhor tirar o máximo proveito do seu tempo.
Leonid tirou sua capa e ficou mexendo na aba.
— Sarah Jacobi e seu tenente Kwai... eles planejam atacar vocês.
— Nós sabemos disso — Amós disse secamente.
— Não, vocês não entendem! — A voz de Leonid tremeu com o medo. — Eles são maus! Eles estão trabalhando com Apófis!
Talvez fosse uma coincidência, mas quando ele disse aquele nome, várias estatuetas no mapa mundial tremeram e derreteram. Meu coração se sentiu da mesma maneira.
— Calma aí — eu disse. — Leonid, como você sabe disso?
Suas orelhas ficaram vermelhas.
— Depois da morte de Menshikov, Jacobi e Kwai vieram ao nosso nomo. Nós lhes demos refúgio. Logo Jacobi assumiu o comando, mas meus companheiros não se opuseram. Eles, ah, odeiam muito os Kane — ele me olhou com culpa. — Depois que vocês invadiram nossa sede na primavera passada... bem, os outros russos culparam vocês pela morte de Menshikov e pelo retorno de Apófis. Eles culpam vocês por tudo.
— Estou muito acostumada a isso. Você não sente o mesmo?
Ele torceu sua enorme capa.
— Eu vi o seu poder. Você derrotou o monstro tjesu-heru. Você poderia ter me destruído, mas não o fez. Você não parecia má.
— Obrigado por isso.
— Antes de nos conhecermos, eu fiquei curioso. Comecei lendo pergaminhos antigos, aprendendo a canalizar o poder do deus Shu. Eu sempre fui bom com o elemento ar.
Amós grunhiu.
— Isso exigiu coragem, Leonid. Explorar o caminho dos deuses por conta própria em meio ao Nomo russo? Você foi corajoso.
— Eu era um tolo — a testa de Leonid estava úmida de suor. — Jacobi tem matado magos por pequenos crimes. Um dos meus amigos, um homem velho chamado Mikhail, uma vez cometeu o erro de dizer que todos os Kanes podiam não ser tão ruins. Jacobi o prendeu por traição. Ela o deu para Kwai, que faz magia com... com relâmpagos... coisas terríveis. Eu ouvi Mikhail gritando da masmorra por três dias antes de morrer.
Amós e Zia trocaram olhares severos. Eu tive um sentimento de que aquela não era a primeira vez que eles ouviam sobre os métodos de tortura de Kwai.
— Desculpe-me — Amós disse. — Mas como você pode ter certeza que Jacobi e Kwai estão trabalhando para Apófis?
O jovem russo me olhou em busca de segurança.
— Você pode confiar em Amós — eu prometo. — Ele vai proteger você.
Leonid mordeu seu lábio.
— Ontem eu estava em uma das câmaras bem abaixo do Hermitage, um lugar que eu achava ser secreto. Estava estudando um pergaminho para conjurar Shu... magia muito proibida. Ouvi Jacobi e Kwai se aproximando, então me escondi. Eu ouvi eles falando, mas as vozes deles estavam... estilhaçadas. Eu não sei como explicar.
— Eles estavam possuídos? — Zia perguntou.
— Pior — Leonid disse. — Eles estavam canalizando dúzias de vozes. Era como um conselho de guerra. Eu ouvi muitos monstros e demônios. E conduzindo o encontro havia uma voz, mais profunda e mais poderosa que as outras. Eu nunca tinha ouvido nada como aquilo, era como se as trevas pudessem falar.
— Apófis — Amós disse.
Leonid havia ficado muito pálido.
— Por favor, entenda, a maioria dos magos em São Petersburgo não são maus. Só estão assustados e desesperados para sobreviver. Jacobi convenceu-os de que ela vai salvá-los. Ela tem enganado eles com suas mentiras. Diz que os Kanes são demônios. Mas ela e Kwai... eles são os monstros. Eles não são mais humanos. Montaram acampamento em Abu Simbel. De lá, eles vão liderar os rebeldes contra o Primeiro Nomo.
Amós se virou para o seu mapa. Ele correu com seu dedo pelo sul do Rio Nilo até um pequeno lago.
— Eu não sinto nada no Abu Simbel. Se eles estão lá, conseguiram se esconder completamente da minha magia.
— Eles estão lá — Leonid jurou.
Zia fez uma careta.
— Debaixo dos nossos narizes, dentro de uma distância impressionantemente curta. Nós deveríamos ter matado os rebeldes na Casa do Brooklyn enquanto tínhamos a chance.
Amós balançou sua cabeça.
— Nós somos servos do Maat, Ordem e Justiça. Não matamos nossos inimigos por coisas que eles podem fazer no futuro.
— E agora nossos inimigos vão nos matar — Zia retrucou.
Na mesa mapa, mais duas estatuetas derretiam na Espanha. Um navio em miniatura se quebrou em pedaços na costa do Japão.
Amós fez uma careta.
— Mais perdas.
Ele escolheu uma estatueta de cobra da Coreia e a empurrou para o naufrágio. Tirou do caminho os magos derretidos da Espanha.
— O que é esse mapa? — perguntei.
Zia mudou um símbolo hieróglifo da Alemanha para a França.
— O mapa de guerra de Iskandar. Como eu te disse uma vez, ele era um especialista em magia shabti.
Eu me lembrei. O antigo Sacerdote-leitor Chefe era tão bom que fez uma réplica de própria Zia... mas eu decidi não trazer aquilo de volta.
— Aqueles símbolos representam forças atuais — adivinhei.
— Sim — Amós concordou. — Esse mapa nos mostra os movimentos dos nossos inimigos, pelo menos a maioria deles. Ele também nos permite enviar nossas forças através da magia para onde elas são necessárias.
— E, ah, como estamos indo?
A expressão dele me disse tudo o que eu precisa saber.
— Nós estamos ficando muito espalhados — Amós disse. — Os seguidores de Jacobi atacam em qualquer lugar em que estamos mais fracos. Apófis envia seus demônios para aterrorizar nossos aliados. Os ataques parecem ser coordenados.
— Porque eles são — Leonid disse. — Kwai e Jacobi estão sob o controle da serpente.
Eu balancei minha cabeça em descrença.
— Como Kwai e Jacobi podem ser tão estúpidos? Eles não entendem que Apófis vai destruir o mundo?
— O Caos é sedutor — Amós falou. — Não duvido que Apófis fez a eles promessas de poder. Ele sussurra nos ouvidos deles, os convencendo que são importantes demais para serem destruídos. Eles acreditam que podem fazer um novo mundo melhor do que esse, e estão dispostos a pagar qualquer preço... mesmo o de uma aniquilação em massa.
Eu não podia entender como alguém podia ser tão iludido, mas Amós falou como se entendesse. É claro, ele passou por isso. Havia sido possuído por Set, deus do Mal e do Caos. Comparado a Apófis, Set era um incômodo menor, mas ele ainda foi capaz de transformar meu tio – um dos magos mais poderosos do planeta – em uma marionete indefesa. Se Carter e eu não tivéssemos derrotado Set e o forçado a retornar ao Duat... bem, as consequências não teriam sido boas.
Zia pegou uma estatueta de falcão. Ela a moveu para Abu Simbel, mas a pequena estátua começou a se vaporizar. Ela foi forçada a largá-la.
— Eles colocaram proteções poderosas — ela disse. — Nós não seremos capazes de espionar.
— Eles vão atacar em três dias — Leonid disse. — Ao mesmo tempo, Apófis irá erguer-se... na madrugada do dia do equinócio de outono.
— Outro equinócio? — resmunguei. — O último punhado de maldade não aconteceu em um desses? Vocês egípcios tem uma obsessão doentia por equinócios.
Amós me deu um olhar severo.
— Sadie, como eu tenho certeza que você está consciente, o equinócio é um momento de grande importância mágica, quando o dia e a noite são iguais. Além de que o equinócio de outono marca o último dia antes de a escuridão ultrapassar a luz. É o aniversário da retirada de Rá para os céus... Eu temia que Apófis pudesse fazer seu movimento nessa hora. É o dia mais agourento.
— Agourento? — franzi minha testa. — Mas agourento é ruim... ah.
Eu percebi que para as forças do Caos, nossos dias ruins eram dias bons. O que significava que eles provavelmente tinham muitos dias bons.
Amós se apoiou no seu cajado. Seu cabelo parecia estar se tornando cinza diante dos meus olhos. Eu me lembrei de Michel Desjardins, o último Sacerdote-leitor Chefe, e o quão rápido ele tinha envelhecido. Eu não poderia suportar a ideia daquilo acontecendo com Amós.
— Nós não temos forças para derrotar nossos inimigos. Eu vou ter que usar outros métodos.
— Amós, não — Zia interviu. — Por favor.
Eu não tinha certeza sobre o que eles estavam falando. Zia soava horrorizada, e alguma coisa que a assustava, eu não queria saber sobre.
— Na verdade — falei — Carter e eu temos um plano.
Eu contei a eles sobre nossa ideia de usar a própria sombra de Apófis contra eles. Talvez dizer aquilo em frente a Leonid fosse arriscado, mas ele tinha arriscado a própria vida para nos avisar sobre os planos de Sarah Jacobi. Ele tinha confiado em mim. O mínimo que eu podia fazer era retornar o favor.
Quando terminei de explicar, Amós olhou para o seu mapa.
— Eu nunca tinha ouvido falar de tal magia. Mesmo que seja possível...
— É possível — insisti — por qual outro motivo Apófis atrasaria seu ataque do Juízo Final senão para caçar e destruir todos os pergaminhos feitos por Setne? Apófis está com medo de que nós descubramos o feitiço e que paremos ele.
Zia cruzou seus braços.
— Mas você não pode. Você acabou de dizer que todas as cópias foram destruídas.
— Nós vamos pedir ajuda a Tot — eu disse. — Carter está indo agora mesmo. E enquanto isso... tenho uma missão a executar. Eu posso ser capaz de testar nossa teoria sobre as sombras.
— Como? — Amós perguntou.
Contei a ele o que eu tinha em mente.
Ele me olhou como se fosse objetar, mas deve ter visto o desafio em meus olhos. Nós éramos parecidos apesar de tudo. Ele sabia quão teimoso os Kane podem ser quando colocam alguma coisa na cabeça.
— Muito bem. Primeiro você deve comer e dormir. Você pode ir de madrugada. Zia, quero que você vá com ela.
Zia olhou surpresa.
— Eu? Mas eu deveria... quero dizer, será que isso é sábio?
De novo eu tinha o sentimento de que eu tinha perdido uma parte importante da conversa. O que Amós e Zia teriam estado discutindo?
— Você vai ficar bem — Amós assegurou a ela. — Sadie vai precisar de sua ajuda. E eu vou arrumar mais alguma pessoa para ficar de olho em Rá durante o dia.
Ela parecia um pouco nervosa, o que não era próprio dela, Zia e eu tivemos nossas diferenças no passado, mas ela nunca tinha tido falta de confiança. Agora eu quase me sentia preocupada com ela.
— Anime-se — falei. — Isso vai ser moleza. Uma viagem rápida para o Inferno, ao lago de fogo da desgraça. O que poderia dar errado?

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